Grieving Soul – Capítulo 5 – Volume 7
Nageki no Bourei wa Intai shitai
Let This Grieving Soul Retire
Light Novel Online – Volume 07 – Capítulo 05:
[O Festival do Guerreiro Supremo]
O dia do destino havia chegado, e eu estava com dor de barriga no momento em que acordei.
Lucia me arrastou para fora da cama, gritando:
— Se controla! Você acha que pode lutar desse jeito? Não é contra um caçador qualquer que você vai lutar!
— Não dá. Minhas Relíquias estão descarregadas.
— Eu carreguei elas.
Eu não tinha dormido nem perto do suficiente. Tudo por causa daquela maldita chave do torneio. Eu não ia sair de casa. Desde o início até agora, eu disse que não iria participar, e em nenhum momento demonstrei vontade de ir. Mas mesmo pra mim, era pouco provável que tivesse outro cara por aí com exatamente o mesmo nome e sobrenome que o meu.
Então, qual a causa mais provável disso? Alguma cagada do império? Eu só quero ir pra casa.
— Você não parece bem — comentou Liz. Ela estava treinando com Luke a manhã toda. — Normalmente você fica calmo, não importa o que aconteça.
Eu nunca me sinto bem! pensei, enquanto forçava meu corpo a levantar.
— Agora, agora, Krai — disse Sitri, sorrindo e batendo palmas —, se o Krai na chave for um Krai diferente do nosso Krai Krai Krai…
Ela tinha quebrado de vez. Talvez eu tenha batido demais na cabeça dela? Talvez ela só gostasse de ver minhas reações enquanto começava a alinhar poções na minha frente.
— Aqui temos uma poção de cura, um explosivo, um veneno, um paralisante, um indutor de sono, uma de recuperação de mana…
Ela estava quebrada, mas algumas funções ainda funcionavam.
Balancei a cabeça, dizendo a mim mesmo para não tirar conclusões precipitadas. Era possível que o eu da chave fosse outro eu. Se existia um sósia, então talvez existisse um verdadeiro (não, eu não sei o que isso quer dizer). Eu estava tão nervoso e em pânico que parecia que ia vomitar.
Lucia suspirou e disse:
— Por que você aceitou o ingresso se não queria participar?
— Porque eu queria assistir.
— E eu não tô te dizendo desde sempre que esse é ingresso de participante?!
Dava vontade de dar uns tapas no meu eu do passado por ser tão relaxado. E se eu realmente fosse participar… o que isso significava pra princesa? Aliás, eu nem tava vendo ela por perto. Será que ela fugiu?
— Se estiver procurando pela Princesa Murina, ela vai assistir dos assentos VIP. Ela é da família imperial, como você sabe.
Fiquei repetindo pra mim mesmo pra não me preocupar, que eu com certeza não ia participar, então não tinha com o que me preocupar.
— Só pra ter certeza, dá pra desistir no Festival do Guerreiro Supremo? — perguntou Sitri, ainda meio fora da casinha.
— Ah, oficialmente, acho que dá sim — respondeu Lucia.
— O quê?! — gritou Luke. — Nem ferrando que vou deixar alguém estragar a diversão desse jeito! Vai provar do aço antes de fugir!
— Luke, sua espada é de madeira — lembrou Liz.
De qualquer forma, provavelmente não teria um gosto bom. Enquanto escutava a conversa deles, Lucia soltou um suspiro profundo. Ao contrário de mim, todo mundo tava animado. Até mesmo Lucia e Ansem estavam cheios de energia.
— Com o exercício de ontem, tô melhor do que nunca! — disse Luke. — Vai me dar um bom espetáculo, né, Krai?!
— A princesa começou a chorar quando recebeu um monte de ordens de uma vez — lembrou Liz. — Mas eu me diverti.
Eu mal podia acreditar que era da mesma espécie que esses dois.
Continuei repetindo pra mim mesmo que ia dar tudo certo, que era outra pessoa na chave do torneio. E se — e isso é um se muito improvável — eu acabasse realmente participando do torneio, estaria tudo certo contanto que meu oponente não fosse o Luke.
Respirei fundo e sorri. Sorrir é a única coisa que o ser humano consegue fazer quando está impotente. Me virei e olhei para meus amigos.
— Então — falei, tentando ser o mais durão possível —, estão prontos pra fazer história?
(De acordo com uma certa definição de “história”.)
Eles gritaram em uníssono.
O local do torneio, a famosa arena de Kreat, ainda nem tinha sido aberta, mas já era o centro de uma tempestade de aplausos e gritos fervorosos. Me deu arrepios. Perto da arena estavam dezenas de pessoas, com uma variedade absurda de armas.
Dava até a impressão de que uma guerra tava prestes a começar, mas o Festival do Guerreiro Supremo era, de certo modo, exatamente isso. Era um lugar pra decidir quem era o mais forte, mas todo ano acabava com mais de uma morte. Às vezes, caçadores colocavam o orgulho acima da própria vida.
— E aí, Krai? Tá com cara de quem vai morrer — disse Sven.
— Eu sempre tenho essa cara — respondi.
— Sério mesmo? Senhor? Você é o primeiro, né? — cutucou Kris.
Tínhamos nos encontrado com a Obsidian Cross, a Starlight e o resto do pessoal da Primeiros Passos que veio torcer por nós. Aparentemente, eu estava com uma cara tão ruim que o Kris e o Sven notaram de primeira que algo estava errado. Todo mundo achava que eu ia lutar, mas não tinha a menor vontade de tentar desfazer esse mal-entendido.
Fala alguma coisa, porra! Se acham que tô envolvido nisso, deviam ter me falado antes!
Exceto que eles tinham falado.
— Essa é minha cara de pré-luta — falei, tentando soar descolado e resistindo à vontade de sair correndo.
— O quê? Senhor?
Não era só a Sitri que estava quebrada. Eu também estava.
— Ontem à noite eu tava com tanta coisa na cabeça que não consegui dormir — falei.
Já fazia um tempo que isso não acontecia. Dormir bem era uma das minhas poucas qualidades.
— Te entendo, Krai! — gritou Luke, sem se importar com a multidão. — Ontem à noite eu tava tão animado que levantei e fui treinar uns golpes!
Não me compara com você.
— Me fez preocupar à toa! — disse Kris. — Hmph. Só não paga mico, tá? Senhor!
— Tava com muita coisa na cabeça pra dormir — disse Sven com um sorrisinho. — Então quer dizer que está levando isso a sério? Isso é raro de ver.
— Boa sorte, Mestre! — disse Tino. — Tô prontíssima. Apostei todo o meu dinheiro em você!
Tá tudo bem. Vai ficar tudo bem. A Sitri vai compensar a Tino pelas perdas, então tá tudo certo.
Não sou eu quem vai entrar. A salvação vem pra quem acredita, e eu acreditava que não ia estar no torneio. Eu com certeza não ia lutar!
O funcionário no portão olhou para o meu ingresso com os olhos arregalados. — “Senhor Krai Andrey.” Hm. Não foi você que eu deixei entrar mais cedo?
Isso me pegou de surpresa. — Hm?!
— Tem certeza de que não era Krahi Andrihee? — perguntou Sitri.
O funcionário do portão me olhou com desconfiança. — Tenho certeza de que não me enganei. Já deixei esse homem entrar.
Espera. Será? SERÁ MESMO?
Claro. Eu nunca disse que ia lutar, e não via como alguém podia confundir estar no ringue com estar fora dele. Que bagunça confusa. Quem era esse tal de Krai Andrey? Pensei em apostar nele.
Talvez fosse indelicado da minha parte, mas me senti imediatamente muito melhor. Um sorriso se formou no meu rosto, o que deixou Lucia desconfiada.
— Por que você tá tão feliz? — ela perguntou.
— Aliás — falei para o funcionário —, tem alguma desafiante chamada Murina Atolm Zebrudia?
Já que estava ali, resolvi perguntar.
— Não, não tem. Espera. Zebrudia?
Eu não tinha visto o nome dela na tabela nem nada, mas ouvir isso foi um alívio.
— De qualquer forma, ele pode entrar de novo? — perguntou Sitri.
— Você também perdeu sua pulseira de guerreiro? Eu disse que não podia emitir outra. Aqui, não perca dessa vez. Agora, boa sorte lá dentro.
Graças à intromissão não solicitada da Sitri, uma pulseira foi presa ao meu pulso.
Pulseira de guerreiro. Ha ha. Não preciso disso. Não sou um guerreiro.
— Krai Andrey, você estará na primeira luta, então por aqui.
— Acaba com eles, Krai Baby!
Ha ha ha, relaxa. Estão falando de outro Krai Andrey.
—
— Aqui é a sala de espera.
Ha ha ha. “Sala de espera.” Esperar o quê, se eu só vim assistir? A única luta que me interessa é a luta pra segurar meu copo.
A porta bateu com força. Voltei à realidade.
A sala de espera era simples. Os únicos móveis eram uma cadeira, uma mesa e uma mini geladeira. Olhei para cima e vi que o teto não era muito alto. Sem bons esconderijos.
O que eu tô fazendo aqui? Diz que não, Krai!
Minha segurança relativa tinha deixado meu cérebro vazio.
Olhei ao redor, mas não vi ninguém que pudesse me explicar o que estava acontecendo. Pior ainda: o Krai, o verdadeiro Krai, que deveria estar na sala, não estava ali. E também não havia lugar onde ele pudesse se esconder.
Apelei para minha última esperança e abri a mini geladeira. — Kraiii, você tá aqui?
Dentro só havia algumas garrafas de água. Droga. Eu nem achava mesmo que ele estaria ali, mas agora era certeza — ele não estava na sala.
Não. Eu ainda não sabia disso com certeza. Era possível que Krai Andrey fosse um ser vivo líquido. Não me lembrava de haver restrições sobre quais raças podiam participar.
Ainda na negação, fui tirando as garrafas uma por uma. — Kraiii, é você? — murmurei, sem vida. — Ou é você? Ou talvez você?
— Eeeep! — a garrafa d’água soltou um gritinho.
Mais uma vez, voltei à realidade.
— Preciso ir ao banheiro — disse eu.
Não era hora pra negação, nem pra alucinação auditiva.
Krai de verdade, onde você tá?
Na sala de espera vazia, a mini geladeira se abriu silenciosamente. Sem que ninguém a tocasse, uma das garrafas de água rolou para o chão. E então, a Pequena Irmã Raposa voltou à sua forma original.
A primeira coisa que fez foi respirar fundo. Precisava se acalmar. Estava tão assustada que suas orelhas pontudas tinham aparecido. Mexeu as orelhas, escutando com atenção para saber se mais alguém estava por perto. Quando teve certeza de que estava sozinha, soltou um suspiro de alívio.
Que humano assustador. Aquela tinha sido a primeira vez que ela se transformava em um objeto inanimado, mas estava tão confiante nas suas habilidades de transformação que mal conseguia acreditar em como ele quase a encurralou. Mas no fim, ela venceu. Seu disfarce tinha enganado o Senhor Cautela. Pensou que tudo estava perdido quando deixou escapar um gritinho, mas ele não percebeu.
Mas era agora que a verdadeira luta começava. Ela estava diante de alguém que tinha dado trabalho tanto para sua mãe quanto para seu irmão mais velho. Ela tinha certeza de que seu plano era sólido, mas não podia prever o que poderia colocar tudo a perder.
Ela realmente não esperava que aquele homem fosse entrar naquela sala. Ainda assim, conseguiu contornar a situação virando uma garrafa d’água. Pensando bem, ele ia mesmo participar do torneio, então era natural que tivesse acabado ali.
— Interessante — murmurou.
A Peregrine Lodge tinha uma regra: se você perdesse uma batalha de inteligência, não podia buscar vingança. Mas ela se recusava a aceitar a derrota. Por causa da derrota anterior, a Pequena Irmã Raposa tinha sido rotulada de glutona pelos outros. Era uma memória humilhante.
Ela não podia se vingar, mas podia preparar um novo duelo. Dessa vez, ela tomaria a iniciativa. Será que um cabeça-oca que nem tinha percebido a verdadeira natureza do seu Smartphone seria capaz de notar suas tramas?
Ela não ia poupar nenhum recurso. Fechou os olhos e ergueu o dedo indicador, preparando uma magia. Com isso, o Senhor Cautela ficaria preso no banheiro por um tempo, sem conseguir sair. Enquanto ele tropeçasse por lá, sua reputação ruiria. E quando fosse encontrado, seria alvo de vaias e zombarias.
Satisfeita com seu trabalho, ela deu um ágil mortal e assumiu a forma de Krai Andrey.
Sob um céu sem nuvens, uma agitação fervorosa tomava um estádio grande o bastante para comportar dezenas de milhares de pessoas. Finalmente, o Festival do Guerreiro Supremo estava prestes a começar. A maioria dos assentos estava ocupada, e todos aguardavam para testemunhar o nascimento de um campeão.
Tino e os caçadores da First Steps Primeiros Passos receberam assentos especiais reservados para amigos dos participantes. Esses lugares especiais eram os mais próximos da arena. Em um torneio que atraía o melhor de todas as raças e vocações, os ataques podiam atingir áreas bem amplas. Esses conhecidos serviam, se necessário, como uma espécie de barreira de contenção.
Ao olhar ao redor, Tino só via guerreiros experientes. Naturalmente, ela ficou tensa, tentando aliviar o nervosismo com respirações profundas. Isso chamou a atenção de dois espectadores ao lado: Sven Anger, da Obsidian Cross, e Kris, da Starlight.
— Nem me diga que você tá nervosa. O show nem começou!
— É, ele tem razão. Fomos convidados pelo fracote humano, temos que agir como se merecêssemos isso!
No entanto, Kris parecia tão nervosa quanto Tino. Já Sven, estava completamente tranquilo.
— Apostei uma grana pesada nisso, então vai ter inferno se ele fizer cagada! — resmungou Kris.
