Grieving Soul â CapĂtulo 1 â Volume 8
Nageki no Bourei wa Intai shitai
Let This Grieving Soul Retire Volume 08
CapĂtulo 1:
[Defendendo o Mil Truques]
O salĂŁo do clĂŁ Primeiros Passos era famoso por todo o impĂ©rio. Caçar tesouros podia ser um trabalho extremamente lucrativo, especialmente para os melhores entre os melhores. Em uma Ășnica expedição, um caçador de primeira linha poderia ganhar o que um civil comum levaria a vida inteira para juntar.
A sede do clĂŁ Primeiros Passos era uma construção moderna, financiada por alguns dos caçadores mais promissores da capital imperial. Era tambĂ©m um sĂmbolo de admiração para todos que viviam do ofĂcio de caçar tesouros. Combinando isso a um nome que soava como âcoisa de novatosâ, era fĂĄcil entender por que Primeiros Passos inspirava tantos sonhos nos caçadores iniciantes.
Os caçadores de tesouros ocupavam uma posição poderosa na capital, e aquele edifĂcio branco e reluzente, erguido em uma das melhores localizaçÔes da cidade, reforçava bem essa imagem. O mestre do clĂŁ provavelmente tinha isso em mente quando escolheu o local para estabelecer sua base.
Curioso era o fato de que alguém tão preocupado com visibilidade tivesse escolhido uma pessoa até então desconhecida para ser sua vice-mestra de clã.
â O mestre do clĂŁ estĂĄ atualmente ocupado com outros assuntos, portanto nĂŁo posso agendar uma reuniĂŁo com ele â disse a vice-mestra Eva Renfied com um tom burocrĂĄtico e impassĂvel. â Estou ciente das circunstĂąncias, mas ainda assim preciso pedir que se retirem.
Ă frente dela estava Gark, sentado Ă grande mesa no centro do espaçoso salĂŁo. Gark era o chefe da filial da Associação dos Caçadores na capital imperial. Embora jĂĄ tivesse se aposentado da vida de caçador, o DemĂŽnio da Guerra ainda impunha respeito no meio. Poucos ousavam enfrentĂĄ-lo e menos ainda entre os civis que nĂŁo possuĂam material de mana. Em toda a capital, seria difĂcil encontrar uma dezena de pessoas capazes disso.
Era de conhecimento geral que uma mulher excepcional servia como braço direito do habilidoso Mil Truques, tendo desempenhado um papel essencial na ascensão do clã Primeiros Passos ao poder. Gark, no entanto, sabia que ela também precisava repreender Krai de tempos em tempos e que o apoiava tanto em assuntos pessoais quanto profissionais.
Ele tambĂ©m sabia que, uma vez que Eva tomava uma decisĂŁo, era inĂștil tentar fazĂȘ-la mudar de ideia. Ăs vezes ela atĂ© colaborava para persuadir Krai, mas, se dizia que nĂŁo haveria reuniĂŁo, entĂŁo nenhuma quantia de dinheiro ou intimidação surtiria efeito. Diferente de Krai, ela era lĂłgica, conhecia bem as leis imperiais e os regulamentos da Associação dos Caçadores. Sabia que, como civil, a Associação nĂŁo tinha qualquer autoridade sobre ela.
Gark jamais cogitaria usar violĂȘncia em um lugar como aquele. O salĂŁo estava cheio de caçadores do Primeiros Passos, nenhum deles do tipo que recua diante de um chefe de filial da Associação. Mesmo sem eles, recorrer Ă força contra civis estava fora de questĂŁo.
AlĂ©m disso, os outros funcionĂĄrios da Associação que o acompanhavam jĂĄ haviam desistido de tentar obter uma audiĂȘncia.
Se o Mil Truques trabalhasse sĂł um pouquinho mais, Zebrudia seria o dobro do que Ă© hoje â brincou Gark.
Se o Mil Truques trabalhasse um pouquinho mais, eu desabaria de exaustĂŁo â respondeu Eva, seca.
Gark suspirou. Ele tinha ido até ali para informar Krai sobre os avanços desde o Festival do Guerreiro Supremo e confirmar alguns detalhes com ele.
Bastava uma breve descrição dos Ășltimos acontecimentos para perceber que a histĂłria estava sendo escrita. Houve uma grande guerra de territĂłrios, seguida por uma declaração de guerra feita pelo lĂder de uma organização poderosa durante um torneio famoso. Depois disso, a Chave da Terra quase libertou uma força capaz de arrasar vĂĄrias naçÔes. Felizmente, conseguiram conter a RelĂquia a tempo.
Duas semanas haviam se passado desde aquele incidente que deixou tanta gente em alerta. O império e seus aliados estavam agora empenhados em erradicar a Raposa Sombria de Nove Caudas, e o plano estava avançando melhor do que o esperado.
A Raposa era uma organização devotada ao sigilo, com um longo histĂłrico de crimes sombrios. O impĂ©rio e a Associação jĂĄ haviam conduzido inĂșmeras investigaçÔes secretas, porĂ©m, aprenderam quase nada. Conseguiram unir vĂĄrias naçÔes contra a Raposa, mas nĂŁo podiam atacar enquanto os nomes e localizaçÔes de seus membros permanecessem desconhecidos.
Eles se preparavam para uma batalha prolongada quando algo inesperado aconteceu, um membro da Raposa traiu a organização e ofereceu informaçÔes a Zebrudia. Essa pessoa não era de alto escalão, e as informaçÔes que trouxe eram escassas e pouco significativas, mas um desertor de uma entidade tão evasiva ainda era um acontecimento importante.
Enquanto isso, para surpresa de Gark, a equipe anti-Raposa começava a tomar forma. Ele realmente não esperava ver Murina saindo das sombras para participar.
Dada a gravidade do assunto, Gark queria falar com Krai pessoalmente mas poderia deixar uma mensagem. Em sua experiĂȘncia, se o Mil Truques nĂŁo queria se encontrar, era porque julgava desnecessĂĄrio. Se fosse qualquer outro caçador, Gark faria de tudo para arrancar uma conversa. Mas este homem… era conhecido por sua engenhosidade sobre-humana, uma intuição quase anormal e uma percepção que beirava a adivinhação. Um histĂłrico tĂŁo impressionante que atĂ© o impĂ©rio era forçado a reconhecĂȘ-lo.
Pensando bem, o jeito como ele resolveu aquele incidente no torneio… nĂŁo pareceu com ele â murmurou Gark, incerto.
Eva permaneceu em silĂȘncio. AtĂ© entĂŁo, o Mil Truques havia enfrentado organizaçÔes, bandidos e atĂ© fantasmas com tĂĄticas que beiravam o absurdo. Quando Krai encarou o homem mascarado de raposa, ninguĂ©m interveio porque parecia estar no controle. Essa hesitação deu Ă Raposa a chance que precisava para escapar.
Era estranho.
Se Krai realmente nĂŁo quisesse que aquele homem escapasse, bastaria ter posicionado pessoas em qualquer uma das possĂveis rotas de fuga. Com aliados como Luke e Liz disponĂveis, ele tinha força de sobra Ă disposição sem contar que a barreira ao redor da arena havia limitado bastante as rotas de saĂda.
Nada disso podia ter passado despercebido por Krai. Gark tinha certeza de que, mesmo que ele estivesse completamente confiante em seu plano, o Krai de sempre teria deixado seus companheiros de prontidĂŁo, apenas o suficiente para impedir que o inimigo escapasse. EntĂŁo, por que ele nĂŁo selou as saĂdas? Teria contado com as centenas de caçadores presentes no torneio?
Deixar aquele homem fugir nĂŁo parecia algo que o verdadeiro Krai faria. E ainda havia o fato de que, mesmo com a fuga, as investigaçÔes do impĂ©rio estavam dando resultado. Para Gark, sĂł havia uma explicação plausĂvel, e se tudo aquilo fizesse parte do plano? E se a fuga do homem mascarado e o aparecimento do desertor fossem parte dos cĂĄlculos de Krai?
Em circunstùncias normais, permitir a fuga de alguém tão importante para o inimigo seria impensåvel. Mas e se Krai tivesse decidido que deixå-lo ir seria benéfico para ele e para o império?
Uma coisa, porĂ©m, Gark sabia com certeza: o incidente no torneio havia abalado um inimigo antes considerado inabalĂĄvel. Certamente nem mesmo alguns membros da Raposa esperavam que a organização ativasse uma RelĂquia de poder apocalĂptico. Como resultado, alguns decidiram cortar laços e fugir.
A Raposa Sombria de Nove Caudas era poderosa, mas nĂŁo o suficiente para enfrentar vĂĄrias naçÔes ao mesmo tempo, especialmente agora que Rodrick Atolm Zebrudia parecia disposto a eliminar qualquer nobre que se recusasse a cooperar com sua causa. Gark, o impĂ©rio… atĂ© o prĂłprio homem mascarado, todos estavam incertos sobre o que realmente havia acontecido durante o Festival do Guerreiro Supremo. Apenas uma pessoa sabia a verdade.
Um dos motivos da visita de Gark era entregar algo. Ele retirou um pequeno objeto do bolso e os olhos de Eva se arregalaram assim que o viu. Aqueles fragmentos negros, cobertos por um padrĂŁo estranho, eram uma das variedades de RelĂquias mais conhecidas que existiam.
Isto é uma Pedra Sonora do senhor Franz. Acho que não preciso dizer que ele prefere manter as coisas em sigilo. Preciso que entregue isso a Krai. O império e seus aliados ainda estão discutindo a melhor forma de atacar a Raposa, mas se algo acontecer, o senhor Franz vai querer saber imediatamente.
Confiar demais em caçadores nĂŁo era algo bem visto para um impĂ©rio, mas tambĂ©m nĂŁo havia sentido em ignorar um recurso Ăștil. A maioria dos nobres estremeceria sĂł de pensar em dar a um caçador um meio direto de comunicação. Contudo, em nome do impĂ©rio, Sir
Franz estava disposto a deixar de lado o orgulho pessoal e cumprir a missão. Krai, claro, corria o risco de ser acusado de difamação se dissesse algo errado mas brincar com fogo era algo que ele fazia o tempo todo.
Eva encarou a Pedra Sonora por um breve instante antes de assentir.
Entendido. Vou garantir que Krai aceite.
Temos dias complicados pela frente â disse Gark.
Ele se referia, em parte, Ă enorme recompensa colocada pela cabeça do Mil Truques. Aquele homem jĂĄ estava acostumado a lidar com canalhas, mas aquela quantia era grande o suficiente para fazer muita gente arriscar a vida enfrentando um NĂvel 8.
Claro, Gark não achava que ele cairia tão facilmente. Krai Andrey não era mais o jovem que havia chegado à capital sonhando em se tornar um caçador. Ele havia ficado mais forte. Talvez não aparentasse, mas construiu um clã, fortaleceu seus aliados e conquistou a confiança de muitos. Agora que havia declarado guerra à Raposa, fracassar não era uma opção, seria um golpe fatal na moral de todos.
Gark cruzou os braços.
Eva, Ă© possĂvel que qualquer um atrĂĄs do Mil Truques acabe representando perigo pra vocĂȘ e pros outros funcionĂĄrios do Primeiros Passos. Tome cuidado.
JĂĄ estou ciente disso hĂĄ muito tempo. Lembre-se, Gark: este prĂ©dio estĂĄ repleto de caçadores, e, por ordem do mestre do clĂŁ, os andares superiores foram construĂdos para resistir a um ataque. Devemos recuar pra lĂĄ enquanto os caçadores dos dois primeiros andares seguram o inimigo. Felizmente, nunca tivemos de recorrer a esse tipo de medida.
Hmm. EntĂŁo vocĂȘs jĂĄ estĂŁo preparados desde o começo? Ă uma precaução natural quando se contrata nĂŁo combatentes, mas devo dizer que estou impressionado.
Colocar-se no lugar de quem nĂŁo pode lutar Ă© mais difĂcil do que parece. Mesmo na Associação dos Caçadores, Gark nĂŁo podia garantir que seus prĂłprios funcionĂĄrios estivessem completamente a salvo.
Investir dinheiro na segurança dos empregados certamente deve ter causado protestos entre os caçadores que ajudaram a financiar a sede do clã. Mas, pelo visto, aquele homem aparentemente desleixado não estava fazendo um mau trabalho como mestre de clã, tomava as decisÔes certas quando realmente importava.
Estamos perfeitamente seguros â afirmou Eva. â Enquanto o terceiro andar e os superiores sĂŁo reforçados, o primeiro e o segundo sĂŁo comparativamente mais frĂĄgeis. Krai diz que Ă© porque, se esses andares se tornarem um campo de batalha, nĂŁo hĂĄ reforço que vĂĄ adiantar.
Tem certeza disso?
Gark hesitou por um instante. Pelo que lembrava, o mestre do clĂŁ nĂŁo tinha tanta autoridade sobre os caçadores. Seria seguro presumir que eles ajudariam a defender o prĂ©dio em caso de ataque? Ele afastou a dĂșvida e decidiu nĂŁo insistir. Talvez nĂŁo fosse um pensamento
apropriado para um chefe de filial da Associação, mas, se fosse escolher, preferia ver um caçador arriscar a vida a permitir que um civil se ferisse. Uma das missÔes da Associação era garantir que os fortes protegessem os fracos.
Como sempre â disse ele â, se algo acontecer, entre em contato com a Associação dos Caçadores. Faremos o possĂvel para ajudar.
Vou contar com vocĂȘs â respondeu Eva.
Gark nĂŁo tinha muito tempo livre. Encerrando a conversa ali mesmo, ele se levantou.
A primeira coisa na sua lista era descobrir se havia algum espião da Raposa infiltrado entre os funcionårios e caçadores da Associação. Só de pensar nisso, jå sentia dor de cabeça. InvestigaçÔes nunca foram seu ponto forte e o fato de jå terem descoberto dois traidores, Telm e Kechachakka, ambos infiltrados na comitiva do imperador, só tornava tudo pior.
Felizmente, Krai havia conseguido detĂȘ-los antes que causassem qualquer dano sĂ©rio. Mas agora, Gark nĂŁo podia simplesmente aceitar uma investigação que terminasse sem resultados. SĂł de pensar no trabalho que tinha pela frente, soltou um suspiro. E entĂŁo, ouviu uma voz familiar.
Ah, aĂ estĂĄ vocĂȘ, Eva. Sobre o visitante de hojeâ Agh! Gark?!
Krai?! â Eva exclamou.
Quem enfiou a cabeça na sala foi Krai Andrey, o Mil Truques e mestre do clĂŁ Primeiros Passos. O mesmo homem que, momentos atrĂĄs, havia recusado se encontrar com Gark. Os dois cruzaram olhares, e o silĂȘncio tomou conta da sala. Os outros funcionĂĄrios da Associação o encaravam boquiabertos o caçador de sorriso torto estava ali.
