Grieving Soul – Capítulo 2 – Volume 7
Nageki no Bourei wa Intai shitai
Let This Grieving Soul Retire
Light Novel – Volume 07 – Capítulo 2:
[O Autêntico e o Falso]
— Amanhã eu deveria fazer meu exame de qualificação para um bastão espiritual composto avançado — murmurou Lucia, do assento à minha frente.
O respeito que vinha com o título de caçador de alto nível permitiu que nossa carruagem passasse pelas inspeções e caísse na estrada rapidamente. Só haviam se passado algumas horas desde que eu me encontrara com a Maldição Oculta, e eu duvidava que até mesmo ela esperasse que eu agisse tão depressa.
Do lado de fora, eu podia ouvir o som trovejante dos passos de Ansem correndo ao lado da carruagem. Ele era bom em reduzir o som dos próprios passos, mas havia um limite para o que você podia fazer quando era tão pesado. Com ele ao nosso lado, a maioria dos monstros se mantinha longe. Até mesmo fantasmas, que supostamente não tinham medo, saíam correndo ao nos ver.
Finalmente, me permiti relaxar um pouco. Parecia que toda viagem recente que eu fazia passava num piscar de olhos. As habilidades de coordenação da Eva não podiam ser subestimadas. Parecia que tudo dava certo sempre que eu pedia algo pra ela.
Mas será que era mesmo certo levar a princesa imperial conosco? Ela só tinha vindo até a sede do clã para conversar. Tudo bem, eu já tinha conversado com o imperador sobre um treinamento mais intensivo, mas ainda não tínhamos marcado uma data.
A princesa imperial e suas duas acompanhantes pareciam curiosamente dispostas a aguentar correr ao lado da carruagem. Pelo visto, o imperador tinha dito a verdade quando afirmou que Murina estava mais entusiasmada com os treinos.
— Por que você estava organizando tudo isso bem antes do torneio? — perguntei.
— Você! Que! Veio com essa história de torneio do nada! Argh!
Talvez por estarmos só nós dois na carruagem, ela agia sem a costumeira contenção.
— E eu também perdi a palestra que eu deveria ter assistido em troca de poder participar. Ai, o que será que meu mentor vai dizer? Você precisa me avisar com antecedência! Tipo agora, que simplesmente disse que a gente vai—
— É, aham.
— Pelo amor de Deus, me escuta!
Hmm. Então meu jeito de ignorar não funciona? Sabia que você não seria tão fácil assim.
— Todo mundo tem planos! — ela continuou. — O Luke ia matar um dragão amanhã pra pagar o ingresso dele. A Siddy e a Liz também…
Espera. Então ele devia mesmo estar aqui?
Luke e os outros membros da escola dele eram regularmente convocados pra exterminar criaturas perigosas. O motivo pelo qual ele se safava de cortar tantas pessoas era porque ele tinha cortado um pouco mais monstros do que humanos. Se ele tinha um compromisso tão importante, podia muito bem ter nos encontrado depois. Era isso que a Eva e os outros membros do clã planejavam fazer.
— Vocês me dão prioridade demais — falei. — Eu fico bem, desde que você esteja comigo.
— Pelo amor de Deus!
Não reclama. Eu preciso de você. Alguém tem que carregar minhas Relíquias.
— Da mesma forma, fui forçada a despachar, digo, confiar um experimento agendado à Talia — disse Sitri, do banco da frente. Ela estava ali porque tinha perdido no pedra-papel-tesoura. — Mas acho que está tudo bem. Aquele trabalho não é meu foco agora. Eu detestaria que meu projeto atual fosse interrompido, mas acho que posso continuá-lo em Kreat.
Pelo visto, todo mundo estava ocupado. As prioridades deles estavam completamente embaralhadas. Eles deviam saber que meu convite foi uma coisa de momento. Então por que aceitaram tão prontamente? Mas eu não ia me desculpar, porque duvidava que fosse isso que eles queriam. O que eles esperavam era gratidão.
— Pensando bem, onde está a Eliza? — perguntei.
— Mmm. A Liz disse que viu ela hoje mais cedo.
Eliza ia aonde bem entendia. Pelo menos parecia que ela estava bem.
