Grieving Soul – Capítulo 3 – Volume 7
Nageki no Bourei wa Intai shitai
Let This Grieving Soul Retire
Light Novel – Volume 07 – Capítulo 3:
[As Artimanhas do Mil Truques]
Apesar de ser assim todos os anos conforme se aproximava o Festival do Guerreiro Supremo, Gark ainda ficava surpreso com o clima festivo em Kreat. As ruas, grandes e pequenas, estavam absolutamente lotadas. Os portões da cidade estavam entupidos de recém-chegados. O fluxo de caçadores, mercadores e turistas de todas as partes tornava esse o período mais movimentado do ano para a cidade. Também era a época mais instável, fazendo com que alguns moradores locais decidissem ir para outro lugar durante sua duração.
— Movimentado como sempre — resmungou a velha Magus dentro da carruagem. — Quando vejo multidões de lixo como essa, me dá vontade de incinerar todo mundo.
Sentada de frente para Gark estava a mulher temida como o Inferno Abissal. Ela tinha as bochechas encovadas e dedos ossudos, mas suas íris cor de carmesim cintilavam como as chamas do inferno. No que dizia respeito à simples aniquilação em larga escala, ninguém em Zebrudia se comparava a essa bruxa. Ela também estava banida de participar do Festival do Guerreiro Supremo, já que certa vez destruiu a barreira que deveria proteger o público.
— Você tem um senso de humor cruel, Rosemary — disse Gark a ela.
— Admito — respondeu ela com uma risada baixa —, essa atmosfera pré-batalha não é ruim. Todo guerreiro é compelido pelo instinto a buscar ser o mais forte. Não acha que os participantes estão cada vez melhores? Ouvi dizer que a quantidade de material de mana em circulação tem aumentado.
— Mas a maioria dos Magi não são pesquisadores?
— Esse é um equívoco comum, senhor Gerente de Filial. Ir para o campo de batalha é uma ótima forma de avançar nas pesquisas. Se eu não tivesse sido banida, eu mesma estaria lá. Talvez a Associação dos Exploradores devesse protestar um pouco mais contra essa proibição?
Considere sua idade, sua velha bruxa, pensou Gark, soltando um suspiro. Mas, claro, não disse isso em voz alta.
O maior prêmio oferecido pelo Festival do Guerreiro Supremo era a glória. Alguém que já tinha alcançado o Nível 8 não deveria mais precisar disso. Gark até poderia simpatizar com ela se nunca tivesse participado do torneio, mas além de já ter competido, ela havia se tornado uma lenda.
Gark estava além da exasperação. Os Magi modernos eram bem mais tranquilos comparados aos do passado. Mas era só por comparação mesmo que a geração atual podia ser considerada calma.
— Você não precisa se preocupar, Rosemary. Quer você goste ou não, provavelmente vai chegar um momento em que precisaremos do seu poder.
— Heh heh heh. E aqui estamos, no Festival do Guerreiro Supremo. Esses pirralhos devem estar levando isso a sério se estão de olho em um prêmio tão grande. Vão fazer uma boa lenha. Uma pena que Telm não estará entre eles.
Apenas alguns dias antes, as investigações minuciosas da Associação dos Exploradores haviam conseguido identificar uma das pontas do rabo da raposa. Depois de revistarem os aposentos de Telm e Kechachakka, conseguiram descobrir qual funcionário da Associação havia colocado Kechachakka na lista. Utilizando uma Relíquia de valor incalculável, conseguiram decifrar um documento criptografado.
Essa operação atual parecia ser de uma escala sem precedentes para a Fox, o que também permitiu à Associação perceber sua existência. O império e a Associação não tinham muitas pistas, mas não precisavam de muito para justificar ir atrás de uma organização que já havia tentado assassinar o imperador.
A investigação forneceu duas frases-chave: “Festival do Guerreiro Supremo” e “Chave da Terra”. A primeira era bastante conhecida, mas a segunda era desconhecida para Gark. No entanto, o mesmo não se aplicava aos agentes do império. Quando Gark lhes entregou o relatório, eles entraram em ação imediatamente e até solicitaram a ajuda da Associação. No entanto, Kreat não era território imperial, o que limitava suas opções.
Rosemary sorriu ao ler o jornal.
— Veja só, Gark, meu garoto. Aqui diz que a taxa de criminalidade em Kreat caiu. Suspeito, não é? Mudanças de tendência nunca são um bom sinal — isso é o silêncio antes da tempestade. — O sorriso dela se alargou, e ela lançou um olhar afiado a Gark. — Muito ousado da parte daquele garoto quebrar a promessa. Desde que ele chegou à capital imperial, andam dizendo que eu me acalmei. Não espero que ele entregue informações de graça, mas vou ter que perguntar o que exatamente inspirou sua partida repentina.
A coincidência de timing era praticamente impossível. Entregar uma Fox já derrotada, para depois simplesmente partir rumo ao local do próximo plano, era um ato de descortesia. Mas Gark entendia por que o Mil Truques havia feito isso. O gerente da filial não sabia como Krai havia conseguido suas informações, mas sabia que os métodos de um estrategista batiam de frente com os de uma bruxa que resolvia tudo com fogo infernal. Sem contar que sua única contenção, o Contrafluxo, já não estava mais com ela.
— Aquele homem tem seu próprio jeito de pensar — disse ele.
— Hmph. Não vou carbonizá-lo. Não imediatamente, não enquanto ele tiver aquela irmã com complexo de irmão. Nada de bom sairia de uma batalha entre Maldição Oculta e Lucia Rogier, a Grande Magus. Ainda temos gente que estamos tentando recrutar para o nosso clã.
Lucia, alguém acabou de te insultar feio, pensou Gark.
Rosemary o encarou brevemente com seus olhos reluzentes antes de dar de ombros e dizer:
— Acho que devo isso a ele por causa de Telm. Não gosto, mas vou colaborar com ele só desta vez.
— Rosemary, você está se acalmando?
— Heh heh heh. Bem dito, Gark, meu garoto. — Houve um alvoroço do lado de fora da carruagem. Rosemary olhou na direção do barulho. — Caçadores têm cada um sua especialidade. As armações daquele garoto não são o que eu chamaria de normais. Não é só que ele tem ótimos companheiros, nem que consegue ver o futuro. É estranho, mas alguns talentos monstruosos simplesmente desafiam a compreensão.
Ela quase parecia estar falando consigo mesma.
Ainda não havia se manifestado, mas uma tempestade estava se formando no Festival do Guerreiro Supremo.
Agora que já tinha passado um tempo com eles, perguntei para a Touka o que achava do Clube de Fãs da Máscara de Raposa (nome provisório). Ela me olhou com certa dúvida e disse:
— Reconheço que são profissionais, embora um tanto esquisitos. Onde foi que você os encontrou?
Foi uma avaliação impassível. Touka era uma das poucas amigas que não me levavam ao pé da letra só porque eu era Nível 8. Não fiquei muito surpreso ao ouvir que o Clube de Fãs da Máscara de Raposa sabia o que estava fazendo. Eu tinha um bom faro pra gente.
— É uma longa história — eu disse pra ela. — Se vocês estão se dando bem, então tô satisfeito.
— Os inimigos de hoje são os amigos de amanhã. Mas o contrário também é verdade. Os Cavaleiros da Tocha já trabalharam com gente legalmente duvidosa antes, mas eu apreciaria ser informada desses detalhes com antecedência.
Tá, aqueles caras eram bem suspeitos mesmo, mas esse nível de ceticismo me pareceu bem grosseiro. Embora eu tivesse que admitir que a aparência durona deles provavelmente era o motivo da Sora ter sentido que não podia admitir o erro pra eles. Eu entendia o desejo dela de virar o rosto pra verdades desagradáveis, mas como o mais velho entre nós, senti que tinha que fazer algo pela sacerdotisa.
— Calma, Touka — disse Sitri. — Já conversei com você sobre isso. O Krai não tem problema nenhum em manipular criminosos pra se beneficiar. A possibilidade de você ter que trabalhar com foras da lei foi detalhada no seu contrato.
Touka afundou num silêncio rabugento. Quanto recurso será que a Sitri tava investindo nela? E que Krai era esse que ficava por aí manipulando criminosos? Eu sempre era o lado manipulado da história.
— Muito bem — disse Touka. — Se paga bem, eu topo. Usar o que temos disponível é um dos nossos princípios. Mas nenhuma oferta é boa o suficiente pra me fazer lutar contra a Espada Proteana.
Luke, você deve ter irritado ela de verdade.
Quanto mais forte o oponente, mais empolgado ele ficava, o que diminuía sua capacidade de se segurar. Ele não surtava nem nada, mas era revelador que fosse tão temido quanto a Liz. No momento, ele já tinha enjoado de ficar no alojamento como eu e saído com a Liz e outros. Provavelmente tava procurando alguém pra espancar.
Da próxima vez, não traz a maldita princesa junto!
— Esse foi só um encontro entre eu e alguns dos membros principais deles — continuou Touka. — Da próxima vez, vou trazer meu grupo e conversar com mais detalhes. Sei que devemos nos ajustar ao estilo deles, mas o que exatamente você espera conseguir?
— Certo, ahm, você pode levar o Luke e a Liz com você?
Touka não pareceu nem um pouco satisfeita. — Isso por acaso é uma das suas Mil Provações? — Todo mundo já tinha ouvido falar disso? — E quem é Ponta?
— Ahn… a princesa imperial de Zebrudia?
— Isso era pra ser uma piada?
O olhar gélido da Touka fez meu coração pular uma batida. Definitivamente não era o tipo de cara que se faz pra um cliente.
Bem, na remota chance de algo acontecer com ela, a gente vai se ferrar bonito. Cuida bem dela, tá?!
Sitri bateu palmas, sinalizando mudança de assunto, e disse:
— Agora, Touka, conseguiu a informação que eu pedi?
— Informação? — perguntei.
— Pedi pra ela investigar os outros participantes do Festival do Guerreiro Supremo. Se eu quiser vencer, tenho que fazer tudo o que for possível.
Ela estava mirando alto. Os oponentes em potencial incluíam gente como o Luke e a Lucia, e eu achava que uma classe geralmente não-combatente como a de Alquimista estava em desvantagem nesse torneio, mas ela não deixava isso desanimar. O sorriso encantador da Sitri arrancou um raro, embora meio forçado, sorriso da Touka.
— Nossa — disse ela — você me pede isso quando eu também vou…
— Isso não tem relação com essa transação — interrompeu Sitri.
— Muito justo. E nada é mais precioso do que uma cliente generosa.
Elas se davam bem, com certeza. Se ao menos os outros Grieving Souls tivessem metade da habilidade social da Sitri. Nem preciso falar do Luke e da Liz, mas apesar da aparência, a Lucia era bem tímida.
Touka endireitou a postura e mandou um dos seus buscar um dossiê. Ela o abriu sobre a mesa e falou como se estivesse nos contando um segredo.
— Hmm, bom, vamos começar pelo mais interessante. Chefe, o seu falso vai participar.
— Não, esse sou eu mesmo.
Como eu esperava, Touka me encarou boquiaberta antes de virar para os membros do grupo dela.