Ele nĂŁo estava ocupado com outro assunto? E Eva nĂŁo tinha acabado de dizer que ele nĂŁo podia receber visitas? E aquele âaghâ o que foi?! Eva olhou de canto para Gark, desconfortĂĄvel. Mesmo alguĂ©m tĂŁo hĂĄbil quanto ela nĂŁo conseguia esconder o constrangimento diante da aparição repentina do homem que supostamente estava indisponĂvel.
Krai franziu a testa e se aproximou de Gark, lançando olhares cautelosos ao redor.
Estava conversando com a Eva? Olha, desculpa, mas estou esperando um visitante importante…
Conversando com a Eva?! Eu vim aqui pra falar com vocĂȘ!
Antes que Gark pudesse dizer isso em voz alta, uma janela se estilhaçou com um estrondo, lançando uma chuva de fragmentos cintilantes. Apesar de aposentado, sua visĂŁo ainda era aguçada o bastante para ver claramente o que havia atravessado o vidro, uma Ășnica flecha.
Ele reagiu no mesmo instante. O grande projétil dourado atravessou o vidro como se fosse nada, vindo direto na direção da cabeça de Krai, como se fosse puxado por uma força
invisĂvel. E, como sempre, o projĂ©til ricocheteou, como se tivesse batido contra uma parede invisĂvel.
Q-quĂȘ foi isso?! â disse Krai, sem demonstrar nem um pingo de perturbação.
Enquanto ele permanecia parado, a sĂșbita interrupção fez os outros caçadores se prepararem para uma possĂvel batalha.
O quĂȘ?! Foi a Liz?! Ou o Luke?!
Ă um ataque!
Como colecionador de RelĂquias, nĂŁo era surpresa que Krai Andrey possuĂsse vĂĄrios AnĂ©is de Proteção. Mas o atacante certamente tinha levado isso em conta, aquela âBarreira Absolutaâ, como alguns chamavam.
Krai pegou a flecha e olhou em volta, alarmado. A ponta era afiada o bastante para arrancar a cabeça de uma fera mĂtica, e amarrado a ela havia uma pequena caixa preta.
Como os AnĂ©is de Proteção eram dispositivos poderosos, acabaram desenvolvendo contramedidas contra eles. Atacar duas vezes havia se tornado o padrĂŁo em assassinatos, entĂŁo nĂŁo era difĂcil imaginar o que podia haver naquela caixa.
Gark se colocou Ă frente de seus subordinados e gritou:
KRAI, ISSO Ă UMA BOMBA!
O quĂȘ?! Gark, pega! â disse Krai, erguendo a flecha e a arremessando em direção ao gerente da filial.
HĂŁ?!
AtÎnito, Gark viu o projétil girar pelo ar antes de deslizar pelo chão e parar bem à sua frente. Num movimento tão fluido que parecia ensaiado, Krai se moveu para proteger Eva, que soltou um grito de susto.
Esse era o âvisitanteâ que Krai disse que estava esperando?!
Gark ergueu os braços para proteger o rosto. No instante seguinte, o mundo explodiu em branco, e uma onda de calor o atingiu em cheio. Ele foi arremessado para trås, batendo violentamente contra a parede. A dor intensa o manteve consciente, mas sua cabeça latejava, e o mundo girava.
Droga! Como isso aconteceu?!
Por sorte, por causa das broncas da Liz, Gark vinha absorvendo material de mana regularmente. Se nĂŁo fosse por isso, teria saĂdo muito pior. Que tentativa de assassinato mais porca, se Krai era o alvo, quem quer que tenha planejado isso fez um pĂ©ssimo trabalho. Se atĂ© um caçador aposentado como Gark conseguiu sair vivo, Ă© claro que alguĂ©m jovem e no topo da elite como Krai sairia ileso.
Com as pernas protestando, Gark forçou o corpo a se levantar. Ignorando o sangue escorrendo da testa, avaliou os danos. Parecia que ele havia levado a pior. Seus subordinados, ao que tudo indicava, reagiram råpido, estavam quase todos bem.
Algo foi jogado pela janela quebrada. Um gancho, seguido por outros, todos presos a cordas. O assassino estava tentando aproveitar o caos da explosĂŁo!
Antes que Gark pudesse dizer qualquer coisa, vĂĄrias criaturas enormes invadiram pela porta. Tinham pele acinzentada e cabelos longos. Por um instante, Gark pensou que fossem algum tipo derivado de Matadinho, a criatura mĂĄgica criada por Sitri. Mas nĂŁo, eram aquelas estranhas criaturas Sapiens que ele vinha vendo ultimamente.
Elas se moviam pela capital como se pertencessem ali, o que, no inĂcio, gerou muitas dĂșvidas. Mas sua natureza amigĂĄvel, inteligĂȘncia e habilidade tĂ©cnica acabaram conquistando os moradores rapidamente.
Ryuu! â gritou o pequeno Sapien Ă frente do grupo.
SerĂĄ que era dela que Krai estava falando quando mencionou um âvisitanteâ? Pensando bem, Gark lembrava de ter ouvido rumores de que essas criaturas haviam sido trazidas Ă capital pelos Grieving Souls.
Os Sapiens maiores invadiram a sala, investindo contra os invasores que desciam pelas cordas. Krai se levantou e observou a cena, impressionado.
As pernas de Gark cederam. Ele caiu no chĂŁo, enquanto o caos infernal tomava conta do lugar.
Quando soube do ocorrido, Tino correu para a sede do clĂŁ e se deparou com uma visĂŁo deplorĂĄvel.
Meu Deus… â murmurou ela.
O amado salão de descanso estava um completo caos. As grandes janelas haviam sido estilhaçadas, e as cadeiras e mesas, antes organizadas, estavam espalhadas por todo o lugar. O piso, que costumava ser polido regularmente, agora exibia rachaduras e algumas marcas de queimadura.
A limpeza jĂĄ havia começado, mas ainda havia muito o que fazer. Era evidente que o ataque tinha sido brutal e sem nenhuma preocupação com possĂveis danos colaterais. Caçadores e funcionĂĄrios trabalhavam para remover os destroços, mas levaria um bom tempo atĂ© que o salĂŁo voltasse Ă sua antiga glĂłria.
Tino caminhou até o centro do salão, onde os danos eram piores, e se agachou. Provavelmente foi ali que a bomba havia explodido. Não havia mais cadeiras ou mesas por perto, apenas uma grande cratera e algumas manchas queimadas. Ela percebeu uma silhueta no chão, sugerindo que alguém havia se jogado para se proteger.
Mas o que realmente chamou sua atenção foi outra coisa. Perto do centro da explosão, havia uma årea que permanecera intocada. Era uma marca em forma de leque, como se as chamas tivessem batido em uma parede grossa. Sem sinais de fuligem ou queimadura, aquele pedaço de chão era uma completa anomalia.
Um caçador de alto nĂvel, com bastante material de mana, podia suportar coisas que nenhum civil conseguiria. Havia ataques capazes de matar uma pessoa comum instantaneamente, mas que muitos caçadores aguentariam sem grandes problemas. AtĂ© mesmo Tino era muito mais resistente do que alguĂ©m comum.
Quando o assunto era resistĂȘncia, o caçador mais famoso era Ansem, o ImutĂĄvel, que havia dedicado praticamente todo o seu material de mana a esse atributo. As marcas deixadas ali indicavam que quem estivesse de pĂ© naquele ponto era tĂŁo resistente quanto qualquer caçador de NĂvel 8.
Enquanto removia alguns destroços, Lyle percebeu a presença de Tino e se aproximou.
TerrĂvel, nĂ©? â comentou ele. â Que tipo de rancor faz alguĂ©m lançar um ataque desses em plena luz do dia?
O Krai estĂĄ bem? â perguntou Tino.
Precisa mesmo perguntar? â respondeu Lyle, com um meio sorriso. â Ele estĂĄ Ăłtimo. As Ășnicas pessoas feridas foram as que tiveram o azar de estar no salĂŁo junto com ele. Gark foi o que se deu pior… jĂĄ que o Krai jogou a bomba pra cima dele. Cara, o Gark deve ser algum tipo de monstro. A bomba explodiu bem na cara dele e ele ainda tĂĄ de pĂ©.
O Krai… jogou a bomba pra ele?
Lyle deu de ombros. â Pois Ă©. Ele gritou âGark, pega!â e mandou ver. Acho que atĂ© bomba Ă© coisa pequena pro Krai.
Tino soltou um suspiro. Seu mestre era igual com todo mundo, atĂ© com um gerente da Associação dos Caçadores. O caçador de NĂvel 8 realmente era uma fera assustadora, capaz de fazer algo tĂŁo absurdo quanto arremessar uma bomba no gerente de uma filial. Mas se ele podia suportar uma explosĂŁo Ă queima-roupa, entĂŁo por que jogar a bomba? Tino concluiu que sua prĂłpria burrice era o motivo de nĂŁo conseguir entender a lĂłgica por trĂĄs disso.
Pegaram os atacantes? â ela perguntou.
Pegaram, sim â respondeu Lyle. â Os que vieram depois da explosĂŁo. VocĂȘ devia ter visto. Foram capturados por aqueles Trogloditas, sabe? Aqueles que Ă s vezes passam por aqui. VocĂȘ conhece, nĂ©?
Tino permaneceu em silĂȘncio.
Aqueles caras sĂŁo incrĂveis. Duros como pedra, e tem um monte deles. Antes que a gente pudesse fazer qualquer coisa, eles jĂĄ tinham invadido e acabado com tudo. Eu, sinceramente, espero nunca ter que enfrentar um bicho daqueles.
Lyle tinha um sorriso nos lĂĄbios, mas seus olhos nĂŁo acompanhavam o mesmo humor.
Os Trogloditas eram aquelas criaturas Sapiens aterrorizantes que eles tinham encontrado durante as fĂ©rias. As fĂȘmeas eram pequenas e esguias, enquanto os machos eram grandes e musculosos. Produziam um som caracterĂstico de âryu-ryuâ e lutavam usando os prĂłprios cabelos, manipulando-os como se fossem tentĂĄculos.
Eram incrivelmente leais Ă sua rainha, segundo Siddy, a rainha que eles haviam conhecido em Suls se chamava Ryuulan, e nĂŁo hesitavam em dar a vida por ela. Pouco tempo atrĂĄs, haviam causado um caos numa cidade termal por ordem dela. Ao que diziam, possuĂam atĂ© um impĂ©rio subterrĂąneo, embora Tino nunca o tivesse visto pessoalmente.
O que mais a espantava era o fato de seu mestre estar em bons termos com eles. Ela jĂĄ havia começado a vĂȘ-los pela capital imperial. Ouviu dizer que Siddy havia negociado uma parceria e que agora eles trabalhavam juntos em projetos de construção. Siddy realmente era formidĂĄvel, firmar uma aliança com um grupo que tinha tentado matĂĄ-la nĂŁo era algo que qualquer um faria.
E pensar que seu mestre não só subjugava humanos, mas até outras raças! Ele realmente estava além dos mortais!
Pena que nĂŁo conseguimos nada de Ăștil com os capturados â continuou Lyle. â Eram todos peĂ”es. Isso aqui, com certeza, foi obra de um profissional. E mais, aposto que nem era uma tentativa real de matar o Krai. A flecha e a bomba foram muito fracas para isso, e o mesmo vale para aqueles soldados. Deve ter sido sĂł um teste… pra ver se descobriam algum ponto fraco dele.
A explicação fazia sentido. O tĂtulo de NĂvel 8 sĂł era concedido Ă queles capazes de sobreviver a incontĂĄveis batalhas infernais. Uma simples flecha e uma explosĂŁo nĂŁo seriam suficientes, muito menos uma emboscada malfeita. Afinal, aquele era o salĂŁo de um dos melhores clĂŁs da capital imperial. Mesmo que os Trogloditas nĂŁo estivessem lĂĄ, ainda havia Drink, que via humanos apenas como possĂveis refeiçÔes.
Atacar a sede do clĂŁ Primeiros Passos sem sequer fazer reconhecimento prĂ©vio era praticamente suicĂdio. Embora, pensar em se infiltrar ali jĂĄ fosse assustador por si sĂł. AlĂ©m disso, o mestre de Tino nĂŁo tinha fraquezas.
Ela cerrou o punho e perguntou:
JĂĄ investigaram quem estĂĄ por trĂĄs disso?
Se Lyle estivesse certo, haveria outro ataque. E seria muito mais brutal, o tipo de plano que sĂł alguĂ©m confiante em derrubar um NĂvel 8 tentaria. O mestre de Tino era incomparĂĄvel… mas isso nĂŁo era motivo para ficar parada esperando os assassinos baterem Ă porta.
Lyle disse que eles nĂŁo tinham descoberto nada, mas nĂŁo poderia haver muitos assassinos insanos o bastante para mirar em um caçador de alto nĂvel. Tino tinha certeza de que, se procurassem com afinco, acabariam encontrando o culpado.
Mas Lyle não parecia tão confiante. Coçando a cabeça, ele disse:
Krai disse que estĂĄ ocupado e que nĂŁo tem tempo pra lidar com o assassino.
HĂŁ?!
Ele falou umas coisas tipo que jå esperava o ataque, reclamou que estava ocupado demais pra isso, chamou os caras de ousados e⊠acho que também comentou que tem suspeitos demais. Me poupe, né.
Entendo â respondeu Tino, depois de um tempo.
Lyle fez uma careta e estalou a lĂngua, claramente frustrado. Era uma expressĂŁo com a qual Tino se identificava profundamente.
Nobres e criminosos precisavam manter as aparĂȘncias e com os caçadores de tesouros nĂŁo era diferente. Se ninguĂ©m os levasse a sĂ©rio, era o fim da carreira. Caçadores, no geral, eram gente dura, e a maioria dos cofres do tesouro ficava em locais isolados. Por isso, nĂŁo era raro que os espĂłlios das expediçÔes fossem tomados Ă força, e tambĂ©m havia bandidos que se especializavam em enfrentar caçadores.
Ăs vezes, os caçadores eram obrigados a lutar mesmo sem chances reais de vitĂłria. Outras vezes, tinham de buscar vingança. Era parte do ofĂcio e os Grieving Souls nĂŁo eram exceção. Ser atacado dentro do prĂłprio salĂŁo da guilda e nĂŁo revidar poderia ser desastroso para a reputação do grupo.
Os Grieving Souls tinham uma longa lista de inimigos. O Ășnico motivo de nĂŁo terem sido atacados com tanta frequĂȘncia ultimamente era que seus rivais haviam perdido a vontade de lutar. Mas jĂĄ havia rumores circulando de que o Mil Truques, o homem que nunca deixava uma presa escapar, tinha falhado pela primeira vez, e que agora havia uma recompensa por sua cabeça.
Demonstrar fraqueza em uma situação dessas seria o suficiente para encorajar qualquer bandido que tivesse alguma rixa com o mestre de Tino. Ainda assim, ela nĂŁo fazia ideia de quantas pessoas isso realmente incluĂa.