O mestre dela era um deus, por isso Tino não hesitou em apostar todo o seu dinheiro nele. Seguindo sua sugestão, Kris fez o mesmo.
— Kris, você não tá, tipo, sei lá…? — disse Sven, olhando pra ela com pena.
— O quê? Não, não sei! Se tem algo pra dizer, fala logo! Senhor!
— Mestre é um deus. Mestre com certeza vai vencer. Vai dar tudo certo.
Kris concordou rapidamente com Tino. — C-Certo! Ele vai ganhar, então não tem problema! Ele me convidou pra vir, então é claro que eu ia apostar nele! — Mas os olhos dela ainda mostravam incerteza.
Provavelmente, ela estava sentindo o mesmo aperto no peito que Tino. De qualquer forma, fosse a chance de vitória alta ou baixa, Tino não tinha escolha senão apostar no seu amado mestre. Não apostar seria demonstrar falta de fé.
— Mas o que é esse chaveamento, hein?! — disse Kris, batendo na tabela do torneio. — Isso é ridículo!
Tino pensava a mesma coisa. O primeiro adversário do seu mestre seria Krahi Andrihee — o falso mestre. Ela já conhecia esse falso mestre (embora seu mestre o chamasse de verdadeiro), mas nunca imaginou que os dois se encontrariam num palco tão grandioso.
Que alguém se passasse por um caçador famoso como o Mil Truques era absurdo. Mas isso só fez Tino ter ainda mais confiança na sua aposta. Afinal, não importava o que acontecesse, um falso nunca superaria o original.
Sven soltou uma gargalhada. — Mas esse cara é especial. É um mago talentoso e cheio de material de mana.
— É, você disse que conheceu ele — respondeu Kris. — Mas se ele é mesmo talentoso, é ainda mais estranho ele usar um nome falso! Esse é um torneio que até os Espíritos Nobres conhecem, Senhor!

— Ouvi dizer que é o nome verdadeiro dele.
— E você acreditou?! Eu não engulo essa de coincidência! Pensa bem: nomes parecidos até vai, mas nome e título parecidos? Quais as chances?
Tino ficou inquieta. Seu mestre era um deus, mas essa situação era complicada. Ele parecia até gostar bastante do falso. A magnanimidade do seu mestre era uma de suas maiores qualidades, mas às vezes isso jogava contra ele. Prestando atenção nas conversas ao redor, parecia que nem os outros espectadores sabiam qual dos dois era o verdadeiro. Krai Andrey e Krahi Andrihee. O Mil Truques e o Mil Artes.
O mestre de Tino preferia manter o rosto em segredo, e embora seu título fosse conhecido por muitos, seu nome e aparência eram bem mais obscuros. Claro, isso era intencional da parte dele, mas agora acabava sendo um problema. Se Krahi vencesse, Krai é que seria tratado como o impostor.
Mas isso não mudava muita coisa para Tino; tudo o que podia fazer era dar ao seu mestre todo o apoio possível. Ela deu alguns tapas nas próprias bochechas. Não podia se deixar abater quando nada nem tinha acontecido ainda. Ver seu mestre lutando de perto seria uma ótima oportunidade. Ela não podia só torcer — precisava tirar algum aprendizado disso.
E, logo depois, chegou a hora. O ar na arena mudou. O entusiasmo pegando fogo foi engolido por um silêncio estranho. Um homem enorme entrou no ringue espaçoso. Ele era quase do tamanho de Ansem, o Imutável. Era também o homem que tinha dominado o último Festival do Guerreiro Supremo com força bruta e avassaladora.
Sob o braço direito, carregava uma barra de metal ainda maior que ele. Era feita de adamantium, o material mais pesado e resistente do mundo — com exceção de algumas Relíquias. Tino soubera do poder daquele guerreiro no ano anterior, quando ele havia esmagado qualquer feitiço ou técnica com nada além dos músculos e de uma barra enorme.
Só de olhar para aqueles músculos expostos, Tino sentiu um calafrio. Mal podia acreditar que esse homem era da mesma espécie que ela. Seria mais um milagre dos materiais de mana que permitia a alguém ficar mais forte que um monstro ou uma besta mítica? Era bem provável que todos os participantes estivessem se perguntando como seria possível superar esse cara.
O antigo Guerreiro Supremo respirou fundo, e soltou uma voz que trovejou pela arena. O som sacudiu Tino, que cobriu os ouvidos imediatamente. Achava até que alguém podia desmaiar se estivesse perto demais dele. Quando você está no topo do mundo, pode fazer esse tipo de coisa.
— Um ano se passou! Desafiando todas as probabilidades, mais candidatos se reuniram para disputar o título de Guerreiro Supremo! Que o torneio comece!
Palavras simples. Mas Tino viu — os olhos do homem brilhavam como os de um predador prestes a atacar sua presa, a voz sedenta por sangue. Ele estava esperando por quem ousasse desafiá-lo.
Tino sentia que aquele homem seria o maior obstáculo no caminho do seu mestre para se tornar o próximo Guerreiro Supremo. Ela o apoiaria até o fim, mas nem mesmo ela conseguia confiar totalmente que seu mestre gentil conseguiria vencer aquele monstro.
Finalmente, era hora da primeira luta começar.
Finalmente. Ele estava esperando por isso. A paixão da multidão viajava pelo ar que roçava sua pele. Cada célula do seu corpo transbordava expectativa. Krahi Andrihee, o Mil Artes, fechou os olhos, ativando um interruptor interno. Estava em condição máxima.
Até ser convidado para o grupo de Kule, Krahi era um caçador solo. Quando você não tem ninguém para vir te salvar, saber se preparar para a luta num piscar de olhos é essencial. Apesar de ser um mago, Krahi estava acostumado a lutar sozinho — uma vantagem e tanto nesse torneio.
De modo geral, quem era bom em combate corpo a corpo levava vantagem no Festival do Guerreiro Supremo. O próprio campeão anterior era uma aberração de músculos. Krahi até tremia só de olhar, mas isso não significava que ele aceitaria perder. Ele iria vencer de novo, como já fizera tantas outras vezes. Você não podia ser um caçador se não tivesse vontade de sair por cima.
Mas, dessa vez, Krahi não estava lutando só por ele mesmo. Ele queria se tornar o próximo Guerreiro Supremo para que o nome Behaving Souls virasse lenda. Era pelos amigos dele — que mesmo parecendo sempre inseguros, nunca o abandonaram.
— Dê tudo de si, Krai Andrey. Depois que você fizer isso, eu vou carregar os seus sonhos também — murmurou ele, e então entrou no ringue.
— Heh. Eles acharam que podiam enfrentar o novo chefe. Idiotas. Espera só pra ver o que tá vindo.
— De fato. Mas foi por pouco, muito pouco.
Num canto das arquibancadas da arena, Galf e Sora mantinham os olhos fixos no ringue. Ambos estavam em estado lastimável. Galf tinha um braço quebrado engessado e se apoiava em muletas. Sora, por outro lado, não tinha ferimentos aparentes, mas o cabelo estava todo bagunçado e ela parecia exausta.
Foi velho-Fox contra novo-Fox, e o confronto foi selvagem. Assim como Galf havia previsto, a organização tentou esmagá-los com tudo o que tinha. Eles estavam em desvantagem numérica gritante, mas uma série de coincidências permitiu que escapassem.
Teve o fato de que os melhores membros de Galf já estavam reunidos com ele para a operação em Kreat. Teve o fato de que o compromisso da organização com o sigilo fez com que obter informações sobre Galf levasse tempo. Teve o apoio dos Grieving Souls, dos Cavaleiros da Tocha, e de outras organizações com as quais Galf tinha formado alianças.
O outro lado também parecia querer minimizar as próprias perdas. Quando recuaram, provavelmente perceberam que conter a situação era impossível ao verem a resistência feroz que as forças de Galf apresentaram.
A organização estava no meio de uma operação gigantesca. Em vez de arriscar perder pessoal e comprometer as chances de sucesso, decidiram deixar Galf para depois. Ou seja, o que ele conseguiu não foi uma vitória — apenas um alívio temporário.
Essa seria sua última chance de se esconder. Seus ajudantes já tinham sido dispensados. Muitos dos bandidos que tinham se aliado a ele e aos seus subordinados estavam mortos ou feridos, restando menos da metade da força original. Não havia como vencer o próximo confronto.
Mas Galf precisava ver sua missão até o fim. Isso devia ajudá-lo a entender por que tinha sido enganado.
— Eu nunca servi pra ser capanga de ninguém — disse ele. — Isso é até que libertador.
— Chefe, será que o senhor não tá só se iludindo?
Afinal, essa Donzela não era tão ruim quanto parecia.
A dezenas de metros acima da arena de Kreat, uma silhueta flutuava no ar. Vestia um manto totalmente preto e usava uma máscara branca de raposa. Caminhava sobre o nada, observando um objeto negro — uma Pedra de Transmissão. Era Caelum Tail, um dos membros da alta cúpula da Raposa Sombria de Nove Caudas.
Ele mordeu o lábio, irritado com a própria falta de progresso. Esperava que as forças de Galf fossem menores. Mas não só eram numerosas, como estavam sendo lideradas com toda a astúcia que havia lhe rendido o posto de Sétima Cauda. Mesmo com todo o apoio que havia reunido, Caelum foi forçado a recuar.
O inimigo estava claramente conspirando para rachar a Raposa por dentro, embora Caelum não tivesse percebido isso a tempo. Galf perdeu homens, assim como ele. No fim das contas, quem mais sairia ganhando com esse conflito interno eram os inimigos.
Desestabilizar uma organização tão envolta em sigilo em tão pouco tempo exigia uma preparação absurda. Isso não vinha da Associação dos Exploradores, nem do Império. Se fosse algo tão grande, a Raposa já teria descoberto.
O caçador de Nível 8, o Mil Truques, foi o homem que destruiu a Serpente, uma organização que já rivalizou com a Raposa. Com seu histórico de aniquilar inimigos por meio de coleta de informações e astúcia sem igual, ele era talvez o maior obstáculo da Raposa. Caelum Tail ainda não estava totalmente convencido de que o homem que ouvira pela Pedra de Transmissão era mesmo o Mil Truques, mas, considerando as habilidades dele… era possível.
Mas ele era jovem e ingênuo. Ia precisar de muito mais do que isso pra assustar a Raposa.
Depois de hoje, o Mil Truques não estaria mais em seu caminho. Existiam caçadores poderosos por aí, mas nenhum com habilidade tática suficiente pra superar a Raposa. Talvez precisassem de um tempo pra se reagrupar depois dessa, mas esse era um preço pequeno pra se livrar de uma ameaça cedo no jogo.
Hoje, Rodrick Atolm Zebrudia veria a morte do homem que salvou sua vida — e a Raposa consolidaria seu status.
O chefe olhou para a chave do torneio. — Que jogada ridícula…
A primeira luta era Krai Andrey contra Krahi Andrihee. Um duelo que parecia piada, que as pessoas já chamavam de “o falso contra o verdadeiro”. Caelum não fazia ideia de como o Mil Truques tinha interferido na programação das lutas, mas estava claro que era algo malfeito demais pra enganar a Raposa.
Caelum nunca tinha visto o Mil Truques pessoalmente, mas mesmo que não soubesse qual dos dois era o verdadeiro, havia uma solução simples: mataria os dois.
Dois homens de cabelos pretos estavam no centro do imenso coliseu. A luta começaria em breve. Caelum atacaria no momento em que um deles caísse. As barreiras em volta do ringue só serviam pra impedir ataques de sair — não de entrar.
Caelum estreitou os olhos. Os dois pareciam minúsculos feijõezinhos dali de cima, mas dava pra ver que estavam conversando. Era só esperar. A batalha entre o falso e o verdadeiro, o sem nome e o lendário, não duraria muito.
Ele retirou a Relíquia focal, a Chave da Terra. Era hora do desespero dar as caras. Dessa vez, a Raposa mostraria seu poder ao mundo.
Mas então, algo aconteceu lá embaixo. Caelum não podia ouvir, mas era nítido que uma onda de confusão havia se espalhado de repente.
O que será que houve?
Ele estreitou os olhos e viu que um dos homens havia levantado a mão. Então, com um estrondo e um clarão de luz, Caelum foi atingido por uma força colossal.
— O que você acabou de dizer? — o jovem de cabelos negros perguntou, incrédulo.
Seu nome era Krahi Andrihee, também conhecido como o Mil Artes. Era o oponente do Sr. Cautela — e um impostor.
A Raposinha sorriu com confiança, do mesmo jeito que o Sr. Cautela sorriria. Mais uma vez, ela olhou ao redor da arena e disse alto o suficiente pra todo mundo ouvir:
— Eu disse que é uma honra conhecer o verdadeiro. Mas isso acaba hoje. Eu vou te derrotar e me tornar o verdadeiro Mil Truques!
Era um plano perfeito. Por dentro, ela até se deu um tapinha nas costas. A capacidade de bolar esse plano no exato momento em que viu a chave do torneio… isso só podia ser sinal de um gênio assustador.
Ela não entendia como tinha acontecido, mas o Sr. Cautela tinha um nome respeitado entre os humanos, e esse cara tinha um nome quase idêntico. O plano se apoiava nesses dois fatos. O objetivo da Raposinha era fazer parecer que o Sr. Cautela era o falso. Ele até podia negar depois, mas não faria diferença quando milhares de pessoas tivessem ouvido ele dizer o contrário. Sua reputação não se recuperaria tão fácil.
Agora era só perder a luta antes que o Sr. Cautela se recuperasse do feitiço que o fez se perder por aí. Ele perderia sem nem ter a chance de pisar no ringue! A Raposinha até visualizou o rostinho chocado dele.
Krahi Andrihee deu um passo para trás e sussurrou — O quê? Do que você tá falando?