A nossa pousada não deixava nada a desejar. O quarto era espaçoso, bem ventilado e a comida era deliciosa. O banheiro era grande e a sala de estar, linda. Me joguei no sofá, lendo um jornal que tinha sido entregue direto no quarto, e soltei um grande bocejo. Tava tranquilo, mais do que o normal até.
Quando ouvi dizer que as coisas ficavam agitadas na época do torneio, eu tinha certeza de que seria arrastado no meio da confusão, mas a sorte aparentemente estava do meu lado. No entanto, isso deixou o nosso cortador de gente com tempo sobrando.
— Raaaah!!! Essa é minha nova técnica: Lâmina Seccionadora! MORRA!
— Cuidado! Luke, você vai quebrar a espada! Já te falei que isso é impossível com uma lâmina de madeira!
Luke e Liz estavam aproveitando a sala enorme pra fazer umas lutas simuladas. Eu ouvia o som extraordinário de uma espada cortando o ar, mas não ouvia passos. Quando começaram, eu disse que aquele barulho todo ia incomodar os vizinhos e destruir o quarto. Então eles começaram a lutar de um jeito que não causasse bagunça nem destruísse os móveis. Até passaram a chamar isso de treinamento furtivo.
Eu admirava a capacidade deles de se divertir com qualquer coisa, mas ainda achava que estavam perdendo o ponto. Não importa o tamanho, treinar combate não é algo que se faz dentro de um quarto de hospedaria. Por que não iam lá fora?
Arrastada pra loucura deles, a princesa imperial soltava gritos enquanto se esquivava de um golpe atrás do outro. Se fosse só pela aparência, dava pra dizer que ela tava melhorando em lidar com os dois. Ainda era tímida, mas seus movimentos não tinham nada a ver com quando nos conhecemos.
Enquanto isso, os guardas dela já tinham desistido de tentar conter a dupla selvagem. Devem ter percebido que linguagem humana não funciona com feras. O fato de a Princesa Murina ainda não ter sofrido nenhum ferimento grave provavelmente ajudava também. Claro, isso dito com a vantagem do retrospecto!
Liz soltou um gritinho agudo e curto. Uma espada quebrada atravessou e estilhaçou a janela. Completamente perplexo, tudo o que consegui fazer foi sorrir. Nem consegui entender qual tinha sido a trajetória da espada. Mal consegui acompanhar os movimentos da Liz — e com o Luke, então, nem se fala.
Se não fossem meus Anéis de Segurança, com certeza eu teria morrido ali. Ou será que não? Nenhum dos meus anéis foi ativado. Eu estava entre o Luke e a janela. Será que ele conseguiu fazer algo tão esperto quanto quebrar a janela sem me machucar?
Sentada em outro sofá, Lucia levantou os olhos do livro e gritou:
— Ei! Ficar à toa não é desculpa pra fazer besteira dentro de casa!
— Foi você quem desviou da minha lâmina partida?! — gritou Luke. — Muito bem, Lucia!
— Tenta de novo e vai ser mais do que sua lâmina que vai ser partida!
Oooh, foi a magia da Lucia que desviou.
Não percebi nenhum feitiço sendo lançado, mas deve ter sido o resultado do lançamento em alta velocidade que ela desenvolveu depois de conviver com os outros Grieving Souls. Isso é o que acontece quando você tem amigos de verdade que te incentivam a melhorar.
— E você, líder! — ela disse, olhando pra mim. — Por que ficou parado quando uma espada tava vindo direto na sua direção?!
— Porque eu tava parado?
— Aaargh!
Um sorriso surgiu no meu rosto quando percebi que talvez a Lucia realmente tivesse uma boa chance no Festival do Guerreiro Supremo.
— Senhor Krai — chamou Karen —, recebemos uma convocação de Sua Majestade Imperial. Imagino que não tenha problema se levarmos Sua Alteza Imperial por um tempo?
— Ah, claro. O treinamento dela está, uh… seguindo conforme o plano.
Não que eu tivesse algum plano específico. A partir daqui era só acumular experiência. Isso… e rezar pra que tudo desse certo! Eu considerava um bom sinal o fato de ela estar brincando com o Luke e a Liz. Nem a Tino conseguia fazer isso sem sair gritando.
— Hmm. Se me permite ser sincera, ainda não consigo entender o sentido dos seus métodos, mesmo depois de todo esse tempo. Mas vou repassar sua mensagem à Sua Majestade Imperial.
Ela está bem mais razoável do que quando a conheci.
— Maaas ser instrutor não é fácil — disse Luke enquanto voltávamos depois de deixar a Princesa Murina. — E ela ainda tá longe de ser chamada de forte.
— É, e ela continua fugindo de você — comentou Liz. — Mas já me acostumei, depois de lidar com a T.
Ela tinha se acostumado, mas não parecia estar fazendo nada a respeito.
— Mas eu prefiro não ter que me segurar, e não posso fazer isso enquanto estou ensinando.
— Luke, você mal ensinou alguma coisa pra ela! — repreendeu Lucia.
— Você vai poder lutar livremente logo, então pense nisso como um aquecimento — falei pra ele.
Peraí, então você ainda tá cortando a princesa imperial durante o treino? Não corta a filha do imperador, cara!
— E pra piorar — resmungou Lucia —, a Siddy anda usando um item estranho, e o Krai mais uma vez tá calado, fazendo o que quer, então o Ansem e eu temos que segurar as pontas como sempre.
A Sitri tá fazendo isso? É a primeira vez que ouço falar. E eu não gosto de ser colocado no mesmo saco que os malucos.
Enquanto nós quatro andávamos pelas ruas, vi um rosto familiar entre a multidão. Ele estava vestido de preto e não era particularmente alto, considerando os caçadores de tesouros, mas seu cajado distinto e os traços bonitos chamavam atenção.
Era o eu verdadeiro. Krahi Andrihee, o Mil Artes. Sem pensar muito, comecei a acenar. Que sorte a minha encontrar com ele de novo no meio de tanta gente. Será que ele se lembrava de mim?
— Ei, Krahi! Que bom te ver de novo!
Ele se virou. Como era de se esperar do verdadeiro, o movimento foi tão estiloso que fiquei encantado. O olhar dele sugeria que nosso encontro tinha sido uma surpresa muito agradável.
— Você realmente veio! — disse ele.
— Ahh, é aquele cara que a Siddy comentou — murmurou Liz.
Eu já tinha avisado pra não falarem besteira perto do Krahi. Acusar o cara de ser falso só porque nossos nomes eram parecidos era desnecessário. E, na minha opinião, ele era claramente o mais forte entre nós dois!
A multidão naturalmente se abriu pra ele. Isso era carisma de verdade. Que cara estiloso.
— Que coincidência! — disse Krahi, se aproximando de mim com um sorriso simpático. — Estava justamente me perguntando se nos encontraríamos novamente!
Se você não soubesse de nada, pensaria que ele estava falando com um amigo de décadas. Isso devia ser resultado das habilidades sociais absurdas dele. Esse homem era impecável.
Mas… quem é essa garota agarrada no braço dele?
Colada no Krahi estava uma garota de uns quinze anos. Tinha cabelo preto preso em maria-chiquinhas, usava um chapéu pontudo preto e carregava um cajado curto na cintura. O chapéu e o cajado indicavam que ela era uma Maga, mas isso contrastava com os babados da saia e o look todo estiloso.
Parecendo um pouco incomodado, Krahi a apresentou:
— Ah, essa é a Lusha Andrihee. Ela é uma Maga e minha… irmã adotiva? Também é minha aprendiz. Ainda não tem título, mas é bem talentosa.
Agora que sabia o nome dela, percebi que parecia com a Lucia, de certo modo. As características marcantes eram idênticas, no mínimo. Minha irmã ficou em silêncio, com a bochecha tremendo e o olhar frio como gelo. Essa coincidência era inacreditável. Não sei como descrever de outro jeito. Queria sair dali, mas ir embora sem ao menos dar um oi seria rude.
Respirei fundo e falei com a Lusha:
— Então você é irmã dele? Prazer em te conhecer. Sou fã do seu irmão mais velho.
Lusha sorriu como uma flor desabrochando e falou com uma voz doce como mel:
— Ahhh, então você é o imitador do meu onii-chan! Pode me chamar de Lusha! Sou a love-love-lover dele e futura noiva!
Tive que morder a língua pra não deixar escapar um som estranho. Virei e vi as sobrancelhas da Lucia tremendo. Ela já tinha perdido toda a razão, e isso com certeza ia acabar em desastre. Liz também tremia, mas era de tanto segurar o riso.
Lusha abraçou o braço de Krahi, apertando o peito contra ele, e disse animadamente:
— Meu irmão nunca, nunca, nunca vai perder pra alguém como você! Ele é legal, forte, inteligente e muito, muito gentil. Ele disse que quando eu for super-mega forte e uma Maga de primeira, vai se casar comigo!
Essa garota é uma peça.
Pessoalmente, eu não tinha nada contra ela, mas a expressão da Lucia passou de raiva pra total apatia. Isso não era bom.
— E-Ei, para com isso. — Com um olhar perplexo e visivelmente exasperado, Krahi repreendeu Lusha. Ele não parecia envergonhado, no entanto. — Desculpa por isso. A Lusha sempre age assim, dizendo que é minha irmã e tal. M-Mas ela não é má pessoa, por mais esquisita que seja. Agora, Lusha, peça desculpas. Isso foi muito rude.
Por que ela se diz irmã dele se não é?
Minha irmãzinha — que deixou de ser minha irmãzinha, mesmo já tendo sido minha irmãzinha — estava prestes a explodir. Quando a Liz perdia a paciência, a fala dela mudava completamente, mas a Lucia ficava muda quando estava com raiva. Lusha era uma chama de vela encarando uma nevasca vindo com tudo.
Lusha ficou brevemente confusa com Krahi, mas logo os olhos começaram a marejar.
— D-Desculpa. É que eu amo tanto meu irmão que perdi o controle…
Enquanto falava, ela olhava pra Krahi repetidamente. Não havia uma célula no corpo dela que conhecesse o conceito de vergonha.
Puxei a Lucia de lado e tentei acalmá-la.
— Relaxa, foi só uma coincidência — falei.
— Coincidência?! — ela gritou, com o rosto vermelho e o corpo tremendo. — Como isso pode ser uma coincidência?!
— Lucy, isso é hilário! — disse Liz.
— Nem um pouco!
Ela bateu o pé e, por algum motivo, lançou um olhar furioso pra mim. A garota que costumava me seguir por todo lado estava bem mais confrontadora, cortesia da Liz e da Sitri.
— Tá bom, a Lusha é bem estranha — falei —, mas não parece ter más intenções. Eu tenho certeza.
— Não tem?! Tem, sim, com certeza absoluta! Se não tiver, aí é que vai ser um problemão! Eu nunca falaria algo assim!
Claro que não falaria. Eu entendo. A semelhança entre elas era só no nome. Embora o Krahi fosse mais forte que eu, se a Lusha não tivesse nenhum título, não parecia provável que fosse mais forte que a Lucia.
— É, uh-huh. Você nunca foi tão grudenta, nem quando era mais nova. Pode até ser aceitável pra uma criança agir assim, mas uma adulta?
— Hã? Ela não era? É mesmo, Lucy? Bom, você nunca usou roupas fofas como essas.
Gemeu, com o rosto corado, e levou as mãos à cabeça.