Pelo que ouvi, a presença dos Troglodytes por perto foi pura coincidĂȘncia. O que diabos o CM tĂĄ pensando?
O corpo de Tino estremeceu. Ela balançou a cabeça imediatamente. Lyle estava enganado, era o contrĂĄrio. A Tino de antes nĂŁo teria percebido, mas a Tino de agora havia aprendido com suas experiĂȘncias. Ela era apenas um pouquinho mais capaz de entender as intençÔes do seu mestre, o que lhe permitia montar parte do quebra-cabeça.
A resposta ambĂgua ao ataque, a ajuda inesperada dos Troglodytes, a decisĂŁo de nĂŁo buscar vingança⊠tudo isso sĂł podia significar uma coisa. Seu mestre estava deliberadamente fingindo fraqueza para atrair mais inimigos e exterminĂĄ-los todos de uma vez.
Em situaçÔes de assassinato, o lado que ataca sempre tem vantagem, afinal, Ă© quem escolhe o momento e o mĂ©todo. Era impossĂvel manter-se alerta o tempo todo para algo
que podia acontecer a qualquer instante, e também não dava pra se esconder para sempre em um local seguro.
Ainda assim, atrair assassinos de propĂłsito nĂŁo era uma solução normal. Essa demonstração de vulnerabilidade atrairia hordas de agressores. EliminĂĄ-los todos de uma sĂł vez seria muito mais difĂcil do que lidar com eles individualmente.
Mas se o risco nĂŁo fosse levado em conta, atrair os inimigos era a maneira mais rĂĄpida de se livrar deles. Provavelmente, era tambĂ©m o Ășnico meio de forçar os mais cautelosos a se revelarem. Era quase impossĂvel caçar ameaças que ainda nĂŁo haviam se mostrado e erradicar as organizaçÔes inteiras era a Ășnica forma de garantir que nĂŁo sobrassem sobreviventes para ressurgirem depois.
O Mil Truques nĂŁo era um alvo que se pudesse derrubar sozinho. Se esse ataque inicial tivesse sido apenas para coletar informaçÔes, o prĂłximo seria uma grande investida conjunta. E qualquer assassino disposto a mirar em um caçador de alto nĂvel provavelmente seria poderoso demais para Tino, talvez atĂ© demais para o prĂłprio Primeiros Passos.
Ela sentia um nĂł de dĂșvida apertando sua mente, seria aquele outro dos Mil Desafios? Seria uma guerra⊠pois nĂŁo havia outra palavra que definisse um conflito entre o Primeiros Passos e uma aliança coordenada de assassinos.
Tino?! O que foi? VocĂȘ começou a tremer do nada.
TĂŽ bem. SĂł estou tremendo de… expectativa.
Rapidamente, ela examinou os arredores. Sem chamar atenção, encostou as costas na parede. Não estava armada, mas sabia se virar mesmo assim.
Ela entendia como seu mestre pensava. Os inimigos apareceriam no instante em que ela baixasse a guarda ou pensasse que estava segura por ora. Se os reforços dos Troglodytes tinham sido imprevistos, isso queria dizer que o plano havia se desviado e esse devia ser o Ășnico ponto fraco do esquema de Krai.
Tino, o que vocĂȘ tĂĄ fazendo? â perguntou Lyle, surpreso com a postura repentina dela. Aquilo era prova de que ele nĂŁo tinha a mesma experiĂȘncia. Ela precisava estar pronta para um ataque a qualquer momento.
EntĂŁo Tino teve uma ideia. Ela podia mostrar ao mestre o quanto havia compreendido seus movimentos. Se conseguisse provar que entendia seus planos, talvez ele pegasse mais leve no Trial.
Vou ver o Mestre.
C-Certo… manda lembranças.
Tino engoliu em seco e disparou escada acima, tentando fazer o mĂnimo de barulho possĂvel.
Ei, por que nĂŁo? Vamos acabar com eles! A gente precisa eliminar esses caras, ou vĂŁo voltar para nos atacar. Por que nĂŁo podemos ir atrĂĄs deles?!
Era o dia seguinte ao ataque ao salão. Eu estava sentado na cama, com as mãos na cabeça. Suspirei, ignorando a voz melosa da Liz e seus braços se enroscando em mim.
Ă medida que vocĂȘ sobe na vida, ganha tanto amigos quanto inimigos. Caçadores de tesouros nĂŁo fogem Ă regra. Derrotar bandidos gera rancor. Vender RelĂquias e materiais coletados de monstros para uma empresa podia te render a inimizade de outra. Muitos caçadores eram competitivos o suficiente para tentar te derrubar na primeira oportunidade.
Então houve, é claro, todas as vezes em que os clientes ficaram irritados com meus amigos de infùncia, não por qualquer mal-entendido, mas por bons motivos. Essa foi uma das muitas fontes de estresse durante meu tempo como caçador. Ultimamente, eles tinham se acalmado, mas as coisas começaram a mudar após o incidente no Festival do Guerreiro Supremo.
Pelo que parece, um pequeno mal-entendido com as raposas ruins os incitou a colocar uma recompensa pela minha cabeça. Coisas assim aconteciam com caçadores o tempo todo, inclusive comigo, então eu não estava muito agitado. Essas coisas sempre eram retiradas depois de um tempo, então eu tinha certeza de que isso passaria logo.
Uma das razĂ”es pelas quais eu tinha um quarto privado, sem janelas e acessĂvel apenas por uma porta secreta no meu escritĂłrio, era para ser uma zona segura em momentos como este. Era natural considerar a segurança de mim mesmo e dos funcionĂĄrios do clĂŁ. Nos primeiros dias do Primeiros Passos, nĂłs tĂnhamos suportado um agressor atrĂĄs do outro.
Felizmente, atĂ© agora, ninguĂ©m jamais tinha conseguido violar o perĂmetro da casa do clĂŁ. EntĂŁo o que tinha dado errado? Foi porque eu tinha ido ao lounge, mesmo tendo dito que nĂŁo sairia do meu quarto?
Quando fechei os olhos, pude ver a flecha com seu pacote explosivo se aproximando de mim. Felizmente, meus Anéis de Segurança tinham feito seu trabalho e me mantido a salvo. Eva, quem eu estava cobrindo, também estava ilesa, e Gark tinha sobrevivido também. No entanto, eu não sabia para onde ir a partir dali. Tudo o que eu podia dizer com certeza era que eu não sairia tão cedo.
Eu nĂŁo me importava com quem estava por trĂĄs dos ataques. NinguĂ©m em particular vinha Ă mente, e poderia ter sido praticamente qualquer pessoa. Era possĂvel que alguns bandidos remanescentes quisessem vingança. TambĂ©m era possĂvel que Franz ou alguĂ©m tivesse chegado ao limite de sua paciĂȘncia e contratado um esquadrĂŁo de assassinos de aluguel. Eu sĂł esperava que isso fosse algo que se resolvesse com o tempo. E por que aqueles Homens das Cavernas estavam lĂĄ? Isso me assustou mais do que qualquer outra coisa.
Ainda assim, meu maior problema de todos eram meus amigos. Liz batia os pés na cama enquanto se inclinava em mim, com os braços em torno do meu torso.
Vamos dar o exemplo com cada um deles, e suas famĂlias tambĂ©m â ela sussurrou no meu ouvido. â Precisamos pegar cada um deles. Certo? NĂŁo Ă© assim que se faz?
NĂŁo â eu disse a ela.
Por que nĂŁo? Todos vĂŁo pensar que ficamos moles. Eu vou garantir que eles se arrependam de terem vindo atrĂĄs de vocĂȘ. Eu vou massacrĂĄ-los, e depois pendurĂĄ-los nos portĂ”es da capital imperial.
Ela estava tentando esconder sua raiva, mas fazendo um trabalho imperfeito. Eu nĂŁo era ignorante da forma como o mundo da caça ao tesouro funcionava, mas ela tinha uma tendĂȘncia a exagerar. Tudo bem se ela fosse atrĂĄs apenas das pessoas que tentaram me matar, mas exercer esse tipo de restrição nĂŁo estava na natureza dela.
Se ela estava planejando massacrar tambĂ©m os amigos e as famĂlias deles, eu nĂŁo tinha certeza de quem era o criminoso aqui. AlĂ©m disso, eu tinha certeza de que quem estava atrĂĄs de mim jĂĄ estava bastante assustado. Assistir Ă queles Trogloditas nocautearem os atacantes tinha me deixado assustado. Isso trouxe de volta memĂłrias de Suls.
Sabe, nĂŁo Ă© que eu esteja irritada porque eles atacaram vocĂȘ â disse Liz, esfregando-se em mim. Eu decidi supor que essa era apenas a maneira dela de desabafar. â Uma pequena explosĂŁo nĂŁo vai te matar, mas Ă© sĂł que, se vocĂȘ for atingido, vocĂȘ tem que revidar. Ă assim que os caçadores sĂŁo. VocĂȘ sabe disso.
Mmm.
Ela estava definitivamente irritada. Depois havia Sitri, que tinha passado a noite anterior falando sobre como, se alguĂ©m ataca uma pessoa importante para vocĂȘ, vocĂȘ deve matar alguĂ©m importante para eles. Se eu nĂŁo a tivesse impedido, ela definitivamente teria se tornado uma criminosa. Ela disse que estava tudo bem, desde que nĂŁo fosse pega, mas eu discordei. Honestamente, como eu deveria explicar aos pais Smart o que tinha acontecido com suas filhas?
A carĂȘncia tĂĄtil de Liz estava pior do que o normal, provavelmente por causa do seu estresse reprimido. Seus braços e pernas estavam enrolados em mim, o calor do seu corpo me fazendo suar. Eu soltei um pequeno grito quando ela mordeu levemente a parte de trĂĄs do meu pescoço.
Pare de agir como um animal selvagem!
Eu a sacudi, segurei seus braços e a imobilizei. Ela pareceu chocada por um breve momento antes de se permitir relaxar. Eu tinha sido um caçador por algum tempo, mas eu não tinha melhorado em dar desculpas em momentos como este.
EstĂĄ tudo bem â eu disse a ela. â Estou ocupado, entĂŁo deixe para lĂĄ. EstĂĄ tudo correndo conforme o planejado!
Eu tinha combinado de Matthis vir para avaliar a RelĂquia de Eliza, mas agora esse plano tinha sido arruinado. Embora eu estivesse ansioso para nĂŁo fazer nada alĂ©m de mexer com
minhas RelĂquias, nada me faria começar a ir atrĂĄs das famĂlias das pessoas. Eu tinha suportado todos os tipos de tribulaçÔes! Eu era resistente a tribulaçÔes!
Liz olhou para mim com apreensĂŁo, algo que ela nĂŁo fazia com frequĂȘncia. â Sééério? VocĂȘ vai se vingar, como deveria?
Seria uma perda do meu tempo. Não se preocupe. Depois de uma confusão como essa, eu não acho que ninguém atacarå novamente por enquanto. Os Trogloditas capturaram alguns deles, e alguns cavaleiros estão investigando.
Hum.
Honestamente, o que eu achei realmente estranho foi que meus amigos pareciam pensar que ainda poderia haver mais ameaças no horizonte. Aqueles caras que invadiram o lounge não tinham sido meros capangas, embora tenham perdido para a força bruta dos Trogloditas. Poderia ter sido minha imaginação, mas eles pareciam se coordenar ainda melhor se eu estivesse envolvido.
O bico de Liz sugeria que ela ainda não estava satisfeita com minhas garantias, mas eu sabia que isso era apenas porque ela estava estressada. Eu estendi a mão e acariciei a nuca dela. Assim como quando éramos crianças, a pele dela era suave e macia com um leve calor.
Liz, uma grande fĂŁ de contato fĂsico, vivia me abraçando e me lembrando, de formas bem desconfortĂĄveis, da noção bem particular que ela tinha de âdistĂąncia pessoalâ. Mas, ao que parecia, ela preferia ser tocada do que tocar. Costumava ficar com ciĂșmes quando eu amarrava o cabelo da Lucia, e recentemente descobri que escovar o cabelo dela funcionava bem. Ao longo da nossa longa amizade, aprendi alguns truques, incluindo vĂĄrios jeitos de acalmĂĄ-la.
TĂĄ estressado? â perguntou ela, a voz um pouco mais suave. â Ou tĂĄ no clima? Quer que eu tire a roupa?
Acho que vou ter que deixar a Lucia ou a Sitri por perto quando for sua vez de ficar de guarda.
Exatamente. Mesmo que faça parte do plano, Ă© difĂcil resistir Ă vontade de se vingar â respondeu Liz, com as bochechas coradas. â TĂĄ tudo bem. Pode descontar o estresse em mim.
Acho que ela entendeu tudo errado. Que tipo de pessoa ela achava que eu era? Quando foi que eu jå pedi algo assim pra ela? Suspirei, lembrando que a maioria dos caçadores tinha impulsos bem fortes.
NĂŁo sabia se ela estava brincando, mas eu estava muito mais exasperado do que envergonhado. Sem dizer nada, puxei a bochecha macia dela. Liz respondeu com um sorriso radiante, e como puxar nĂŁo parecia surtir efeito algum, acabei soltando.
NĂŁo sei se gosto da ideia de vocĂȘ, justo vocĂȘ, se preocupar com o meu estresse â falei, soltando um longo suspiro.
Ă sĂ©rio? VocĂȘ tĂĄ sempre se esforçando por mim. Posso fazer o mesmo por vocĂȘ de vez em quando, nĂ©?
Meus amigos estavam ocupados, mas arrumaram um tempo nas agendas para se revezarem na minha guarda. Eu estava agradecido e até animado com isso, mas serå que eu realmente aguentaria? O primeiro dia indicava que não. Pelo menos Liz parecia ter esquecido toda aquela história de vingança e por isso eu jå estava grato.
NĂŁo Ă© bem estresse â expliquei. â Mas preciso recarregar depois de tudo o que rolou no Festival do Guerreiro Supremo. VocĂȘ tambĂ©m devia descansar um pouco. Aposto que foi cansativo pra vocĂȘ tambĂ©m. Logo a gente vai estar na correria de novo.
Eu não preciso descansar, até porque nem cheguei a lutar no torneio. Ah, lembrei! Meu mentor quer te conhecer.
E eu adoraria, mas… nĂŁo tenho tempo. Eu sei que tĂŽ aqui, descansando, mas ainda assim… nĂŁo tenho tempo.
Sempre que eu conhecia algum dos mentores dos meus amigos, vinha uma enxurrada de elogios exagerados e reclamaçÔes. Serå que eles achavam que eu era o responsåvel legal deles? Eu sempre me perguntava que tipo de histórias Liz e os outros contavam a meu respeito, mas nunca tive coragem de perguntar.