— Surpreso? Não esperava que houvesse um impostor? Acha que foi coincidência a gente ter se conhecido?!
Ela só precisou ler o coração dele e ligar os pontos. Com os poderes dela, não foi nada difícil. Mas esse cara, Krahi Andrihee — ele era estranho. Os olhos eram claros, o coração livre de más intenções, e a alma brilhava como cristal. E ele empunhava um bastão que era uma Relíquia. O nome dele era quase igual ao do Sr. Cautela, mas tudo entre os dois era diferente. Mesmo sendo muito mais forte que o Sr. Cautela, Krahi parecia ocupar uma posição inferior na vida.
Mas o que mais intrigava a Pequena Irmã Raposa era que esse jovem nem sabia quem era o Mil Truques, apesar da fama suposta do Sr. Cautela. Que mundo estranho esses humanos viviam. No entanto, isso jogava a favor dela. Se Krahi estivesse imitando o Mil Truques de propósito, isso complicaria, mas não era o caso aqui.
Os céus disseram à Pequena Irmã Raposa para enganar, e era isso que ela faria. Krahi, o público, o Sr. Cautela, todos eles.
Ela abriu os braços num gesto de despreocupação. Sentia os incontáveis olhares pesando sobre ela. Eram olhares de curiosidade, confusão, desprezo. Ela adorava a desordem. O caos era o que as raposas espectrais do Peregrine Lodge desejavam.
Krahi deu um passo à frente — Não precisa dizer isso, Krai. Não existe esse negócio de verdadeiro ou falso. — A voz dele era suave e trêmula, mas ressoava com força estranha. Os olhos negros, da mesma cor dos do Sr. Cautela, brilhavam. — Ninguém pode virar outra pessoa. Eu não posso virar você, e você não pode virar eu! Mas a gente nem precisa! Você já é incrível sendo você — Krai Andrey!
Do que esse humano tava falando? A Pequena Irmã Raposa não sabia o que pensar desse homem, que não dava sinais de ter percebido o truque dela. O público, por outro lado, estava hipnotizado pela voz firme dele.
— Não me incomoda se você me admira. Não me incomoda se nossos títulos são parecidos. Mas, por favor, não faça algo tão triste quanto se anular pra tentar ser eu. Você já provou sua grandeza só por estar aqui. Isso não teria acontecido se você fosse só uma imitação. Você é Krai Andrey, e você me admira! Não negue isso. Aceite quem você é! E quando fizer isso, vou ficar mais do que feliz em te enfrentar! Vamos nos encontrar de novo, nesta mesma arena!
A plateia explodiu em aplausos. Devem ter achado que aquilo era parte da apresentação. Agora, ninguém esperava nada do Sr. Cautela. Era mais ou menos isso que a Pequena Irmã Raposa queria, mas não exatamente.
Após considerar por um instante, ela levantou a mão, fazendo a arena silenciar. O plano era que o Sr. Cautela virasse motivo de piada, mas tudo o que ela tava recebendo era pena.
— Que bobagem, meu contraparte autêntico — disse ela. — Eu vou te derrotar aqui e agora. Isso é o Festival do Guerreiro Supremo, a gente tem que lutar antes de começar com esses discursos exagerados. Ou será que você acha que não consegue ganhar?
Por um instante, Krahi pareceu triste, mas logo respondeu com um rugido. O vento soprou, fazendo seu casaco preto esvoaçar. Os olhos da Pequena Irmã Raposa se fixaram no bastão dele. Era de metal, com um cristal dourado no topo. E foi aí que caiu a ficha.
— Eu não vou perder pra uma versão falsa de você! — proclamou Krahi. — Vá atrás dos seus próprios objetivos e ideais até conseguir descobrir quem você é de verdade! Isso é mais por você do que por qualquer outra pessoa, Krai Andrey!
Krahi Andrihee era talentoso, tinha experiência e um espírito inabalável. Mas sua maior arma era aquele bastão. Raios estalavam dentro do cristal no topo. Aquilo era uma Relíquia, especializada em amplificar um único elemento. Ela reunia o mana no corpo do usuário e o amplificava de forma brutal.
A Pequena Irmã Raposa deu um passo para trás. Esse cara. Ele era um Magus do Relâmpago, e mais do que isso — era tão obcecado pelo elemento que ignorava todos os outros.
O céu e o ar trovejaram.
— Pro seu próprio bem, eu não vou me segurar! — gritou Krahi Andrihee, o Mil Artes. — O poder dos deuses, temperado sem piedade! Fique firme e me enfrente, eu sou o Supremo Voltaico, Krahi Andrihee!
A Pequena Irmã Raposa não conseguiu evitar de olhar pro alto, onde um único raio piscava vindo dos céus.
Sentada com as pernas cruzadas, Kutri Smyat estalou a língua ao ver o raio. — Ele continua absurdamente forte. Na real, tá até melhor.
— O poder dele é de verdade. Ele não precisa da gente — concordou Elizabeth Smyat, suspirando.
Os membros dos Bereaving Souls tentavam manter perfil baixo enquanto assistiam à luta. Krahi era forte. Embora o nome soasse como o de uma cópia, o poder dele era genuíno — e ridículo.
Krahi era um cara simples. Simples e fácil de enganar, o que foi como Izabee e os outros conseguiram passar a perna nele. Também era por isso que ele não sabia usar uma grande variedade de feitiços.
Mas ele era, de fato, poderoso. Krahi Andrihee dominava os relâmpagos, que alguns consideravam a forma mais difícil da magia. Esses feitiços cegantes e estrondosos às vezes eram chamados de magia dos campeões, e Krahi era completamente apaixonado por eles.
Krahi já tinha atuado sozinho. Era um caçador solo. Mesmo que não tivesse sido batizado com um nome tão parecido com o do Mil Truques, ele ainda assim teria feito sucesso. Praticamente todo o talento dele era dedicado à magia de raio. O título de Mil Artes foi algo que os Bereaving Souls inventaram, mas nem eles, nem Krahi, tinham sido os responsáveis pelo apelido de “Supremo Voltaico”. Se Krahi fosse acabar com algum título, provavelmente seria esse mesmo.
Incontáveis relâmpagos cortavam o ar dentro da arena. A barreira resistente se distorcia a cada impacto violento que interceptava. Esse definitivamente não era o tipo de magia que se usaria normalmente contra um oponente humano, mas Krahi não ia deixar isso impedir ele.
— Isso não é bom — murmurou Kule Saicool. Seu rosto já estava pálido o dia inteiro, e agora ele segurava o estômago. — Ele ainda não sabe o que o outro cara tá tramando.
— Vai, acaba com esse falsificador! — gritou Lusha, torcendo mesmo enquanto tremia com os choques no ar.
Krahi era, sem dúvida, talentoso. Mas Kule não achava que ele conseguiria vencer alguém do Nível 8. Desde que entrou para os Bereaving Souls, Krahi ficou limitado a explorar salões de níveis mais baixos do que costumava, o que significava que ele nunca ia além do Nível 5 agora. Se não tivesse se juntado a esse grupo, Krahi provavelmente teria continuado caçando sozinho e se tornado um Magus ainda mais poderoso. Por isso, Kule não conseguia evitar aquele arrependimento amargo.
“Ninguém pode se tornar outra pessoa.”
Engraçado como aquelas palavras atingiram Kule e os outros membros dos Bereaving Souls como um golpe crítico. O que Krahi pensaria se soubesse a verdade? O uso de nomes parecidos com os do grupo original não enganaria ninguém acima da idade escolar. Um dia, Krahi ia perceber o que estavam fazendo. Mas agora que tinham ido tão longe, não havia mais como voltar.
O Supremo Voltaico ergueu seu cajado, aumentando a velocidade dos disparos, os impactos e a luz cegante que vinham com eles. Aquilo era o Trovão Celestial, o feitiço de raio mais poderoso que existia, ainda mais avançado que a Tempestade Calamitosa. Era um feitiço catastrófico que muitos caçadores passavam a vida inteira sem testemunhar. Definitivamente não era algo que se conjurava contra uma pessoa.
Os relâmpagos não davam sinal de parar. Os disparos incessantes tornavam impossível enxergar Krahi, mas ele era sensato o bastante para interromper o ataque se o oponente tivesse caído. Se a tempestade ainda não tinha passado, então o inimigo ainda estava de pé.
Kule não entendia por que o verdadeiro tinha se proclamado um impostor, mas o Mil Truques era um estrategista. Com certeza tinha algum plano obscuro em mente. Nem mesmo Kule conseguiria simplesmente abandonar Krahi depois de ter ido tão longe com ele, e sabia que os outros membros dos Bereaving Souls sentiam o mesmo.
Talvez o Mil Truques os perdoasse, se provassem que não tinham má intenção. Se ele não estivesse interessado em mostrar misericórdia, teria desmascarado todos de cara, em vez de se declarar como impostor.
Kule tremia enquanto os relâmpagos continuavam sem trégua. Olhou de relance para o lado dos apoiadores do verdadeiro. Eram todos dos Grieving Souls, torcendo alto e completamente ilesos pelos raios.
— Vai! Acaba com ele! Arrebenta tudo! — alguns gritavam. A princípio, Kule achou que estivessem torcendo pelo verdadeiro, mas agora já estava duvidando. Um deles, Sven Anger, o Golpe da Tempestade, parecia especialmente animado. Pelo jeito, os aliados do Mil Truques não ligavam muito pro discurso esquisito que o líder do clã tinha feito.
Kule desistiu de tentar entender. Afinal, “Sortida Proteana” era só uma tentativa meia-boca de copiar a “Espada Proteana”. Ele nunca conseguiria fazer jus ao título que se deu.
De repente, os relâmpagos cessaram.
— Impossível — disse Krahi no meio da fumaça. — Desviar de um já seria difícil, mas você conseguiu evitar todos. O que é você, Krai Andrey?!
Ops. Ela não tinha intenção de desviar de todos.
O feitiço de grande escala havia queimado o chão instantaneamente. Cercada por nuvens de poeira flutuando no ar, a Pequena Irmã Raposa não sabia muito bem o que fazer. Não esperava que Krahi fosse capaz de algo tão poderoso. Magia humana não era algo com que ela tivesse muita familiaridade, mas começava a entender como ele tinha conseguido conjurar um feitiço que ultrapassava tanto as habilidades humanas normais.
A mana no corpo dele era inclinada exclusivamente para relâmpagos, e o cajado que empunhava amplificava exatamente esse tipo de feitiço, permitindo que ele evocasse raios capazes de rasgar os céus. A precisão era praticamente nula, mas esse era o preço de lançar feitiços de baixo custo e altíssimo dano em sucessão rápida.
Krahi provavelmente era incapaz de usar qualquer magia que não fosse do tipo elétrico. No fim das contas, era apenas um Magus do Relâmpago — nem mais, nem menos.
Ele abriu e fechou as mãos, confuso com a falta de resultado após seu bombardeio.
— Será que estou com pouco controle? Não, talvez meu corpo hesite em te atacar? Mas feitiços de relâmpago sempre encontram um alvo, desde que estejam perto o bastante. Embora… acho que não adianta ficar pensando nisso.
Normalmente, aquilo já teria sido mais do que suficiente. Qualquer um conseguiria ver que os ataques de Krahi foram destrutivos demais.
A Pequena Irmã Raposa tinha evitado os feitiços por puro reflexo. Ela não lidava bem com relâmpagos. Era um instinto que carregava desde sua existência como ser vivo. E aquelas não eram circunstâncias ideais — o material de mana do mundo exterior era escasso. Se tivesse sido atingida, teria sentido de verdade.
Krahi girou seu cajado, encarando a Pequena Irmã Raposa.
— Se você desviar de dez, chamarei cem. Se escapar de cem, chamarei mil! Não precisa ficar tímido! Vamos ver se consegue resistir a mil golpes dos céus!
Como se respondessem ao seu chamado, os céus acima brilharam e ribombaram. Aquele homem não estava mirando na oponente — pretendia incinerar a arena inteira. Que surpresa descobrir que um humano podia ser tão formidável. Ele era perigoso o bastante para ameaçar a própria Mãe Raposa, uma deusa de verdade.
Os humanos não eram pra ser criaturas racionais?
Apesar de tudo isso, a Pequena Irmã Raposa não podia simplesmente contra-atacar. Primeiro, porque estava ali pra pregar suas peças, mas também havia outro problema — ela tinha pouquíssimos meios de ataque. Os fantasmas do Peregrine Lodge eram movidos pelo desejo de enganar, não de matar. E se fossem tirar uma vida, não o fariam diretamente nem sem provocação.
Ela precisava perder essa luta. Precisava encontrar um jeito. Precisava se apressar antes que o feitiço lançado no Sr. Cautela se desfizesse. Fitando a tempestade elétrica intensa e ofuscante à sua frente, ela deu um passo desesperado.
A troca estranha e quase cômica entre os dois desafiantes terminou, dando lugar instantaneamente a uma batalha de tirar o fôlego. O primeiro raio já era algo digno de se ver, mas quando virou uma saraivada, a cena parecia mais uma retribuição divina do que magia lançada por um único mago.
No começo, Tino ficou confusa com a confiança do falso mestre e o verdadeiro mestre se declarando impostor, mas o espetáculo da luta apagou qualquer pensamento desnecessário da mente dela. Aquele homem, Krahi Andrihee, tinha um nome parecido com o do seu mestre — e habilidades extraordinárias para acompanhar. A força e a velocidade dos ataques dele eram de primeira. Em termos de poder com relâmpagos, Tino tinha certeza de que Krahi superava até Arnold.
E mesmo assim, a resposta do mestre dela foi simplesmente inacreditável — ele avançou.
— E-ele — ela gaguejou —, ele desviou dos raios?
