Grieving Soul – Capítulo 6 – Volume 7
Nageki no Bourei wa Intai shitai
Let This Grieving Soul Retire
Light Novel Online – Volume 07 – Capítulo 06:
[Epílogo: Let This Grieving Soul Retire, Parte Sete]
No que diabos eu tinha me metido?
Quando abri os olhos, estava em um mundo de cinza opaco. Galf segurava um monte de máscaras de raposa e dançava com a Sora, a Raposinha, e o Krahi. Nada daquilo fazia muito sentido, mas a impressão que dava era que eles estavam se divertindo de verdade.
Dei um tapa na cabeça tentando lembrar por que eu estava ali, mas não veio nada. Será que eu tinha morrido? Céu? Inferno? O céu cintilava com relâmpagos que não faziam barulho e nem tinham força. Olhei de novo para o pessoal dançando sob aquele céu silencioso e decidi que o melhor seria desistir de entender e só aceitar.
Pisquei devagar, quando senti alguém agarrando meu braço por trás.
— Por que essa cara tão pra baixo, meu ex-CM?
Era a Touka, líder dos Cavaleiros da Tocha. Atrás dela estavam os membros da sua equipe, todos com armaduras combinando por cor, de mãos dadas, dançando em círculo. Não estavam fazendo nenhum passo elaborado, mas só o número de pessoas ali já fazia a cena impressionante.
De repente, percebi que tinha algo estranho no que a Touka tinha dito. — Hm? Ex-CM?
— Ainda está grogue? Já faz um tempo que você se aposentou da caça e do posto de mestre do clã, não foi?
Aposentado. Esfreguei os olhos. Então eu tinha me aposentado? Não lembrava disso acontecendo, mas a Touka não era exatamente conhecida por fazer piadas.
— Agora precisamos terminar a missão de hoje. Estamos dançando — declarou com um sorriso largo, uma expressão rara nela.
Os cavaleiros soltaram as mãos uns dos outros e começaram uma dança de passos rápidos e curtos. O círculo foi se expandindo conforme mais gente se juntava. Vi Franz, Arnold, Greg, o imperador, Murina, Kecha e Telm entrando, enquanto a Inferno Abissal preenchia o céu com chamas multicoloridas. De repente, alguém me levantou e me colocou nos ombros.
— Parabéns, Krai Baby! — gritaram.
E então eu acordei. Me dei conta de que estava em uma cama.
— Que sonho maluco.
Meu pijama estava encharcado de suor. Esfreguei os olhos, segurei a cabeça e olhei ao redor. Ainda estava tentando entender onde estava, mas conseguia ouvir a voz da Liz, animada como sempre.
— Bom dia, Krai Baby! Que foi? Um sonho doido?
Os olhos dela brilhavam com aquela energia cega de sempre.
Aos poucos, comecei a lembrar do que tinha acontecido antes de apagar. O dia tinha começado comigo sendo forçado a participar do Festival do Guerreiro Supremo. Teve a garrafa de água falante, os relâmpagos caindo, a Raposinha lutando no meu lugar, depois o presidente do clube aparecendo do nada e tocando o terror. Era um absurdo completo, até mais do que o sonho que eu tinha tido. Vai ver… não foi sonho?
— Então — disse Liz, percebendo minha confusão óbvia —, você desmaiou quando tudo acabou. Tá bem? O médico disse que não tinha nada de errado com você.
Entendi… eu acho?
Mexi os braços, toquei as mãos e os pés. Nada doía.
— Bom dia, Krai — disse Sitri com um sorriso. — Eu conferi tudo. O médico disse que você apagou de exaustão.
Eu tinha tanta resistência quanto uma pessoa comum. O dia anterior foi uma sequência de estresse e coisas mudando tão rápido que eu mal conseguia acompanhar, e no final ainda teve um terremoto forte. Não era estranho um fracote como eu ter desmaiado.
Hm? Ontem?
Olhei pela janela — a luz do sol entrava forte. — Estou bem. Aliás, quanto tempo eu dormi? — perguntei pra Sitri.
Ela pareceu pensar um pouco, então levantou o dedo indicador. Um dia? Uma noite? Nem foi tanto quanto eu achei. Eu já ia suspirar de alívio quando ela levantou um segundo dedo… depois um terceiro… e um quarto. Quando eu ainda tentava entender, ela começou a abaixar os dedos até só restarem dois. Sitri sorriu quando viu minha cara de choque.
Lá vem ela com as piadas estranhas de novo.
— Dois dias? Dormi dois dias? — perguntei. — Eu sei que tava cansado, mas isso parece exagero.
— Não, tô fazendo o sinal da paz — respondeu ela.
— Ele não precisa dessas suas palhaçadas confusas! — disse Liz, e deu um tapão na Sitri por mim.
A Sitri tava bem fora do normal. Tinha comido algo estranho? Eu já ia comentar quando o Luke entrou correndo, do jeito dele.
— Opa, Krai! Acordado! Olha só, o Gerente de Filial Gark disse que não quer ter que te caçar de novo…
— Ah, finalmente acordado, irmão. Nossa, você faz ideia do quanto me preocupei?
— Mmm.
Nunca descobri exatamente quantos dias tinham se passado, mas parecia que as coisas tinham acalmado.
Ainda meio preso entre o sono e a realidade, ouvi a Sitri pigarrear. Ela deu um passo à frente, assumindo seu papel habitual de porta-voz do grupo. — Agora, por onde começo? Acho que você quer saber o tamanho do estrago e como o inimigo conseguiu escapar mesmo com toda a vantagem que tínhamos.
— Oooh. Isso é terrível.
Não consegui evitar engolir em seco. A arena tinha sido destruída. O coliseu, que ficava no centro de Kreat e era um símbolo da cidade, estava em ruínas. Aquela construção que antes me fazia olhar pra cima pra ver o topo, agora era só um monte de escombros. O único vestígio de que aquilo já foi algo era a placa de pedra na entrada. Fissuras cobriam a rua de paralelepípedos, mostrando o quanto o chão tremeu. Duvidava que muita gente acreditasse que tudo aquilo tinha sido causado por uma única Relíquia.
Me senti péssimo ao ver tanta gente trabalhando pra limpar os destroços. Quando a Sitri me contou o que tinha acontecido, tudo o que consegui dizer foi:
— Hã?
Aparentemente, o homem que estava no ringue era a Raposa maligna que o Gark e todo mundo estavam perseguindo, e ele tentou usar a Chave da Terra pra acabar com o mundo. Parecia piada, mas com um estrago daquele, não dava pra duvidar.