No momento seguinte, ouvi um baque do lado de fora da porta. O sorriso de Liz sumiu. Ela se levantou sem Ăąnimo e abriu a porta de um jeito brusco. Do outro lado, estava Tino, caĂda de bunda no chĂŁo, o rosto pĂĄlido voltado para cima, encarando Liz.
Eu fiquei achando que tinha algo lå fora. Krai Baby, o que eu faço com isso?
NĂŁo havia nada de âsecretoâ no meu quarto secreto mas, pensando bem, isso jĂĄ fazia tempo que era assim.
Tino olhou pra mim com timidez.
Recarregando. Atraindo inimigos. Matando eles e as famĂlias deles? Se vai escutar atrĂĄs da porta, pelo menos faz isso direito!
SerĂĄ que ela sĂł ouviu as partes mais chocantes? E eu nem lembro de ter falado nada sobre âatrair inimigosâ. SerĂĄ que era a presença ameaçadora da Liz distorcendo a memĂłria dela? Nada deixava Liz de mau humor mais rĂĄpido do que ter um bom humor interrompido.
Liz agarrou Tino pelo pescoço e a lançou casualmente na minha direção. A menina soltou um gritinho enquanto aterrissava na minha frente, incapaz de fazer qualquer movimento para amortecer a queda.
Fui uma mĂĄ mentora? â perguntou Liz. â Agora ela sabe do plano. Ela devia ter entendido a dica quando eu disse que hoje nĂŁo ia ter treino.
Ei, ei, calma.
Fiquei surpreso de ver Tino ali, mas uma garota boa como ela provavelmente sĂł estava preocupada comigo. O tratamento bruto de Liz era totalmente desnecessĂĄrio.
Sorri pra Tino e falei num tom gentil, para nĂŁo deixĂĄ-la mais nervosa.
NĂŁo tem plano nenhum. A gente nĂŁo vai massacrar, esquartejar nem fazer nada do tipo. SĂł tĂŽ… armazenando energia pro futuro.
Tino enrijeceu.
A-Ah, armazenando energia?! â repetiu, num sussurro trĂȘmulo. Mas o que ela acha que eu sou, afinal?
Ouvi um som de batidas atrĂĄs de mim, mas nĂŁo me levantei, apenas virei o pescoço em direção Ă janela. Do lado de fora, bicando o vidro com o bico, estava um pombo familiar… feito de correntes.
Por motivos de segurança, eu tinha escolhido instalar a sede da guilda numa ĂĄrea sem muitos prĂ©dios altos ao redor. Meu escritĂłrio ficava no Ășltimo andar, o que dificultava ataques Ă distĂąncia, ao contrĂĄrio do salĂŁo principal.
Depois que Liz quebrou uma das janelas, mandei trocar os vidros por um tipo mais resistente e caro (um produto especial reforçado com material de mana). Ainda assim, nĂŁo era o bastante para segurar um caçador de alto nĂvel mas duvido que algum criminoso tivesse coragem de invadir um prĂ©dio em plena rua movimentada. Tirando, claro, os que recentemente tinham jogado um explosivo no salĂŁo.
Destranquei, abri a janela um pouco, e o Pombo de Correntes bateu as asas com força, entrando apressado. Essa era uma das peças da coleção de Matthis. Entre as muitas RelĂquias do tipo âcorrenteâ, as capazes de voar eram raras, nem eu tinha uma dessas. Os Pombos de Correntes eram inteligentes o suficiente para se proteger de ameaças, podiam substituir pombos-correio e, alĂ©m disso, tinham o benefĂcio de consumir pouca mana por serem pequenos. No geral, eram uma das RelĂquias em formato de corrente mais Ășteis que existiam.
Sem perder tempo, soltei o pequeno tubo preso Ă perna dele e tirei a carta enviada por Matthis. Li o conteĂșdo e descobri que ele nĂŁo poderia continuar fazendo as avaliaçÔes em domicĂlio por um tempo.
Imagino que isso significasse que, mesmo um avaliador com amor infinito por RelĂquias, nĂŁo conseguia vencer os efeitos do tempo. Bem, talvez fosse o melhor, assim ele nĂŁo corria o risco de se envolver no caos que andava acontecendo por aqui. Ele podia ser meu mentor em assuntos de RelĂquias, mas era tĂŁo inapto para combate quanto eu.
Fechei a cara ao terminar de ler o resto da carta, um amontoado caótico de reclamaçÔes sobre como o filho e a esposa dele ficavam irritados quando ele tentava fazer uma avaliação em casa, histórias melosas sobre a neta e um bocado de fofocas aleatórias.
Ao meu lado, Luke, o encarregado da minha segurança naquele dia, estava polindo uma nova espada de madeira.
EntĂŁo, Krai, quando Ă© que a gente vai derramar um pouco de sangue?
Hm?
Eu não entendi direito, mas quando meu mentor ouviu falar do ataque, ele me mandou não sair cortando ninguém. Repetiu isso vårias vezes. O que ele quis dizer, na verdade, é que eles é que deviam ser cortados, certo?
Hmm?
Eu não vou cortar ninguém; eles é que vão se cortar sozinhos. Um Espadachim de primeira deixa o inimigo vir até sua lùmina, nunca o contrårio.
NĂŁo fazia ideia do que ele estava tentando dizer, mas a empolgação era real. Luke nĂŁo surtava como a Liz, mas era tĂŁo, ou atĂ© mais, violento que ela. Isso talvez o tornasse ainda mais difĂcil de lidar.
Descobri um efeito secundårio do Voltaic Deicide. Ele queima os cortes que faz, o que diminui a chance de o alvo morrer por perda de sangue. Ou seja, eu posso cortar alguém vårias e vårias vezes, para sempre, se quiser. Ah! Posso até cortar a parte que caberia pros outros!
Pelo que eu sabia, um golpe elĂ©trico causaria um bom estrago tanto em vocĂȘ quanto no alvo, mas Luke parecia ter suas prĂłprias ideias sobre o assunto. Achei que jĂĄ tinha deixado claro que tinha barrado o plano de vingança da Liz, mas parece que ele nĂŁo entendeu a mensagem.
O Pombo de Correntes andava inquieto na minha frente, como se me apressasse a escrever a resposta. Olhei pra ele e depois pro Luke, e decidi responder qualquer coisa sĂł pra encerrar o assunto.
Calma aĂ. Ainda nĂŁo Ă© hora. TĂŽ ocupado e precisamos ficar quietos por um tempo. Se formos pacientes, coisas boas devem acontecer.
AtĂ© agora nĂŁo houve novos ataques, e talvez continuasse assim. Era possĂvel que os bandidos capturados pelas forças de Ryuulan fossem os cabeças do atentado. Caso contrĂĄrio⊠bem, eles tinham cometido um grande erro: envolveram o Gark, gerente de filial da Associação de Caçadores.
Apesar da aparĂȘncia bruta, ele era um homem de autoridade. Na nossa era dourada de caça a tesouros, a Associação era a Ășltima entidade que vocĂȘ queria transformar em inimiga. Naquele exato momento, Gark provavelmente estava caçando os culpados. Pra mim, sĂł restava esperar.
Droga, ainda quer que eu segure a espada? Krai, vou te dizer, nĂŁo curto esse seu ar de superioridade Ă s vezes. Minha espada demonĂaca tĂĄ pedindo sangue.
Eu nĂŁo âaindaâ queria que ele segurasse, eu sempre queria que ele segurasse. E sobre essa tal espada demonĂaca dele… ela tinha sido refeita recentemente, depois de queimar, entĂŁo duvido que estivesse âcom sede de sangueâ.
Um corte sĂł nĂŁo vai dar conta â murmurou.
Certo, vocĂȘ tem tempo demais sobrando. Acho que posso arrumar algo pra te manter ocupado.
Assim como eu conhecia a natureza da Liz, tambĂ©m sabia como o Luke funcionava. DistraĂ-lo seria fĂĄcil, o problema era manter a distração. Justo quando me levantei, ouvi batidas na porta. Segurei a mĂŁo do Luke antes que ele empunhasse a espada.
Ă a Eva â avisei.
Eu sei.
E esse era o problema, ele podia muito bem atacar mesmo sabendo que era ela.
Avisei que estava tudo bem, e Eva entrou. Estava igualzinha a antes do ataque: impecĂĄvel, organizada, do mesmo jeito de sempre. A maioria das pessoas precisaria de um tempo para se recuperar depois de presenciar uma explosĂŁo, mas ela voltou ao normal em menos de um dia. Invejava a serenidade dela. Mas era justamente por serem tĂŁo estĂĄveis que eu nĂŁo podia deixar que ela, ou o resto da equipe administrativa, se machucasse.
Como vocĂȘ estĂĄ? â perguntei.
Graças a vocĂȘ, estou ilesa e sem nenhuma dificuldade para retomar o trabalho. O salĂŁo ainda vai demorar um pouco pra ser consertado, mas os Trogloditas ofereceram ajuda.
NĂŁo sabia que eles eram nossos aliados. Espera… se a gente nem fala a mesma lĂngua, entĂŁo como..
Cortei as perguntas que surgiam na minha cabeça e apenas sorri.
Pode tirar um tempo pra descansar. As coisas estĂŁo perigosas agora, e o Luke pode cuidar da parte administrativa.
Pode deixar comigo, Eva! Meu sangue tĂĄ fervendo!
Confiante pra caramba, considerando que eu nĂŁo lembrava de ele ter feito trabalho de escritĂłrio alguma vez na vida.
Um traço de desagrado passou pelo rosto de Eva antes que ela limpasse a garganta.
Não precisa se preocupar. Absorvi um pouco de material de mana para situaçÔes como esta e, além disso, pretendo ficar hospedada aqui na sede do clã por enquanto. Não conheço lugar mais seguro.
Quando Ă© que ela arranjou tempo para absorver material de mana? Isso quer dizer que ela Ă© mais forte que eu? Bem… nĂŁo seria difĂcil de acreditar. A vida nunca foi exatamente justa.
Ainda assim, a ideia de ela ficar aqui nĂŁo era ruim, a sede do clĂŁ era praticamente uma fortaleza, e havia vĂĄrias pessoas capazes de defendĂȘ-la.
Quer fazer uma festa do pijama? â perguntei.
NĂŁo quero â respondeu depois de uma breve pausa. â Desde a tentativa de assassinato, recebemos vĂĄrias cartas e presentes desejando sua recuperação. O que devo fazer com eles? Sei que vocĂȘ nĂŁo estĂĄ recebendo visitas, mas…
Puxa, sou mesmo popular.
Imagino que tenham visto isso como uma boa oportunidade, jĂĄ que Ă© raro poder encontrĂĄ-lo pessoalmente. Afinal, vocĂȘ estĂĄ em alta no momento.
NĂŁo consegui pensar em nada pra responder sob o olhar firme dela. NĂŁo era como se eu quisesse que as pessoas estivessem falando sobre mim.
Eva realmente não se deixou abalar pelo ataque recente e, ironicamente, era isso que me deixava preocupado. Ela podia ter absorvido material de mana, mas continuava sendo uma não combatente. Precisava de proteção. Tirei um Anel de Segurança da minha mão direita e joguei pra ela. Eu tinha o suficiente pra não fazer diferença perder um.
Eva pegou o anel no ar e me olhou, hesitante.
HĂŁ… isso Ă©…
Ă um Anel de Segurança, e estou te dando. Desculpe por ser de segunda mĂŁo, mas acho que vocĂȘ devia ficar com ele.
Um Anel de Segurança! Esses anĂ©is sĂŁo carĂssimos! NĂŁo, pera, nĂŁo Ă© isso! Por que vocĂȘ tĂĄ me dando isso do nada?!
EntĂŁo, de repente, tive uma ideia.
Espera aĂ… â murmurei.
Cruzei os braços e olhei para o Pombo de Correntes, que bicava a superfĂcie da minha mesa. Se Matthis nĂŁo podia vir atĂ© mim pra fazer a avaliação, por que eu nĂŁo mandava a RelĂquia atĂ© ele? Ele certamente nĂŁo teria coragem de recusar se eu pedisse pra Tino fazer a entrega. Ela era membro do Primeiros Passos e vivia vindo Ă sede do clĂŁ, nada de suspeito nisso.
Nossa, tĂŽ inspirado hoje. Na real, Ă© atĂ© difĂcil acreditar que nĂŁo pensei nisso antes.
Apontei pra janela. O Pombo de Correntes pareceu entender que eu nĂŁo escreveria resposta alguma e voou para fora. Eva olhou de mim para a RelĂquia voadora, o olhar indo e vindo em confusĂŁo.
Graças a vocĂȘ, acabei de ter uma Ăłtima ideia â comentei, rindo.
HĂŁ?! O quĂȘ? Aquilo era um Pombo de Correntes, nĂŁo era? VocĂȘ tĂĄ planejando alguma coisa de novo? Pensou em alguma maluquice, nĂŁo foi?!
Um pouco de exagero, talvez, mas ver a sempre serena Eva perdida desse jeito era, no mĂnimo, refrescante. Quase revigorante.
NĂŁo Ă© nada. TĂĄ tudo bem. Tudo sob controle.
âTudo bemâ? VocĂȘ acha que tĂĄ tudo bem a Tino andar por aĂ dizendo que vocĂȘ vai âmatar eles, os amigos e as famĂliasâ?!
TĂĄ, isso nĂŁo tĂĄ nada bem.
Nem um Caçador de alto nĂvel sairia impune de algo assim e muito menos pendurando corpos nos portĂ”es da capital. Eu precisava dar um jeito nesses boatos, mas o que me preocupava de verdade era a fĂ© da Tino em mim estar começando a desmoronar. Era hora de agir.
Parece â continuou Eva â que hĂĄ membros do clĂŁ se preparando para atacar antes que aconteça algo trĂĄgico conosco.
Eu nem tinha dito nada, mas a situação jĂĄ estava se desenrolando sozinha. Ă verdade que fomos atacados, e eu nĂŁo me importava com o pessoal tomando iniciativa… desde que nĂŁo me responsabilizassem pelo resultado.
O mundo lĂĄ fora Ă© selvagem â comentei.
Por favor, nĂŁo me diga que isso Ă© tudo o que vocĂȘ vai dizer â respondeu Eva, suspirando.
Soltei um grande bocejo. Ultimamente, qualquer movimento meu parecia gerar consequĂȘncias imprevistas, entĂŁo concluĂ que ficar quieto era a melhor opção.
Luke estava levantando a espada acima da cabeça e examinando o fio quando, de repente, pareceu se lembrar de algo.
Ah, Ă©, Krai â disse. â Meu mentor mandou vocĂȘ dar um pulo lĂĄ se nĂŁo tiver nada melhor pra fazer. Acho que ele quer conversar com vocĂȘ sobre alguma coisa.
O Santo da Espada quer? â disse Eva, surpresa. â Achei que ele estivesse ocupado, jĂĄ que foi convocado para ajudar no contra-ataque a Raposa. Krai, tenho que dizer, vocĂȘ tem uma lista de contatos impressionante.