Parecia absurdo. Raios talvez não fossem mais rápidos que a luz, mas ainda assim eram rápidos demais para reflexos humanos. No entanto, o mestre dela se esquivava calmamente entre os feixes. Da perspectiva dela, parecia até que os raios estavam tentando evitar acertá-lo. Aquilo não era algo que se explicava com artefatos sobrenaturais. Era o poder de um Nível 8.
A magia de Krahi era mais intensa do que ela esperava, mas Tino ainda acreditava que seu mestre levava vantagem.
— Hmm — murmurou Siddy, sentada ao lado de Tino. — Não é o Krai de verdade. Então foi por isso que ele fez aquela cópia que eu vi na cozinha…
— O quê?! — gritou Tino.
— É, você tem razão — acrescentou Lizzy. — O Krai Bebê não correria assim. Ele não curte muito mexer o corpo.
— Será que ele interferiu nos feitiços? Será que desviou? — murmurava Lucy consigo mesma. — Como ele fez isso? Nem pareceu magia—
— É fruto de treinamento, oras! — exclamou Luke. — Tenho certeza de que eu aguentaria os ataques, mas desviar assim? Preciso tentar também!
Ansem resmungou em concordância.
Ou seja, não eram só as irmãs Smart que duvidavam da identidade do Krai no ringue. Tino voltou os olhos para a arena. Estava longe, mas, pelo que conseguia ver, era seu mestre ali — com aquelas capacidades divinas e tudo. Mas se os amigos dele não achavam que era ele, então devia ser outra pessoa no ringue.
Sua mente ficou em branco por um instante.
— Ahh — disse ela, com a voz tomada pela resignação —, então essa é a Provação da vez…
Mestre, é contra as regras mandar outra pessoa no seu lugar. E de onde você tirou esse sósia?
Mas agora que pensava bem, o mestre dela tinha mesmo dito que não participaria. Então ele realmente falava sério.
***
Quando viu seu oponente desviando dos raios enquanto se aproximava, a reação de Krahi foi sorrir — por incrível que pareça.
— Isso aí! Vem com tudo! Quero ver você desviar disso!
Sem perder um milésimo de segundo, uma salva de flechas elétricas voou na direção do falso Krai, que desviou saltando no ar. Péssima escolha; nenhuma habilidade permitiria escapar dos ataques seguintes enquanto ainda estivesse no ar. Como se já esperasse por isso, Krahi apontou seu cajado para Krai.
— Era isso que eu tava esperando, Krai! Agora encare a fúria dos céus! Lança Teovoltaica!
— Esse feitiço não existe — suspirou Lucia. — Deve ser alguma invenção dele.
Um som de estalo surgiu, e uma lança começou a se formar na ponta do cajado de Krahi. Era envolta por uma teia violeta, mas essa arma galvânica não era feita de pura energia — ela brilhava como se fosse metálica. Era feita de mana condensada. Ele havia conjurado uma arma de maneira semelhante à forma como Relíquias são forjadas a partir de mana material!
Por si só, feitiços de relâmpago já eram absurdamente destrutivos. O que aconteceria se essa mana fosse condensada?
Sem hesitar, Krahi lançou o projétil de morte certa contra o falso mestre — que bloqueou o ataque com uma lança idêntica. Tino mal conseguia conter a surpresa. As duas lanças reluzentes colidiram, liberando ondas de pura destruição. Tino tinha certeza de que ouviu o som de uma parte da barreira protetora se rompendo.
A plateia começou a gritar, mas logo foi silenciada pelas ondas de energia, pelas luzes ofuscantes, pelo calor intenso. Ansem, os outros na primeira fileira e os Magos contratados pela organização do torneio usaram suas habilidades para remendar o buraco na barreira.
Poeira flutuava por toda parte. Os relâmpagos haviam cessado, mas redemoinhos de nuvens ainda pairavam no alto. Tino voltou os olhos para o ringue.
— Nunca imaginei que você fosse usar o mesmo feitiço que eu, no exato mesmo momento — e sem nem ter um cajado.
Um Krahi Andrihee ferido estava de pé no centro da arena carbonizada. O falso mestre estava caído contra a parede.
— Você replicou meu feitiço naquele fragmento de segundo? — Krahi perguntou enquanto inspecionava seu cajado. — Se não fosse por ele, eu teria sido derrotado. É como se você fosse um reflexo meu. Ah, perdão — escolha ruim de palavras.
Ah, então vou perder todo o meu dinheiro no fim das contas. O sangue sumiu do rosto de Tino. Ao lado dela, Kris reagia da mesma forma, pensando exatamente o mesmo.
A luta estava decidida. Nem mesmo o falso mestre conseguiria se levantar depois de um ataque daqueles. Diferente do verdadeiro, esse ainda não havia aprendido a transcender os relâmpagos. Ela tinha certeza de que não podia errar ao apostar no mestre. Embora estivesse frustrada, não podia revelar que era um impostor no ringue. Isso mancharia mais a honra de Krai do que se ele tivesse lutado e perdido pessoalmente.
— Árbitro, este homem não vai se levantar — anunciou Krahi, com uma voz que ecoou por toda a arena. Em seguida, voltou-se para Krai. — Parece que você tentou anular meu ataque com um seu. O fato de ainda estar inteiro é prova das suas habilidades. Lutou bem, Krai. Vou chamar um médico para você.
O árbitro finalmente começou a se mexer, como se tivesse se lembrado de sua função. Clérigos correram até o falso mestre para iniciar os cuidados de cura.
Tino percebeu algo. Algo que preferia não ter visto. Perto da entrada, seu mestre espiava de trás de uma pilastra. O outro estava caído de costas, cercado por Clérigos. Não era preciso ser um gênio para saber qual dos dois era o verdadeiro Krai Andrey.
Seu mestre olhava de um lado para o outro, como se estivesse fazendo algo que não devia. Isso não era comum nele. Estaria em pânico? Ou será que procurava por alguma coisa? Talvez não tivesse previsto que sua cópia perderia?
— Ah, é o Krai Bebê — disse Lizzy, como se fosse a coisa mais normal do mundo. Ela estava animada para vê-lo lutar, mas não parecia nem um pouco incomodada. Tino não compartilhava do mesmo sentimento.
Mestre, só dessa vez, queria que você pensasse no que acabou de fazer. Lizzy podia até encher ela de porrada por pensar isso, mas Tino sentia que precisava dizer algo. Ela estava realmente empolgada para vê-lo em ação.
Agora que podia comparar facilmente os dois, a diferença entre o verdadeiro e o impostor era gritante. O falso havia demonstrado uma audácia que o verdadeiro jamais teria. Tino não desgostou dessa ousadia, mas se sentia uma idiota por não ter percebido antes.
Como ele planejava sair dessa? Se estava se mostrando, então presumivelmente ainda havia mais alguma parte naquele estratagema. Ele não apareceria à toa, mas o que seria? Provavelmente não era para pedir uma revanche.
E foi justo quando esse pensamento passou pela sua cabeça que aquilo caiu do céu. Aterrissou na arena, chamando a atenção de todos no público. Flutuando como uma folha, pousou atrás de Krahi sem fazer um som. Um murmúrio de confusão se espalhou entre os espectadores, que ainda estavam se recuperando do combate intenso que tinham acabado de presenciar.
Era uma pessoa. Um homem vestido com uma túnica totalmente preta, o rosto escondido por uma máscara de raposa branca. Krahi se virou, e embora surpreso com a chegada repentina, ainda assim se aproximou do homem.
— Quem é você? De onde caiu? Me desculpe, mas a próxima luta vai começar—
— Vamos poupar os discursos — respondeu o homem, com a respiração pesada. — Palavras são desnecessárias. Prepare-se para morrer, Mil Truques.
O homem de túnica então levantou o braço.
Parecia que eu tinha vivido um sonho esquisito, onde passei alguns minutos no banheiro fingindo que estava em outro lugar. Quando finalmente tive coragem de sair, dei de cara com Krahi e um homem usando uma máscara de raposa no meio da arena. E pra completar essa palhaçada toda, eu estava jogado no chão, num canto.
— Entendi. Então isso é… uhhhh. Resumindo, é…
Resumindo o quê? Nem consegui formular uma teoria. Era um insulto à minha inteligência.
O homem de túnica preta e máscara branca levantou a mão direita. A máscara era do mesmo modelo que a minha, mas dava pra ver pelo contorno que ele não era o Galf. Ele abaixou a mão, e no exato momento, um estrondo ensurdecedor ecoou.

Foi como se uma bomba invisível tivesse explodido. Naturalmente, eu não tinha como fazer nada a respeito. Meus Anéis de Proteção me livraram da onda de choque e do barulho ensurdecedor, mas ainda dava pra ouvir o leve som de rachaduras se formando na barreira da arena. O outro eu e os Clérigos ao redor dele foram arremessados no ar. Não dava pra enxergar muito bem com tanta poeira, mas consegui ouvir a voz do Krahi.
— O-O que pensa que está fazendo?! Sua luta nem começou! E que poder é esse?!
Eu só conseguia tropeçar de um lado pro outro na poeira. Mas dá pra dizer que esse sou eu em qualquer época, passado, presente ou futuro. Continuei ouvindo explosões. Algumas vezes, vi um brilho na barreira bem na minha frente, o que indicava que as ondas de choque estavam fortes o bastante pra ativar o Anel de Proteção. Parecia que eu ia morrer sem nem entender o que estava acontecendo — o que, infelizmente, não era novidade pra mim.
Comecei me escondendo atrás de uma pilastra e respirando fundo. Tentei me acalmar. Essa era a minha batalha, afinal. Eu só precisava resolver uma coisa de cada vez… e talvez tudo se esclarecesse.
Já sei! Vou me humilhar!
— Urk! Controle-se! — ouvi Krahi dizer. — Boca do Firmamento!
Um raio imenso caiu do céu. Como o Ansem não estava por perto, é claro que foi atraído pra mim. Meus Anéis de Proteção aguentaram o tranco, mas o arco acima da minha cabeça começou a desmoronar.
— Isso não foi— Aaargh! — gritou Krahi em meio aos gritos da plateia.
— Eu queria saber do que você era capaz — disse o homem mascarado, com os ombros arfando. — E é só isso? Patético!
As explosões continuaram, embora eu só conseguisse ver poeira girando ao redor. Ouvi o choro dos céus e a voz tensa de Krahi.
— Eu não vou deixar você vencer!
Ele estava preparando um feitiço de raio poderoso.
— Krahi! Presta atenção onde você tá mirando! — gritei, sem nem pensar.
— AHHH! TROVÃO DOS CÉUS!
O céu se encheu de luz e a arena tremeu violentamente. Que magia assustadora. Quando eu falei pra ele tomar cuidado com a mira, não era porque eu queria que ele acertasse o vilão — era só pra não acertar a mim. Meus Anéis de Proteção impediram que eu fosse eletrocutado, mas se não fossem minhas Relíquias de corrente, os raios nem teriam sido atraídos pra mim. Minha única outra defesa contra trovão era o Ansem para-raios, mas ele estava longe demais.
Mas afinal, quem diabos é esse cara mascarado?
Mais uma explosão me atingiu sem efeito, e então tudo parou.
— Não pode ser — arfou Krahi. — Eu tinha certeza de que meus feitiços acertaram! Como ainda está de pé depois de levar tantos?!
— É inútil — disse o homem mascarado. — Se é o céu que você manipula, então é o firmamento que minhas mãos comandam! Agora aprenda o que significa provocar minha ira!
Meus olhos se arregalaram. Parecia que, enfim, as peças do quebra-cabeça tinham se encaixado. Tive um momento de dúvida, mas logo tive certeza — esse cara mascarado era algum figurão do Clube de Fãs da Máscara de Raposa. Eu não tinha querido me passar por ele nem dar ordens em seu nome, mas dava pra entender porque ele estaria irritado.
Não sabia exatamente por que ele estava indo atrás do Krahi, mas considerando a semelhança nos nossos títulos, era bem provável que o mascarado tivesse recebido informações erradas. Eu conhecia bem esse tipo de situação — acontecia direto comigo.
Droga, Sora, foi por isso que eu falei pra você pedir desculpas e esclarecer qualquer mal-entendido logo de cara.
Pra ser justo, esse cara também não devia bater muito bem da cabeça se achava que aparecer no meio do torneio era uma boa ideia. O Clube de Fãs da Máscara de Raposa era só um bando de maluco? Tudo bem, mas podiam aprender a não causar problema pros outros.
Agora que tinha chegado nesse ponto, não via outra saída além de me desculpar de verdade. O problema era que fazer isso no meio de uma batalha era mais fácil falar do que fazer. Gritos e berros, explosões e raios, o chão tremendo… só as ondas de choque já seriam o bastante pra me mandar pelos ares. E não era como se muita gente tivesse Anéis de Proteção, então ninguém ia se meter entre esses dois — mesmo que essa luta não tivesse nada a ver com o torneio.
Mas eu sabia que ia me sentir mal se deixasse o Krahi resolver tudo. Eu sabia como era levar bronca por algo que você nem fez.
É agora. Hora de usar aquilo.
Em outras palavras, eu não fazia ideia do que fazer.
— Não tem mais nada que você possa fazer — disse uma voz.
Senti algo cutucar minha perna. Quando olhei pra baixo, vi a Pequena Raposa me encarando. A túnica branca dela estava suja de terra e rasgada em alguns pontos, mas ela não parecia ferida. Eu estava tão confuso que nem sabia o que dizer.
Se contorcendo, ela disse em voz baixa:
— Me transformei em você.
Ah! Então aquele “eu” desmaiado era ela, transformada na minha aparência. Eu já tinha presenciado esse poder uma vez, então deveria ter sacado antes. Mas ainda assim, não explicava o porquê.
Vendo que eu ainda estava meio perdido, ela logo completou:
— Me transformei em você. E perdi. Pra manchar sua reputação.
— Você o quê?
Por causa da máscara, não dava pra ler bem a expressão dela, mas o rabo dizia tudo o que eu precisava saber.
Então ela é boazinha, afinal?