Isso explicava por que tudo parecia brutal demais para um simples encontro de fãs de máscaras de raposa. Mas isso queria dizer que eu estava na frente de um cara perigoso esse tempo todo, sem nenhum Anel de Segurança para me proteger?! Ainda bem que o perigo imediato tinha passado. Senão eu já estaria vomitando.
Não foi só azar que causou esse caos todo; foi todo mundo usando imagem de raposa pra tudo. Só deixou tudo ainda mais confuso. Tinha, claro, a Pequena Irmã Raposa fantasma, mas também as Raposas boas e más em Kreat, o que dava um total de três grupos parecidos. Nem precisava ser como eu, qualquer um teria entendido tudo errado de algum jeito.
— É um milagre a destruição não ter ido além disso — comentou Lucia, que aparentemente tinha desmaiado por exaustão de mana. — Teve hora que achei que estávamos todos condenados.
Ansem assentiu com um “Mmm” solene.
Disseram que Lucia e os outros magos tinham se esforçado ao máximo para conter os danos. Se não fosse por eles, a destruição teria ido muito além da arena. Ou seja, era o padrão de sempre: eu fazia besteira e os outros limpavam a bagunça. Só que dessa vez, o estrago tinha sido monumental.
Uma pequena caravana de carroças parou do lado de fora dos escombros, onde começaram a carregar os destroços.
— Bem, não houve fatalidades, então acho que podemos considerar um resultado positivo — disse Sitri, observando as carroças indo embora.
— Hm? Ninguém morreu? — perguntei.
— É, tinha um monte de caçadores por perto e também o Sr. Gerente da Filial — respondeu Liz. — Faz sentido que ninguém tenha batido as botas.
— Da mesma forma, eu distribuí — digo, entreguei poções. Sem cobrar nada em troca — disse Sitri. — Ansem também teve um desempenho espetacular.
— E eu pude cortar muita coisa! — declarou Luke, com um orgulho inexplicável.
Eu só queria que ele fizesse outra coisa além de cortar.
Isso me lembrou do quanto os caçadores eram incríveis, conseguindo evitar mortes mesmo com uma estrutura gigantesca desabando. Se tivesse havido algum erro, não era difícil imaginar eu sendo o único a bater as botas.
— Agora que a Raposa tentou usar a Chave da Terra, o império está tomando uma postura mais agressiva para caçá-los — disse Sitri, me cutucando alegremente com o cotovelo. — É uma virada total em relação à postura anterior. Parece que o império não ficou nada feliz com o que rolou hoje.
Fiquei aliviado por ela conseguir achar graça em tudo, mas duvidava que ela fosse continuar tão alegre se soubesse que fui eu quem ativou a Relíquia. Mesmo que tenham interrompido no meio, o estrago que eu quase causei já era motivo mais que suficiente pra pena de morte. Eu podia dizer que foi porque tropecei, mas duvido que iam comprar essa. No fim das contas, a Raposa queria ativar a Chave da Terra, então o que mudou foi só o caminho, não o destino.
— Foi a Raposa — disse Sitri, ao me ver franzindo a testa.
— É, mas eu também tive um pouco de culpa—
— Você não teve culpa nenhuma. Foi tudo obra da Raposa.
— Mas—
— Foi a Raposa.
Ela estava estranhamente insistente nesse ponto. Luke, Lucia e Liz também mostraram apoio.
— Não entendi muito bem, mas a culpa é da Raposa!
— Sim. Foi tudo culpa da Raposa.
— Claro que foi culpa deles. Você foi ótimo. A gente devia estar bravo com a Raposa. Ah, e com os organizadores do torneio, que cancelaram tudo por causa de um pequeno contratempo!
Pelo que parecia, a culpa era da Raposa e ponto final. Eu ainda achava que tinha tido pelo menos uma parte na confusão. No mínimo, os organizadores do torneio não tinham feito nada de errado. Fiquei com pena de quem estava ansioso pelo Festival do Guerreiro Supremo, mas eventos geralmente são cancelados quando o local vira um monte de entulho.
Suspirei e olhei para Sitri, que claramente não estava disposta a me ouvir argumentar. — Mas a Raposa não é a única vilã aqui. Você também já fez muita coisa errada — falei.
— Hã?!
Ansem assentiu de novo. — Mmm.
Bom, o que estava feito, estava feito. O que me preocupava agora era o que as pessoas iam esperar de mim, considerando meu nível alto. Eu tinha acabado de ter aquele encontro maluco com o Peregrine Lodge e agora isso. A aposentadoria tranquila que eu sonhava ainda estava longe.
Respirei fundo, me espreguicei e segui meus amigos, deixando para trás as ruínas da arena.
— Encontrem aquele homem com a máscara de raposa, custe o que custar! — esbravejou Franz. — Com os ferimentos que sofreu, ele deve estar por perto! Façam o que for preciso, a dignidade do império está em jogo! Aquele homem estava tirando sarro da nossa cara ao deixar um alvo ferido escapar?! Façam o governo local cooperar! Foram eles que nos ignoraram quando demos o alerta! E ainda deixaram a Princesa Murina ser atacada!
Soldados e funcionários civis saíram correndo. Já fazia um dia inteiro desde o incidente no Festival do Guerreiro Supremo, mas o imperador e sua comitiva ainda estavam agitados como uma colmeia raivosa. Ajudando o pai, Murina recebia um relatório atrás do outro.
— Nosso alvo estava gravemente ferido — disse Rodrick. — Não aceito que ele tenha simplesmente sumido sem deixar rastro. Ele não teria recebido aquele golpe do Guerreiro Supremo de propósito se não estivesse com pouca mana.
— Já cercamos o coliseu — respondeu Murina — e cortamos todas as possíveis rotas de fuga. Mesmo assim, não houve nenhum relato de avistamento.
Rodrick não disse nada, mas sua expressão estava mais severa do que nunca. Seus olhos brilhavam ferozmente, como uma espada desembainhada. Murina e Franz trocaram palavras rápidas, mas pararam quando um subordinado apareceu com um relatório.
— Capitão Franz, terminamos de coletar o sangue deixado na arena. É o suficiente pra enviar ao Divinário.
— Não gosto de recorrer a medidas tão incertas, mas acho que não temos escolha — comentou Rodrick. — Assim que tivermos uma noção da posição geral deles, viramos cada pedra na área. Agora, creio que não há mais motivo para permanecermos nessa terra. Também precisamos solicitar a cooperação de outras nações.