âContatosâ parecia uma palavra curiosa… considerando que ele provavelmente sĂł queria reclamar de alguma coisa. Era sempre assim quando eu encontrava os mentores dos meus amigos, especialmente os do Luke e da Liz. Eu nunca queria me reunir com esses tipos, porque âconsultarâ geralmente significava âouvir uma broncaâ. E se, por acaso, realmente quisessem meu conselho, aĂ seria ainda pior.
Alguma ideia do que ele quer tratar? â perguntei.
Hm… nada. â
Claro que nĂŁo. Pensa, criatura! NĂŁo dĂĄ pra ser tĂŁo satisfeito consigo mesmo a ponto de esquecer assim!
Luke franziu as sobrancelhas, pensativo.
Ah, acho que lembrei. Meu mentor usa duas espadas, mas outro dia eu fiquei pensando qual das duas era mais forte… entĂŁo perguntei pra ele.
O mentor de Luke era Soln Rowell, o Santo da Espada. Um dos maiores mestres vivos e, ao contrĂĄrio do Luke, ele treinava tanto a mente quanto o corpo e a tĂ©cnica. Era admirado pelos espadachins por ser nĂŁo sĂł forte, mas tambĂ©m Ăntegro. AlĂ©m disso, era um colecionador de espadas renomado, com vĂĄrias peças famosas em sua posse.
Luke também era um entusiasta de espadas, embora estivesse proibido de carregar uma no momento. Lembro bem do brilho nos olhos dele quando conheceu o Santo da Espada e viu a lùmina que ele empunhava.
Ele disse que nĂŁo sabia â continuou Luke â, entĂŁo eu resolvi testar por conta prĂłpria, sem avisar. As duas quebraram.
HĂ?!
Acho que isso quer dizer que Crimson Heaven e Azure Spirit sĂŁo igualmente fortes. Quer dizer, tĂȘm o mesmo tamanho e combinam direitinho.
Aham… sei.
Quebrar duas das espadas favoritas do seu mentor era o tipo de erro que podia render expulsĂŁo, ou execução. Mas Luke nĂŁo parecia ter o menor arrependimento. Talvez fosse mais uma prova de como Caçadores de alto nĂvel podiam ser assustadores. RelĂquias geralmente eram resistentes, e atĂ© armas comuns nĂŁo se quebravam fĂĄcil… mas com alguĂ©m como Luke, as regras pareciam diferentes.
Mas nĂŁo deveria ser o contrĂĄrio? Tipo… um espadachim talentoso devia ser capaz de usar uma arma que quebraria nas mĂŁos de um amador, certo?
Luke cruzou os braços e estreitou os olhos.
NĂŁo, pera… talvez tenha sido porque eu quebrei uma das espadas enquanto treinava o
Voltaic Deicide. Usei uma das dele, jĂĄ que as de madeira viviam quebrando.
Quantas espadas vocĂȘ pretende destruir, cara?! VocĂȘ acabou de começar a treinar o Voltaic Deicide! Ă Ăłbvio que Ă© sobre isso que ele quer falar!
Armas nĂŁo eram nada baratas. Naquela Ă©poca, qualquer coisa que nĂŁo pudesse ser produzida por forja mĂĄgica custava uma fortuna. Isso valia ainda mais para RelĂquias, mas atĂ© uma espada artesanal comum podia ultrapassar centenas de milhĂ”es. Era difĂcil
imaginar quanto alguém pagaria por uma lùmina da coleção do Santo da Espada. Ainda assim, para um espadachim, sua arma era praticamente a própria alma.
Eu ainda nĂŁo conseguia entender como o Luke nĂŁo tinha sido expulso do dojĂŽ. Eva parecia igualmente exasperada. O que aconteceria se eu simplesmente concordasse e aparecesse na frente do Santo da Espada? Ele era uma pessoa de humanidade excepcional, mas nĂŁo exatamente o tipo tranquilo. Eu jĂĄ fazia o possĂvel para encontrĂĄ-lo o menos possĂvel, aparecer diante dele quando estivesse irritado era impensĂĄvel.
Pensei se haveria alguma forma de fazĂȘ-lo perdoar a selvageria do Luke. Talvez se eu lhe oferecesse algo para substituir as espadas quebradas? Foi entĂŁo que meus olhos caĂram sobre a caixa aos meus pĂ©s, aquela com os itens que a Eliza tinha deixado. Respirei fundo e peguei o mais interessante do lote: uma espada envolta em um pano negro.
Removi o pano, revelando uma lùmina reta de um preto profundo. Ela tinha um brilho sutil, como se tivesse sido forjada a partir da própria noite. A falta de semelhança com qualquer metal moderno deixava claro que era algo de uma civilização hå muito desaparecida.
Ooh?! O que Ă© isso?! â exclamou Luke.
Mesmo depois de consultar minha enciclopĂ©dia de RelĂquias, ainda nĂŁo consegui identificar essa espada. As pesquisas sobre RelĂquias do tipo espada tinham avançado bastante, entĂŁo, se ela nĂŁo constava lĂĄ, devia ser algo realmente raro.
Eu planejava pedir uma avaliação ao Matthis, mas agora isso nĂŁo era mais uma opção. NĂŁo sabia ao certo se essa espada compensaria as que Luke havia quebrado, mas sentia que o destino estava me dando uma ajuda aqui. Embora… minha recente experiĂȘncia com a Chave da Terra tinha me deixado um pouco desconfiado de espadas.
Respirei fundo, reunindo coragem. Depois, enrolei a espada novamente e a coloquei sobre a mesa.
Eu nĂŁo posso ir, mas vocĂȘ pode levar isso para o seu mentor. Ă uma peça rara.
Eu nĂŁo fazia ideia do valor prĂĄtico que ela tinha, mas era, sem dĂșvida, uma bela espada. Esperava que isso bastasse para melhorar um pouco o humor do Santo da Espada. E, se ele descobrisse os poderes dela… bom, espero que tenha a gentileza de me contar depois.

Caçadores de tesouros sempre mantinham os ouvidos atentos ao chĂŁo. Houve uma vez em que, sĂł por o Mil Truques considerar comprar uma RelĂquia, o rumor se espalhou num piscar de olhos. E agora, estava acontecendo de novo. Desta vez, os boatos diziam que o artĂfice sobre-humano estava acumulando poder.
Os detalhes eram vagos. Alguns diziam que aquilo era uma reação ao ataque Ă sede do clĂŁ; outros afirmavam que o Mil Truques jĂĄ tinha previsto o ataque desde o inĂcio. Mas havia um ponto em que todos concordavam: sua vingança seria completa.
Ă claro que agir assim seria ir contra a lei. Nem mesmo caçadores de alto nĂvel, nĂŁo, principalmente caçadores de alto nĂvel, poderiam ser deixados livres para ignorar as regras. Ainda assim, a fama dos Grieving Souls tornava esses rumores fĂĄceis de acreditar. Se alguĂ©m ousasse atacar os Grieving Souls, seria caçado atĂ© o fim do mundo.
No coração da capital imperial existia o Distrito Decadente, um caldeirão onde toda a escuridão da cidade se concentrava. Em um canto esquecido, havia uma loja que parecia prestes a desabar, o telhado a um passo de cair. Além das portas apodrecidas e descendo uma escadaria, encontrava-se o Anel Vermelho.
Era um lugar feito para os que viviam Ă margem da sociedade trocarem informaçÔes. Uma versĂŁo subterrĂąnea da Associação de Caçadores, um ponto de encontro para facilitar trabalhos sujos. O interior era pequeno, mas apenas membros de organizaçÔes poderosas ou indivĂduos com influĂȘncia suficiente para conseguir uma apresentação eram permitidos ali.
As mesas estavam dispostas de forma aleatĂłria, e havia apenas algumas pessoas alĂ©m do dono mal-encarado. O pĂșblico variava em idade e gĂȘnero, mas todos compartilhavam o mesmo brilho frio no olhar e exalavam uma aura assassina.
Num canto escuro, um homem e uma mulher estavam sentados a uma pequena mesa. O homem era baixo e de expressão melancólica, com o cabelo preto caindo sobre os olhos. A mulher era loira, com um olhar afiado como o de um falcão. Eles não pareciam tão ameaçadores quanto os outros clientes, mas o simples fato de estarem ali provava que eram caçadores de fantasmas habilidosos.
O Pacifista e a Dourada, esses eram seus codinomes. Assassinos que caçavam alvos de alto valor. Embora normalmente atuassem em outras terras, haviam vindo a Zebrudia atrås de uma recompensa colossal.
O Mil Truques era um caçador de tesouros famoso por proteger o imperador e derrotar inĂșmeros inimigos, entre eles, a elusiva Raposa Sombria de Nove Caudas. A quantia oferecida por sua cabeça era absurdamente alta para uma Ășnica pessoa. Ele devia ter realmente despertado a fĂșria da Raposa. O que nĂŁo era surpresa, jĂĄ que o confronto com ele tinha forçado a organização a se retirar do impĂ©rio.
A recompensa era grande o bastante para contratar vårios assassinos de elite, ou até um exército de mercenårios. Se desse certo, aqueles dois nunca mais precisariam trabalhar pelo resto da vida, sem falar na glória de eliminar o homem que havia derrubado tantas
organizaçÔes. Era o trabalho de uma vida… mas, curiosamente, os dois assassinos pareciam de mau humor.
A loira, a Dourada, era uma arqueira com uma longa lista de mortes graças Ă sua precisĂŁo infalĂvel e habilidade impecĂĄvel em planejamento. Ela bateu o punho na mesa e lançou um olhar feroz ao homem Ă sua frente.
â TĂĄ me dizendo que bateu o medo agora?! Esqueceu que a gente jĂĄ tentou matar ele uma vez?!
Para a Dourada, assassinato era algo simples. Ela nunca errava , nem mesmo quando o alvo era um caçador de tesouros experiente. Eliminar oponentes muito mais fortes que ela nunca foi um problema, jĂĄ que caçadores geralmente dedicavam o mana absorvido a aumentar o poder de ataque. O raciocĂnio era que as armaduras compensavam a falta de defesa, mas nĂŁo havia nada que pudesse ser feito contra um fantasma resistente se sua força fosse insuficiente.
Da mesma forma, a Dourada havia concentrado todo o seu mana em furtividade e poder ofensivo. NinguĂ©m jamais sobreviveu a um golpe crĂtico desferido por ela.
E garantindo ainda mais suas chances estava seu parceiro, o Pacifista, um homem tĂmido e desconfiado. Com o uso habilidoso de bombas e venenos, ele podia eliminar seus alvos sem nunca encarĂĄ-los de frente. Era um tipo de poder incomparĂĄvel Ă força bruta.
Combinando seus talentos opostos, nĂŁo havia quem a Dourada e o Pacifista nĂŁo pudessem matar. No entanto, embora o Pacifista costumasse tremer de medo mesmo enquanto trabalhava, desta vez ele estava completamente dominado pelo pavor.
I-Isso Ă© impossĂvel â disse ele, gaguejando. â N-NĂŁo dĂĄ pra vencer. Aquele homem… ele Ă© um monstro.
Como se a gente jĂĄ nĂŁo soubesse, porra?! Ele Ă© NĂvel 8!
Ir atrĂĄs de um caçador de NĂvel 8 era arriscado demais atĂ© para a maioria dos assassinos. O nĂvel era algo conquistado com realizaçÔes uma apĂłs a outra, e atĂ© envolvia exames. Ser NĂvel 8 significava estar entre os humanos mais fortes vivos. Significava ter superado inĂșmeras provaçÔes e absorvido enormes quantidades de mana. O esforço, a qualidade e, principalmente, o talento necessĂĄrios eram extraordinĂĄrios.
Existiam caçadores especializados em ĂĄreas especĂficas e outros mais equilibrados, mas um NĂvel 8 deixava qualquer um deles no chinelo. SĂł pra se ter uma ideia, mesmo em Zebrudia, o santuĂĄrio dos caçadores, havia apenas trĂȘs pessoas NĂvel 8 ou superior.
Mesmo assim, aqueles dois haviam decidido caçar o Mil Truques, achando que sabiam no que estavam se metendo. A Dourada era uma caçadora; ela jamais desistiria depois de traçar um plano e testar o terreno. Ela até tinha recrutado alguns subordinados para ajudar.
Cruzando os braços, lançou um olhar gélido ao parceiro, que tremia, tentando se justificar:
V-VocĂȘ tem razĂŁo. A gente jĂĄ sabia que nĂŁo ia dar certo. M-Mas nĂŁo Ă© sĂł que ele Ă© forte. Ele pegou meu explosivo personalizado e jogou no Gark! Esse cara Ă©… completamente maluco!
A Dourada manteve o olhar calado e afiado sobre ele.
E-Ele tambĂ©m usou monstros para capturar nossos homens! Como duas pessoas tĂŁo f-fracas quanto nĂłs vĂŁo matar alguĂ©m ainda mais insano do que a gente?! â
O lugar ficou em silĂȘncio. NinguĂ©m disse uma palavra, nem o dono do bar, vestido de preto, nem os outros clientes. No entanto, o Pacifista tinha acertado em cheio.
Uma das vantagens dos assassinos era saber, desde o inĂcio, que o que faziam era errado. Por isso, a Dourada nunca se importou com os mĂ©todos. Enquanto o alvo fosse alguĂ©m âcorretoâ, ela sempre teria a vantagem, nĂŁo importava o quĂŁo poderoso fosse.
Mas e se o alvo fosse alguém igualmente pragmåtico?
E-Ele luta no nosso nĂvel! No nosso nĂvel! Ele nĂŁo teve medo! Dos monstros! Qualquer pessoa normal nem pensaria em usar m-monstros! V-VocĂȘ entende o que ele vai fazer? O que nĂłs nĂŁo conseguimos! Nossos amigos e f-famĂlias vĂŁo ser mortos e pendurados como exemplo! Eles nĂŁo tĂȘm medo de se sujar! â
A Dourada pareceu hesitar. â Eu nĂŁo tenho amigos. SĂł vocĂȘ. Minha famĂlia jĂĄ foi faz tempo. â
B-Bem, eu tenho. â O Pacifista quase derrubou a mesa ao se levantar trĂȘmulo e agitar os braços. A temperatura do ambiente pareceu cair quando ele começou a gritar, tomado pelo pĂąnico. â O-Olha! Quase todo mundo que veio aqui com a mesma confiança que a gente jĂĄ f-fugiu! Ouvi dizer que a Associação tĂĄ com medo de que os Grieving Souls percam o controle! â
Que droga, hein? â
Não dava pra negar: as coisas não podiam estar piores. A Dourada entendia muito bem o medo nos olhos do parceiro. Os Grieving Souls faziam parte da Associação dos Caçadores, mas agora era a própria Associação que temia o que o grupo poderia fazer. Se esse tipo de informação começasse a circular, claro que a maioria dos assassinos iria querer cair fora.