Infelizmente, as duas compartilhavam várias características marcantes. Lusha não parecia ser muito conhecida, mas se isso mudasse, ela e Lucia seriam comparadas o tempo todo.
— Ei, Krai — disse Luke, observando Lusha com atenção. — Conhecer a Lusha foi legal e tudo mais, mas cadê o meu falso? Eu faço parte dessa história?
— Eu já falei que eles não são…
Parei quando vi o Krahi, com a Lusha ainda pendurada nele, abrindo caminho pela multidão até nós.
— Está tudo bem com você? — ele perguntou à Lucia. — Você não parece bem. Tenho algumas poções, se precisar.
Pessoas com poder e carisma tendem a se preocupar naturalmente com os outros. O eu verdadeiro era realmente impressionante. Preciso anotar isso.
— Não, ela tá bem — respondi. — É só a multidão que tá afetando ela.
— Tem certeza que ela não ficou ferida por ver a gente tão coladinhos, que nem pombinhos? — Lusha perguntou com um certo orgulho.
— HM?!
Ah, não. Lucia tá encarando ela com aquele olhar de “vou te assassinar lentamente”.
Eu queria conversar mais, mas Lucia e Lusha juntas eram uma combinação perigosa. E pedir pra uma Lucia de mau humor carregar umas Relíquias seria suicídio.
— Desculpa, a gente tá meio apressado — falei.
— Ah, que pena — respondeu Krahi. — Queria apresentar vocês ao meu grupo.
Eu queria muito isso. Precisava conhecer as irmãs Smyat.
Arrastando Lusha atrás dele, Krahi olhou para a multidão e suspirou.
— Bem, tomem cuidado. Ouvi dizer que Kreat fica bem perigosa durante o Festival do Guerreiro Supremo. Os participantes estão especialmente em risco.
— Cuidado? — disse Liz. — Tá falando o quê, cara? Nenhum ladino vai conseguir derrubar o Krai Baby. Ele já tomou providências!
— Providências?
Na verdade, só joguei o problema no colo de outras pessoas. Krahi olhou pro meu sorriso cheio de significado vazio e acabou assentindo.
— Entendi. Parece que tem mais coisa rolando do que parece. Isso deve ser o destino. Se não se importarem, talvez eu possa ajudar?
Após o relatório do subordinado, Galf foi até um prédio na beirada de Kreat. Ao entrar, encontrou Sora Zohlo, a Donzela Sagrada da Raposa, cozinhando com um avental branco.
— Sora, o que significa isso? O que o chefe tá pensando?
— Isso tudo está de acordo com os desejos da Raposa Branca.
Sora já não exalava aquele ar místico de sempre quando usava sua túnica habitual. Um cheiro delicioso tomava conta da cozinha e caixas de madeira estavam empilhadas num canto.
— Por ordens da Raposa Branca — ela disse —, estou preparando tofu frito.
— Do que você tá falando? Tofu frito? O que isso tem a ver com alguma coisa?!
— Só a Raposa Branca conhece o plano completo.
Não havia brilho algum nos olhos da Donzela. O que será que tinha acontecido? Galf não conseguia entender. O sigilo era um princípio básico da Raposa. Ninguém jamais sabia o propósito total das ordens que recebia. Quando Galf ainda tinha menos caudas, também recebia várias ordens sem explicação nenhuma. Mas como sabotador, nunca teve motivo pra duvidar.
E agora estavam fazendo tofu frito?
— Vai envenenar o tofu? — tentou ele.
— Não. Fui ordenada a fazer tofu frito delicioso.
— O que o chefe tá planejando?
Sora apontou pra ele.
— Tente pensar por conta própria, Galf Shenfelder! Ou está desafiando a Raposa Branca?!
Foi a primeira vez que Galf viu ela assim. O rosto antes inabalável agora estava coberto de suor frio e ela parecia agitada.
— E-Esquece isso. Tudo está de acordo com os desejos da Raposa Branca.
Galf não viu outra escolha a não ser engolir suas objeções. Ele nunca tinha imaginado que existia uma base como essa em Kreat, mas a cozinha parecia relativamente nova. Não achava que uma Donzela tivesse sua própria fonte de renda, então isso só podia ter sido financiado pela organização.
— A propósito, Galf — disse ela, com certa hesitação —, pergunto só por curiosidade mesmo… como você encontrou esse lugar?
— Hmph? Isso é uma piada? A organização tem olhos em todo lugar.
— Se vocês são tão bons de visão, então como é que… ah, deixa pra lá. — Sora balançou a cabeça enquanto jogava um pedaço de tofu na frigideira. — Isso tudo é vontade da Raposa Branca. Olha, Galf, é assim que se faz tofu frito. Por enquanto, estamos usando tofu comprado, mas vamos aprender aos poucos a fazer o nosso. Foi ordem da Raposa Branca, então—ai! Nunca cozinhei antes…
Por que não contrataram alguém? Por que uma integrante sagrada e única da Fox estava sendo mandada fritar tofu? Era absurdamente estranho, mas Galf desistiu de tentar entender. Se foi o chefe quem ordenou, devia ser por algum propósito nobre.
Enquanto observava Sora se atrapalhar com a tarefa, ouviu-se uma batida repentina na porta. Aquilo era um esconderijo da organização — ninguém apareceria ali sem motivo. Galf se preparou quando a porta se abriu.
— Soraaa, tem uma coisa que quero te perguntar.
A mente de Galf congelou. Quem entrou foi um jovem de cabelos pretos. Mas não foi isso que o paralisou. Foi a voz dele — era a mesma do chefe.
— Chefe?
O homem se virou para Galf. Sora nem se mexeu, ainda segurando firme a frigideira.
O chefe piscou e falou com naturalidade:
— Hm? Ah, chegou em boa hora. Tenho uma missão pra você.
— Chefe, sua máscara! O que aconteceu com a sua máscara?!
Isso era absurdo. A Fox era uma organização secreta, e os chefes escondiam suas identidades como regra. Galf já tinha se encontrado com alguns figurões e isso sempre se confirmava. Com tantos inimigos, os chefes mantinham o rosto escondido até mesmo dos outros membros.
O chefe pareceu surpreso por um instante, depois deu um sorriso sem graça.
— É… a máscara. Tá meio quente hoje, e ela só atrapalha. Foi mal, mas não dá pra usar o tempo todo.
— O quê…
O homem estava totalmente tranquilo, nem um pingo de receio de ser traído. Os figurões que Galf conhecia exalavam poder absoluto. Mas esse cara era diferente.
Galf ainda não sabia nada sobre Ponta, mas Tsuneko com certeza era a líder dos famosos Cavaleiros da Tocha. Um grupo de elite que rodava o mundo em busca de recompensas altas e era conhecido pelas armaduras de tom castanho-avermelhado. A líder, Kongoin Touka, era praticamente a nêmesis da Fox, já tinha destruído várias subsidiárias da organização. Ela estava usando uma máscara de raposa, mas isso não foi suficiente para enganar Galf.
Aquilo era uma prova da natureza impenetrável do chefe. Os Cavaleiros da Tocha eram mercenários, mas não burros — sabiam quando um trabalho não valia a pena. Nem uma piscina de ouro os faria se juntar a uma organização criminosa. E mesmo assim, Galf tinha visto ela usando a máscara de raposa e seguindo o chefe. A Fox até tinha colocado uma recompensa na cabeça dela, mas aquilo provavelmente era só encenação.
O chefe era sem dúvida alguém capaz, mas andar sem a máscara era brincar com a sorte. O jovem passou por Galf tranquilamente, de costas, e espiou a frigideira de Sora.
— Tá com um cheiro bom — disse ele —, você tá indo bem.
Sora endireitou as costas.
— V-Vossa honra, ó Raposa Branca! — exclamou, suando. — É conforme a sua vontade, da Raposa Branca!
O chefe analisou a frigideira com atenção, franzindo a testa.
— Mas Sora — disse ele com uma risadinha —, isso aí não vai ser suficiente se a gente quiser dominar o mundo.
Galf quase gritou com aquela revelação repentina.
Ele quer dominar o mundo com tofu frito?! Como assim?!
— M-Me perdoe! Eu vou refazer!
— Não precisa. Vá com calma. Todo mundo tem dificuldade no começo.
— C-Como desejar!
Galf queria perguntar o que o chefe estava tramando, mas não era uma opção viável. As identidades dos chefes eram os segredos mais importantes da organização. Havia um motivo para o rosto do chefe ter sido mantido em segredo até agora. Mesmo conhecendo sua aparência agora, Galf não podia deixar isso transparecer. Qualquer mudança de atitude podia ser o suficiente para ele ser silenciado.
O chefe tirou um smartphone do bolso e tirou uma foto do tofu frito, depois se virou para Galf.
— Certo, chegou em boa hora. Sobre a missão que passei pra vocês. Tenho mais reforços pra você. A ideia era a Tou— a Tsuneko apresentar eles, mas agora serve?
— Como desejar.
Galf ajoelhou-se com um joelho no chão. As ordens do chefe eram absolutas, e ele não tinha nenhuma intenção de trair a organização.
— Sem formalidade demais — disse o chefe, e se virou para a porta. — Ei, podem entrar agora.
Entrou um pequeno grupo, nenhum deles usando máscara. Um jovem elegante de cabelo escuro, uma Maga, uma Ladina de cabelo rosa e um Espadachim ruivo. Todos eles tinham aquela aura que vinha com uma grande quantidade de matéria mágica. Instintivamente, Galf buscou em sua base de dados mental e o resultado o fez prender a respiração.
O Espadachim ruivo olhou ao redor com intensidade, os olhos brilhando como uma lâmina afiada.
— E aí, quem é que eu corto? Aquela mulher ali?
— Grieving Souls…? — murmurou Galf.
Não havia dúvidas. Ele já tinha pesquisado sobre todos os guerreiros habilidosos. Reconheceu a Sombra Sufocada, a Espada Proteana e o Avatar da Criação. E aquele jovem… ele já tinha falado com o chefe naquela cidade onde a Fox roubou a Chave da Terra. Aquilo só podia ser o Mil Truques, o nome por trás de tantos rumores.
— Oh. Você conhece esse pessoal?! — disse o chefe.
— É claro que conheço — respondeu Galf.
Era impossível. Inacreditável. Ele piscou várias vezes, mas a cena diante dele não mudou. Não havia nenhum grupo que o Raposa temesse mais do que os Grieving Souls. Acreditava-se que eles haviam destruído diversas subsidiárias menores, além da Serpent, rival da Raposa que agora estava extinta. Recentemente, o Mil Truques haviam interferido na operação de roubo da Relíquia. Esse grupo definitivamente não era aliado da Raposa, mas estavam pisando em um território onde o bom senso não se aplicava.
Se quiser enganar seus inimigos, comece pelos amigos. Até onde ia aquele blefe? Eles tinham agido sob ordens da Raposa quando derrubaram a Serpent? E o incidente com Telm? Será que ele era um traidor que os Grieving Souls eliminaram? E o mesmo valia para Kechachakka?
Um furacão de suposições girava na mente de Galf, mas ele não podia afirmar nada com certeza. Tudo estava perfeitamente encoberto. Mas ele sabia que, se aquele grupo estivesse do seu lado, então tudo era possível. Nem mesmo a Associação de Exploradores suspeitaria de traição por parte dos Grieving Souls. Mas o que o chefe estava planejando ao reunir tantas figuras formidáveis? Galf não conseguia parar de tremer.