Rodrick estava decidido a usar todos os meios possíveis para esmagar a Raposa. Já Murina, por conhecer de forma vaga o lado menos conhecido da história, se sentia dividida. Ela entendia que qualquer organização disposta a liberar uma arma tão terrível precisava ser punida, mas também sabia que uma certa pessoa havia se infiltrado entre eles… e brincado com suas intenções.
— Além disso — disse o subordinado, visivelmente desconfortável —, a Alquimista de Grieving Souls pediu que compartilhemos um pouco do sangue da Raposa com ela…
Franz ficou tenso ao ouvir isso, mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, Rodrick se adiantou:
— Depois de tudo que esse grupo fez, dificilmente podemos recusar. Dê uma parte à Alquimista, mas garanta que sobre o suficiente pro Divinário fazer seu trabalho. Não gosto da reserva dele, mas temos uma dívida ao Mil Truques, tanto por isso quanto por Murina.
— Suponho que teremos que formalizar o pedido de cooperação assim que a situação se estabilizar — disse Franz. — Não podemos depender demais dele, mas ele tem… um acesso inexplicável a informações.
Murina concordava com ele. Lembrava do Mil Truques como alguém que parecia caótico, mas estranhamente racional. Ainda havia coisas que ela não entendia, mas provavelmente era porque não possuía as informações certas. Agora ela compreendia por que ele tinha a fama de ser tão perspicaz. Mesmo tendo recebido treinamento direto de Grieving Souls, ainda não era capaz de executar nenhuma artimanha além-humana.
— Pai — ela disse —, tenho a impressão de que o plano atual do Mil Truques ainda está em andamento.
— Tem algum motivo pra acreditar nisso, Murina?
— Nada concreto. No entanto, percebi que tudo que aquele homem faz tem camadas. Não acho que ele acabou naquele palco por acidente.
Murina estava apenas especulando, mas falava com confiança. Ela sabia de algo que seu pai não sabia — o Mil Truques havia conseguido se infiltrar numa organização que todos os outros nem tinham conseguido rastrear. Tinha certeza de que ele já sabia dos planos da Raposa para o torneio, e por isso acreditava que havia um motivo por trás de ter deixado o homem da máscara escapar. Ainda assim, achou melhor não contar nem a Franz, nem ao pai, que ele tinha tido contato direto com a Raposa.
Ambos a olharam, um pouco surpresos. Murina respirou fundo e se preparou. Franz e seu pai estavam prestes a levar outro choque.
— Pai, você confiaria essa missão a mim? Talvez eu não pareça, mas já provei ser capaz de superar os Mil Desafios daquele homem. Tenho certeza de que posso ser útil.

— Você pode ter exagerado um pouco no treinamento dela, Mil Truques — murmurou Rodrick. — O que, em nome de tudo, você fez com a minha filha?
Caelum Cauda reinava como um dos chefes da Raposa há muito tempo, mas nunca havia chegado tão perto da morte. Sua mana estava quase esgotada e ele havia sofrido ferimentos graves. Para piorar, a traição de Galf o deixou sem as rotas de fuga que havia preparado. Com toda a dedicação à discrição, não havia nada que os membros da Raposa temessem mais do que serem capturados.
Quando o Guerreiro Supremo começou a persegui-lo, Caelum estava indefeso. Se aquela garota misteriosa não tivesse aparecido, escapar teria sido extremamente difícil. Havia algo nela que parecia místico, até sobrenatural. Mas o que mais chamou a atenção de Caelum foi o fato de ela usar uma máscara idêntica à dele.
Ele presumiu que fosse mais um obstáculo querendo detê-lo, mas ela disse que o ajudaria a escapar. Ele mal conseguia lembrar o que aconteceu depois disso. Tudo que podia afirmar com certeza era que a garota permitiu que ele fugisse de Kreat sem dar de cara com o Guerreiro Supremo nem com os soldados que estavam à sua procura.
Caelum suspirou aliviado. Tinha chegado a uma casa segura de emergência numa cidade próxima. No entanto, apesar de ter escapado do perigo imediato, ainda era cedo para relaxar. A Raposa já assumia que um dia se encontraria em guerra total com o império — mas isso era algo que supostamente estava bem distante no futuro. Agora, estavam prestes a entrar num conflito árduo, ainda mais com a perda de um de seus bens mais valiosos, a Chave da Terra.
E quanto ao grupo enviado para assassinar a princesa imperial? Se tivessem tido sucesso, já deveriam ter retornado à base. Mas, se o impensável tivesse acontecido e tivessem falhado… então provavelmente estavam mortos.
Caelum fechou os olhos e deixou o corpo relaxar, mantendo os outros sentidos atentos ao redor. Pensou na garota que o salvara. A postura, os poderes anormais, a máscara que ela usava. Se não fazia parte da organização, então só havia uma possibilidade — ela veio da Peregrine Lodge, o cofre que havia dado forma à Raposa de Nove Caudas. Ela devia ser descendente da divindade que habitava o cofre.
Muito tempo atrás, o fundador da Raposa encontrou esse cofre de tesouros e recebeu uma máscara do deus que vivia ali. Para a organização, qualquer um que obtivesse uma máscara do cofre era alguém considerado digno pelos deuses.
Ao mesmo tempo, no entanto, o culto à raposa era apenas um nome para justificar a causa deles. Quem encontrava o cofre e recebia uma máscara de um dos fantasmas — por sorte ou destino — era promovido às altas esferas da Raposa. Só isso. Da mesma forma, não havia nenhuma razão profunda por trás dos privilégios especiais concedidos aos sacerdotes. No fundo, a Raposa era algo que nasceu dos escombros de uma antiga agência de inteligência extinta.
Nem é preciso dizer que a Peregrine Lodge não era uma aliada. A Raposa já tinha enfrentado muitos perigos e nunca uma prole do deus apareceu para ajudar. Afinal, não fazia sentido que um fantasma vagasse para longe de seu cofre sagrado.
Aquela garota havia dito: — Você é inimigo do Sr. Cautela. Vou ajudá-lo a escapar. Da próxima vez, a vitória será minha!
O que aquilo queria dizer? Quem era o Sr. Cautela? Era o nome verdadeiro? Um codinome? Como alguém conseguia um codinome como aquele? E o que a fuga de Caelum tinha a ver com a vitória dela?
Por mais que pensasse, não chegava a nenhuma resposta. Pelo contexto, era possível que esse “Sr. Cautela” fosse o próprio Mil Truques, já que era ele quem Caelum vinha enfrentando.