Se até os aliados dos Grieving Souls estavam com medo, como os inimigos não estariam? Para qualquer um que valorizasse a própria vida, aquele homem era um verdadeiro demÎnio e não valia o risco, não importava o quanto pagassem.
A Dourada e o Pacifista estavam dispostos a se unir a outros assassinos, se fosse necessĂĄrio, mas todos os possĂveis parceiros jĂĄ tinham fugido. Eles tinham dado o primeiro passo no ataque, e agora haviam se tornado inimigos dos Grieving Souls. Recuar nessas circunstĂąncias seria extremamente perigoso, mas, desta vez, talvez fosse a melhor opção.
Nem a flecha nem a bomba tinham surtido efeito, e era bem possĂvel que o veneno nĂŁo funcionasse melhor. Acima de tudo, era raro ver o prudente Pacifista bater o pĂ© desse jeito.
Tinham feito tanto esforço, e tudo foi em vão. Frustrada, a Dourada soltou um suspiro pesado.
Ela clicou a lĂngua. â Vai pegar mal desistir de um alvo que a gente jĂĄ tinha mirado, mas se vocĂȘ insiste, entĂŁo Ă© isso. Vamos arrumar nossas coisas e sair desse paĂs. â
Ă. Caçar demĂŽnios nĂŁo Ă© o nosso trabalho. â
O Mil Truques provavelmente jĂĄ tinha percebido que o primeiro ataque deles foi sĂł um teste, uma tentativa de encontrar fraquezas, e devia estar esperando a segunda investida. Mesmo um artĂfice sobre-humano como ele nĂŁo esperaria que os dois simplesmente fugissem depois de um ataque tĂŁo Ăłbvio.
Mas, no instante em que esse pensamento passou pela cabeça da Dourada, todo o prédio estremeceu. O som de algo atingindo a porta de metal ecoou. O dono do bar se levantou num salto, e os outros clientes se prepararam. O Pacifista empalideceu, soltando um gemido enquanto encostava as costas na parede.
O ar vibrou. Uma, duas, trĂȘs vezes, o som pesado de algo batendo contra a porta reverberou pelo local. Era uma porta robusta, mas ninguĂ©m esperava que alguĂ©m atacasse de frente um antro de assassinos. Mais que isso, esse lugar deveria ser conhecido apenas por um punhado de pessoas. Onde foi que a informação vazou? A Dourada olhou para o dono, mas ele balançou a cabeça, negando.
Houve gritos do outro lado da porta. A voz era de uma jovem, desesperada.
Eu nĂŁo vou deixar vocĂȘs transformarem o Mestre num criminoso! â
Ela estava sozinha? Fazia parte dos Grieving Souls? SerĂĄ que podiam lidar com ela se estivesse sĂł? Um Ășnico caçador nĂŁo deveria ser problema. Essas perguntas nĂŁo passavam de um devaneio da Dourada, uma fuga mental interrompida por uma voz masculina rude.
A gente sabe que vocĂȘs estĂŁo aĂ! Rende logo, temos cinquenta homens e mais um pouco! NinguĂ©m vai enforcar vocĂȘs nos portĂ”es ou fazer de exemplo! â
Ryu-ryuu-ryu-ryu-ryuuu! â
Cinquenta?! NĂŁo podia ser. Era insanidade. SĂł grandes clĂŁs tinham tantos membros. Por um momento, ela achou que fosse blefe, mas logo percebeu dezenas de presenças do outro lado da porta. NĂŁo, eram ainda mais. O homem tinha dito âcinquenta e mais um poucoâ. Ou seja, eles nĂŁo tinham apenas pessoas. E, pelo som das outras vozes… Um arrepio percorreu a espinha da Dourada. NinguĂ©m ali estava armado para combate. NĂŁo tinham chance alguma.
Tem uma saĂda nos fundos â disse o dono, antes de sumir atrĂĄs do balcĂŁo.
A porta se contorceu, as dobradiças rangendo alto. Eles estavam forçando a entrada, e não demoraria muito até conseguirem.
Vamos cair fora daqui! â gritou a Dourada, puxando o braço do Pacifista. Eles correram para trĂĄs do balcĂŁo e, no exato instante em que desapareceram dali, a pesada porta foi arremessada para dentro.
A capital imperial de Zebrudia era uma cidade grandiosa, mesmo comparada às metrópoles das naçÔes vizinhas. Em um dos cantos, não muito distante do centro, havia uma loja de dois andares, sendo o superior usado como moradia. Sua fachada charmosa fazia com que se misturasse perfeitamente às outras construçÔes, a poucos metros da via principal.
Embora fosse, de fato, uma loja, ainda não havia começado a vender nada. Não havia nome na placa do lado de fora e, olhando pelas janelas, o interior parecia quase vazio. Talvez ainda levasse algum tempo até abrir oficialmente as portas.
A loja era administrada por Raposas. Ou melhor, ex-Raposas, que agora estavam fugindo da organização. Sora havia passado a Ășltima semana maravilhada com o esplendor da capital imperial; os rumores nĂŁo faziam justiça Ă grandiosidade do lugar.
No momento, ela estava no segundo andar, lendo o jornal recém-chegado.
Oh?! Galf! Galf! Por favor, olha isso! â
Ao ouvir a voz dela, Galf Shenfelder, ex-membro de alto escalĂŁo da Raposa Sombria das Nove Caudas, subiu do primeiro andar, onde estava cuidando dos preparativos da loja.
Hm? Ahhh. JĂĄ imaginava â respondeu ele, com a voz cansada.
Jå fazia mais de dez dias desde que o destino os havia levado à capital imperial. Até então, não tinham encontrado nenhum perseguidor da organização. O prédio atual não tinha qualquer ligação com as Raposas e fora obtido com a ajuda do Mil Truques. Além disso, o caos deixado pelo Festival do Guerreiro Supremo havia deixado a organização sem recursos para se preocupar com desertores como Galf e Sora. Encontrå-los não seria tarefa fåcil.
Galf estava sempre reunindo informaçÔes, entĂŁo tinha uma boa noção da situação interna da organização. Ao que parecia, os eventos do torneio haviam deixado feridas profundas, e as disputas entre os chefes estavam se acirrando. Mesmo que tivessem permanecido fiĂ©is, nada de bom teria vindo disso. Assim como Galf, Sora era leal, mas romper os laços fora sua Ășnica escolha. SĂł podia agradecer Ă s bĂȘnçãos do deus-raposa por tĂȘ-la mantido em segurança atĂ© agora.
Uma cidade colossal como a capital imperial era algo completamente novo para a sacerdotisa, que havia passado a vida inteira em templos e aldeias afastadas. Tudo era grandioso, tudo a encantava. Kreat também a deixara impressionada, mas naquela época ela estava em missão. Agora, sem ordens a cumprir, tinha mais liberdade do que sabia administrar. Ficou tão ociosa que, no fim, decidiu fazer tofu frito.
O artigo do jornal falava sobre o ataque ao Mil Truques, o Falso Raposa que havia os trazido até aquela cidade. A arte sobre-humana que ele havia exibido em Kreat apagou tudo
o que Sora conquistou em sua vida… e parecia que ele estava aprontando de novo na capital imperial.
Ele comprou briga com a organização, entĂŁo Ă© claro que mandaram gente atrĂĄs dele â disse Galf. â NĂŁo parece que tenham enviado alguĂ©m diretamente das Raposas, mas ouvi que colocaram uma boa recompensa por ele no submundo. Quando eu ainda era uma Raposa, a gente teria ido alĂ©m disso… mas acho que a organização ainda tĂĄ se recuperando do golpe. Sinceramente, o que serĂĄ que passa na cabeça desse homem?
Tendo passado de candidato Ă alta cĂșpula a traidor em tĂŁo pouco tempo, Galf nĂŁo podia ser censurado por soar amargo. Sora estava em situação parecida, de sacerdotisa devota a desertora.
Mas o passado era passado. Agora estavam na capital imperial, sob nova proteção. Dependendo do ponto de vista, podiam dizer que apenas trocaram de âprotetorâ. Sem mencionar que o Mil Truques era conhecido como aliado da descendente do verdadeiro deus-raposa.
Sora pigarreou e semicerrando os olhos, disse:
Galf… o santo deus-raposa ordena que façamos algo a respeito dessa recompensa.
Como se um deus fosse dizer uma idiotice dessas, sua maluca! â
Eu sou uma Sacerdotisa da Raposa Sagrada. Minha palavra Ă© a palavra do meu deus. VocĂȘ ousa duvidar da palavra do meu deus? â
Que tipo de deus Ă© esse seu, hein?! Nunca ouvi falar de uma Sacerdotisa assim! Devia ter pedido outra! â
Como Sacerdotisa, Sora seguia o caminho determinado pelo deus-raposa transcendente a quem servia. Embora fosse verdade que, em rarĂssimas ocasiĂ”es, ela cometia erros, atĂ© esses, ela acreditava, faziam parte da vontade divina. Essa era a Ășnica forma de viver sem entrar em colapso diante da prĂłpria fĂ©.
Pode fazer alguma coisa a respeito disso? â perguntou ela, tossindo. Galf lhe lançou o mesmo olhar de confiança silenciosa de sempre.
Sou uma Raposa Branca, sabia? Tenho a mĂĄscara pra provar. SĂł nĂŁo uso porque
atrapalha. â
Sora pigarreou novamente e disse com uma voz carregada de peso divino:
EntĂŁo, se puder. NĂŁo quero perder nossa proteção. â
VocĂȘ nĂŁo Ă© tĂŁo ruim assim, Sora. â
Com as bĂȘnçãos de Krai, recebi dinheiro da Sitri e estou fazendo inarizushi em devoção ao deus-raposa. Ela tambĂ©m estĂĄ considerando abrir filiais. â
Mas somos nĂłs que fazemos todo o trabalho… â
Com os ombros caĂdos, Galf saiu para o lado de fora. De algum modo, ele ainda nĂŁo havia perdido o toque. Sora tinha certeza de que a recompensa sumiria em breve. Com um suspiro, olhou pela janela para o cĂ©u sem nuvens e fez uma prece silenciosa.
Ă Santo Deus-Raposa, por favor, continue me protegendo. Estou fazendo o meu melhor para fritar tofu.
O que vocĂȘ estĂĄ fazendo?! Pelo amor de Deus, jĂĄ sĂŁo onze horas e vocĂȘ ainda estĂĄ na cama! â
Mrmm? â
A tranquilidade sempre acaba de repente. Meu despertar veio acompanhado de sacudidas violentas. Sem escolha, enfiei a cabeça pra fora do cobertor. AtravĂ©s da visĂŁo turva, vi o rosto carrancudo da LĂșcia. NĂŁo dava pra imaginar outra pessoa tentando me acordar desse jeito.
Ela sempre teve traços delicados, mas ultimamente vinha se tornando ainda mais bonita, o que tornava seu mau humor ainda mais intimidador. Jå faz tempo que somos irmãos, e, lå em casa, era ela quem me acordava todas as manhãs.
Embora, naquela Ă©poca, fosse um pouco mais gentil. Ah, Ă© mesmo. Hoje Ă© o dia da LĂșcia me vigiar.
SĂł mais uma hora… â murmurei.
Augh! Por que vocĂȘ Ă© tĂŁo preguiçoso?! â
NĂŁo Ă© como se eu tivesse algo pra fazer. â
Ah, Ă©?! B-Bom, esquece isso! Aqui, olha! Olha! â
Ela arrancou o cobertor e jogou um jornal ao lado do meu travesseiro. Por que serĂĄ que ela era tĂŁo dura comigo, mas tĂŁo simpĂĄtica com todo o resto do mundo?
O que aconteceu com a garota que costumava me seguir por toda parte?
Olha, eu também trouxe seu café da manhã, mesmo sendo meio-dia!
Rendendo-me à realidade, movi a cabeça só um pouco, abri os olhos só um pouco, e olhei para o jornal. O que vi me fez acordar de vez e, imediatamente, fechei os olhos e me virei para o outro lado. Eu não sabia de nada. Era ignorante, inconsciente, repeti para mim mesmo.
Boa noite.
IrmĂŁo! NĂŁo volte a dormir! Levanta!
Lucia me segurou pelos ombros e começou a me sacudir de um lado pro outro. Sacudir era um dos poucos tipos de ataque contra os quais os Anéis de Segurança não eram eficazes.
Com os olhos rodando, decidi ao menos inventar uma desculpa.
Eu posso ser o mestre do clĂŁ, mas nĂŁo sou pai deles.
Leia de verdade! EstĂĄ dizendo que eles atacaram por suas ordens!
Na capa do jornal, a manchete dizia: âLĂder do clĂŁ Primeiros Passos por TrĂĄs do Ataque no Distrito em Decomposição.â Pelo visto, um grupo dos nossos membros tinha se reunido e atacado alguns locais naquele distrito decadente. O artigo ainda trazia uma foto de uma cidade caindo aos pedaços.
Eu não mandei ninguém fazer nada disso.
Mesmo assim, estå dizendo que foi uma retaliação pelo ataque à sede do nosso clã!
Que confusĂŁo. Achei que eu tinha dito que nĂŁo precisava disso.
Desde quando esses caras ficaram tĂŁo leais? Ou serĂĄ que Ă© questĂŁo de orgulho agora?
LĂșcia se inclinou sobre a cama, passou os braços pelos meus lados e me forçou a sentar. EntĂŁo eram meus prĂłprios subordinados os culpados por esse despertar nada agradĂĄvel.
Por que eles foram pro distrito decadente, afinal? â perguntei.
Sobre isso⊠Siddy deixou escapar pra T que sabia de um lugar onde os assassinos podiam estar. Disse que era um local especial, desconhecido das pessoas comuns.
Sitri era⊠bem dedicada e esforçada. Normalmente, me ouvia. Provavelmente achou que revelar o local de possĂveis assassinos nĂŁo contava como âagirâ. AlĂ©m disso, ainda estava irritada com o que aconteceu no salĂŁo.
Mas aquele distrito jĂĄ Ă© quase todo composto de prĂ©dios abandonados â falei. â Um pouco mais de caos nĂŁo deve…
Ouvi dizer que cinco prĂ©dios foram destruĂdos. Os Trogloditas ficaram descontrolados! E tudo por sua culpa!
Isso soava bem como eles. Se conseguiram construir aquele palåcio de åguas termais em Suls em questão de horas, provavelmente eram tão bons em demolição quanto em construção. Um bando de lunåticos. Se continuassem assim, as pessoas iam começar a ter uma péssima impressão do nosso clã. Nosso grupo jå tinha uma reputação ruim. Imagina se o clã todo ficasse igual?
Alguém, por favor, pare esses Homens das Cavernas.
Eu jĂĄ terminei com a Raposa â falei. â O impĂ©rio disse que estĂĄ cuidando disso, e nĂŁo hĂĄ mais nada que eu possa fazer. Aposto que essa recompensa vai ser retirada logo, como sempre acontece.