O chefe sorriu e então disse a coisa mais absurda até agora:
— Muito bem, acho que posso deixar isso com vocês. Ah, é verdade. Se isso der certo, vou te dar a máscara.
Enquanto me ouvia, Galf ficou com cara de confuso do início ao fim. Sei lá, acho que ele queria muito a máscara ultra-rara. Saiu da sala cambaleando como se estivesse sonâmbulo, e Liz, Luke e Krahi foram atrás dele. Eu fiquei com a Lucia, que mantive por segurança.
Como se estivesse tentando evitar pensar em outra coisa, a Sora estava colocando cada grama da sua força de vontade na frigideira. Quando o tofu frito ficou pronto, ela desligou o fogo e veio até nós. De perto, dava pra ver que ela estava pálida.
— O-O que você tá pensando?! — ela disse. — Vai entregar aquela máscara sagrada?!
— Bom, não é como se eu precisasse dela.
— Você… você está planejando me trair depois de tudo isso?!
Não era justo colocar desse jeito. Aquela máscara era só uma lembrança pra mim. Ela merecia estar com alguém que entendesse seu valor. Entregar aquilo deixaria o verdadeiro “Raposa Branca” irritado? Esse não era meu problema.
Além disso, eu só entrei nessa confusão toda por causa do Clube dos Fãs da Máscara da Raposa (nome provisório) e o sistema deles. Não era justo me culpar só porque eu tinha, por coincidência, a mesma máscara que outro membro. E quando eu sugeri que a gente pedisse desculpas, foi a Sora quem recusou a ideia. Mas talvez fosse porque pedir desculpas não levaria a lugar nenhum.
De braços cruzados e com aquele olhar irritado de sempre, Lucia encarava Sora.
— Chefe, o que você aprontou dessa vez?
— Eu ainda não fiz nada—
— Ainda não, é isso? Então você planeja fazer alguma coisa?! — Sora interrompeu. — Ó Raposa Branca, você é um deus! UM DEUS!
— Me lembra a T — comentou Lucia, completamente imune às bobagens infantis da Sora. Ela já estava acostumada a ser jogada no meio do caos. Não é pra me gabar, mas eu era o número um em situações sem sentido, e Lucia podia confirmar isso.
— Decidi! — Sora apontou o dedo pra mim. — Se mais loucura vier aí, então eu devo reunir as outras Sacerdotisas ao nosso lado!
— A-Aham. Certo.
— Todos seguirão o nosso caminho! E a máscara não será transferida! Eu não permitirei! Não importa o que digam, você é o verdadeiro Raposa Branca! Eu só segui meus ensinamentos! Se há algo errado, é o mundo inteiro!
— A fé é uma coisa assustadora.
Que jeito maluco de se livrar da culpa.
Essa garota é mesmo uma sacerdotisa? Nunca vi uma assim. Será que ela tá bem? Escuta, a culpa é sua, não minha. Como eu faço pra impedir que isso vire um desastre completo?
— Observe-me, ó Raposa Branca! Eu, Sora Zohlo, expandirei nossas fileiras! Se você ordenar, todas nós faremos tofu frito!
Algo me dizia que já tinha passado do ponto de não-retorno. Talvez aquela máscara fosse amaldiçoada. No momento seguinte, a porta se abriu silenciosamente.
— O quê?! Hã?!
Sora ficou paralisada. Lucia boquiaberta. Meu cérebro congelou. Quem entrou, sem fazer barulho algum, foi alguém que eu achava ter deixado pra trás em Toweyezant — a Raposinha. Ela entrou calmamente, examinou o quarto, olhou pra mim, pra Sora, depois pra Lucia. Sem dizer nada, passou por nós e olhou dentro da frigideira. Sem hesitar nem um pouco, pegou um pedaço de tofu meio queimado.
Comeu em silêncio, então disse:
— Queimou demais. Oitenta pontos.
Ah. Ela veio depois de ver a foto que eu mandei. Pra um fantasma, ela é bem ativa.
Depois de passar uma noite quase inteira sem dormir, torturada pela incerteza, Sora acabou seguindo o orgulho que tinha como Sacerdotisa. O propósito original das Sacerdotisas da Raposa Sagrada era servir aos deuses raposa e a qualquer um escolhido por eles. Até então, os escolhidos sempre haviam se tornado os chefes da organização, mas fazia muito mais sentido apoiar alguém que tivesse obtido a máscara diretamente do que alguém que só a tivesse herdado.
Justo quando Sora começava a achar que tinha sido enganada, o novo Raposa Branca mudou de ideia de repente e disse que iria conversar com o chefe. O novo Raposa Branca era um homem assustador, capaz de desequilibrar até a Sora, mesmo com seus anos de treinamento mental rigoroso. Ainda assim, ela duvidava que ele pudesse vencer o chefe.
Ela não sabia o que o novo Raposa Branca planejava dizer. Sabia, no entanto, que a organização não deixava informações vazarem. Eles jamais deixariam o Mil Truques em paz depois que ele tentou se passar por um dos chefes. O Mil Truques estava subestimando a Raposa.
Sora sentia que aquela era a hora de agir, antes que o chefe entendesse a situação. Ela era uma Sacerdotisa, uma figura com posição especial na organização. Perderia tudo se descobrissem que ela confundiu alguém com um chefe, mas até lá, ainda tinha um pouco de autoridade. Ainda tinha cartas na manga.
Detestados por adorar deuses aberrantes, os ancestrais de Sora haviam se aliado ao primeiro chefe assim que viram que ele usava uma máscara de raposa. Desde então, a Raposa Branca se tornou uma luz guia para as Donzelas Sagradas da Raposa.
Dizia-se que várias pessoas dentro da organização possuíam máscaras de raposa branca. Mas agora, alguém havia aparecido com uma máscara obtida diretamente dos próprios deuses. Isso provavelmente marcava um ponto de virada para a organização.
Sora dizia a si mesma que não podia se enganar sobre quem deveria apoiar. Por mais aterrador que fosse o destino que a esperava — mesmo que todos fossem exterminados — ela seguiria a vontade dos deuses.
Mas no instante em que pôs os olhos na coisa real, toda aquela fé e determinação desmoronaram.
Seu cérebro se recusava a processar o que estava vendo. Aquela máscara era definitivamente autêntica. Ela sentiu seu coração parar por um breve instante. O ar ficou preso na garganta, o corpo entorpecido. Não conseguia desviar o olhar da garota.
A máscara da garota era autêntica, igualzinha à usada pela nova Raposa Branca. Mas essa garota tinha uma presença poderosa — algo completamente diferente da nova Raposa Branca. Os membros de Sora se recusavam a se mover. Ela estava olhando para uma deusa — não, um demônio. O chefe assumia a forma de uma jovem em um manto branco. Seu corpo era menor que o de Sora, mas isso não a tornava menos imponente.
Sora percebeu que havia sido uma tola. Era ignorante. Essa era a verdadeira chefe. Aquela aura sobrenatural era a verdadeira marca de uma Raposa Branca, o que significava que sua identificação anterior era nada menos que incompetente. Agora ela compreendia o que significava ser escolhida pelos deuses raposa. A nova Raposa Branca era uma impostora — um lobo em pele de raposa.
A verdadeira chefe olhou para Sora. As duas tinham uma silhueta parecida, mas era difícil acreditar que pertenciam à mesma espécie. Os alarmes mentais de Sora gritavam para que ela fugisse antes que fosse morta. A chefe olhou silenciosamente para os três. Caminhou até Sora — e passou direto por ela. Entrou na cozinha, pegou o tofu frito da frigideira e colocou na boca.
— Queimado demais. Oitenta pontos — foi tudo o que disse.
Uma tempestade de confusão tomou conta da mente de Sora, superando em muito qualquer confusão anterior. Ela não conseguia compreender o que estava acontecendo diante de seus olhos. Em certo nível, até conseguia aceitar a chegada repentina da chefe — afinal, em algum momento, ela deveria aparecer. Mas isso ultrapassava qualquer entendimento.
A chefe se virou para Sora e disse com uma voz que gelou sua alma:
— Não tá bom. Se não me derem tofu frito melhor, eu ataco.
O que ela estava dizendo? Estava agindo exatamente como a falsa Raposa Branca. Sora precisava responder, mas estava nervosa demais para mover um músculo. E ainda assim, o falso — o homem que deveria estar mais em pânico que qualquer um ali — não demonstrava um pingo da apreensão de Sora.
— O que você tá fazendo aqui? — suspirou ele. — E como você chegou aqui? O que aconteceu com Toweyezant?
— Cansei deles. Realizei os desejos deles. E o tofu frito deles foi, hmm… oitenta e cinco pontos.
— Você nem é uma avaliadora exigente, hein? Deve gostar muito de tofu frito.
Hã? Quê? Co-como é que é? Eles são amigos? A verdadeira e o falso são amigos?! Como assim?
Esses dois não estavam agindo como inimigos. A falsa Raposa Branca estava sem máscara, mas a conversa deixava claro que se conheciam. Sora estava prestes a desistir. Já não sabia mais no que acreditar. Se perguntava o que deveria fazer. O que esses dois queriam que ela fizesse.
A chefe olhou para a falsa Raposa Branca.
— Isso não estava nada delicioso — declarou com um tom seco. — Você disse que estaria delicioso. Se não me der algo melhor, eu ataco.
— Tem certeza disso? — disse a falsa Raposa Branca com um sorriso. — A gente tá montando uma empresa que vai vender bentôs de inarizushi com selo da raposa. Nosso plano é conquistar o mundo. Atacar agora prejudicaria o futuro do tofu frito! A Sora é a responsável por essa operação!
A chefe congelou.
Hã? Huuuuuh? Então esse plano tinha propósito afinal?!
Sora tinha certeza de que a falsa Raposa Branca só estava inventando coisas na hora. Ela apenas seguia o fluxo porque, como Donzela, não era seu lugar questioná-lo. Foi trazida de volta à realidade por um som de tosse. A chefe de repente tossiu sangue. Em seguida, Sora sentiu seu corpo desabar.
“Intenso” seria uma boa forma de descrever os dias que se seguiram após Murina ter sido entregue ào Mil Truques. O treinamento no cofre de tesouros havia sido um verdadeiro inferno. Mesmo depois de ser levada para Kreat, seus dias estavam longe de serem tranquilos.
Sob o pretexto de batalhas simuladas, ela havia sido atingida pela Sombra Sufocada e cortada pela Espada Proteana. Seu sangue foi drenado e ela foi forçada a enfrentar monstros. A agrediam verbalmente, perguntando se ela estava se esforçando de verdade, ignorando completamente seu status, e a obrigavam a fazer tarefas domésticas. Ela havia sido arremessada por janelas, ouvia que não tinha talento, e era encharcada com água sempre que desmaiava.
Todos os membros da família imperial eram obrigados a ter aulas para que um dia pudessem guiar o povo de Zebrudia, mas nenhum deles jamais havia passado por um treinamento tão brutal. Seus dois acompanhantes, que atuavam como guardas e serviçais, até tentaram protestar, mas desistiram ao perceberem que era inútil. Murina não os culpava por isso — ela também já havia desistido da ideia de resistir.