Bocejei e aproveitei a tranquilidade. Eu estava de boa até voltar para a capital imperial, depois do Festival do Guerreiro Supremo. Talvez eu só ficasse em outra cidade até tudo se acalmar. Mas aí algo me ocorreu.
Eles podiam me seguir. Eles iam me seguir, né? Arnold fez isso. Por que Gark e a Névoa Caída não fariam o mesmo?
Eu estava assumindo que estaria seguro ao me afastar da capital imperial. E não só isso, esqueci de garantir que a Eva manteria a boca fechada. Isso era ruim. E pra piorar, eu não estava gostando do que ouvia lá fora.
— Corre mais! — gritou Liz. — Para de arrastar os pés, princesa!
— Já que estamos nisso, que tal um treino de combate? — rugiu Luke.
A princesa imperial nem gritou.
Depois de algumas horas de viagem, bem quando eu estava começando a me acostumar com a algazarra lá fora, um cheiro repugnante e familiar foi trazido pela brisa. Lucia fechou seu livro e enfiou a cabeça pra fora da janela.
Olhei pra fora e vi imediatamente. Bem distante, na direção para onde estávamos indo, uma cidade estava em chamas. Colunas de fumaça negra se erguiam do solo.
— Um jabe! Manda um jabe! — ouvi Luke gritando.
— Que paisagem bonita — murmurei.
— Eu desisti de lutar contra um dragão pra estar aqui!
Você não desistiu. Tá fugindo!
— Mais do que um dragão! Me dá algo melhor que um dragão! Vai! Me dá um dragão que usa espada!
— Vamos, princesa! Hora de uma batalha de verdade!
Liz parecia absurdamente feliz por ter um novo brinquedinho.
Acabou. Perdoa eu, Deus.
Os passos começaram a se afastar. Pelo visto, estavam indo na frente. Sem dizer nada, Lucia pegou seu bastão e desceu da carruagem. Muito confiável, minha irmãzinha.
— Então por que esse lugar tá pegando fogo? — falei em voz alta.
— Você vive escolhendo lugar que tá pegando fogo — resmungou ela.
Um absurdo.
— Por agora, vamos começar apagando aquilo — disse Lucia, enquanto os braceletes em seus pulsos começavam a brilhar. Nuvens se formaram no céu, e logo a chuva castigava a terra. A tempestade, no entanto, a evitava.
— Esses braceletes são incríveis — disse ela, olhando para eles com espanto. — Com a Graça de Hydrogod, talvez eu tenha uma chance de vencer?
Olhei para os portões da cidade e vi que o fogo já tinha sido controlado. Lucia claramente tinha melhorado. Ela voltou para a carruagem e colocou o símbolo do nosso grupo: a máscara de caveira sorridente. Sitri enfiou a cabeça pra fora e vi que, em algum momento, ela também já tinha colocado a dela.
— Krai, estamos entrando na cidade. Sua máscara.
— Mmm. Certo.
Elas já estavam acostumadas a usar as máscaras com frequência, mas eu não, então tinha me esquecido completamente. Eu não gostava de ficar cego, mas se alguém visse meu rosto, poderia ser bem mais problemático.
Pensando agora, escolher um símbolo que escondesse nossos rostos foi uma ótima decisão. Teria sido genial… se eu não tivesse esquecido de fazer buracos pros olhos. Suspirei e comecei a revirar minha bagagem. Meus olhos se arregalaram. Eu tinha esquecido minha máscara.
Ah, que beleza. Logo eu, o líder do grupo.
Por algum motivo, tudo que eu tinha era a máscara deixada pelo fantasma na Pousada Peregrine. Sem outra opção, coloquei ela mesmo.
— E aí, como ficou? — perguntei à Lucia.
— Por que você tá usando ESSA máscara? É bizarra demais!
— Mas é mais bonita do que a outra.
— Não foi você que desenhou as duas?!
Ela tinha total razão.
— Consegue enxergar com isso aí? — ela perguntou.
— Claro que não. Não tem buraco pros olhos.