“Chega disso”, disse a si mesmo. “Você precisa descansar.”
A fundação da organização havia sido abalada. Na situação atual, enfrentar o Mil Truques era perigoso demais. Independentemente da identidade daquela garota, o melhor seria considerá-la uma aliada útil.
Foi então que Caelum ouviu uma voz atrás de si. Era uma voz feminina — e gelada.
— Heh heh heh. Você não parece nada bem, Caelum.
O susto o fez abrir os olhos de imediato e soltar um suspiro pesado. Percebeu que uma sombra alta havia surgido no cômodo. Ela usava um manto e carregava uma espada presa na cintura. No rosto, uma máscara parecida com a de Caelum. A Raposa tinha muitas caudas, e Caelum não era a única.
— Onde estão seus modos? Este é o meu domínio, Cauda da Lâmina.
— Engraçado você dizer isso. Ou acha que sou ignorante? Os rumores chegaram até mim. Seu bichinho de estimação te traiu e todo mundo que você mobilizou acabou ferido. Nossa organização está desmoronando e a sede virou um caos.
Caelum franziu o cenho. Ela havia acertado em cheio. De fato, suas operações recentes estavam longe de ter um bom resultado. Além da perda desastrosa da Cascata Reversa e do Chamador de Dragões, um plano que vinha sendo desenvolvido há anos agora tinha ido por água abaixo. Normalmente, um chefe invadir o território do outro seria uma violação de protocolo, mas Caelum não estava em posição de protestar.
— Nada que não possamos recuperar — disse ele. — Agora sabemos como nosso inimigo age, e tenho certeza de que o caos na sede será resolvido em breve.
Caelum começou a achar que, talvez, a presença da Cauda da Lâmina ali fosse um golpe de sorte. Até mesmo o Mil Truques provavelmente precisaria de um tempo para entender o novo cenário. Dentro das fileiras astutas da Raposa, a Cauda da Lâmina se destacava como uma militante fervorosa, e seus talentos não ficavam atrás dos de Caelum. Apesar de preferir lidar com isso pessoalmente, tudo daria certo se mandasse essa mulher atrás do Mil Truques. A morte daquele caçador seria um golpe considerável contra o império.
— Já me contaram por alto o que aconteceu — disse a Cauda da Lâmina, num tom baixo. — Então diga, Caelum, como você escapou? Fugir não deve ter sido fácil estando esgotado assim.
Então ela tinha subordinados monitorando a situação? Isso também era uma violação de protocolo, mas, dessa vez, Caelum estava grato.
Ele respirou fundo e se esforçou para manter a compostura. — Você pode não acreditar, mas fui salvo por uma descendente do deus raposa. Recebemos a bênção deles.
Houve um longo silêncio antes de Blade Tail responder. — Entendo.
Caelum não esperava uma resposta tão seca. Blade Tail não fez mais perguntas; simplesmente sacou sua espada. Era uma lâmina curva, com pouco mais de um metro de comprimento, marcada por um padrão distinto. Era uma Relíquia, com uma superfície estranha que parecia quase molhada. Sua impressão abissal era hipnotizante; parecia mais uma obra de arte do que uma arma. A superfície metálica cintilava de forma suave. Blade Tail parecia apenas parada, mas Caelum não conseguia enxergar uma única abertura.
— O que você pretende fazer? — perguntou ele. Lançar uma magia não seria problema agora que havia recuperado a maior parte de suas forças.
Blade Tail bufou. — Eu estava curiosa para saber qual desculpa você daria, mas… um deus? Caelum Tail, o estrategista, caiu muito baixo. Você está sob suspeita de colocar a organização em risco por ter liberado nossa arma estratégica, a Chave da Terra. Também há suspeitas de que entregou uma máscara secretamente a um subordinado para desestabilizar a sede. Eu vou te apagar aqui e agora.
Caelum se levantou de um salto. — O quê?!
Ele a encarou, mas não conseguia decifrar sua expressão por causa da máscara. A voz dela, no entanto, carregava desprezo e pena. Ela apontou a lâmina para ele.
— Não se preocupe. Raposas não morrem, só ganham novos rabos. Teremos que mostrar nossa gratidão ao Mil Truques por impedir a destruição. Quanto ao comando da região de Zebrudia, não teremos problema em encontrar alguém novo para assumir.
O Mil Truques. Essas palavras provocaram um choque em Caelum. Alarmes dispararam em sua mente. Pensando bem, os movimentos recentes do Mil Truques pareciam precisos e cirúrgicos. Era quase como se ele soubesse cada passo da operação de Caelum. Nenhum estrategista, por mais talentoso que fosse, conseguiria algo assim sem ter pleno conhecimento dos planos e métodos da Fox.
Aliás, a resistência feroz de Galf também era estranha. Será que algum truque bastaria para motivá-lo a montar uma resistência tão grande? Não faria mais sentido se houvesse algo a mais por trás?
E ainda tinha a descendente divina aparecendo para resgatá-lo no momento exato. Se alguém fosse capaz de manipular a prole de um deus raposa, mesmo que minimamente, teria que ser uma das sacerdotisas.
Será que tudo isso tinha sido um plano para arruinar Caelum? Para fazer isso sem que ele percebesse, seria necessária uma autoridade considerável. Seria necessário o apoio de alguém dos escalões mais altos da Fox. De fato, Caelum vinha tentando entender como alguém tão prudente quanto Galf pôde ser enganado tão completamente.
Ele deixou seu mana começar a circular. Diziam que Blade Tail não era exatamente boa em tramas, mas talvez tudo isso fosse apenas um blefe?
— Não me diga… — disse ele. — Você usou o Mil Truques para semear essa confusão?
— Hm? Vejo que não adianta continuar essa conversa — respondeu Blade Tail — a traidora — com um bufo, antes de preparar sua lâmina.
Os membros do Primeiros Passos estavam reunidos em um prédio próximo à filial da Associação dos Exploradores em Kreat.
— Mestreee! Você acordou! — Tino correu até mim, mas foi bloqueada por Sitri.
Sven arqueou uma sobrancelha, claramente exasperado. — Você fez mais uma loucura daquelas, né — suspirou.
Pelo que parecia, enquanto eu estava inconsciente, os caçadores que estavam na plateia tinham feito um belo trabalho. Sob a direção de Gark e da Inferno Abissal, os Magos mantiveram a Chave da Terra sob controle, enquanto os que não podiam ajudar nisso protegiam os civis e coordenavam a evacuação.