— O-O-Obrigado? De verdade.
A Pequena Raposa recuou, as orelhinhas surgindo no topo da cabeça como um reflexo. Ela entendeu que eu não queria participar do torneio, tomou meu lugar e ainda prejudicou minha reputação de propósito ao perder. Eu nem sabia o que dizer pra ela. Tinha achado que ela era uma viciada em tofu frito, mas no fim era esperta pra caramba. Ainda bem que a gente (e por “a gente”, quero dizer a Sora) fez todo aquele tofu pra ela.
— V-Você tá zoando — ela disse, dando um passo pra trás.
— Não, é sério mesmo — falei animado. — Eu já tava ficando doido com esse Festival do Guerreiro Supremo. Não sabia o que fazer. Mas agora que perdi, posso simplesmente ir embora. Você não tem ideia do alívio que isso é.
Isso sem falar no estrago na reputação. Agora só faltava fazer aquele homem mascarado me perdoar. A menos que essa raposinha estivesse disposta a cuidar disso também? Sem pensar, estendi a mão para tocar suas orelhas, mas ela afastou minha mão com um tapa.
Ela tremia de raiva, mas sua voz, quando falou, era como gelo.
— Eu te odeio, Sr. Cautela.
— Hã?
— O Sr. Cautela não tem cautela nenhuma.
Isso era um bordão ou algo assim? Pode parar com isso. Até eu consigo perceber quando estou em perigo.
— Só tô acostumado com isso — respondi.
— Lembre-se disso — ela disse, virando-se, com o rabo roçando na minha perna.
No momento seguinte, tudo mudou. Minhas pernas bambearam e eu mal consegui ficar de pé. Senti o impacto de mais uma explosão ensurdecedora de raios e outro Anel de Proteção ativando. Se eu contei certo, só me restava um.
Olhei para cima e vi o homem mascarado a um braço de distância de mim. Achei que meu coração fosse parar, mas parece que não fui o único pego de surpresa. Ele recuou, se movendo como se deslizasse pelo chão.
Olhei ao redor, tentando entender o que tinha acontecido o mais rápido possível. Pelo que percebi, a Irmãzinha Raposa me jogou bem no meio do caos. Aquele talento estava sendo desperdiçado com ela.
Achei que um sorriso estilo detetive durão seria um bom começo.
— Veja só… No fim das contas, ela é uma boa menina.
Se ao menos ela tivesse me dado um tempinho pra me preparar…
Esse desdobramento inesperado numa luta que já era chocante causou comoção entre o público. Quase ninguém parecia entender o que estava acontecendo. No Festival do Guerreiro Supremo, surpresas aconteciam de vez em quando, assim como ataques a um desafiante, mas ninguém jamais tinha invadido a arena.
De uma tribuna de luxo, longe e alta acima do ringue, Rodrick Atolm Zebrudia observava a luta confusa.
— Então você veio, Raposa — resmungou. — Bem ousada de se mostrar diante de tanta gente.
— Nunca imaginei que interromperiam o torneio — disse Franz. Ele agora estava com uma expressão séria, mas antes parecia até um pouco satisfeito ao ver o Mil Truques em apuros.
No entanto, Murina tinha outra coisa na cabeça.
Hm? Aquela máscara. É a mesma que o Mil Truques estava usando mais cedo.
Ela não estava passando por algo como o treinamento brutal de recentemente, nem travando uma batalha violenta como a de anteontem, mas mesmo assim começou a suar frio.
Ela sabia que o pai estava envolvido num conflito com uma organização chamada “Raposa Sombria de Nove Caudas”, mas não sabia mais nada além disso. Na verdade, fez questão de não saber. Pensava que, se soubesse de algo, sua má sorte poderia piorar tudo. Então ficou quieta, só observando a luta.
— Aquele homem… A máscara dele é igual à que aquele fantasma usava na câmara do tesouro — comentou Rodrick.
— Parece que há mesmo algum fundo de verdade nos rumores de que têm ligação com aquela câmara — disse Franz.
Murina relembrou os acontecimentos recentes. Teve o treinamento pesado, depois, ao sair da capital imperial, o Mil Truques de repente colocou a máscara que pegou no cofre. Um grupo estranho foi enviado para lutar ao lado dos Grieving Souls e dos Cavaleiros da Tocha, todos usando máscaras de raposa enquanto agiam. E não foram só eles — até os inimigos usavam máscaras vulpinas variadas.
Agora que tinha sido dispensada de suas obrigações, as perguntas começaram a surgir. Quem eram aquelas pessoas? Com o que, afinal, ela estava lutando? Até agora, não tinha parado pra pensar nisso. Ser forçada de repente a comandar umas cem pessoas não lhe deu o luxo de refletir sobre o motivo de tudo aquilo. Superar o novo Julgamento já estava consumindo sua mente por completo.
Ela tinha ouvido dizer que a Raposa Sombria de Nove Caudas era uma organização habilidosa e escorregadia; dificilmente tantos membros apareceriam de uma só vez. Mesmo assim, Murina estava cheia de incertezas.
— Veja como ele saiu ileso mesmo depois de levar tantos raios. Que habilidade — disse Rodrick, com olhar grave.
— Imagino que seja alguma artimanha dele — respondeu Franz.
O bombardeio de raios era realmente algo impressionante. Magia de raio era considerada a magia dos campeões. Não era fácil de aprender, mas o poder que oferecia compensava a dificuldade.
Esse tal de Krahi tinha um nome que parecia uma piada, mas seu poder era autêntico. Mesmo depois de todo o treinamento, Murina não duraria um minuto debaixo daquela tempestade. Se o Festival do Guerreiro Supremo era um evento para pessoas como essa, Murina tinha ainda mais certeza de que o Mil Truques era completamente maluco por ter querido que ela participasse.
Da mesma forma, aquele homem de máscara de raposa devia ser um aberração se não estava nem um pouco abalado pelos raios mortais. Suas roupas estavam queimadas aqui e ali, mas ele mesmo não mostrava sinais de dano. Como podia ter suportado com tanta facilidade um golpe que até empurrou o Mil Truques, famoso pela sua Barreira Absoluta?
Não. Espera aí — pensou Murina, com a bochecha se contraindo. Os Mil Desafios não tinham a fama de levar as pessoas até o limite? E o Mil Truques tinha inicialmente desejado que ela entrasse nesse torneio. Mas, segundo Sitri, Murina não atingiu o desenvolvimento esperado. Será que comandar aquelas pessoas não era o Desafio de verdade? Será que o verdadeiro era esse campo de batalha?! Mas então… mudaram de ideia no meio do caminho? Mudaram para isso?
— Mas o Mil Truques também está ileso… — argumentou Franz.
Ele tinha razão. Depois de ser derrubado por aquela impressionante lança dourada, o Mil Truques agora estava de pé diante do homem mascarado, sem nenhum ferimento. Ele tinha colocado Murina na berlinda, mas era a primeira vez que ela o via em ação.
Por um momento, quase parecia que Krai havia perdido para Krahi. Será que o treinamento dela havia mudado porque ele percebeu que Murina jamais venceria o Magus do Relâmpago? Até que ponto isso estava dentro do plano? Ela não fazia ideia do que era planejado e do que estava sendo improvisado.
Sem perceber, Murina havia se levantado do assento, hipnotizada pela batalha lá embaixo.
— Alteza Imperial, a senhorita pode cair se se inclinar demais — alertou Franz.
Murina respondeu sem hesitar nem por um segundo:
— Não se preocupe, Sir Franz. Agora, eu preciso ver como isso vai terminar.
Franz ficou um pouco surpreso, mas logo se recompôs:
— Como desejar. Garantirei que nada lhe aconteça.
Lá embaixo, duas figuras com capacidades sobre-humanas incompreensíveis se enfrentavam. Após derrubar Krahi rapidamente, o homem mascarado agora observava Krai com atenção redobrada.
— Pode-se chamar isso de Defesa Absoluta contra Recuperação Hiperativa — comentou Franz.
Os ataques do homem mascarado eram invisíveis. Ele não usava relâmpagos nem fogo. Eles só conseguiam acompanhar o fluxo do ar e tentar entender que tipo de poder ele usava graças às nuvens de poeira. Se o ar estivesse limpo, não teriam a menor pista.
Krahi estava caído atrás de Krai. Ainda segurava seu cajado, mas seus membros estavam retorcidos de formas que não deveriam estar. Krahi e Murina haviam lutado lado a lado, então ela torcia para que ele saísse vivo dali.
Foi então que Franz repassou uma mensagem recebida de um guarda:
— Alteza Imperial, solicitamos permissão para mobilizar nossas forças. Apesar de que formar uma linha de defesa em tão pouco tempo não será fácil.
— Malditos Kreatianos. Eles recusaram nosso pedido por mais guardas mesmo depois de termos avisado que algo poderia acontecer!
— Os guardas que estão conosco foram posicionados pela arena. A Raposa não vai escapar.
— Muito bem. Mas, se decidirem voar, então não há nada que possamos fazer a respeito — disse Franz, embora claramente não gostasse de admitir isso.
As pessoas contra quem Murina havia lutado na noite anterior provavelmente eram apenas peões, mas ainda assim mostraram a força da Raposa. Os soldados de Zebrudia eram os melhores, mas a Raposa tinha, entre outras coisas, a vantagem numérica. Ela acreditava que esse duelo estava acontecendo porque o Mil Truques havia manipulado os acontecimentos para isso.
— Também solicitamos ajuda aos outros desafiantes — acrescentou Franz. — Embora eu não saiba quantos estarão dispostos a cooperar.
— Não se preocupe. É bem provável que tudo isso esteja conforme o plano do Mil Truques.
— O que quer dizer com isso, Alteza Imperial?!
— Basta assistir com atenção. Se eu estiver certa, ele tende a ser um pouco… exagerado.
Mesmo assim, ela ainda achava tudo aquilo um exagero, se isso realmente fazia parte de seu Desafio.
— Entendo. Já estava com a sensação de que tinha algo errado — disse o homem mascarado com uma voz retumbante. — Aquele não parecia o tipo de homem que declararia guerra contra nós. Mas você é o verdadeiro, não é? Não importa. É só mais um obstáculo que eu preciso eliminar.
O Mil Truques não respondeu. Apenas sorriu. Sem demonstrar a menor preocupação, encarou o homem mascarado diretamente, criando um contraste marcante entre os dois. Após um breve momento, disse:
— Primeiro, deixe-me começar pedindo desculpas. Nunca imaginei que algo assim pudesse acontecer.
Ele olhava para o homem mascarado, mas a natureza de suas palavras levou Murina a acreditar que elas eram direcionadas a Krahi.
O homem deu um passo cauteloso para trás. Sua voz, agora baixa e cheia de desprezo, respondeu:
— Um ou dois de vocês não fazem diferença. Arrependa-se da sua tolice… e morra.
— Não fique tão bravo. Eu cometi um erro. Fui meio bobo mesmo. Mas me escute, o jeito como você administra sua organização também é parte do problema aqui.
— O quê?!
Os céus se iluminaram. Um clarão resplandecente, mais intenso que qualquer raio anterior, atingiu não o homem mascarado, mas o próprio Mil Truques. Murina arfou. Franz ficou em choque. O homem mascarado recuou um passo. No entanto, Krai permaneceu impassível mesmo após receber o que parecia uma punição divina. O braço de Krahi, que estava erguido, caiu frouxamente.
— Eu vou pedir desculpas, então poderia me perdoar? — continuou o Mil Truques, como se absolutamente nada tivesse acontecido.
— Hm. Entendo — disse o homem mascarado, com a respiração ofegante. — Você é bem diferente do falso. Mas será que consegue manter a calma depois disso? — disse, sacando sua espada.
— Como ele pode estar com a Chave da Terra?! — exclamou Franz, com a voz trêmula. — O Mil Truques é quem devia estar mantendo ela segura!
— Franz, ordene aos Magos que assumam posição defensiva! — gritou Rodrick.
Será que não era aquela Espada Proteana que ficava balançando isso como se fosse um brinquedo?, pensou Murina, mas de jeito nenhum podia dizer aquilo em voz alta.
Devia ser algo realmente perigoso, ou seu pai não teria se levantado da cadeira e começado a dar ordens.
— Se o que lemos for verdade, evacuar agora não vai adiantar! Parem aquele homem ou esta terra poderá ser destruída!
Murina estava impotente. Apesar de todo o seu treinamento, não havia nada que pudesse fazer. Justo quando começou a cerrar o punho de frustração, um dos guardas imperiais entrou correndo na tribuna.
— Capitão, estamos sendo atacados! — disse, ofegante. — Invasores com máscaras de raposa. E a Princesa Murina!
Franz imediatamente olhou para Murina, que apenas piscou, surpresa. Quando o guarda conseguiu respirar normalmente, fez seu relatório direito:
— A, hã, falsa Princesa Murina está enfrentando os invasores!
Havia outras crianças na família imperial, mas Murina claramente destoava das demais. Era frágil, raramente fazia aparições públicas e mantinha o contato com outras pessoas no mínimo possível. Não possuía a habilidade marcial que se esperava de membros da sua família e era a única entre os irmãos que não demonstrava qualquer talento em especial.
Pra completar, ainda recebia tratamento especial do imperador. Ele sempre designava os melhores guardas imperiais para protegê-la e a levava com ele para conferências. Em Zebrudia, fraqueza era um pecado — mas o imperador abria uma exceção pra ela.
Por isso, era natural que a raposa a escolhesse como alvo.
Era difícil desestabilizar um país poderoso que construiu sua prosperidade na era dourada da caça a tesouros. O Imperador Rodrick era uma figura inabalável. Tinha à disposição alguns dos melhores guardas do império — e ele mesmo também era perigoso; assassiná-lo teria um custo altíssimo. E mesmo que conseguissem, um herdeiro formidável estaria pronto pra assumir seu lugar. O novo imperador poderia unir o povo, enfurecido pela perda do líder, e obliterar a enfraquecida Fox.