Os Grieving Souls eram totalmente indiferentes à glória da família imperial. Para eles, Murina era apenas mais um trabalho. Ela ainda estava respirando porque haviam pedido que temperassem suas habilidades. Se tivessem pedido para assassiná-la, a história seria bem diferente.
E em algum momento, Murina percebeu que de fato havia se tornado mais forte. O material de mana e suas lições infernais fizeram uma diferença visível. Sua força e resistência haviam melhorado, mas o mais importante era o entendimento do que significava fazer algo ou morrer tentando. Ela não tinha mais pesadelos com os dias de infortúnio. Já não havia espaço para sonhos — nem para tristeza.
Murina agora conseguia usar tanto feitiços ofensivos quanto ritos sagrados. Isso era considerado extraordinariamente difícil, mas seus esforços desesperados no cofre do tesouro tinham valido a pena. Ela sabia que o material de mana te aprimorava conforme seu desejo, mas agora sabia que, se você desejasse cada parâmetro com tanta intensidade a ponto de poder morrer, então obteria todos eles. Era lógico, de certa forma.
Será que ela conseguiria usar o material de mana para apagar sua má sorte? O pensamento lhe passou pela cabeça, mas ela o afastou! O destino é algo que você mesmo esculpe. Simplesmente desejar segurança e estabilidade só a levaria à morte. O que ela precisava era de foco. Enquanto estivesse viva, ela não estava morta. A força de vontade podia mover um corpo que de outra forma estaria afundado em dor e fadiga. Mas uma vez que parasse, não conseguiria se levantar de novo.
Agora, Murina estava de volta a um vestido e conversava com seu pai.
— Fico feliz em vê-la novamente, Murina. Você parece saudável e bem-disposta.
— De fato, pai.
Antes, Murina tinha dificuldade para conversar com adultos e encará-los nos olhos. Mas agora as coisas haviam mudado. Interagir com adultos não era nada comparado a ser arrastada pelas vinhas de um fantasma floral.
— E vocês, Karen, Cindy, obrigado por cuidarem da minha filha. Eu percebi depois do treinamento no cofre do tesouro, mas ela realmente parece ter crescido. Posso ver isso em seu rosto.
— Estamos honradas com suas palavras, Vossa Majestade Imperial. No entanto, não contribuímos com nada. Tudo isso é fruto do esforço da própria Alteza Imperial. As lições daquele homem estavam em um nível completamente diferente do treinamento da Ordem Zero. Os métodos dele são bem… rudes.
Karen usava uma figura de linguagem, mas o treinamento de Murina tinha literalmente envolvido muita pancadaria.
— Seja grata ao Sir Franz — disse o imperador Rodrick. — Ele queria usar sua armadura para absorver o dano da Murina, assim como fez durante a viagem a Toweyezant. Mas achei que Murina não evoluiria se ele fizesse isso, então o impedi.
— Nunca se sabe o que aquele homem pode fazer. Embora pareça que minhas preocupações eram infundadas — disse Franz. — Quando Sua Alteza Imperial retornou à capital pela primeira vez, ela estava bastante abatida, mas agora percebo uma melhora considerável nela.
— Muito obrigada, Sir Franz — respondeu Murina.
A diferença era natural. No primeiro treinamento, Murina não teve direito a descanso nem sono. Mas dessa vez, ao menos isso lhe foi concedido. Os Grievers a arrastaram pela cidade e chamaram aquilo de treinamento, mas ver os lugares novos havia sido bom para seu ânimo.
— Conquistou sua má sorte? — perguntou seu pai.
— Conquistei. Percebi que bandidos e acidentes aleatórios não são nada comparados a ser atacada por fantasmas e Grieving Souls!
— O quê?! O que aquele homem fez com Sua Alteza Imperial?! — gritou Franz.
Por que Murina se permitira ser esmagada por um pouco de azar? Agora, ela sabia por experiência própria o quão resilientes os seres humanos são. Se você vive com a cabeça baixa, não conseguirá desviar dos ataques que vêm. Mas havia algo que não saía de sua mente.
— Pai, tem só uma coisa que eu queria perguntar. O Mil Truques disse que eu ia competir no Festival do Guerreiro Supremo. Isso é verdade?
— Do que está falando? — ele disse. — Dei a ele um ingresso de desafiante como pagamento pelo seu treinamento, só isso.
— Aquele homem chegou a dizer que treinaria Sua Alteza Imperial até o ponto em que estivesse pronta para o torneio — acrescentou Franz. — Mas o Festival do Guerreiro Supremo não é lugar para Murina. Lá não existe muito espírito esportivo… e às vezes há mortes.
— C-Certo, eu devia saber!
Essa resposta casual fez com que Murina recebesse olhares estranhos do pai e de Franz. Mas com esse peso fora de seu peito, ela sentia como se pudesse dançar. Tinha evoluído tanto que mal parecia a mesma pessoa, mas o Festival do Guerreiro Supremo ainda estava completamente fora de questão. Ela ouvira dizer que os Mil Desafios eram cruéis, mas se você desse tudo de si, podia superá-los. Para ela, entrar no torneio significaria o fim imediato.
— Agora, Murina, Krai Andrey tem agido de forma estranha? — seu pai perguntou de repente.
Murina endireitou as costas e respondeu com firmeza:
— Sim, pai, ele tem! O Mil Truques só tem agido de forma estranha!
— E-Entendo.
Do ponto de vista de Murina, o Mil Truques era incompreensível. Ele às vezes desaparecia sem motivo algum. A fazia usar uma máscara de tanuki e a apresentava como “Ponta.” Ela tinha certeza de que seu pai jamais imaginaria algo assim. Murina contaria tudo para Éclair na próxima vez que conversassem.
— Como suspeitávamos. Ele deve estar se movendo contra a Raposa — disse Franz. — Ou talvez já esteja, desde que pediu um ingresso para o torneio. O comportamento estranho fazia parte do plano dele para derrubar a Cascata Contrária. Não gosto muito dessa história de ‘artifício pré-humano’, mas há um quê de verdade nisso.
— Hm. Não sei como ele conseguiu essa informação antes de nós, mas está no caminho certo.
Raposa. Máscara de Raposa. Clube de Fãs da Máscara de Raposa.
Murina sentiu uma dor aguda na cabeça e levou as mãos às têmporas. Que sensação ruim era aquela? Queria vomitar, mas se segurou.
— O que foi, Murina?
— Não é nada, pai.
Só mais um pouco. Murina precisava aguentar só mais um pouco de treinamento, e então poderia voltar para o castelo. Quando voltasse, teria aulas com mentores de verdade. Iria sair de casa de verdade.
— Seu treinamento já terminou? — perguntou o pai. — Afinal, o Festival do Guerreiro Supremo está prestes a começar.
Murina olhou nos olhos dele e balançou a cabeça.
— Não, pai. Minhas lições ainda não terminaram.
— Entendo. Suponho que deseja vê-las até o fim?
O pequeno orgulho de Murina não a deixava desistir depois de ter chegado tão longe. Ela não sabia quão intensas seriam as lições de combate real, mas sentia que seriam uma espécie de cerimônia de graduação. Quando isso acabasse, ela poderia voltar para casa de cabeça erguida.
O Imperador Rodrick sorriu sinceramente — algo que Murina não via há um bom tempo — e disse:
— Essa experiência parece ter te deixado mais forte. Que tipo de lição ele tem reservado pra você?
— Deixou sim, pai! — disse Murina, abrindo um sorriso enorme. — A gente vai sair caçando bandidos e ma—dá cabo deles!
Você nunca sabe quando seu passado vai te alcançar. Depois do meu encontro repentino (e negociação) com a Raposinha, voltei pra estalagem. Encontrei minha dupla de perseguidores me esperando numa sala de reuniões no primeiro andar, com expressões até que normais. Mas quando os seus convidados são a Névoa Caída e o antigo Demônio da Guerra, ainda assim é possível sentir uma pressão absurda.
— Finalmente apareceu, garoto — disse a piromaníaca me encarando.
— O-Oiê — respondi. — Não esperaram muito, né?
— Esperamos cinco horas — respondeu Gark.
— Sério? Não tem nada melhor pra fazer?
— Você pode, por favor, parar de dizer coisas que seria melhor deixar quietas? — pediu Lucia.
Gark me olhava como se eu fosse um criminoso, enquanto a velha parecia estar lidando com tudo numa boa. Mas eu sabia que ela podia incendiar tudo por impulso. Na cabeça dela, tava tudo bem enquanto ninguém morresse. Se morresse, bastava apagar as evidências.
Será que a Lucia conseguiria segurar os dois? Eles não começariam uma confusão dentro de uma estalagem… certo?
Meu estômago, minha cabeça e meu coração doíam, e meu corpo parecia um saco de chumbo. Eu ia vomitar.
— O que é que precisa acontecer pra mudar você, Krai? — disse a velha rindo. — Finge que nossa conversa nem aconteceu e aparece aqui como se nada tivesse rolado.
— Achei que vocês iam entender sozinhos — falei, me agarrando a qualquer desculpa.
— COMO É QUE A GENTE IA ENTENDER ISSO, SEU…?! — rugiu Gark. — Nem todo mundo faz o que você faz!
Kaina. Cadê a Kaina?
A Maldição oculta tomou um gole de chá e disse com a voz rouca:
— Deixa isso pra lá. Não pretendemos interferir no Festival do Guerreiro Supremo. Eu também já me deliciei naquela carnificina de carne e sangue.
— Fiquei sabendo— disse Lucia com a voz calma. — Você foi banida do torneio depois de usar uma magia de aniquilação em área que destruiu até as barreiras.
Será que a Maldição Oculta não tinha nenhum tipo de limitador? Honestamente, o Luke e a Liz eram melhores. Pelo menos eles só acertavam um alvo de cada vez.
A Maldição Oculta lançou um olhar afiado pra minha irmã antes de voltar a olhar pra mim. Ela sempre foi mais suave com a Lucia, talvez porque as duas fossem Magas. Ou então, desde pequena, a Lucia sempre teve esse jeitinho que agradava todo mundo.
— Bom, não vou insistir nisso — disse a piromaníaca. — Vamos perdoar você por ter deixado a gente pra trás. Não viemos aqui pra atrapalhar, temos nossas pendências também. Ohohoho… Sem contar que te devemos uma.
Eu até agradeço pela clemência, mas por que é que nunca tenho o direito de recusar esses encontros?
Mas iam me seguir de qualquer jeito. Eu devia era agradecer por ter a Lucia ao meu lado.
Assumi minha postura de durão, pronto pra resolver logo.
— Bom, eu também tive meus problemas. Agora, vocês queriam falar da Raposa?
— NÃO FALA ESSE NOME AQUI, SEU IDIOTA! — gritou Gark. — Nunca se sabe onde eles podem ter ouvidos!
Ah, qualé. E o que diabos é essa “Raposa”, afinal?
Eu ainda não entendia uma parte fundamental disso tudo. Sempre pensava em perguntar o que eles queriam dizer, mas ficava com medo e acabava empurrando com a barriga. Só sabia que era uma organização maluca que tentou assassinar o imperador e que Telm e Kechachakka trabalharam pra eles. Mas, ao longo da minha vida, já topei com dezenas de organizações criminosas secretas e nem sabia o quão perigosa essa era de verdade.