Me dĂĄ um descanso, vai. Eu nĂŁo disse pra esperar e ver o que acontecia?
NĂŁo Ă© que eu me importasse se eles saĂssem causando confusĂŁo; sĂł nĂŁo queria que isso virasse problema meu. Que pĂ©ssima maneira de começar o dia.
Lucia me lançou um olhar suspeito antes de colocar um conjunto de roupas dobradas ao meu lado.
Aqui, ir… lĂder, uma troca de roupa. E olha, a imprensa jĂĄ estĂĄ se juntando lĂĄ fora. A Eva estĂĄ lidando com eles, mas anda sobrecarregada.
Certo, valeu. Mas nĂŁo tenho tempo pra imprensa agora. Nem comi ainda.
Eu tinha acabado de voltar pra capital imperial e decidi nĂŁo sair de casa e, ainda assim, estava sendo bombardeado por uma coisa atrĂĄs da outra.
Eu tambĂ©m trouxe algo pra vocĂȘ comer.
Sou eternamente grato.
Hoje eu serei sua guarda, entĂŁo nĂŁo se preocupe.
Isso Ă©… reconfortante. Hmm.
Nem queria imaginar o que poderia acontecer se a imprensa me pegasse com Luke ou Liz como guarda. Sitri era mais racional, mas tinha o dom de dizer as coisas que devia guardar para si. Por isso, a presença da LĂșcia me deixava mais tranquilo. Pena que isso nĂŁo me deixava mais animado para lidar com jornalistas.
EntĂŁo tive uma ideia brilhante. Estendi a mĂŁo e peguei a pedra negra na minha mesa de cabeceira. Era uma Pedra Sonora, a RelĂquia que Gark tinha me entregado no outro dia. Eu tinha minhas dĂșvidas, mas achava que nĂŁo era coincidĂȘncia ele ter me dado isso justo antes do ataque.
Respirei fundo e me preparei. Depois, usei minha linha direta com Franz.
Dentro do castelo imperial ficava o lugar mais seguro de toda Zebrudia, uma sala protegida contra todos os tipos conhecidos de espionagem. LĂĄ estavam reunidas as pessoas mais poderosas do impĂ©rio: o comandante supremo do exĂ©rcito imperial, o chefe do Instituto Primus, o diretor da agĂȘncia de inteligĂȘncia, os antigos nobres conhecidos como as Espadas do ImpĂ©rio, e outros mais.
Entre eles estava a mão direita do imperador, o homem encarregado de liderar a caçada à organização Raposa, o capitão da Ordem Zero, a guarda pessoal do imperador, Franz Argman.
O inimigo era uma grande organização cujo verdadeiro alcance ainda lhes escapava. O nĂșmero e o poder da Raposa superavam os de qualquer outra facção criminosa. Por isso,
toda informação ali era tratada com extremo cuidado. Franz Argman vinha de uma linhagem respeitada e havia provado sua lealdade atravĂ©s das LĂĄgrimas da Verdade, uma RelĂquia temida nĂŁo apenas por outras naçÔes, mas tambĂ©m dentro da prĂłpria administração imperial. Ele era o homem ideal para chefiar aquela operação.
O plano avançava sem problemas, graças às preparaçÔes jå feitas. O orçamento estava sendo reunido, e a coordenação com outras naçÔes seguia bem. Ninguém ousava se opor a Rodrick Atolm Zebrudia, não com aquele olhar feroz e determinado.
Desde o incidente no Festival do Guerreiro Supremo e a subsequente declaração do imperador contra a Raposa, vårias pessoas haviam desaparecido de Zebrudia. As investigaçÔes ainda não haviam terminado, mas tudo indicava que eram membros da organização. Alguns haviam sido figuras de confiança por anos, pessoas de status elevado, de cargos importantes. As garras astutas da Raposa tinham se infiltrado mais fundo do que se imaginava, e parecia que as naçÔes vizinhas também não haviam sido poupadas.
Enviar um espiĂŁo para dentro das fileiras inimigas nĂŁo era tarefa simples. Se tantas pessoas estavam desaparecendo de uma vez, devia ter havido uma grande mudança dentro da organização. Teriam recebido ordens para se retirar… ou sido eliminadas? O incidente no Festival do Guerreiro Supremo certamente afetarĂĄ a Raposa mais do que o impĂ©rio havia previsto.
O mais importante era que antigos membros da organização tinham começado a fornecer informaçÔes. Era preciso cautela sobre o que acreditar, mas o simples fato de haver desertores jå representava uma oportunidade valiosa.
Um dos presentes Ă mesa franziu o cenho e soltou um suspiro profundo.
Tenho que admitir, a estrutura dessa organização é de enlouquecer. São praticamente obcecados por controle de informação.
Com a cooperação de outras naçÔes garantida e informantes surgindo, a operação avançava bem, mas ainda nĂŁo haviam conseguido nada realmente Ăștil. NĂŁo sabiam, por exemplo, onde ficava a sede da Raposa, quem eram seus lĂderes ou como a organização era administrada. Usando informaçÔes de um desertor, a equipe chegou atĂ© um esconderijo… mas o lugar estava vazio.
Os incidentes anteriores envolvendo a Raposa tinham fornecido algumas pistas, mas nada que o império pudesse aproveitar. O sistema de informação da Raposa usava códigos e compartimentação extrema, ninguém sabia nada além das próprias operaçÔes. Nem mesmo o nome do superior direto era revelado.
A Raposa era estruturada de modo que identidades expostas ou membros capturados não representassem ameaça alguma à organização. As Lågrimas da Verdade nada podiam extrair de alguém que simplesmente não sabia de nada. A dedicação à ocultação era tão meticulosa que chegava a ser assombrosa. Só a qualidade excepcional de seus membros explicava como a organização ainda funcionava.
Aquilo nĂŁo seria resolvido rapidamente e todos ali sabiam disso. Para piorar, nem mesmo havia garantia de que todos os presentes realmente estivessem do mesmo lado. Franz suspirou por dentro, observando o grupo debater com fervor.
As Ășnicas pessoas em quem ele confiava de verdade eram aquele homem que, assim como ele, havia passado pelas LĂĄgrimas da Verdade, e a princesa Murina, que se tornara destemida apĂłs superar os Mil Desafios. Desde o inĂcio, Franz reconhecia que o mĂ©todo usado por aquele homem para provar sua inocĂȘncia fora eficaz… embora totalmente excĂȘntrico.
A princesa imperial nem sempre podia estar presente nessas reuniÔes e Franz jamais arriscaria expÎ-la a perigo. Talvez, pensou ele, houvesse pelo menos uma pessoa ali corajosa o suficiente para encarar as Lågrimas da Verdade, assim como aquele homem fizera.
Aquele pensamento o atingiu como um golpe. Mesmo que aquele sujeito fosse absurdamente talentoso, ter de depender de um palhaço daqueles era humilhante para alguĂ©m do prestigiado clĂŁ Argman. A sensação de impotĂȘncia quase o fez morder o lĂĄbio atĂ© que o secretĂĄrio atrĂĄs dele se pronunciou.
CapitĂŁo Franz, a Pedra Sonora. NĂŁo preciso dizer quem Ă©.
Hmm. Suponho que ele jĂĄ tenha descoberto nossa abordagem, entĂŁo?
ImpossĂvel. Tomamos todas as medidas para isolar esta sala de qualquer espionagem, e pouquĂssimas pessoas sabem da sua agenda.
A força-tarefa anti-Raposa era secreta. O local e o horĂĄrio das reuniĂ”es, bem como a prĂłpria existĂȘncia delas, eram conhecidos apenas pelos envolvidos. Tudo era feito para evitar vazamentos e, mesmo assim, Franz teve de engolir o orgulho e admitir a genialidade do Mil Truques. Realmente, uma arte sobre-humana.
Reavaliem nossos mĂ©todos de contraespionagem. Façam uma varredura completa para garantir que nada tenha vazado! NĂŁo posso permitir que um caçador aja como bem entende! â rosnou Franz, enquanto atendia a Pedra Sonora.
A RelĂquia vibrante se aquietou, e entĂŁo dela ecoou aquela voz preguiçosa que o assombrava nos pesadelos.
Aah. Aah. Aah. Franz? Iooohuu, sou eu. Eu mesmo, sabe?
Eu vou te matar. E nĂŁo sou seu amigo!
SerĂĄ que ele nĂŁo tem o mĂnimo respeito pela nobreza?!
A Casa Argman era antiga e respeitadĂssima. Nenhum de seus membros jamais fora saudado com um âiooohuuâ. Franz atĂ© se lembrava de ter sentido algo prĂłximo do medo quando conheceu aquele homem pela primeira vez mas devia ter sido imaginação. Afinal, o sujeito estava usando aquela camisa espalhafatosa.
Franz realmente havia dado a ele uma Pedra Sonora, para que pudesse entrar em contato quando necessĂĄrio mas nĂŁo esperava que o fizesse tĂŁo cedo. Receber notĂcias dele era bom, mas irritante mesmo assim.
VocĂȘ tem informaçÔes sobre a Raposa? â perguntou, a voz grave traindo a irritação. â NĂŁo tenho tempo a perder, entĂŁo seja direto.
HĂŁ? Ah, nĂŁo. Eu nĂŁo tenho tempo pra lidar com a Raposa agora. VocĂȘ tem um jornal aĂ? Franz ficou em silĂȘncio por um momento.
Alguém me arranje um jornal.
Respirando fundo para controlar o impulso de explodir, esperou enquanto um subordinado lhe trazia o periódico. Desde que escoltara o imperador até Toweyezant, Franz se tornou infinitamente mais paciente. Por pior que fosse o comportamento de seus subordinados, ele podia se consolar pensando que ainda era melhor do que lidar com o Mil Truques. Isso o ajudava a ser um homem mais calmo.
Franz sempre se mantinha informado e acompanhava o que acontecia na capital imperial. Sabia que o Mil Truques havia sido atacado, que jogarĂĄ a bomba para o Gark, que seres misteriosos haviam capturado alguns dos culpados, e que membros do Primeiros Passos haviam invadido o distrito decadente.
Mas um homem que dizia ânĂŁo ter tempo para lidar com a Raposaâ certamente nĂŁo ligaria por causa de algo tĂŁo banal quanto isso.
E entĂŁo? â disse Franz, esperando que o homem dissesse algo.
O Mil Truques ficou em silĂȘncio por alguns segundos antes de falar com um tom exageradamente animado.
Eu disse pra eles nĂŁo fazerem isso. Eu disse claramente pra nĂŁo fazerem, mas… â outra pausa. â SerĂĄ que vocĂȘ pode me dar uma ajudinha?
HĂŁ?
Ă que… bom, eu sei que a gente causou um incidente, mas essa atenção toda tĂĄ me incomodando um pouco. Essa matĂ©ria tĂĄ ok, mas tĂĄ atraindo um monte de atenção indesejada da imprensa.
Espere. VocĂȘ estĂĄ me pedindo, a mim, um nobre do impĂ©rio, para exercer um pouco de pressĂŁo. Ă isso mesmo?
Maldito seja.
Mesmo que fosse sĂł um favor, existiam etapas a serem seguidas. AlĂ©m disso, algo tĂŁo insignificante nĂŁo era assunto para ser tratado por um nobre de prestĂgio. Ser tratado com tanta leveza o ajudou, na verdade, a manter a calma. Franz lançou um olhar fulminante aos outros na sala todos fingindo nĂŁo estar ouvindo nada.
NĂŁo, nĂŁo Ă© bem isso â o homem respondeu rapidamente. â Eu nĂŁo tĂŽ dizendo pra ir tĂŁo longe! Mas, sabe, eu tĂŽ ocupado. TĂŽ ocupado, entĂŁo…
A voz dele foi ficando cada vez mais baixa até sumir.
Ocupado? Ocupado, Ă©? Ă isso que acontece quando vocĂȘ chega no NĂvel 8? Ele acha que eu nĂŁo tenho nada pra fazer?!
Havia vantagens em deixar claro que ele e o Mil Truques tinham algum tipo de relação, mas seu orgulho não permitia nem fingir que era bem relacionado com um sujeito como aquele.
Franz respirou fundo e berrou dentro da Pedra Sonora. Fazia tempo que ele nĂŁo gritava tĂŁo alto.
Droga, nunca mais entre em contato comigo por algo tĂŁo banal! Eu te dei essa Pedra Sonora pra vocĂȘ me avisar se descobrisse algo sobre a Raposa! O que vocĂȘ pensa que nĂłs somos?! Acha que somos colegas de bar?! Diga!
Talvez intimidado pelos gritos de Franz, o Mil Truques demorou um pouco para responder.
Companheiros que protegeram o imperador juntos? â disse por fim.
Sem dizer uma palavra, Franz desligou a Pedra Sonora e bateu com força na mesa.
Entrem em contato com os jornais e mandem silenciar a histĂłria!
Q-qu… que razĂŁo eu devo dar a eles?
Digam que é pela segurança do império! Contatem a Terceira Ordem. Fica no distrito decadente. Devem ter cuidado quando forem até lå. Só precisamos calar a imprensa.
Nada naquilo o agradava. De forma alguma. Seu orgulho como nobre nĂŁo permitia ser usado por um mero caçador, nĂŁo importava o quĂŁo alto fosse seu nĂvel. Ainda assim, o imperador havia ordenado que ele fizesse tudo o que estivesse ao seu alcance.
Por mais trivial que parecesse, enquanto aquele homem não revelasse suas intençÔes ou objetivos, Franz não tinha escolha a não ser obedecer. Por exemplo, ainda que parecesse improvåvel, existia uma pequena chance de que os comentårios nos jornais sobre o incidente pudessem atrapalhar os planos para eliminar a Raposa.
O que mais incomodava Franz era aquele homem e as habilidades que condiziam com seu nĂvel. Se fosse apenas alguĂ©m medianamente talentoso, Franz estaria livre pra se livrar dele, mas depois de ele ter impedido uma tentativa de assassinato ao imperador e evitado o uso da Chave da Terra, nĂŁo cabia a Franz decidir o destino daquele sujeito.
Segurando a cabeça e respirando fundo, Franz tentou se acalmar. Levar aquele homem estranho a sĂ©rio demais sĂł lhe traria uma Ășlcera. Ele sĂł precisava garantir que o Mil Truques trabalhasse a seu favor. Um nobre do impĂ©rio nĂŁo podia se deixar distrair pelo trabalho dos que estavam abaixo dele e perder de vista o que realmente importava.
Por ser um homem extremamente cauteloso, Franz mantinha pessoas vigiando o Mil Truques. Ele garantiu que o caçador fosse monitorado vinte e quatro horas por dia, para descobrir como ele obtinha suas informaçÔes e para poder reagir no instante em que algo acontecesse.