Foi assim que a princesa imperial acabou na mira. Se ela fosse morta, o povo voltaria os olhos para o pai, que havia falhado em protegê-la. Isso mostraria a força da Fox e racharia os alicerces de Zebrudia. Eles escolheram atacar no momento em que sua proteção estaria mais fraca — enquanto o chefe executava o outro plano.
A segurança no Festival do Guerreiro Supremo era escassa, e a família imperial não tinha muitos guardas consigo. Normalmente, o público atrapalharia um ataque desse tipo, mas todos estavam hipnotizados pelo chefe. Eles teriam o máximo de efeito com o mínimo de esforço.
Ou pelo menos era isso que imaginavam.
****
— Você tá brincando comigo…
— Matar, matar?
A Fox havia fechado a distância num instante e atacado com uma espada curta, mas ela havia desviado o golpe, com uma expressão estranha no rosto. Em sua mão pálida, estava uma espada que ela havia pegado de um dos guardas caídos.
Pensando bem, isso já parecia suspeito. A quantidade e qualidade dos guardas não era o que se esperava ao redor de uma VIP como a princesa imperial.
— Ninguém disse que ela sabia manejar uma espada.
— Ouvi dizer que o Mil Truques deu umas aulas pra ela. É por isso que não colocaram mais proteção?
Os guardas estavam todos no chão. Tudo o que restava era matar a princesa imperial — e eles eram três contra uma. Mesmo assim, ela ainda estava de pé.
O assassino só havia bloqueado um único golpe, mas o braço já estava dormente. O fato da princesa imperial conseguir gerar tanta força apesar de seus braços esguios só podia ser resultado de material de mana.
Os assassinos haviam priorizado errado. Com o elemento surpresa, deveriam ter mirado nela primeiro — não nos guardas. Não deviam ter dado espaço pra ela reagir. Mas agora era tarde demais para arrependimentos. Podiam ter evitado isso, mas sem Galf, sua rede de informações estava deficiente.
— A gente não pode dizer pro chefe que nem conseguiu matar a princesa imperial — disse um dos assassinos aos colegas. No mesmo momento, dois deles avançaram de uma vez só para um ataque em pinça. A princesa girou sobre os calcanhares. Um novato tropeçaria tentando uma manobra dessas, mas ela se movia quase como se estivesse dançando.
Os assassinos atacaram com força total, mas ela desviou de ambos os golpes. Girar daquela forma normalmente só deixaria alguém vulnerável, mas aquele movimento estranho conseguiu repelir os dois ataques.
— Matar, matar, matar.
Nada em sua capacidade de rastrear visualmente os oponentes, força ou movimentos treinados indicava que ela era alguém acostumada a ser protegida. Além disso, seus golpes não tinham a menor hesitação de um amador, e seus olhos claros não demonstravam medo algum. Se dessem uma brecha, ela iria aproveitar — e acabar com eles. Que papo era aquele de que ela era medrosa e sem talento?
A princesa abaixou a postura e então avançou, um brilho de intenção assassina nos olhos.
— Matar, matar?
O assassino encontrou sua lâmina com a dela e conseguiu bloqueá-la. Uma série de choques metálicos ecoou ao redor, cada troca um fardo a suportar. E pra piorar, cada golpe dela vinha mais forte que o anterior. Será que ela ainda nem estava lutando sério? Mesmo quando atacada pelos pontos cegos, ela desviava como se tivesse olhos na nuca ou algum outro talento escondido. Não podia ser humana, aquilo.
Então, ouviram alguém estalar os dedos. Esse era o sinal. O assassino bloqueou um golpe e recuou. Por um breve instante, viu os olhos da princesa se arregalarem antes de ela ser engolida por chamas negras. Sem soltar um grito sequer, ela foi tomada pelo fogo — resultado de uma magia lançada por outro assassino.
— Se até uma princesa da família imperial é capaz disso… — disse um deles, ofegante.
— Mas a missão foi cumprida. Vamos recuar—
Antes que o assassino pudesse terminar a frase, a princesa em chamas cambaleou pra frente e se jogou contra um deles.
— MATAR!
— O quê?! Aquilo era uma magia avançada!
— Matarmatar matarmatar matar…
A princesa se sentou sobre o assassino caído e o socou repetidamente antes de se levantar. Era como algo saído de um pesadelo. O cheiro de carne queimada era forte. Ainda envolta em chamas, e agora sem empunhar uma lâmina, a princesa atacou outro dos assassinos. Seus olhos brilhavam no meio das chamas negras.
— Isso não pode ser humano — disse um deles.
Será que os rumores sobre sua mediocridade eram só fachada? O império estava escondendo isso o tempo todo?
— Recuar! A gente vai recuar!
Não havia esperança pro que estava no chão. Não dava pra carregá-lo e ainda escapar com vida. Os assassinos correram o mais rápido que podiam.
— Matar. M-Ma-tar. Gill. Gillgillgill. Ki. Il.
Como ela ainda conseguia se mover? A massa de chamas negras rugia enquanto os perseguia.
Eu estava começando a pensar que, dessa vez, a gente estava realmente ferrado. Permaneci na arena cada vez mais perigosa, determinado a cumprir minha obrigação de me desculpar. Eu estava sem Anéis de Segurança. Krahi, a origem do disparo que drenou meu último anel, estava desmaiado atrás de mim. Será que eu tinha feito algo pra ele me odiar?
Mesmo sem os Anéis de Segurança, eu não podia recuar — ainda não tinha me desculpado. Eu não estava ali pra lutar, estava ali pra implorar de joelhos! Estava ali pra oferecer um pedido de desculpas sincero, direto do coração! Conseguir atacar mesmo depois de ver minha humilhação patética era algo que pouquíssimas pessoas — quer dizer, não, muita gente conseguia fazer. Ainda assim, fugir não era uma opção, porque eu era imbatível em levar facada nas costas.
Eu ainda não tinha me ajoelhado, mas minha aura arrependida fez a voz do Presidente do Clube de Fãs da Máscara de Raposa (nome provisório) tremer.
— Hm. Entendo. Você é bem diferente do falso. Mas será que consegue manter a calma depois de ver isto?
O presidente sacou sua espada. Só isso já invocou um vendaval em questão de segundos. Levei as mãos aos olhos pra me proteger da poeira e das rajadas cortantes. Segurando a lâmina com o fio voltado para trás, o presidente a ergueu com o lado chato voltado pra mim, exibindo um padrão geométrico que eu reconhecia. A Relíquia que aterrorizava o império — Chave da Terra.
— Esta terra será arruinada. Que suposição ridícula, a ideia de que ninguém seria capaz de controlar o poder dessa Relíquia.
Percebi que a espada tinha invocado um ciclone, e só nós dois estávamos dentro dele. O vento uivante, a areia sacudida, e a força bruta nos isolaram num mundo à parte. Só que, depois de brincar com tantas Relíquias — espadas inclusive —, eu podia afirmar que ele não estava usando nem um pingo do poder dela.
— Vejo que você não é totalmente ignorante. Estaria certo se achasse que eu nem ativei a Chave da Terra.
Cadê aquele papo todo de que a Relíquia era inativável? E por que ninguém vinha me ajudar?
— Essa Relíquia já fez mais de uma civilização cair de joelhos. Só uma fração de seu poder devastador é mais do que suficiente pra obliterar essa cidadezinha!
É, mas o que essa cidade fez pra você, cara?
Beleza, a Sora tinha feito besteira ao me confundir com o chefe dela e tudo mais, e é verdade que eu também ajudei a bagunçar as coisas, mas o Kreat não tinha nada a ver com isso.
— Chega! Isso não leva a nada! — eu disse. — A culpa foi minha. Eu admito que errei, então vamos seguir em frente. Não foi por mal! Me desculpa! Aliás, me desculpa muito mesmo!
— Por que você insiste…
Levantei o olhar e vi que o presidente do clube continuava o mesmo de sempre. Parecia que pedir desculpas não ia adiantar, então eu precisava mudar de abordagem. Eu não fazia ideia de como ele tinha conseguido a Chave da Terra dele, mas eu também tinha uma. Não achei que conseguiria intimidá-lo, mas se os impulsos destrutivos dele estavam ligados àquela Relíquia poderosa, talvez ver outra igual fizesse algum efeito.
Saquei minha Chave da Terra e a apontei direto pra ele, fazendo-o congelar.
— Que coincidência — eu disse. — Eu também tenho uma. E, só pra constar, a minha está carregada.
A reação do presidente foi clara como o dia. Cada parte dele tremia.
— O quê? Impossível — ele sibilou. — Como?
Nada de impossível. Eu tinha uma, e era isso. Não era incomum existirem várias instâncias da mesma Relíquia. Mesmo com Relíquias superpoderosas, embora fosse mais raro, não era impossível.
Pela primeira vez, parecia que eu tinha feito a escolha certa, mas isso não me trazia muito alívio. Talvez fosse pela falta de Anéis de Segurança, mas se ele fosse me perdoar, eu queria que fosse logo. Não precisava desse furacão todo. Eu só queria que ele visse que a gente compartilhava uma ligação como donos de Relíquias e me perdoasse. Eu não estava ali pra brigar.
O presidente olhou da minha espada pra dele, eliminando qualquer margem de dúvida. Mesmo nome, mesma Relíquia. Me ocorreu que, contando com a que estava no museu, havia três dessas coisas. Não era todo dia que se via algo assim.
Foi nesse momento que o presidente murmurou com a voz fervendo:
— O-O quê?
A Relíquia que ele devia estar segurando não estava mais lá. Posso afirmar com certeza que não tirei os olhos dela. No momento seguinte, senti um cheiro agradável, algo que vinha sentindo bastante ultimamente.
O presidente abriu a mão e um pequeno objeto quadrado, dourado e marrom, caiu no chão. Ele olhou para aquilo com um olhar vazio. Eu me certifiquei de que não estava ficando maluco. Franzi o cenho, questionei meus olhos, duvidei do meu próprio cérebro. Era um pedaço de tofu frito. Um cubo lindamente preparado, com cara de delicioso, de tofu frito.
Que diabos está acontecendo? O que eu faço? Como se reage a uma coisa dessas?
— E-Ei, você deixou cair algo que parece gostoso — eu disse.
Ele não respondeu.
— T-Tenho certeza que é assim mesmo que a Relíquia funciona. Você não fez nada de errado — tentei justificar. — Tenho certeza que a Chave da Terra é só um item que vira tofu frito! Aposto que a minha faz a mesma coisa!
Com um grunhido curto, o presidente levantou a cabeça devagar. Mesmo com a máscara cobrindo parte do rosto, aquela era a cara mais assustadora que eu já tinha visto. A parte de trás do meu pescoço arrepiou e, por instinto, comecei a me preparar pra me ajoelhar. Eu não tinha poderes e já tinha consertado muitos erros me humilhando. Pensar rápido nunca foi meu forte, mas me desculpar era uma habilidade que eu tinha aperfeiçoado.
Comecei a dobrar os joelhos, estendi as mãos à frente, abaixei a cintura e depois a cabeça. Já tinha feito isso dezenas — talvez centenas — de vezes, até treinado de vez em quando. Aquilo tinha tudo pra ser o pedido de desculpas mais bonito que eu já tinha feito… se meus joelhos não tivessem falhado no meio do caminho.
— Ah.
— Hm?!
Caí pra frente. Fechei os olhos ao ver o chão se aproximando rápido e estendi as mãos. Só que eu estava segurando a Chave da Terra com a mão direita. A lâmina foi devorada pelo chão e uma onda de choque se espalhou logo depois de seu desaparecimento.

***
A Maga do Fogo, Rosemary Purapos, o Inferno Abissal, tinha certeza de que sentira a terra gritar. Magos lidavam com forças ocultas aos olhos comuns. Detectar esse surto repentino não exigia alguém do calibre dela; qualquer um com um mínimo de aptidão mágica teria notado. Era algo vasto demais para um humano controlar plenamente, mesmo que fosse um Magus de Nível 8.
— Então essa é a Relíquia que disseram poder invocar calamidades? — disse Rosemary com um estalo de língua. — Que bagunça.
Levantou-se do assento onde estava bastante confortável e pegou seu cajado. O homem mascarado não estava brincando — aquela Relíquia realmente era capaz de dizimar o mundo. Mas por sorte, ela não era a única Maga habilidosa ali que podia enxergar a verdade por trás das palavras dele.
A força invisível penetrava a terra, fazendo o chão tremer. Pessoas gritavam enquanto a arena começava a sacudir. Aquilo não era um terremoto, e sim um prenúncio do que estava por vir.
Rosemary não conseguia ver através das nuvens de poeira ao redor do ringue, mas sabia o que tinha acontecido. O garoto tinha estragado tudo. Sabia formular táticas, mas talvez não fosse confiável para ir além disso. No fim, ainda era só um jovem.
Graças à sua vasta experiência, Rosemary conseguia perceber que a energia que percorria a arena era pura e translúcida. Era o mesmo tipo de energia que o mascarado havia canalizado ao atacar Krahi. Era justo supor que essa semelhança era o motivo de o mascarado ter escolhido aquela Relíquia específica. Assim como Krahi era potencializado por seu cajado, o mascarado havia escolhido uma ferramenta com a qual tinha afinidade.
— A barreira não vai aguentar — disse ela. — Não foi feita pra isso.
Gark se inclinou, tentando enxergar melhor. — Não consigo ver nada com essa poeira toda! Que diabos tá acontecendo aí?!
Então, outra onda de choque dispersou os detritos no ar, revelando duas silhuetas segurando o cabo de uma espada cravada no chão. Uma era sem dúvida o Mil Truques, e a outra era o homem mascarado.
Outra onda sacudiu a arena — pequenas rachaduras surgiram no chão e nas colunas. Ainda assim, Rosemary estava confiante de que as ondas estavam enfraquecendo. Isso só podia significar uma coisa — era o sinal dela.