Tinha aquele grupo, aquele cofre cheio de tesouro, e o Clube de Fãs da Máscara de Raposa. As raposas estavam na moda, aparentemente. Não sabia quantas mais existiam, mas queria muito que escolhessem nomes mais distintos.
Se eles queriam procurar essa tal de Raposa, não precisavam da minha permissão. Mas eu sabia o que eles queriam — queriam a minha ajuda, mesmo que não gostassem disso. Não tinham muito apoio por aqui.
Talvez eu empreste o Ansem, se prometerem devolver ele logo.
— Foi mal, mas tudo que tenho é o Clube de Fãs da Máscara de Raposa e uns glutões — falei.
— Mas do que você tá falando, pelo amor…?
— De verdade, líder, o que você tá dizendo?
Lucia, de que lado você tá?
— Não viemos aqui pelas suas piadinhas idiotas — suspirou a Maldição Oculta. — Desta vez, você foi o primeiro a entrar na trilha. Entendo como essas coisas funcionam e tô disposta a deixar essa pra você. Pensar nunca foi o meu forte mesmo.
— Não sei como você conseguiu essa informação antes do Império ou da Associação, mas temos uma reputação a manter. Entendeu, Krai Andrey?
— Aham, entendi.
Do que esses velhos tão falando, afinal? Qual “essa”? Virei pro lado da Lucia, mas minha irmã de gelo só deu de ombros. Se a Sitri estivesse aqui, aposto que ela teria explicado.
Eu não fazia ideia do que estavam falando, não sabia nada de aparências, e nem achava que tinha me mexido antes deles. Queria só dizer pra fazerem o que quisessem, contanto que não causassem problemas pra mim.
— Façam o que quiserem — falei, soltando uma resposta bem vaga. — Já fiz tudo o que devia.
Gark franziu a testa e se inclinou pra frente.
— Então quer dizer que você sabe qual arma eles têm e o que planejam fazer com ela?
Esse cara não larga o osso.
— Aham, sei sim — respondi. Não tinha mais nada que eu pudesse dizer nesse ponto. — Hm?
De repente, percebi que o Gark tinha falado algo importante. Antes que eu conseguisse processar, ele estalou a língua e voltou à postura de antes.
— Droga, Krai, onde é que você consegue essas informações? Depois de anos sem nada, conseguimos só um fiapinho agora.
— Hã?! Ah… com a Eva?
Desculpa, Eva. Minha boca se mexeu sozinha. Mas eu não quero continuar respondendo perguntas. Me perdoa.
— Hã? Não importa o quão boa seja sua rede, não acredito que você conseguiu algo com tanta facilidade, enquanto a gente se ferrou por anos—
—Foi mal, tenho uma coisa pra resolver. Podemos encerrar por aqui? Tenho muito o que fazer.
—Ah! Droga, Krai!
Desculpa, mas preciso cair fora antes que descubram que sou uma fraude.
Recentemente, percebi que, se eu dissesse que tinha algo pra fazer, as pessoas não insistiam muito. Eu tinha acabado de falar que tinha feito tudo o que precisava, e logo em seguida me contradisse, mas ninguém pareceu ligar. Isso era alguma artimanha preter-humana?
Me levantei, e então ouvi um pshhh, como vapor saindo. A Maldição Oculta apontava um dedo ossudo pra mim, uma chama tremeluzindo na ponta. Mais algumas vezes, luzes voaram na minha direção e evaporaram em vapor a poucos centímetros dos meus olhos. Nenhum dos meus Anéis de Segurança foi ativado, então devia ser a Lucia me protegendo.
A Maldição Oculta soprou o dedo fumegante e se levantou da cadeira. Tinha uma postura impressionante, destoando da idade avançada. Era um pouco mais alta que eu e ouvi dizer que, quando mais jovem, às vezes era confundida com um Espírito Nobre. Nossos olhares se cruzaram, suas pequenas íris flamejantes me encarando.
Seus lábios secos se torceram num sorriso demoníaco e ela disse com uma voz rouca:
—Vou seguir sua deixa por enquanto. Mas isso é um festival. Quando a hora chegar, espero ver um sinal, Mil Truques. Arrastei esses ossos velhos até aqui e ainda tenho uma conta pra acertar por causa de Telm. Estamos entendidos?
—Ah, claro.
A voz dela era intensa, não deixando espaço pra discussão. Os olhos brilhavam como os da Liz. Não entendo por que alguém da idade dela simplesmente não se aposenta.
Ela saiu da sala e, antes de segui-la, Gark disse pra mim:
—Certo, Krai. Não se esqueça do torneio. Se alguém do nosso grupo ganhar aquilo, vai ser ótimo pra minha imagem.
Ao ver aquela força da natureza sair, Gark estalou a língua e foi atrás. Que mulher impulsiva. Até o Gark tinha que seguir o ritmo dela. E que tipo de caçadora falava em ajustar contas? Só espero que a Lucia não fique assim também.
Houve um breve silêncio, até que Lucia perguntou com uma voz fria:
—O que exatamente você tinha pra resolver?
Claro que ela ia perguntar.
Nesse instante, um grupo de caçadores com o brasão da Primeiros Passos entrou no saguão. Na frente, estavam Tino e Sven.
—Mestre, Lucy, viemos torcer por vocês!
—E aí, Krai. Finalmente chegamos.
Como o torneio estava prestes a começar, deviam ter achado que essa era uma boa hora pra aparecer. Piscando e franzindo a testa, Lucia me lançava um olhar bem peculiar.
—Fico feliz que tenham vindo — eu disse. — Chegaram na hora certa!
Claro que não tinha planejado a chegada deles, mas fiquei realmente feliz em vê-los.
—E aí, como estão as coisas? — perguntou Sven. — Estar longe de Zebrudia não é muito o nosso estilo.
—Relaxa — respondi com um dar de ombros. — Você acha que gente como a Liz e o Luke se incomoda com território desconhecido? Eles tão tão empolgados que eu nem sei o que fazer com eles.
Sven parecia seu velho eu, sempre animado. Sempre fazia careta quando eu pedia algo, mas devia sentir algum tipo de conexão com a gente pra ter vindo até aqui.
—Não, eu quis dizer você — ele respondeu.
—Sven, o Mestre jamais cederia a um simples nervosismo — disse Tino por mim. Ela olhou em volta no saguão, depois para mim e minha irmã-guarda-costas. — Mestre, retirei todas as minhas economias e apostei tudo em você!
Isso mesmo. Estavam apostando.
—Valeu — falei, rindo da piada dela. — Sabendo disso, vou tentar me esforçar um pouco mais!
Duvidava que ela pudesse mesmo ter apostado em mim, já que nem estava participando.
Os olhos de Tino brilharam.
—Isso aí, dê o seu melhor! Vou estudar cada movimento!
Muito louvável da sua parte. Tem muito o que aprender com os Grieving Souls.
—Agh, por que tem tanta gente?! Já vi mais gente hoje do que quero ver o ano inteiro! Me dei ao trabalho de vir até aqui, então nem pense em perder! Senhor!
Negócios como sempre, pelo jeito da Kris.
—Não vai aceitar nada menos que o primeiro lugar, né? — perguntei pra ela.
Fazia tempo que eu não estava cercado por amigos assim. A última a chegar foi Eva, que provavelmente coordenou toda a viagem. Por trás daqueles óculos finos, seus olhos afiados não deixavam passar nada.
—Qual é a situação da Princesa Murina? — ela perguntou.
—Ah, aquilo. Sem problemas. Provavelmente. Fiz o que pude.
—Entendo. Posso ajudar em algo?
—Agradeço. Se surgir algo, aceito sua ajuda.
Mesmo fazendo uma oferta parecida, ela e a Maldição Oculta eram completamente diferentes.
Enquanto eu me permitia aproveitar o conforto dos amigos, Sven olhou ao redor e perguntou:
—Só a Lucia tá com você? E os outros?
—Estão resolvendo outra questão — respondeu Lucia. — Estou cuidando do nosso líder.
—É, vai que alguém tenta me atacar aqui — acrescentei.
—Porque você vive fazendo inimigos — disse Sven.
Que calúnia. Virei pra Tino, mas ela se recusou a me encarar.
—Não — falei. — Tenho certeza de que não fiz nada. É isso que é uma emboscada: atacar alguém que não fez nada.
Lucia só suspirou. Tenho quase certeza de que ela sabe o quanto sou inofensivo, então provavelmente era um suspiro de resignação pela minha falta de sorte. Mas, pela primeira vez, eu estava confiante de que daria tudo certo. Tinha o Clube de Fãs da Máscara de Raposa e o grupo da Touka me dando apoio. A Raposa Irmãzinha voltou do deserto, mas continuava obcecada por tofu frito.
Dito isso, queria mudar de assunto. E tinha o gancho perfeito.
—Ei, só pra você saber, Sven, o verdadeiro eu está aqui, nesta cidade.
—Hã?
—Dizem que todo mundo tem três sósias, né? Me tornei fã dele assim que nos encontramos. E mais: até os aliados dele são versões minhas.
—Irmãozinho?! Eu jamais falaria daquele jeito, aquela garota maluca!
— É, no seu caso, você provavelmente é a superior entre as duas. Pode estar perdendo no quesito amorzinho, mas é muito mais forte. Sem falar que você tem um título, e ela não. E você é muito mais bonita. Pode não ser carinhosa como uma pomba, mas sabe dar um bom soco.
Lúcia cerrou os punhos, tremendo como se estivesse lutando para se controlar.
— Ahhh, a Lucy tá toda vermelha — ofegou Tino.
Como irmão da Lúcia, é claro que eu era tendencioso, mas tinha certeza de que a minha era a melhor irmã mais nova.
— Mesmo assim, você devia conhecer ele, Sven — falei. — Se eu pedir, aposto que você até consegue um autógrafo! Espero que consiga conhecer os outros também.
— Mestre, por que você tá tão empolgado com isso?
Tino parecia exasperada, mas tenho certeza que ela se sentiria igual se desse de cara com alguém idêntico a ela. Pensando bem, não tinha nenhuma parecida com a Tino no grupo do Krahi.
Agora tá todo mundo aqui. Nada com que se preocupar. Só preciso esperar o torneio começar.
— Bwahaha! É, sem sombra de dúvida, são os verdadeiros!
— Sven, você tá sendo extremamente rude.
O que fazer? Kule Saicool, o autoproclamado Sortie Proteano, não conseguia esconder seu desconcerto. Ao lado dele, Izabee, a autoproclamada Sombra de Olhos Penetrantes, estava igualmente em choque.
Além de ter atingido o Nível 8 ainda jovem, o Mil Truques também era mestre de clã da Primeiros Passos, um dos maiores clãs que existem. E todas as pessoas que apareceram com ele eram membros.
Como cérebro do seu grupo, Kule Saicool pesquisou Grieving Souls a fundo quando formou os Bereaving Souls. Aquele homem alto, todo equipado com trajes preto e dourado, não era outro senão Sven Anger, o Golpe de Tempestade.
Caçadores de tesouros se orgulham bastante de como são referidos. Se autoproclamar com um título quase idêntico ao de outro era visto como duvidoso e podia acabar em morte se você copiasse alguém de pavio curto.