Pode não ter sido intencional, mas, como fui quem ativou a Relíquia, eu me sentia profundamente envergonhado. Cocei a cabeça e disse, meio sem graça:
— Cara, isso aí foi realmente uma encrenca e tanto em que a gente se meteu…
— “Se meteu”?! — Eva, que tinha se empenhado em organizar todo mundo, ajustou os óculos e me lançou um olhar cheio de suspeita. Será que ela tinha percebido que eu tinha tropeçado?
Touka, por outro lado, só deu de ombros. — Não tenho do que reclamar. O Festival do Guerreiro Supremo pode até ter sido cancelado, mas essa foi uma boa oportunidade para fazermos nosso nome.
Touka superou rápido a chance perdida de glória. Achei isso bem maduro da parte dela. Ou talvez ela nunca tenha se importado tanto, considerando como valoriza dinheiro mais do que fama.
Tino se aproximou devagar, para não acionar a Barreira Sitri. — Mestre, você já está curado?
— Tô bem. Só cansado.
— Só cansado? — repetiu Kris. — Ah, qual é! Você tá dizendo que tá “só cansado” depois de segurar uma coisa daquele tamanho?! A gente ficou preocupada! Senhor!
O jeito descarado dela era o de sempre. Pelo que eu percebi, ninguém parecia realmente preocupado.
— “Segurar”? Hã? Eu segurei?
— Como assim?! Senhor? Eu vi com meus próprios olhos! Um Espírito Nobre nunca erra ao ler mana. Eu diria que você segurou… trinta—não, trinta e cinco por cento!
Trinta por cento. Trinta e cinco por cento?
Infelizmente, tudo que eu conseguia perceber era que o mana emanando da Chave da Terra era algo imenso. Não fazia ideia se trinta e cinco por cento era muito ou pouco.
Depois de me observar em silêncio por um tempo, a líder da Luz Estelar, Lapis, soltou um suspiro. descruzou as pernas e se levantou do assento. Caminhou até mim e me encarou com olhos claros e indecifráveis.
— Hmph. Isso definitivamente não é algo que se espera de um humano. Onde, exatamente, no seu corpo, fica todo esse mana? Mesmo de perto, não consigo detectar nem um traço. Na sua irmã, Lucia, vejo um grande rio… mas em você, nada.
Lucia segurou a cabeça e soltou um suspiro bem longo.
Era verdade que eu tinha tentado conter a relíquia. Achei que tinha falhado, mas parece que acabei conseguindo sem perceber. Vai ver eu realmente consigo fazer alguma coisa quando me esforço?
— Hmm, consegui segurar ela, sim — falei. — Tentei parar de vez, mas aí já era demais pra mim. Assim como todo mundo, ainda tenho muito o que crescer.
— Parece que ainda tem seu espírito de luta, senhor. Mas, sério, o que está acontecendo no seu corpo? Pelo que a gente entende de mana, não devia ser possível você usar tanto e ainda ficar de boa. Senhor.
Sem pensar muito, Kris estendeu a mão pra mim, mas levou um susto quando Sitri afastou ela com um tapa.
— Sem encostar — disse Sitri com um sorriso.
— Só um pouquinho não vai fazer mal, senhora.
— Eu disse que não. Te deixei negociar a transferência da Lucy, mas nunca te dei permissão pra encostar no Krai.
Kris não respondeu, mas tentou de novo, teimosa. Sitri afastou ela de novo sem hesitar. Eu nem sabia que as duas se davam tão bem assim.
No instante seguinte, Sven fez uma cara como se tivesse lembrado de algo.
— Ah, é mesmo, Krai. Seu sósia apareceu por aqui faz pouco tempo. Disse que queria te ver antes de sair da cidade.
***
Krahi e o grupo dele estavam hospedados numa pousada mais modesta, uns bons níveis abaixo da nossa. Com os membros do grupo atrás dele — todos com cara de quem não dormia há dias —, as primeiras palavras que ele soltou foram cheias de espanto.
— Então… Você é um caçador famoso.
O incidente no torneio tinha sido ruim de várias formas, mas se fosse para apontar quem mais sofreu com tudo aquilo, acho que seria justo dizer que foi o Krahi. Eu também me dei mal, sendo jogado à força no torneio, tomando raio na cabeça e tudo mais, mas o Krahi foi confundido comigo e atacado por aquele cara da máscara de raposa.
Mesmo assim, ele tava calmo como sempre. Não parecia incomodado com o fato de eu ter escondido meu nível dele. Pra ser justo, apesar de não ter revelado meu nome real, o título Mil Truques era conhecido por muita gente. Não sei nem o que pensar se ele não conhecia. Talvez essa magnanimidade dele fosse o sinal de que ele realmente merecia estar no Nível 8.
Se a Sitri estivesse aqui, teria continuado a conversa por mim, gentil como sempre. Mas infelizmente, o único que me acompanhava era o Luke. Sem ninguém pra me dar cobertura, fiquei em silêncio, sem saber o que dizer.
— Queria ter te encontrado antes, mas só me recuperei agora há pouco — continuou Krahi. — Aquele meu último raio foi um pouco exagerado.
— Ah, o que me acertou.
Lembrei bem daquele raio. Foi o que gastou meu último Anel de Segurança. Pensando bem, o cara da máscara nunca me atacou diretamente, mas levei umas boas porradas desse aqui.
A magia de raio era chamada de magia dos campeões não só porque era poderosa, mas porque também era uma das mais difíceis de controlar. Especificamente, era complicado acertar o alvo certo. Em resumo, feitiços de raio serviam bem para torrar áreas grandes, mas não eram ideais para acertar um alvo específico. Mesmo com um controle impecável, um raio ainda podia sair do rumo se o Ansem — ou qualquer azarado — estivesse por perto.
Como eu sabia disso? Porque a Lucia me contou! Ela não usava magia de raio, mas acho que nem preciso explicar por quê. Nunca vou esquecer a cara dela quando tentou um feitiço de raio pela primeira vez e me acertou sem querer.
Krahi assentiu e passou a mão no cabelo. Tinha algo nesse gesto que me irritava, mas também combinava com ele.
— Fiquei sabendo do que aconteceu. Não sei nem o que dizer. Parece que você se segurou para atrair a Raposa.
— Hã?
Como é que a história chegou a esse ponto? Não tinha um pingo de verdade no que ele tava falando. Os boatos deviam ter ganhado vida própria. Mas explicar a verdade seria complicado. Em especial, a parte de que o “eu” com quem o Krahi lutou nem era realmente eu.