— Não entrem em pânico! — gritou para os espectadores, que estavam prestes a mergulhar no caos. — O Mil Truques tá segurando! Ele tá nos dando uma chance de conter isso!
Se fosse liberado, o terrível poder da Chave da Terra sem dúvida destruiria não só Kreat, mas talvez o império inteiro. Isso não seria um desastre — seria um apocalipse. Mas ainda havia tempo. Aquela Relíquia era demais para um Nível 8 conter por muito tempo, mas aquele era o Festival do Guerreiro Supremo; havia centenas de Magos capazes nas redondezas. Eles não conseguiriam evitar todos os danos, mas podiam reduzir o impacto. E era exatamente isso que o Mil Truques estava fazendo.
Os que entenderam o que Rosemary quis dizer se abaixaram rapidamente e pressionaram as mãos contra o chão, resistindo à força destrutiva que pulsava sob seus pés. A Relíquia provavelmente não conseguiria manter aquele nível de emissão por muito tempo.
— Vou começar a evacuar o pessoal — disse Gark.
— Fique à vontade. Isso é trabalho pra Magos. A ousadia desse garoto, fazendo os mais velhos ralar desse jeito…
Rosemary observou Gark disparar para longe. Proteger pessoas não era exatamente o ponto forte dele, mas não era hora de ser exigente. O Inferno Abissal suspirou fundo e então fez algo que não fazia há muito tempo: reuniu todo o mana que conseguiu.
— Sigam o exemplo do Inferno Abissal! — Rodrick gritou para seus guardas. — Façam o que puderem pra minimizar os danos! Não precisam me proteger, agora vão!
Era difícil imaginar como as coisas podiam piorar. A Chave da Terra era uma arma de energia que, ao ser ativada, absorvia energia das linhas de mana próximas e então a liberava como força destrutiva. Até então, ninguém sabia ao certo como a Relíquia era usada. Ao que parecia, carregar a espada era difícil, mas ativá-la era simples.
Rodrick se levantou de seu assento e agarrou o corrimão, inclinando-se enquanto observava intensamente a cena abaixo. A espada brilhava enquanto o Mil Truques e a Raposa a seguravam. Como imperador de uma grande nação, Rodrick jamais podia perder a compostura. Até hoje, nunca havia deixado as emoções o dominarem, nem nos momentos mais difíceis. Mas agora, pela primeira vez na vida, sentiu uma queimação estranha dentro da cabeça.
— Malditos… Malditas raposas — rosnou. — Vocês não têm consciência?
O último resquício de racionalidade revelou a identidade daquele sentimento — era fúria. Durante todas as negociações clandestinas que enfrentou, a tentativa de assassinato, até mesmo ao descobrir a cópia de sua filha, ele havia suprimido essa emoção. Mas aquilo era demais.
Por conta da natureza secreta da organização, o império nunca pôde dedicar muitos recursos para combater a Fox. Precisavam de uma justificativa apropriada pra uma ação desse tipo. Zebrudia podia até ser uma monarquia absoluta, mas se um grupo não tivesse causado danos evidentes, nem o imperador podia usar sua autoridade para esmagá-los sem sofrer represálias.
Mas isso… isso estava além do perdão.
A chave cintilava. Segundo os registros, isso significava que estava com energia total. Uma Chave da Terra funcionando no máximo usaria as linhas de mana para alterar a paisagem ao redor. Esmagaria montanhas, afogaria continentes e muito mais.
Os textos da era do artefato original diziam que ele jamais fora usado em capacidade máxima. No entanto, de acordo com o Departamento de Investigação dos Cofres, aquela era havia sido encerrada de forma abrupta por um uso total da Chave da Terra. O que implicava que ninguém sobreviveu para escrever sobre o evento que abalou o mundo.
Rodrick não achava que a Raposa Sombria de Nove Caudas fosse tão longe. Eles não estavam apenas dispostos a derrubar uma nação — não tinham escrúpulos em alterar o próprio rosto do planeta. Eram inimigos de todos os seres vivos. Era só um único golpe que estavam tentando desferir, mas um que não podia ser permitido sob nenhuma circunstância. Era preciso um ódio horrendo para estar disposto a destruir o mundo — incluindo a si mesmo.
Se soubesse que eles estavam planejando algo assim, Rodrick não teria adotado uma abordagem tão reticente. Mesmo que isso significasse arrasar Kreat e ser censurado pelas outras nações, ele teria usado qualquer meio para eliminar a Fox.
Inspirou fundo, contendo a raiva em chamas dentro de sua mente. Técnicas como essa não serviam para apagar sua fúria, mas sim para transformá-la em ódio frio. Estreitou os olhos e encarou o homem mascarado, que segurava o cabo da lâmina. Rodrick cerrou os punhos com tanta força que as unhas cravaram na carne, fazendo sangue escorrer. Mas a dor, o tremor, os gritos — nada disso o alcançava.
— Eu vou te esmagar. Vou te massacrar, Fox. Vou revirar cada maldita folha de grama até ter certeza de que todos vocês estão mortos.
Fox não era o único jogador disposto a ser implacável.
Num instante, a raiva de Caelum Tail foi substituída por perplexidade. Ele mal conseguiu resistir à onda de choque inicial, então agarrou a chave e canalizou mana nela ao mesmo tempo. Usou seus poderes para contra-atacar as forças destrutivas da Relíquia, na esperança de suprimi-la, nem que fosse só um pouco.
Foi atingido por um impacto brutal como nunca havia sentido antes. O Mil Truques, também segurando o cabo, ergueu os olhos para ele, mas não parecia estar tentando parar a Relíquia. Devia ter sido um milagre o que permitiu que ele resistisse ao primeiro golpe. Se tivesse sido arremessado para longe, a terra já poderia ter sido destruída nos poucos segundos extras que ele levaria para se recompor. Era esse o nível de devastação que a Chave da Terra podia provocar em tão pouco tempo.
Caelum não podia se dar ao luxo de prestar atenção em mais nada. Tudo o que podia fazer era tentar conter a Relíquia e encarar o homem à sua frente.
— V-Você! — rugiu Caelum. — O que foi que você—?!
— Hã? O que foi que eu…? — respondeu o outro, arregalando os olhos, mas mantendo a calma apesar das correntes destrutivas ao redor. Esse era o privilégio de quem usava a Chave da Terra. Esse homem estava parado bem no olho do furacão.
Então aquele era o Mil Truques! Um homem completamente divorciado da sanidade! Caelum queria estrangulá-lo, mas não podia se dar a esse luxo. Se perdesse o foco por um segundo que fosse, seria lançado longe.
A Relíquia começou a brilhar, sinal de que estava em potência máxima.
— Droga! Você! — rosnou entre os dentes. Segurando a espada com força, a energia fluiu de suas mãos para o resto do corpo. Sentia como se fosse se despedaçar. Com seu poder e sua mana, sensações como essa pareciam coisa do passado. Uma dor aguda perfurou sua cabeça, suas mãos queimavam, mas ele dedicou corpo e alma a manter o controle da Relíquia.
Nada disso teria acontecido se tudo tivesse saído como planejado. O objetivo final da Fox era a destruição da civilização — mas essa morte vinha com a promessa de renascimento. A calamidade agora à espreita era muito maior do que aquilo que a Fox queria. Era para ser uma carta na manga — uma que eles sequer pretendiam usar. Só mostrar já seria o suficiente para intimidar seus inimigos.
Aquele homem não podia estar são se estava disposto a usar uma arma como essa. Ele queria trazer o fim do mundo?
— Eu só… Eu só tentei me humilhar, só isso — disse ele.
Caelum estava vulnerável a qualquer ataque, mas o Mil Truques não fez menção de atacar. Mas seria tolice achar que ele havia ativado a Relíquia apenas para matar Caelum.
— Se humilhar?! Do que você tá falando, seu maluco?!
O que ele queria dizer com isso? Como podia estar tão calmo depois de praticamente convidar o fim do mundo? Caelum simplesmente não conseguia compreendê-lo. Krahi era forte, mas no fim das contas, era só um homem de coragem. Esse cara… era outra história.
— M-Mas acho que você também tem um pouco de culpa nisso — disse o Mil Truques. — Olha, não tenho nada contra vocês, então vamos com calma…
Por quê?! Por que ele não parava a Relíquia, então?! O mundo inteiro podia estar em jogo! Se não o mundo, pelo menos todas as nações daquela região. As linhas ley haviam mudado muito ao longo do tempo, então não dava pra saber até onde os danos se espalhariam, mas havia potencial para milhões de vítimas — ou mais.
Os Grieving Souls eram conhecidos por sua intensidade, mas isso não explicava essa insanidade. Aquele homem era um lorde entre os demônios, disposto a apagar a Fox, seus aliados e toda a civilização. A expressão vazia e simples dele agora aterrorizava Caelum.
O Mil Truques olhou para a espada, para as próprias mãos, depois para Caelum. Parecia levemente surpreso.
— Foi mal por tudo isso aí — disse ele.
Os Grieving Souls já haviam superado uma porção de situações desesperadoras. Às vezes enfrentando monstros, outras vezes fantasmas, às vezes humanos, e às vezes só as próprias circunstâncias em que se encontravam. Seu bem mais precioso ao longo de tudo isso sempre foi o bom senso.
Quando a poeira baixou, Sitri avaliou a situação e se pôs de pé num salto.
— O Mil Truques tá contendo a Relíquia! — gritou. — Por favor, ajudem ele! Estamos correndo um perigo enorme! ENORME!
— Então mexam a bunda! — completou Liz com a voz estridente. — Não vamos deixar o Bebê Krai segurar essa sozinho, cacete!
Despertados de volta à realidade, os Magos dos Primeiros Passos começaram a agir.
— Pelo amor de Deus, irmão! — resmungou um certo mago.
Um som de ranger ecoou na arena que, supostamente, era reforçada. As ondas de choque pulsavam como um coração batendo — como se uma grande besta estivesse prestes a acordar. Qualquer um conseguia ver que as coisas não estavam boas. Com o Inferno Abissal liderando a investida, os Magos começaram a agir — mas teriam que aproveitar cada segundo que ainda restava.
—O Mil Truques está segurando a Fox! —gritou Sitri, enfatizando cada palavra. Seus olhos rosados vasculhavam a arena, até se fixarem no homem mascarado e no líder, ambos segurando a espada.
Antes que a nuvem de poeira surgisse, o mascarado estava com a Relíquia em mãos, o que dava a impressão de que ele a havia ativado. Mas Sitri percebia que não era o caso. Ativar uma Relíquia tão poderosa na frente de tanta gente era arriscado demais, e a Raposa Sombria de Nove Caudas não tinha motivo algum para usá-la ali. Além disso, mesmo àquela distância, era possível perceber que Krai parecia ter o controle mais firme da espada.
Sitri pegou todas as poções de mana que tinha e as colocou sobre uma cadeira. O cabelo de Lucia flutuava levemente, resultado do poder imenso que ela estava invocando. Com as mãos pressionadas no chão, uma enxurrada de mana desceu para o solo e começou a enfrentar as ondas de destruição.
Era uma corrida contra o tempo, e nenhum dos lados parecia entender totalmente o que estava acontecendo. Venceria quem conseguisse direcionar o fluxo da situação — e a Fox não podia sair impune com seus planos!
—Vou distribuir essas! —anunciou Sitri.
—Vai nessa —respondeu a irmã.
—Ah! Eu vou também! —rugiu Luke.
—É, Luke, melhor você ficar aqui e conter a destruição —disse Liz, segurando Luke pelo braço. Aquilo era uma simples questão de dividir funções. Luke podia quebrar quase qualquer defesa, mas não era exatamente útil numa situação como aquela (Sitri duvidava que a espada dele fosse útil diante daquela energia pulsante).
Lucia, Ansem e os outros Magos do clã faziam de tudo para conter a destruição. Se alguém estivesse prestes a atingir o limite, Liz provavelmente enfiaria uma poção de mana goela abaixo.
Com o chão tremendo, Sitri se virou e correu pelas arquibancadas, gritando o tempo todo:
—Isso é uma emergência, pessoal! O Mil Truques está impedindo a Fox! Ajudem ele ou estaremos em grande perigo!
De joelhos, ouvi os estrondos e gritos ao redor. Segurava a Chave da Terra, que ainda brilhava e emanava um poder muito maior do que qualquer outra Relíquia que já usei. Sua força era evidente até mesmo pros meus sentidos embotados — e provavelmente pra qualquer um por perto.
Eu tinha falhado. Não era meu primeiro erro, mas nunca antes tinha ativado uma Relíquia tão perigosa. Diante de mim, o presidente do clube também segurava o cabo. A máscara impedia que eu visse os olhos dele, mas os dentes cerrados diziam que ele estava no limite.
Respirei fundo e falei:
—Calma, calma, vamos nos acalmar. É isso que a gente faz nessas horas. Primeiro, vamos avaliar a situação.
Levantei o olhar e vi que o coliseu inteiro tremia violentamente. Eu não conseguia sentir, mas dava pra perceber só de olhar que a coisa estava feia. Pra piorar, a energia que pulsava da Chave da Terra não parecia diminuir.
O que eu faço? Qual seria a melhor escolha? Nesse ritmo, algo terrível podia acontecer com Kreat. Poxa. Foi por isso que eu disse que não deviam me dar essa Relíquia.
—Vai ver essa aqui também vira tofu frito —sugeri.
O presidente do clube soltou um grunhido, quase um rosnado.
—Ei, tô falando sério —disse, agarrando minha última esperança. —Como foi que você transformou a outra em tofu frito?
O som que ele fez parecia ter vindo direto do inferno. Acho que ele nem tinha mais forças pra falar.
Hmm.