Então o que era aquela reação? Apesar de ver alguém com um título tão parecido com o do mestre do clã (pra constar, Krahi não estava tentando enganar ninguém de propósito), Sven não ficou indignado. Pelo contrário, estava batendo palmas e rindo.
— Verdadeiros? Do que você tá falando? Eu sou inequivocamente real — declarou Krahi. Ele disse isso com uma dignidade corajosa que só se tem sendo genuíno (ou genuinamente burro).
— Incrível, irmão! Você é o melhor! Mais real que o original! — exclamou Lusha com adoração, agarrada no braço dele, mesmo sabendo muito bem que o Krahi era uma farsa.
Ao lado de Sven havia uma Ladina com fitas vermelhas no cabelo. Ela desviou o olhar e murmurou:
— Ah, Lucy, meus sentimentos.
— Hm? Ouvi meu nome? — perguntou Lusha, que já tinha arriscado a vida e a integridade uma vez irritando sua contraparte verdadeira.
— Nada não! — disse a Ladina, se escondendo atrás de Sven.
Segurando o cajado com uma das mãos, Krahi observava o grupo.
— Então, me digam, quem são vocês? Meus olhos não me enganam. Dá pra ver que não são civis comuns!
Um dos defeitos do Krahi era o total desconhecimento do mundo da caça ao tesouro. Trabalhou sozinho por tanto tempo que mal sabia da existência de outros caçadores. Kule tinha ficado bastante surpreso ao descobrir que ele não conhecia nem o Mil Truques nem a Primeiros Passos. Mas o nome Krahi Andrihee era de fato o nome verdadeiro dele, e ele tinha documentos que comprovavam isso. A semelhança com certo outro caçador era uma completa coincidência.
Kule não conseguia entender o que passava na cabeça do verdadeiro. Quando soube que Krahi tinha encontrado ele, achou que estavam condenados. Mas o verdadeiro não apenas não ficou bravo como ainda deixou Krahi escapar ileso.
O Mil Truques era conhecido por sua astúcia sobre-humana. Talvez ele tenha percebido que Krahi não estava tentando se passar por ele, então o deixou ir como um gesto de misericórdia. Talvez todo caçador poderoso fosse tão excêntrico quanto o Krahi.
— Somos membros do clã que você formou — respondeu Sven, com total seriedade.
— Um clã, é?
O que você tá fazendo, seu idiota? Você nunca formou clã nenhum!, pensou Kule.
Caçadores talentosos atraem boatos. Reputações crescem sozinhas, apelidos surgem, até fã-clubes aparecem. Mas ninguém vira mestre de clã sem se envolver com ele. E lá estava o Krahi, olhando para as próprias mãos.
— Quando foi que eu formei um clã? — sussurrou ele.
— Hã? Foi mesmo?! Mandou bem!
Até a Lusha tá confusa!
Em várias ocasiões, Krahi tinha sido confundido com o verdadeiro Krai Andrey. Isso fez com que ele se acostumasse a ser elogiado por feitos que não realizou e até ser identificado erroneamente pela Associação de Exploradores. Seu puro talento ajudou a afastar suspeitas de que ele pudesse ser um impostor e, para o desespero de Kule, Krahi não se via como tal.
— Certo, bora tirar uma foto! Temos que registrar esse momento! — disse Sven. — Marietta, pega a câmera!
— Sven, pelo amor de Deus, acalme-se — disse o Mago da Cruz Obsidiana.
Pelo visto, os verdadeiros achavam que os Bereaving Souls eram só uma piada ou algum tipo de fã-clube. Uma suposição compreensível.
Cercado por membros de um clã que ele não lembrava de ter formado, Krahi sorria com simpatia. Era uma estrela. Sven então olhou para Kule, cujo olhar de águia do Arqueiro o fez engolir seco.
— Ei, você é o Luke, não é? — disse Sven. — Onde está a Sitri?
— Se estiver procurando pela Kutri, ela saiu agora há pouco. Afinal, é uma Alquimista.
Provavelmente estava por aí enganando alguém para vender poção fajuta. A Ignorável era melhor ignorada.
— E o Ansem?
Isso era ruim. O disfarce estava por um fio. Sven podia estar prestes a descobrir que Kule tinha convencido Krahi com conversa mole a formar uma equipe.
— No momento estamos aceitando inscrições — respondeu Kule, sentindo-se como um bandido em uma sala de interrogatório.
Em uma das bases da Raposa Sombria de Nove Caudas, Galf ouvia o relatório de um de seus subordinados.
— Muito bem — disse ele com um aceno satisfeito. — Tenho certeza de que o chefe vai ficar contente.
A sequência recente de contratempos estava começando a deixar marcas visíveis no rosto rústico de Galf, mas ainda havia um brilho em seu olhar.
O chefe havia determinado que fizessem amizade com diversos grupos que antes eram hostis. Desde o momento em que recebeu essas ordens, Galf achou que isso seria um saco… mas acabou sendo ainda mais trabalhoso do que imaginava. Para começo de conversa, reunir grandes grupos de pessoas ia contra toda a filosofia de discrição da Fox. Usar o menor número de pessoas possível era a chave para manter tudo sob sigilo.
O nome da Fox já tinha se espalhado pelo submundo, e o jeito reservado deles incomodava bastante gente. O submundo tinha suas próprias regras. Recusar-se a compartilhar qualquer informação sobre si mesmo era praticamente o mesmo que dizer “não confio em vocês” — o que dificultava qualquer trato com organizações maiores.
Mas Galf fez o que precisava ser feito. Usando todos os meios ao seu alcance, ele entrou em contato com os grupos listados pelo chefe. Usou dinheiro, exibiu força, sentou-se à mesa de negociações. Com tantos contatos sendo feitos, alguns começaram a suspeitar que a Fox estava planejando algo grande — o que acabou atraindo gente que estava escondida. Por esse movimento, Galf até se sentia orgulhoso.
Ao percorrer toda a lista com cuidado e formar alianças com praticamente todos os nomes, Kreat acabou não vendo quase nenhum dos incidentes sangrentos que normalmente aconteciam nessa época do ano. Pode-se dizer que todas as organizações do submundo de Kreat estavam, naquele momento, sob influência da Fox. Por mais grandiosos que fossem os planos do chefe, ele não ia sofrer com falta de mão de obra.
E ainda havia as unidades pessoais do chefe. Galf nunca perguntou a identidade delas, mas também não estavam fazendo esforço nenhum para se esconder. Grieving Souls e Cavaleiros da Tocha. Esses caçadores de elite eram a arma secreta do chefe. Eles agiriam na superfície, enquanto a aliança de Galf trabalhava por baixo. Esse tipo de divisão nunca era má ideia.
O chefe tinha dito que entregaria sua máscara para Galf se a operação fosse bem-sucedida. Galf escolheu acreditar. Ele realizaria essa operação única na vida — e então subiria ao topo da organização!
Usando máscaras de raposa sem o menor entusiasmo, as tropas pessoais do chefe entraram na sala conversando entre si.
— Que lugar deprê.
— Acho que tô sentindo cheiro de sangue. Maravilha. Quem é que eu corto?
— Eu acho adorável. Na verdade, gostei bastante. Dá pra fazer o que quiser sem ninguém ficar sabendo.
O tom era casual, mas eles praticamente transbordavam mana materializada. Na parte de trás do grupo estavam o Mil Truques (usando uma máscara de demônio por algum motivo) e Ponta. A porta se fechou atrás deles.
— Hmmm. Eu não sabia que existia um lugar desses em Kreat. Fascinante. Estou ansioso por isso. Talvez seja um campo de batalha à altura das Teurgias Milenares.
Por que esse cara não mantinha o título em segredo? Alguém tão imbecil assim realmente chegou ao Nível 8?
— Peço desculpas se estiverem se sentindo claustrofóbicos. Normalmente não temos tanta gente aqui — disse Galf.
— Ah, de forma alguma — disse uma mulher encapuzada usando uma máscara de raposa triste. — A propósito, posso perguntar qual é a sua relação com eles? — A voz era suave, mas o olhar não tinha nada de amigável.
Droga, o chefe não contou nada pra eles? Galf até suspeitava, mas agora estava claro o quanto o chefe era uma pessoa meticulosa — e complicada.
Ele pigarreou e disse:
— Sou Galf Shenfelder, da Sétima Cauda. O chefe me confiou essa operação. Claro que comandar as unidades pessoais dele está fora da minha alçada. Não tenho objeções se vocês preferirem seguir com as próprias missões.
— Sétima Cauda? Entendo — disse a mulher encapuzada. — Compreendo. Sou a esposa do chefe, Yuttri.
— O quê?!
— Você não pode sair dizendo uma coisa dessas só porque ele não tá aqui! — disse a Sombra Sufocada, dando um tapa na cabeça de Yuttri.
Ponta estava tremendo. Galf achou que ia ter um infarto, mas no fim a mulher só estava tirando sarro. Ele respirou fundo enquanto esperava Yuttri levantar a cabeça de novo.
— Há um espaço grande no subsolo — ele explicou. — Dado o tamanho da operação, não convidei todo mundo, mas os principais foram chamados. Eles aceitaram seguir nossas ordens, mas vão cooperar com mais entusiasmo se tiverem a chance de nos conhecer pessoalmente.
Acidentes faziam parte da vida de quem caçava tesouros. Cofres do tesouro eram manifestações de memórias distantes — e qualquer coisa podia acontecer nesses domínios anormais. Arriscar a vida nesses lugares acabava moldando caçadores com disposições inabaláveis.
Os Grieving Souls estavam excepcionalmente acostumados a situações inesperadas. O mesmo podia ser dito da arte incompreensível e sobre-humana do líder deles. Não receber nenhuma informação prévia já era o padrão. O amor pelo desconhecido era um dos segredos por trás do sucesso do grupo.
Eles seguiam Galf Shenfelder por uma longa escadaria. Eram seis: Sitri, Luke, Liz, Murina, Touka e Krahi. Não trocavam palavras — o único som era o eco constante de seus passos firmes.
Mas, à medida que caminhavam, algo começou a se formar lentamente na mente de Sitri — ninguém ali tinha ideia do que estava acontecendo. Naturalmente, os Grievers não entendiam a tarefa que Krai havia jogado sobre eles de repente, e parecia que Touka e a Princesa Murina também não sabiam de nada.
Dadas as circunstâncias, o trabalho de pensar ficaria com Sitri. Liz e Luke eram mais do tipo intuitivo, e nem Lucia nem Ansem estavam por perto dessa vez. Sem deixar transparecer no rosto, Sitri começou a organizar as informações em sua cabeça.
Essa escadaria é absurdamente longa, pensou ela. O que algo tão profundo no subsolo estaria fazendo em Kreat?
Krai tinha dito que conseguiu ajuda para encontrar o paradeiro das organizações da lista que Sitri tinha conseguido. Então, quando ele as despachou, ela tinha certeza de que era porque o ajudante de Krai precisava de reforço. Mas claramente não era isso o que estava acontecendo — um civil jamais conseguiria localizar uma organização criminosa.
O homem diante dela, Galf Shenfelder, claramente não era alguém comum. Ele exalava aquela aura distinta de quem possui uma grande quantidade de mana material e se movia como alguém com vasta experiência em combate. E ainda havia a máscara cobrindo o rosto. O homem que parecia ser subordinado de Galf também usava uma máscara de raposa, embora com um design bem diferente.