Olhei pra trás e vi o Luke assentindo com cara de quem entendeu tudo. Ele claramente não sabia de nada. Era um cara apaixonado, mas completamente desligado com o que não chamava a atenção dele.
Nossos olhares se cruzaram por um momento. Ele então deu um passo à frente e suspirou, exasperado.
— Você não entende nada — disse ele pro Krahi. — Você falou que ele se segurou? Não, aquilo tudo fazia parte do plano do Krai. Nem eu entendo direito.
Se você “nem entende direito”, então fica quieto, por favor.
Eu não sabia o que fazer pra resolver aquilo numa boa. Apesar de não poder contar a verdade, ainda queria desfazer algumas das ideias erradas do Krahi.
— Krai, me responde uma coisa — disse ele, sério. — Quando você caiu com o meu raio, aquilo foi só atuação?
Essa era a minha chance! Minha chance de parecer um pouco menos impressionante! Não sei por que isso tinha que ser tão difícil, sendo que eu nunca fui impressionante pra começo de conversa!
— Não, nunca conseguiria atuar tão bem assim — respondi. — Não posso entrar em detalhes, mas foi um feitiço assustador que fez aquilo comigo. Quando se trata de controlar o raio, só consigo pensar numa pessoa mais habilidosa que você.
Nenhum campeão comum conseguiria fazer aquilo. Mesmo com minha visão ruim, que não serve para avaliar a força dos outros, eu tinha certeza de que nem o Arnold — que era Nível 7 e conhecido como Relâmpago Estrondoso — conseguiria fazer igual.
E quem era essa pessoa? Ninguém menos que Ark Rodin. Eu era um devoto fiel do Ark, e diferente do Krahi, conhecia ele fazia tempo e já tinha pedido vários favores.
Sem dizer nada, Krahi fechou os olhos. Depois de um tempo, assentiu.
— Entendo. Era o que eu suspeitava, por mais absurdo que pareça. Até agora, achei que não tinha igual no controle do raio. Mas devo aceitar que não é bem assim.
Ele me encarou diretamente nos olhos. Talvez por frustração, seu punho cerrado tremia. Não existia caçador no mundo que gostasse de perder. Mas eu simplesmente não podia dizer que achava Krahi melhor que Ark Rodin, o Trovão Argênteo. E eu ainda era tendencioso a favor do Ark. Eu dava noventa e nove pontos pra ele, e daria cem se ele não desaparecesse toda vez que eu mais precisava dele.
— Eu admito, Krai Andrey — ele declarou. — Não consigo superar você quando se trata de magia de trovão.
— Hã? — Eu não sabia nem o que responder. O que ele tava falando? Será que levar um raio na cabeça bagunçou alguma coisa lá dentro? Era uma piada? Alguma encenação digna de Mil Truques?
Krahi continuou com uma energia meio… estranha.
— Não precisa fingir. Eu percebo. Você se deixou ser atingido de propósito para absorver o poder dos raios!
Eu não fazia ideia do que Krahi tava falando, mas Luke se empolgou na hora.
— Ele absorveu o raio?! Caralho, isso é foda! Eu quero tentar! Manda um raio em mim!
Alguém corta esse papo com uma piada, por favor.
— Antes de desmaiar, senti os poderes daquele cara da máscara e também um pouco da Chave de Terra. Nenhum humano conseguiria conter essas forças ao mesmo tempo! A não ser que tivesse pegado emprestado o poder da própria natureza! E antes que você diga qualquer coisa, tenho mais provas. Você também levou o raio que era pra atingir o cara da máscara.
Levei o raio? Você me acertou! Bom, pelo menos admiro a criatividade.
— Você redirecionou os feitiços dos outros conjuradores para transformar o poder deles no seu próprio — continuou Krahi. — Isso é território desconhecido pra mim. Você é o verdadeiro Supremo Voltaico. Não, vai além disso. Você é o Divino Voltaico!
Talvez esse cara não seja tão equilibrado assim…
Foquei no mais urgente — esclarecer os mal-entendidos.
— E-Esse raio me atingiu porque você não conseguiu controlar—
Parei e dei um passo pra trás. O cabelo do Krahi estava soltando faíscas. Quando Magos poderosos sentem emoções intensas, essas coisas acontecem.
— Tomei minha decisão, Divino Voltaico — ele proclamou, apontando o dedo pra mim. — Vou superar você! Vou aprender o segredo de absorver trovões e depois ir além! Fiquei triste que o Festival do Guerreiro Supremo foi cancelado, mas valeu a pena ter vindo até aqui! Meus olhos se abriram! Vou ficar mais forte! Com nossos títulos parecidos, não tenho dúvidas de que foi o destino que nos uniu!
Não, eu tava falando do Ark. Se eu achasse que era melhor que você, não teria falado daquele jeito! Por mais que eu quisesse explicar isso, não consegui dizer nada diante da empolgação eletrificada de Krahi.
Seus olhos brilhavam e ele parecia prestes a explodir de entusiasmo.
— Vamos lutar de novo um dia. Nunca vou esquecer que alguém me superou no caminho dos trovões. Vou fazer questão de que todos saibam que o Supremo Voltaico tem um superior: o Divino Voltaico! Nossa próxima luta vai ser digna do título. Até conseguir te derrotar, vou ceder o título a você!
De algum jeito, eu tinha acabado de ganhar o título de “Divino Voltaico”. Os boatos não tinham só criado vida própria, tinham alcançado a divindade. Caçadores de alto nível eram todos malucos.
Num movimento elegante e dramático, Krahi se virou. Queria ter a última palavra.
Preciso impedir ele. Droga, não consigo pensar com esse barulho de faísca irritante.
Consegui abrir a boca e gritar:
— Espera, Krahi! Você já me superou!
Krahi congelou.
— O que foi que você disse? — Ele se virou, com as faíscas ficando ainda mais intensas. A essa altura, eu já não sabia se ele tinha controle real sobre os próprios poderes. — Só pra constar, de que forma eu te superei? — perguntou com desconfiança.
Em todas as possíveis, na verdade. Eu nem conseguia pensar em algo que fizesse melhor. Mas ele não ia acreditar se eu não fosse específico. Só não sabia o que exatamente dizer.
Atrás do Krahi estavam os membros da sua equipe. A única que eu já conhecia era a Lusha, mas todos batiam com as descrições que ouvi. Um rapaz ruivo de óculos (provavelmente Kule), uma Ladina com roupas espalhafatosas e um peitão (provavelmente Izabee), e uma mulher com cara de maga suspeita (provavelmente Kutri).