No entanto, a Ășnica informação que Franz havia recebido era de que a sede do clĂŁ fora atacada. Fora isso, nada de relevante, nem mesmo um relatĂłrio de que o Mil Truques tivesse saĂdo de casa. Os outros membros dos Grieving Souls visitavam a sede um de cada vez, o que provavelmente significava que ele estava dando ordens de seu escritĂłrio no Ășltimo andar. TambĂ©m havia a Pomba de Correntes que chegou com uma carta.
Tudo aquilo incomodava Franz o fato de aquele homem estar emitindo ordens sem nunca sair, o modo como insistia estar ocupado e o fato de Franz ter que recorrer Ă s suas habilidades enquanto suportava suas zombarias.
Ele não tinha tempo pra lidar com a Raposa? Não tinha tempo para uma organização que vårias naçÔes estavam colaborando para caçar?! O que diabos poderia ser mais importante?! E por que diabos ele tinha que mencionar isso durante a reunião da força anti-Raposa?!
Argh! O que hĂĄ de errado com aquele homem?!
Franz quase começou um discurso interno sobre aquele sujeito quando um de seus subordinados irrompeu pela porta da sala de reuniÔes. Todos os olhares se voltaram para o cavaleiro de rosto pålido.
CapitĂŁo Franz, acabamos de receber uma profecia do Astral Divinarium! Eles estĂŁo prevendo um desastre!
O Astral Divinarium, tambĂ©m conhecido apenas como o DivinatĂłrio, era uma das instituiçÔes pĂșblicas do impĂ©rio, e a mais antiga. Zebrudia possuĂa vĂĄrios institutos, como o Departamento de Investigação de Cofres, responsĂĄvel por pesquisar Fantasma, cofres do tesouro e outros fenĂŽmenos relacionados ao mana. Havia tambĂ©m o Instituto Primus, que unia magia e tecnologia aplicada, entre outros.
Mas o Astral Divinarium se diferenciava dos demais em termos de autoridade. Eles eram a ovelha negra entre as instituiçÔes, porque seu domĂnio era o dos fenĂŽmenos mĂsticos que escapavam Ă compreensĂŁo dos outros departamentos.
O Divinatório lidava com fenÎmenos ainda não compreendidos e magias que desafiavam qualquer classificação concreta, incluindo maldiçÔes e poderes sobrenaturais que variavam de pessoa para pessoa. O próprio nome, no entanto, revelava seu foco principal: a adivinhação, a capacidade de conhecer antecipadamente o que o destino e o futuro reservavam.
AtravĂ©s da terra e ao longo do tempo, esforços foram feitos para aprender a prever desastres iminentes. No entanto, a maioria das habilidades envolvidas dependia em grande parte da disposição natural de um indivĂduo, e nenhuma teoria clara havia sido estabelecida da mesma forma que para a magia.
Diferente da magia, a maioria das formas de adivinhação nĂŁo consumia mana. Muitos que se autodenominavam astrĂłlogos previam o futuro usando poderes e sentidos Ășnicos a eles; alguns prediziam o que o futuro reservava, mas tambĂ©m havia muitos charlatĂŁes. AtĂ© hoje, muitas pessoas proclamam ser impossĂvel ver o futuro.
Apesar de sua longa histĂłria, o DivinatĂłrio era uma instituição pequena, provavelmente porque sua pesquisa e trabalho envolviam algo incrivelmente difĂcil de avaliar. No entanto, por ser um campo que o impĂ©rio nĂŁo podia se dar ao luxo de descartar, o DivinatĂłrio continuava a existir, apesar de seu tamanho reduzido e de muitos cĂ©ticos.
Uma profecia de desastre? â disse Franz. â Tudo isso enquanto estamos ocupados lidando com o Raposa.
O DivinatĂłrio nĂŁo Ă© conhecido por errar o alvo â disse o capitĂŁo dos cavaleiros com um encolher de ombros. Ele era o responsĂĄvel pela Terceira Ordem, encarregada de manter a paz no impĂ©rio. â Dificilmente podemos ignorar um aviso do instituto que gerencia as LĂĄgrimas da Verdade.
As profecias do Divinatório tinham um lugar especial dentro do império. A astrologia era algo inståvel, e o Divinatório raramente emitia previsÔes. Eles não haviam previsto a recente tentativa de assassinato do imperador, nem a guerra entre a Torre Akåshica e o Inferno Abissal, nem a ativação da Chave da Terra.
Por outro lado, porém, tudo o que previam certamente aconteceria. Sempre que o Divinatório anunciava uma profecia, todos os nobres se reuniam para responder à situação iminente.
Franz franziu a testa e suspirou. â Mas âuma sombra negra cairĂĄ sobre a capital imperialâ nĂŁo nos diz muita coisa.
NĂŁo parece um desastre natural.
As profecias do DivinatĂłrio nĂŁo eram necessariamente especĂficas. A maioria dos astrĂłlogos nĂŁo conseguia visualizar o que estava prevendo e baseava suas previsĂ”es em visĂ”es abstratas. Dito isso, esta profecia era excepcionalmente vaga. Franz concordou com a avaliação do capitĂŁo da Terceira Ordem.
Um desastre natural nĂŁo se restringiria Ă capital â disse Franz. â Uma epidemia tambĂ©m Ă© improvĂĄvel.
A profecia nĂŁo lhes dizia quase nada, mas eles sabiam a ĂĄrea sob ameaça: a capital imperial. Isso significava que o desastre nĂŁo poderia ser algo que afetaria tambĂ©m os arredores, como um terremoto, e haveria indicadores com antecedĂȘncia se fosse algo como uma epidemia.
AlĂ©m disso, o Mil Truques estava se movendo. Havia algo grande o suficiente para fazĂȘ-lo desconsiderar o Raposa, mesmo apĂłs o ataque Ă sua casa de clĂŁ. Era definitivamente justo supor que isso tinha algo a ver com a profecia, mas mesmo aquele homem nĂŁo conseguiria fazer nada sozinho contra um desastre natural.
O capitĂŁo da Terceira Ordem gemeu e disse, ignorando os pensamentos de Franz: â Ă possĂvel que esteja se referindo a algum ato de destruição daquela organização?
NĂŁo, nĂŁo poderia ser â respondeu Franz. â O DivinatĂłrio nunca previu o trabalho de organizaçÔes criminosas, e a escala estĂĄ errada. AlĂ©m disso, se nossos colaboradores estiverem certos, a Raposa se retirou da capital imperial.
Entendo.
Sem mencionar que o Mil Truques havia dito que não tinha tempo para lidar com a Raposa. Aquele homem era erråtico, mas por mais frustrante que fosse, mesmo alguém que o desprezava tanto quanto Franz ainda era forçado a reconhecer sua intuição excepcional. Mas depender demais dele seria uma omissão de seu dever como nobre.
Era seu trabalho manter o impĂ©rio seguro. Se Franz sozinho nĂŁo era pĂĄreo para a artimanha sobre-humana daquele homem, ele teria que jogar com seus pontos fortes, o que incluĂa a coordenação. Ele nĂŁo podia permitir-se ser pego desprevenido a cada reviravolta.
Se aquele homem soubesse da profecia antes de Franz, ele teria alguma conexĂŁo com o DivinatĂłrio? Talvez seus poderes fossem semelhantes aos de um astrĂłlogo. Olhando para trĂĄs, o comportamento intrigante daquele homem tinha muito em comum com a pomposidade excessiva que ele via nos astrĂłlogos.
Vamos reforçar nossas patrulhas na capital, mas jĂĄ estamos com falta de pessoal. Se ao menos soubĂ©ssemos mais sobre quando e o que esperar â disse amargamente o capitĂŁo da Terceira Ordem.
Desde a guerra entre a Torre AkĂĄshica e a Maldição Oculta, atĂ© o assalto do dragĂŁo carmesim, os Ășltimos meses foram agitados. A Terceira Ordem jĂĄ estava em alerta mĂĄximo; ser instruĂdo a se preparar para um desastre de natureza e timing desconhecidos era receita para uma dor de cabeça. Isso nĂŁo era algo que eles pudessem combater. Quaisquer ataques significariam que os cavaleiros jĂĄ haviam cometido um erro.
O capitão da Terceira Ordem era um homem robusto conhecido por suas habilidades em combate, mas até ele estava mostrando sinais de exaustão. Poderia ser imaginação de Franz, mas o capitão parecia ter ganhado mais cabelos grisalhos.
NĂŁo temos escolha. Teremos que pedir emprestado pessoas do Santo da Espada â disse Franz. â Nossas unidades formais nĂŁo serĂŁo suficientes, e nĂŁo podemos chamar cavaleiros de outras regiĂ”es apenas para proteger a capital.
O império tinha um bom relacionamento com seu espadachim mais forte, Soln Rowell, o Santo da Espada. Ele frequentemente enviava pessoas para ajudar a treinar os cavaleiros do império, e alguns de seus alunos chegaram a se juntar a ordens de cavaleiros imperiais. Ele jå tinha sido um homem com alguma må fama, mas havia amadurecido como pessoa e agora era reconhecido até pela nobreza.
Houve uma batida na porta, e entrou um subordinado retornando de sua investigação. â CapitĂŁo, eu reuni todos os registros relevantes do DivinatĂłrio e da Biblioteca Imperial.
Muito bem. NĂŁo terĂamos que nos incomodar com isso se eles pudessem ser um pouco mais precisos com suas profecias. Ora, francamente.
Embora as visÔes do Divinatório fossem geralmente vagas, a Biblioteca Imperial mantinha um registro de cada profecia e o que se seguiu na realidade. Se houvesse um precedente de previsÔes similares, eles poderiam ser capazes de deduzir o que esta nova envolveria. E se não soubessem, teriam que se ajustar de acordo. Esta era uma vantagem que nem mesmo o Mil Truques poderia reivindicar.
A pedido de Franz, o subordinado deu seu relatĂłrio. â Posso compilar os detalhes mais tarde, mas por enquanto, parece que uma profecia sobre uma âsombra negraâ nĂŁo surgiu em Zebrudia, mas sim em outra terra. A profecia foi seguida por uma maldição malevolente que desceu sobre uma vasta ĂĄrea, resultando em dezenas de milhares de vĂtimas.
“Maldição”. “Dezenas de milhares de vĂtimas”. Os olhos de Franz se arregalaram. Ele continuava repetindo as palavras em sua cabeça. Olhando de perto, ele podia captar uma ponta de apreensĂŁo na expressĂŁo do subordinado.
O capitĂŁo da Terceira Ordem franziu a testa e finalmente disse: â Temos uma emergĂȘncia. SĂ©rio, Ă© difĂcil de acreditar. Uma maldição. Eu nĂŁo achava que maldiçÔes fossem capazes de um assassinato em tĂŁo grande escala.
MaldiçÔes eram uma variedade de artes arcanas nascidas de emoçÔes poderosas. Eram principalmente conhecidas por serem usadas em pessoas e outros seres vivos, e temidas por sua utilidade como meio de assassinato. No entanto, nĂŁo eram adequadas para matar pessoas em grandes nĂșmeros.
A intensa maldade era vital para tentar ferir alguém com uma maldição. Para matar milhares de pessoas, seria necessårio um grau apropriado de animosidade, e mesmo um Xamã um pouco acima da média não seria capaz de comandar tal maldição. Além disso, havia maneiras mais eficientes de realizar assassinatos em uma escala tão grande.
O que aquela terra fez de errado? â perguntou Franz.
Parece que eles profanaram o tĂșmulo de um Magus poderoso â respondeu o subordinado.
A ira de um Magus antigo, hein? Isso explica, eu acho.
Nos tempos antigos, nĂŁo faltavam contos de pessoas sendo mortas por maldiçÔes apĂłs destruĂrem um local de sepultamento sem cuidado. Os sentimentos dos vivos se suavizavam com o tempo, mas as maldiçÔes deixadas pelos falecidos nĂŁo desapareciam, tornando-as muito perigosas.
Ainda assim, era difĂcil imaginar que isso estava acontecendo aqui. Os perigos de profanar tĂșmulos eram de conhecimento comum, e nĂŁo deveria haver espaço para o desenvolvimento de uma maldição tĂŁo poderosa no impĂ©rio. A possibilidade mais provĂĄvel era a maldição de Kechachakka que invocava dragĂ”es, mas a RelĂquia que tornava isso possĂvel havia sido confiscada e selada firmemente no cofre do castelo.
O capitĂŁo da Terceira Ordem se levantou. â Por via das dĂșvidas, vou ordenar uma investigação para verificar sinais dessa maldição. Comecem a procurar outras causas para garantir que nĂŁo seja outra coisa provocando um fenĂŽmeno similar. Vai levar tempo, mas vamos analisar todas as possibilidades, uma de cada vez.
Se algo aparecer, entrem em contato. Podemos enviar nosso pessoal para ajudar, e tenho certeza de que Sua Majestade Imperial vai querer saber disso.
Os dois capitĂŁes de cavaleiros apertaram as mĂŁos. Eles tinham muito o que pensar. Embora nĂŁo parecesse possĂvel, se uma maldição capaz de matar dezenas de milhares realmente estivesse se formando, isso teria prioridade sobre o Raposa.
Eles teriam que consultar o Instituto Primus em busca de contramedidas, instar o DivinatĂłrio a se apressar com sua anĂĄlise, relatar a Sua Majestade Imperial e solicitar a cooperação dos especialistas da Igreja do EspĂrito Radiante. A mĂdia tambĂ©m teria que ser contatada. Um aviso rigoroso para que nĂŁo assustassem o povo da capital com informaçÔes descuidadas.
E, claro, eles também precisavam checar com o Mil Truques. Ele pode apenas dar voltas e rodeios, mas eles lidariam com isso quando chegasse a hora. Pelo bem do império, Franz estava resolvido a sorrir e aguentar.
A porta foi escancarada, e um subordinado entrou na sala. Eles pareciam muito mais tensos do que quando vieram relatar a profecia.
CapitĂŁo Franz, recebemos a notĂcia de que um dos alunos do Santo da Espada foi possuĂdo por uma Espada DiabĂłlica e estĂĄ em fĂșria.
O quĂȘ foi isso?
NĂŁo hĂĄ realmente nada melhor do que a tranquilidade. Ocorreu-me que fazia um tempo desde que eu tinha conseguido relaxar com minha irmĂŁ. Eu podia ter bastante tempo livre, mas minha competente irmĂŁ estava meio ocupada.
Eu parei de comer meu café da manhã (almoço?) e sorri para ela.
Tenho a sensação de que algo bom vai acontecer hoje.
Lucia olhou para mim com sua expressĂŁo carrancuda de sempre e perguntou fria:
IrmĂŁo, alguma vez algo de bom aconteceu quando vocĂȘ diz isso?
Tradução: Carpeado
Para estas e outras obras, visite Canal no Discord do Carpeado â Clicando Aqui
Apoie o autor comprando a obra original.
Compartilhe nas Redes Sociais
Publicar comentĂĄrio