Se fossem a mesma Relíquia, então essa também devia poder virar tofu frito. Queria soltar as mãos e testar umas coisas, mas elas estavam coladas na Relíquia. E com as mãos do presidente do clube sobre as minhas, nem levantar eu conseguia. Nada estava indo do meu jeito.
Tá vendo isso, Vossa Majestade Imperial? Isso é o que chamam de azar.
Lutei contra a vontade de chorar e fiz uma sugestão hesitante:
—Desculpa mesmo por isso tudo, mas será que dá pra você sair daí? Quero tentar umas coisas.
—O quê?!
Eu não fazia ideia do motivo de estar bem, enquanto o presidente do clube parecia estar sofrendo horrores. Mas parecia que ele não ia sair do caminho. Ainda assim, apesar de tudo, eu era Nível 8. Tinha que fazer alguma coisa.
Minha experiência com Relíquias era vasta. Era a única coisa em que eu superava meus amigos de infância. Tinha certeza de que podia fazer algo pra conter aquilo. Escolhi acreditar em mim mesmo — e confiar nas horas que passei lidando com Relíquias. Fechei os olhos e me concentrei, focando totalmente na espada.
Foi então que senti algo quente no rosto. Abri os olhos de repente e vi o presidente do clube cuspindo sangue. O cheiro de ferrugem invadiu meu nariz. Eu aguentava bem cheiros ruins, mas o jato virou um rio, e o sangue explodiu da boca dele. Ainda preso à Relíquia, não tinha como me esquivar.
—Ack! Augh!
—Hm?
O presidente do clube ergueu lentamente a mão esquerda — a que não segurava a espada — e a colocou sobre o punho. Foi aí que percebi que as luzes estavam com um brilho avermelhado, e o fluxo de energia pro solo tinha aumentado em comparação a antes.
Hm? Não… espera. Eu tô tentando conter isso…
Tentei conter a Relíquia, mas a luz só ficou mais intensa, e as vibrações, mais fortes. Pessoas eram arremessadas, gritos e berros vinham de todo lado.
Oh? Vai ver eu não consigo conter isso…
Aquilo parecia mesmo ser diferente de qualquer outro item que já tivesse usado. O presidente do clube estava prestes a desmaiar. Nem força pra ficar bravo comigo ele tinha mais, mas mesmo assim, continuava segurando a Relíquia. Ele queria tanto assim essa espada?
Espera… talvez seja culpa dele eu não conseguir controlar isso?
Desde o início, ele queria usar a Chave da Terra. A versão dele virou tofu frito sem explicação, mas isso não quer dizer que ele não quisesse usar a minha. Isso explicaria por que não consegui parar o fluxo de energia.
Felizmente, o presidente do clube parecia estar chegando ao seu limite. Ele queria usar a espada, eu queria pará-la, e nenhum de nós ia receber ajuda de fora. Me preparei.
— Uma disputa de força bruta, é isso? Então me mostra do que é capaz — eu disse.
O presidente do clube ficou confuso quando comecei a rugir. Apertei a espada com toda a minha força e tentei conter o dilúvio. A Relíquia brilhava como o sol, os tremores aumentaram, rachaduras surgiram no chão, o presidente do clube tossiu mais sangue. Parecia um mural do inferno.
A luz ofuscante me fez apertar os olhos. Eu não tinha mais Anéis de Segurança, então estava completamente desprotegido. Só me restava a determinação de não perder. Se fugir não era uma opção, tudo que eu podia fazer era seguir em frente.
A arena estava cheia dos membros do meu clã. Depois de aprender tanto com o Matadinho e fazer a Tino me acompanhar em tantas idas às compras, eu não teria cara de aparecer na frente deles se não conseguisse controlar isso.
— Para. Com. Isso — rosnei.
— Que força… — disse ele, com a voz tomada pela dor.
O fluxo de energia não diminuía nem um pouco. Achei que tivesse atingido o pico, mas ele continuava crescendo. Era difícil acreditar que uma espadinha fosse capaz daquilo. Jamais imaginei que o Clube de Fãs da Máscara de Raposa tivesse alguém melhor do que eu em controlar Relíquias. Eles eram mesmo um grupo de respeito. Eu achava que era o número um quando o assunto era brincar com— digo, lidar com Relíquias… mas o mundo é grande, e sempre tem alguém acima.
Mais uma vez, o presidente do clube cuspiu sangue. Sério, ele devia desistir disso e procurar ajuda. Se fosse comigo, já teria morrido com tanto sangue perdido.
Você tá mesmo tão desesperado pra usar isso?! Quem diabos é você?!
Reuni toda a força que pude. Então ouvi um estalo vindo de onde minhas mãos estavam. Abri os olhos. Um breve silêncio pairou, e então a Chave da Terra se despedaçou em mil pedacinhos.
O fim chegou de forma bem repentina. Os tremores que pareciam partir o mundo pararam quase que instantaneamente. A arena estava em ruínas. Rachaduras pelo chão e pelas paredes. Partes do teto desabaram. Escombros por toda parte. Mas Rodrick ignorou tudo isso.
— A chave se quebrou! Prendam esse homem! — gritou ele.
Seus guardas obedeceram imediatamente e correram para dentro do ringue. Rodrick não esperava que a espada fosse se desintegrar. Relíquias costumavam ser resistentes, e a Chave da Terra não devia ser exceção. Diziam que ela podia desviar golpes de espadões e sair sem nem um arranhão. Se ela se partiu, então esse foi o preço pelo poder brutal que acabou de liberar. Ainda assim, aquilo era uma boa notícia para o império — e para o mundo todo.
Graças à habilidade da Chave da Terra de funcionar como elemento dissuasor, o império nunca teve a chance de destruí-la. Mas se a Raposa queria tanto assim, a ponto de usar a Relíquia desse jeito, então a destruição dela era essencial. Diante das circunstâncias, o imperador teria que aceitar a perda.
O homem de máscara se levantou cambaleando. O sangue escorrendo da boca deixava claro o quão ferido ele estava. Não dava pra saber exatamente o que o machucou, mas com certeza houve uma luta em torno da Relíquia.
Logo depois, o Mil Truques tentou se levantar. Bambeou e caiu de joelhos. Devia estar no limite. Segurando o peito, o homem de máscara olhou para ele. O plano da Raposa falhou. A destruição foi contida, e a Chave da Terra não existia mais. Ele devia entender bem o quão ferrado estava agora. Isso, somado às feridas, tornava ainda mais assustadora a insistência dele.
No entanto, o Mil Truques não estava sozinho. Por pura sorte, as arquibancadas estavam cheias de gente talentosa. Graças a eles, o estrago não foi pior. Diziam que os melhores da Raposa eram tão fortes quanto caçadores de alto nível, mas aquele ali estava exausto, e seu plano tinha ido por água abaixo. Rodrick não ia perder um campeão — ia garantir que o bravo caçador fosse salvo.
Rodrick respirou fundo e, mais uma vez, bradou com toda a intensidade que conseguiu reunir:
— Capturem essa Raposa, custe o que custar! Eu realizarei o desejo de quem trouxer ele até mim!
Quando Caelum Tail percebeu o quão enrascado estava, já era tarde demais. A Chave da Terra tinha sido contida de algum jeito, mas isso era o único alívio que restava pra ele. Estava tonto de tanto sangrar, mas ainda conseguia avaliar a situação com clareza.
Sentia o corpo pesado. Os ferimentos eram profundos. Aquela dor e humilhação eram sensações que ele já não conhecia fazia tempo. Tudo soava distante, como se estivesse ouvindo os gritos e o alvoroço através de um filtro. Ele sabia que devia ficar alerta, mas já não tinha mais energia pra isso.
Pouco depois que Caelum se levantou, o Mil Truques também conseguiu ficar de pé. Finalmente, Caelum começava a entender a grandiosidade dos planos daquele homem. O Mil Truques se levantou… e então caiu de joelhos. Foi um movimento tão sincero, tão natural, que Caelum não conseguiu se segurar.
— Heh heh heh. HA HA HA!
Aquele jovem era aterrorizante. De verdade, alguém que inspirava medo. Expressões como “artifício sobre-humano” ou qualquer frase batida assim não eram o suficiente pra descrever. Aquele homem estava brincando com fogo infernal. As chances de sucesso eram mínimas, e o menor erro poderia fazer com que fosse acusado de traição. Podia até causar o fim do mundo.
Era o tipo de plano que devia ser rejeitado, independente de quem o tivesse elaborado. Isso se aplicava até mesmo à Sombra Sufocada de Nove Caudas — e qualquer pessoa normal nem imaginaria uma jogada dessas em primeiro lugar. É bem provável que os companheiros de Caelum nem acreditassem se ele contasse.
Aquele homem não era só um estrategista. Era um lunático.
Caelum estava encurralado. A Chave da Terra havia se despedaçado e não existia nenhum substituto. A operação havia fracassado e acreditava-se que Fox estava por trás da ativação da Relíquia. Eles haviam planejado mostrar apenas um fragmento do poder dela e usar isso como moeda de troca para pressionar as nações do mundo.
O que tinha acabado de acontecer, no entanto, não era um simples ato de intimidação. Se aquele homem não hesitou em usar uma ferramenta com poder apocalíptico, é porque estava mais do que disposto a morrer se isso significasse arrastar seus inimigos com ele.
Sem dúvida, isso mudaria a forma como os aliados do Mil Truques o enxergavam. Eles não conseguiriam mais olhar para ele da mesma forma. Ele havia até jogado fora o único meio de dissuasão que tinham!
Mas havia algo que Caelum não conseguia entender — de onde o Mil Truques tinha tirado aquela informação?
— Como?! Como diabos você descobriu isso?! — ele gritou.
— Urgk. Acho que vou vomitar — murmurou o caçador. Não dava pra saber se aquilo era uma piada ou não.
Os escritos que haviam informado Fox sobre a Chave da Terra não mencionavam nada sobre ela se autodestruir quando sobrecarregada. Não existia nenhum registro da Relíquia sendo usada em plena capacidade. Pelo que constava, os registros encontrados por Fox sugeriam que ela nunca havia sido usada, o que implicava que não havia como saber o limite máximo da Relíquia.
O timing também tinha sido perfeito. Caelum estava com apenas uma fração do seu poder quando a Relíquia se quebrou. Onde aquele homem conseguiu uma informação que nem mesmo a rede de Fox conseguiu alcançar?
Infelizmente, Caelum não tinha tempo para especular; ele estava em território inimigo e gravemente ferido — nada disso fazia parte do plano. Ele precisava sair dali de qualquer jeito, mas havia algo que queria resolver primeiro.
Logo quando ia dar um passo em direção ao Mil Truques, uma sombra caiu sobre ele.
— VOCÊ VAI TER QUE PASSAR POR MIM PRIMEIRO, DESAFIANTE!
— Hm?!
A voz era áspera, mas cheia de audácia. Caelum deu um passo para trás para evitar o impacto iminente. A poucos centímetros à sua frente, uma cratera se formou com o soco de um punho gigante envolto em uma luva dourada. O chão tremeu, rachaduras se espalharam.
Caelum clicou a língua ao ver quem era o intrometido — o antigo Guerreiro Supremo. Um homem que dedicou cada grama de seu mana material para fortalecer os músculos. Quando elaborou o plano original, esse era o homem que mais preocupava Caelum. Um exemplo perfeito do que acontece quando se junta talento com burrice.
— Supremo Forçudo… — murmurou Caelum.
O antigo Guerreiro Supremo respondeu com um passo firme e decidido. Criaturas feridas às vezes conseguem forças inesperadas, mas isso não o intimidava nem um pouco. Provavelmente, ele apenas seguia seus instintos — o que o levava por um caminho violento e destrutivo, onde nem a derrota nem a própria morte conseguiam detê-lo.
O Mil Truques teria que recuar. Por melhores que fossem suas habilidades, ele não tinha como enfrentar aquele brutamontes em seu estado atual. Vários caçadores pularam na arena. Vendo Caelum recuar, o Guerreiro Supremo deu um sorriso demoníaco e lançou um soco. Ele não tinha sua arma habitual, mas um golpe seu era o suficiente para derrubar qualquer caçador de alto nível.
— Acha que pode fugir?! — ele gritou.
Reunindo o pouco de mana que lhe restava e se movendo o mínimo possível, Caelum desviou de um soco movido por puro instinto. Normalmente, mesmo uma rajada de golpes não representaria ameaça para ele, mas naquele estado não conseguia nem se defender. Outro sinal da escassez de mana era a dor aguda que sentia na cabeça. Não conseguia nem manter o equilíbrio.
O Guerreiro Supremo começou a desferir socos menores, talvez tentando desgastar a energia de Caelum. O Fox avançou, então saltou no ar e se deixou levar por um golpe “leve”. Mesmo com suas defesas mágicas, sentiu um impacto que quase o despedaçou por dentro. Mas era exatamente isso que ele queria. A falta de raciocínio do Supremo era sua força, mas também poderia ser sua fraqueza.
Caelum caiu de pé, com as mãos no chão. Os olhos do brutamontes se arregalaram ao ver o que tinha acontecido. Caelum tinha sido lançado pelo ar e caído exatamente na entrada reservada para os competidores. Aquela seria sua rota de fuga. Ele correu o mais rápido que conseguiu. Sua cabeça latejava, sangue escorria dos lábios, e atrás dele podia ouvir os passos trovejantes do brutamontes e os gritos da plateia.
Então, o ar ao seu redor mudou, e todos os sons atrás dele desapareceram. Uma garota com uma máscara parecida com a dele apareceu diante de seus olhos — como se sempre tivesse estado ali. Ela usava um manto branco, imaculado, e de suas costas saía um rabo da mesma cor. Seu pequeno dedo indicador estava apontado para Caelum.
— Você é inimigo do Senhor Cautela — disse ela, deixando Caelum totalmente confuso. — Vou te ajudar a escapar. Da próxima vez, a vitória será minha!
Tradução: Carpeado
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