Eles nem podiam ser chamados de cópias baratas — erraram até no gênero. Se eu não tivesse problemas mais urgentes, teria uma conversa séria com eles.
— Em que exatamente eu te superei? — Krahi repetiu num tom mais baixo, dando um passo à frente.
Se ele se aproximasse mais, eu ia tomar choque, então disparei rápido:
— N-Na diversidade do seu grupo! Você tem companheiros incríveis!
Não! Não era isso que eu queria dizer. Nem de longe!
Fiquei preocupado dele achar que era sarcasmo, mas ele só me olhou de olhos arregalados, depois respirou fundo.
— De fato — disse depois de uma pausa. — Você está certo.
Ele acreditou?
Talvez fosse a primeira vez na vida que consegui convencer alguém de alguma coisa. Surpreso com meu próprio sucesso, eu também arregalei os olhos.
— Permita-me corrigir o que eu disse — falou num tom mais calmo que antes. — Nós vamos derrotar você.
Não! Não! Virem pra cá! Kule e Izabee — os mais normais do grupo — estavam se curvando em sinal de desculpas!
Estava começando a achar que o Bereaving Souls era o completo oposto do meu grupo. E será que eu só ia ter que aceitar o título de Divino Voltaico agora? Bom, saber a hora de desistir era uma das poucas coisas em que eu era bom.
Foi então que Luke deu um passo à frente. Essa era a chance! Ninguém era pior de escutar que ele! Com certeza ia botar tudo nos trilhos! Rezei pros deuses.
— Você não entendeu nada, Supremo Voltaico — ele afirmou com convicção. — O motivo de você não conseguir competir com o Divino Voltaico é porque você não sabe o que é ficar forte de verdade!
Demorei um pouco pra processar tudo isso. Não tava conseguindo acompanhar. Era o Luke Sykol. Não o Kule, o Luke. Mas quando foi que ele decidiu me chamar de Voltaico Divino? A gente passou anos se aventurando junto e eu nunca nem usei magia de raio. Ele só tava indo na onda do que o Krahi falou? Será que o cérebro dele é feito de espadas?
O próprio Voltaico Supremo pareceu pego de surpresa com aquelas palavras, porque ficou só encarando o Luke, chocado.
— Escuta aqui — continuou o Luke, com aquele tom de professor —, o motivo de você ter perdido pro Voltaico Divino é que você depende de uma Relíquia. Esse cajado tá te segurando! Assim como os melhores espadachins não podem se apegar à espada, um verdadeiro mago do raio não devia precisar de Relíquia para eletrocutar os inimigos. O Krai tá aí pra provar isso. Ele nunca confiou numa Relíquia sequer! Se quiser ser o melhor, larga esse cajado aí!
Não tinha mais salvação. Do começo ao fim, o Festival do Guerreiro Supremo foi uma completa bagunça! Decidi só deixar a correnteza me levar e dei um sorrisinho. Krahi me olhou bem sério.
E assim chegou ao fim o nosso caótico Festival do Guerreiro Supremo. Ganhamos algumas coisas, perdemos outras; demos oi, demos tchau; e, como sempre, eu só consegui ir com o fluxo, do início ao fim.
Teve um burburinho de que o incidente na arena fez o império formar uma coalizão anti-Raposas, mas isso não era problema meu. Suponho que, se havia algo em comum entre nós, era o desejo de ver criminosos mortos. Se todos os bandidos do mundo desaparecessem, meus dias seriam bem mais tranquilos.
— Sabe, Krai, acho que dessa vez você saiu no lucro — disse Luke. Estávamos nos preparando para deixar Kreat, e ele tava lá, polindo sua espada de madeira.
— Hã? — respondi. — O que foi que você viu e eu não?
Eu não ganhei nada com isso. Começou até que bem, mas no fim das contas, só fiquei com dor de cabeça. Enquanto isso, o Luke fez o que quis o tempo inteiro!
Percebendo minha descrença, ele se endireitou e explicou:
— Escuta, você não foi o único que tava empolgado com o torneio. Eu vim aqui pra cortar uns carinhas casca-grossa, e no fim, só você participou do torneio e ainda lutou com aquele cara da máscara de raposa. Eu não tive nada disso. Eu queria lutar. Queria levar um raio. Você ainda virou o Voltaico Divino.
PORQUE GENTE COMO VOCÊ COMEÇOU A ME CHAMAR ASSIM.
Eu até tinha algumas ressalvas com a primeira metade do discurso, mas a segunda nem fazia sentido. Eu nem sabia que tinha gente por aí querendo ser atingida por um raio.
— Tá, cortar inimigos a mando da princesa até que foi divertido — ele continuou —, mas aquilo foi só o aperitivo. Eu tô tentando ser um espadachim legal e calado, mas até eu tenho que falar quando roubam meu prato principal. Tá me ouvindo, Krai? Eu quero cortar e matar uns vilões fortes!
O que diabos você andou fazendo quando eu não tava olhando? Quer saber? Melhor nem saber.
— Até a Lucia e o Ansem tiveram mais ação que eu. Tiveram que conter aquele surto maluco de mana! Não sei o que rolou com a Sitri, mas eu vi ela fazendo aquele sinal de paz! Mas e eu? Onde estavam os meus inimigos?! Cortar escombro caindo não tem graça nenhuma! Krai, meus inimigos! Inimigos que eu possa cortar! I-NI-MI-GOS. Isso é discriminação!
Luke começou a pisar no chão feito uma criança. Eu não fazia ideia de que ele tava guardando tanta frustração.
— Olha, o Luke aqui tentou cortar o antigo Guerreiro Supremo — Liz resmungou.
— Aquele covarde! Disse que não ia lutar comigo porque os prédios iam cair se a gente brigasse fora da arena! Como se isso fosse me impedir!
Com declarações dessas, ele nunca vai virar o próximo Santo da Espada, por mais que melhore suas habilidades.
— Já deu, Luke — Liz ralhou e agarrou ele por trás. — Estamos atrapalhando o Krai Baby, vamos sair daqui.
— Hã?! Você não tá na mesma situação que eu?!
Liz parecia bem insatisfeita.
— Hm. É, se você não estivesse, eu é que estaria pisando no chão, mas não consigo te superar nisso.