Krai os chamava de “Clube dos Máscara de Raposa”, mas Sitri conhecia bem o senso de humor do seu amigo de infância. Era o tipo de coisa que fazia jus ao título de “Mil Truques.” Ela também sabia que ele era um cafajeste que adorava pregar peças e provocá-la. Já tinha perdido a conta de quantas vezes ele puxou o tapete dela.
As máscaras de raposa lhe lembravam duas coisas: os fantasmas do Peregrine Lodge e os clones produzidos pela Contra-Cascata. Aqueles clones usavam máscaras de raposa, mas só isso não era suficiente para tirar conclusões.
Apesar dos anos trabalhando na Torre Akáshica, Sitri sabia quase nada sobre a Raposa das Nove Caudas. Eles eram tão evasivos que, mesmo se tentasse, ela jamais teria conseguido contato. Nunca tinha nem cogitado que a Contra-Cascata era um dos membros e mal conseguia acreditar quando descobriu que Krai tinha feito dele um fantoche.
Embora aparentasse calma, havia duas Sitris em conflito dentro dela. A Sitri pró-Krai dizendo para confiar nele, e a Sitri também pró-Krai dizendo que estava sendo zoada de novo e que era melhor aceitar. No geral, essa última vencia. Era improvável, mas dado que Krai a tinha enviado, era possível que o tal Clube dos Máscara de Raposa fosse exatamente isso — um clube.
Sou uma concha. Sou uma pedra. Alegria e desespero são conceitos que não me afetam.
Enquanto repetia esse mantra para controlar os batimentos do coração, Galf parou. Tinham chegado ao fim da escadaria.
— Só pra deixar claro, a gente só vai fazer as apresentações — disse ele.
Galf abriu a porta de ferro. Um ar frio e mofado soprou sobre eles. O coração de Sitri disparou quando viu o que havia lá dentro. Uma onda de sussurros se espalhou, inúmeros olhos se viraram para eles. Luke, o maníaco da espada, arregalou os olhos ao vê-los, e Touka apertou o punho por um breve instante.
Dentro da sala havia dezenas de pessoas — nenhuma delas normal. Perto da porta, um homem grande os encarava com intensidade.
— Ora, ora… olha só quem resolveu aparecer. Já tava ficando de saco cheio de esperar — disse ele.
— Escuta aqui, Raposa, a gente tem limite pra esse tipo de coisa — reclamou outro.
Sob olhares de curiosidade, hostilidade e aliança, Galf deu de ombros e disse:
— Desculpa, mas como vocês sabem, nosso lema é o sigilo.
São as pessoas da minha lista! pensou Sitri.
Entendendo o que estava acontecendo, sua irmã piscou e gemeu:
— Ah, sério? Já tava achando estranho. Como ele conseguiu isso?
— Hm? Como é? — disse Luke. — Posso cortar esses caras?
Era coincidência demais. Invadida por emoções, sua força a abandonou. Ele não estava zoando. A Sitri pró-Krai estava certa! Seu coração acelerou de vez.
Eu estava certa em acreditar em você, Krai!
Krahi olhou para a multidão com curiosidade.
— Tem um monte de gente aqui. Que grupo é esse?
— Isso é inesperado — disse Touka. — O que eu faço? Isso não tava no contrato.
Isso podia ser um problema. Os Cavaleiros da Tocha sempre ficavam do lado da justiça e só aceitavam causas limpas e corretas. Antes que Touka se irritasse, Sitri tratou de convencê-la com um sussurro discreto.
— Touka. Eu pago o dobro do valor normal.
Touka lançou um olhar de reprovação para Sitri. Lutava por dinheiro, mas também era bem rígida com seus princípios. Seu silêncio foi um ato de gentileza, uma consideração pelo momento. Sitri ficou muito grata.
— Triplo do valor.
Silêncio.
— O chefe pode até ser um palhaço, mas ele nunca pediria pra gente fazer algo imoral. Você sabe disso, né? Ou será que conspirações não são do seu agrado?
Touka gemeu diante da escolha cuidadosa das palavras.
— Dessa vez você ganhou — disse ela. — Deixa eu te dar os parabéns por isso, Yuttri.
— Oh?
Sitri não precisava de elogios quando era ela quem devia estar agradecida. Queria descobrir mais sobre a Raposa do que sobre qualquer outra organização. Ficou desapontada ao saber que Telm tinha sido trancado naquele cofre de tesouros, mas agora sentia que sua paciência tinha valido a pena. Queria abraçar Krai e dizer o quanto era grata.
— Conquistamos a cooperação de todos da lista — disse Galf para Sitri. — Diga ao chefe que os preparativos estão completos e podemos agir a qualquer momento. Ele falou algo sobre a cadeia de comando?
Seus movimentos despreocupados e desleixados mostravam o quanto ele estava confiante. Unir tantos grupos diferentes não devia ter sido fácil.
— Você superou nossas expectativas, Galf — respondeu Sitri. — Vou informar o chefe.
Agora, ela entendia. Sitri sabia exatamente o que Krai estava pensando. Tudo o que ele fazia tinha um propósito. Decifrar suas intenções era a especialidade de Sitri. Era isso que a tornava indispensável. Ainda havia pontos nebulosos, mas ela já sabia o que precisava fazer.
Ponta estava tremendo desde que tinham entrado na sala. Sitri segurou o ombro da garota e a puxou pra frente, então disse para Galf:
— Nossa comandante será Ponta. Sua verdadeira identidade pertence a alguém de posição muito elevada.
— Hã?! — gritou Ponta, sua voz ecoando pela sala.
Sitri lhe lançou um olhar de incentivo silencioso.
— Suas últimas lições serão sobre habilidades de liderança! Dê tudo de si!
Com a reunião encerrada e os forasteiros fora dali, Galf fechou os olhos. As únicas pessoas restantes eram ele e seus subordinados. Eram leais a ele. Se fosse preciso escolher, escolheriam ele em vez da organização.
— A reunião foi um sucesso — disse. — Podemos agir assim que as ordens chegarem. Mas tem algo me incomodando.
A organização possuía uma hierarquia inflexível. As ordens vindas de cima precisavam ser obedecidas sem questionamento, e até mesmo membros de patente superior podiam ser silenciados se desafiassem tais ordens. Era uma estrutura rígida, mas ainda assim existiam regras não ditas.
— Fui eu quem formou essa aliança. Entregar o controle agora é como deixar que outro receba os créditos. Isso não é como costumamos fazer as coisas.
Quando Galf perguntou sobre a cadeia de comando, estava apenas seguindo o protocolo. Em tese, o direito de comando seria dele, já que foi quem reuniu todas essas forças. Se esse direito lhe fosse tirado, ao menos deveria ter sido informado do motivo. Mas o que mais o incomodava era o fato de que essa operação era sua chance de virar um dos chefes. Ser destituído do controle agora não fazia sentido.
— Alguém sabe quem é essa tal de Ponta? Podemos contatar a sede se for preciso. Ela não parece ser parte dos Grieving Souls.
Ele percorreu seus subordinados com o olhar, mas todos balançaram a cabeça negativamente. Ela não tinha a aura de uma caçadora de alto nível, e o material de mana dela era visivelmente inferior ao dos outros caçadores. A princípio, Galf pensou que ela fosse uma novata no grupo, mas se Yuttri estava dizendo a verdade, havia algum motivo específico para ela ter sido escolhida.
— Acabei de lembrar — disse um dos subordinados de Galf —, recebemos uma mensagem da sede mais cedo. Disseram que o Mil Truques foi convocado para orientar a princesa imperial de Zebrudia.
— Isso é absurdo. Ela era um dos alvos secundários da operação do Telm.
Murina Atolm Zebrudia, a princesa imperial de Zebrudia, era uma figura importante, mas com quase nenhuma presença dentro do império. Também havia sido um dos alvos da fracassada tentativa de assassinato de Telm, o Contra-Cascata.
— Visualmente, elas são parecidas — disse o subordinado. — Cor do cabelo, altura, tudo combina. Ela pode não ter autoridade, mas ainda ocupa uma posição elevada.
— Ou seja, tem coisa aí que não estão nos contando.
Se quiser enganar seus inimigos, comece enganando seus amigos. Fox era atualmente uma das maiores ameaças ao grande Império Zebrudiano. Mas mesmo as maiores entidades eram vulneráveis a ataques internos. Galf sentiu um arrepio subir pela espinha, como se tivesse acabado de vislumbrar uma conspiração gigantesca.
— Será que conseguiram trazer a princesa imperial pro lado deles? Isso significaria que o fracasso do Contra-Cascata foi mesmo intencional? Ter a princesa imperial sob a influência da Fox abalaria até Zebrudia… mas é difícil acreditar.
Não era preciso ser um gênio para perceber que a Fox teria muito a ganhar ao atrair um membro da família imperial. E que forma melhor de mostrar a nova lealdade dela do que colocá-la no comando de uma operação?
Galf tinha ouvido que a operação em Kreat seria um passo chave na declaração de guerra da Fox contra o mundo. Receber essa notícia ao mesmo tempo que a traição da princesa imperial seria um choque capaz de ecoar por todo o continente. Poderia isolar o império. E quem lideraria essa investida seria o novo chefe da Fox: Galf Shenfelder.
— Interessante. Estamos diante de um ponto de virada na história.
Eles tinham um grande trabalho pela frente. Galf ainda não tinha visto o plano do chefe em sua totalidade. Mas talvez o chefe pensasse que, se ele não fosse capaz de deduzir isso sozinho, não merecia usar a máscara. Da mesma forma, a verdadeira identidade de Ponta era óbvia o bastante para quem prestasse atenção. “Incompetente” seria uma descrição justa para qualquer um que não conseguisse juntar as peças.
Galf quase tremia. Pensar que nem mesmo alguém de sua posição havia sido informado de que os Grieving Souls e os Cavaleiros da Tocha eram aliados da Fox. Nem que a princesa imperial estava do lado deles. Era uma carta na manga, uma que perderia valor se suas alianças fossem reveladas. Usada na hora errada, anos de trabalho poderiam se desintegrar num piscar de olhos.
— Não há necessidade de contatar a sede — decidiu Galf. — Vamos seguir as ordens e confiar na Ponta. Preparem-se para agir a qualquer momento! Vamos continuar com o Plano A.
O momento estava próximo. O mundo estava prestes a mudar. Um sorriso sombrio se formava nos lábios de Galf quando o subordinado responsável pela comunicação entrou correndo.
— Galf, acabamos de receber uma mensagem da sede. Querem saber o status do pacote do Plano A.
Surpreso, Galf franziu o cenho. Só havia um item ao qual poderiam estar se referindo. Estava sob forte segurança em um museu do império, e garanti-lo havia sido a Fase Um do Plano A.
— Seguimos o plano e entregamos a Chave da Terra para o chefe. As informações deles devem estar desatualizadas — disse Galf.
Tendo se formado a partir dos restos de uma agência de inteligência, a Fox era especialista em informação. Um atraso de algumas horas era normal, mas a sede estar com dias de defasagem era raro. Com certeza o chefe não teria esquecido de informá-los…
Tradução: Carpeado
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Tradução feita por fãs.
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