Acho que ela ainda tinha um pingo de vergonha na cara. Sinceramente, eu não fazia ideia de como o Luke esperava que eu resolvesse o problema de falta de inimigos dele.
Enquanto arrastava o Luke pra longe, Liz se virou e apontou o dedo pra mim.
— Não ache que eu tô mais feliz que o Luke! Vou fazer você me arranjar uma forma de compensar isso!
Parece que fiquei devendo alguma coisa pra ela. Não fazia ideia do que fazer com isso.
— Só pra esclarecer — disse a Lucia —, por mais que o Luke tenha falado assim, eu também não tô nada satisfeita! Perdi uma prova por causa disso e ainda tive que dar um jeito naquela Relíquia!
— Também quero compensação! — lamentou Sitri, se juntando. — Perdi a Matadinha e nem consegui pegar a organização que esperava— Augh!
Lucia derrubou ela com um feitiço de vento.
— Eu vi o quanto você tava feliz! Fez até sinal de paz!
Que jeito cruel de cortar alguém, mesmo sendo amiga de infância.
Se querem saber, a culpa de tudo isso é daqueles caras com máscaras de raposa. Se for pra falar de compensação, acho que eu queria tanto quanto o resto, mas resolvi guardar pra mim.
— Você é meu único aliado, Ansem? — perguntei. — Mas duvido que vá conter a Sitri e a Liz pra mim, né?
— Mmm.
Esse “mmm” foi afirmativo?
Enquanto deixávamos a cidade, fiz questão de ignorar a conversa entre Luke e Sitri.
— Sabe, Luke, pensando bem, as coisas só tão começando. Lembra que o Krai acabou de arrumar briga com a maior organização criminosa do mundo?
— Então vamos ter vários inimigos?
— Tenho certeza!
Tinha gente demais disposta a aceitar brigas que eu nem tava oferecendo. Nesse ponto, um ou dois novos inimigos a mais já nem faziam diferença pra gente, mas mesmo assim, achei melhor evitar sair de casa por um tempo. Bem na hora que as coisas estavam começando a sossegar.
Eu nunca fui bom em detectar presenças, então ficar de olho em inimigos que podiam ou não estar logo na próxima esquina era exaustivo, mesmo com uma certa Relíquia me mantendo perfeitamente confortável. Se tinha um ponto positivo, era que até eu conseguia perceber algo tão imenso quanto uma das raposas fantasmagóricas.
Bem quando comecei a revisar mentalmente se não tinha mais nada pra fazer em Kreat, dois rostos familiares apareceram na janela da carroça ao lado da nossa. Levei a mão à testa. Era a Sora e o Galf, do Clube de Fãs das Máscaras de Raposa (nome provisório). Mas a Sora não estava com aquelas vestes brancas puras de sempre — agora usava algo que qualquer morador da cidade usaria. Ela também cortou o cabelo e estava de óculos. Já o Galf estava de muletas, o que me fez pensar que tinha se machucado ou algo assim.
De todas as pessoas com quem tive contato, esses dois talvez fossem os únicos que eu realmente incomodei pessoalmente.
— Sora — chamei. — Como você tá?
A Sora quase pulou de susto. Se virou rápido pra mim e disse:
— Shhh. Bo— Quer dizer, Krai, eu não sou mais a Sora.
— Hã?! Aconteceu alguma coisa?
— Aconteceu um monte de coisa. Tô fugindo. Consegui uma chance que provavelmente não vai aparecer de novo.
O que foi que rolou?
— Foi você que deu essa oportunidade pra gente, quando enfrentou o chefão — explicou a Sora, falando rápido. — A organização tá um caos, e ouvi dizer que nosso chefe entrou numa briga com outro chefe, então ninguém tem tempo pra se preocupar com a gente. Hehe, aposto que era isso que você queria quando deixou o chefão fugir, né?
— E-Era?
Pera… Tô por fora. Eu lutei contra um chefão? Que história é essa?
— A gente decidiu cortar nossas perdas e sair da organização — ela continuou. — O Galf é um cara incrível. Mesmo depois que a verdade veio à tona, muitos dos subordinados dele ainda estão do lado dele. As chances de a gente conseguir escapar totalmente são bem altas.
— Ei, Sora, com quem você tá falando aí?
Um cara grandão apareceu do outro lado da carroça. Ele tinha uns seis décimos de um Ansem, e eu tinha a impressão de já ter visto esse rosto antes.
— Hanneman, esse aqui é o Krai. Nosso chefe. Não vou deixar ele abandonar a gente.
— Que é isso? Ele veio ajudar a gente? Bom, de qualquer jeito, eu só sigo ordens do Galf.
Hã?
Esse não era o cara que atacou o museu? Aquele que o Krahi derrubou? Demorou, mas os neurônios começaram a funcionar. Eu enfrentei um chefão? Eu sou um chefão também? Chefão? Isso me deu uma péssima sensação, então decidi parar de pensar no assunto ali mesmo.
— Claro que ele vai ajudar a gente. Ele é, afinal, o Mil Truques. Tudo dança na palma da mão dele. Ele jamais usaria a gente e sumiria depois.
A Sora falava com um tom entre a reverência e a provocação, como se não tivesse sido ela mesma quem insistiu em seguir com a mentira.
Não respondi de imediato, mas soltei um suspiro resignado ao ver que a Sora não ia mudar de postura.
— Eu não entendi muito bem, mas por que vocês não vão pra capital imperial? Lá é seguro, e eu realmente acho que vocês deviam tentar vender inarizushi. Vai ser bem melhor do que fazer parte de uma organização dessas. Provavelmente.
— Galf, a capital imperial! — disse a Sora, com os olhos brilhando. — Vamos pra capital imperial! O Krai vai ajudar a gente. Que ideia esquisita. Normalmente, a gente esconderia alguém na floresta! Eu nunca fui pra capital imperial!
Essa não era nem de longe a Sora que eu lembrava. E tenho quase certeza que esconder alguém na floresta só funciona se a pessoa souber sobreviver por lá. Me envolver com a Sora de novo parecia um baita incômodo, embora por motivos diferentes dos de antes. Atrás de mim, a Sitri esperava em silêncio, mas com visível ansiedade. Segurei o braço dela e a ofereci como sacrifício.
Hmm. Antes de ir, acho que devia dar um conselho para eles.
Olhei de novo pra Sora, segurei a vontade de vomitar e disse:
— Ah, e é melhor não colocar a palavra “Raposa” no nome do restaurante de vocês. Não vai sair nada de bom disso.
Tradução: Carpeado
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Tradução feita por fãs.
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