Lucia soltou um suspiro profundo. Mas eu já tinha uma solução especial preparada. Tirei a máscara e comecei a vasculhar minhas Relíquias. Encontrei o que procurava — um pingente. Ele era feito no formato de um olho e pendurado numa corrente de prata. Esse era o Terceiro Olhar, a mais recente aquisição da minha coleção. Com ele, eu podia enxergar mesmo de olhos fechados! Agora eu não precisava mais andar de mãos dadas com Sitri ou Lucia por causa da máscara! (Custou só cento e cinquenta milhões de gild.)
Coloquei o pingente no pescoço e então vesti a máscara. Mesmo com os olhos cobertos, conseguia enxergar de alguma forma. Era uma sensação estranha, mas bem melhor do que ficar completamente às cegas. Só espero que ninguém ache que eu sou um caso perdido.
Virei pra Lucia e vi que ela rapidamente recolheu a mão que tinha estendido.
Enquanto preenchíamos a papelada pra entrar na cidade, Sitri também conseguiu algumas informações.
— Perguntei por aí e parece que foram pessoas as culpadas — me informou.
— Pessoas, é?
Talvez por causa de todas as minhas experiências ruins recentes, achei até que isso era melhor do que lidar com fantasmas ou dragões.
— Disseram que alguns bandidos se esconderam no meio de um grupo de viajantes e agiram todos de uma vez. Pelo visto, foi uma operação coordenada, com bastante gente envolvida. Mas parece que o plano deles não foi muito bem pensado.
Não dava pra saber exatamente o que Sitri sentia em relação a isso, mas essa cidade era muito maior do que aquela cidade das termas em que estivemos. Se esses caras conseguiram realizar um ataque aqui, talvez fossem mais organizados que aquele esquadrão que atacou Suls. Eu só esperava que o resto dos meus amigos voltasse logo. O problema era que eu nem sabia pra onde tinham ido.
— Com tantos caçadores de tesouros por aqui, era óbvio que iam falhar — continuou Sitri. — Se tinham gente suficiente pra incendiar a cidade, podiam ter usado esse pessoal pra algo mais útil. Que desperdício.
— Do jeito que espalharam os focos de fogo, dá pra ver que machucar pessoas nem era o objetivo principal — acrescentou Lucia.
— De fato. Aparentava ser algo organizado, mas os métodos foram bem toscos.
— É, aham — concordei, só pra não ficar de fora.
As duas pareciam bem acostumadas a trocar ideias assim.
A chuva ainda caía, mas a magia de Lucia nos mantinha secos. Mantendo o perfil baixo, fiquei de olho, tentando encontrar meus amigos. Foi quando ouvi um estrondo alto vindo da rua à frente. Arrepiei. Sitri parou.
— Caiam fora, ratos! — uma voz ribombou como um trovão. — Nenhum covarde vai parar Hanneman, o Braço de Ferro!
Ave Maria.
Com um rugido ensurdecedor, o chão tremeu. As pedras do calçamento foram partidas e reviradas. No centro do caos, havia um homem com cerca de sessenta por cento do tamanho do Ansem. Ele segurava um bastão de metal com uns dois metros de comprimento e mais grosso que o meu braço. “Pilar” era uma descrição mais apropriada. Ele balançava aquilo como se fosse um graveto, mas devia ser pesado demais até pra eu levantar.
Guardiões e caçadores cercaram o brutamontes na hora, mas ele os lançou longe com um único golpe.
Ah. Esse deve ser um dos bandidos.
— Braço de Ferro — repetiu Sitri. — Autoproclamado, com certeza. Ninguém tem esse título.
— Igual o Luke, que se chamava de Lâmina do Testamento — comentou Lucia.
— Acho que ele ainda se chama assim.
Eu me perguntava qual era o problema do tal Braço de Ferro, que parou a poucos metros da gente e começou a demolir um prédio com o seu pilar. Parecia que estava fugindo de algo, mas de repente resolveu parar sem motivo.
Ele ainda não tinha nos visto, mas era questão de tempo. E, pela experiência, eu sabia que isso nunca terminava bem. Totalmente compreensível. Quem é que não atacaria um grupo com máscaras suspeitas como as nossas? A máscara da caveira sorridente já tinha atraído vários atacantes ao longo dos anos. Quem foi o idiota que inventou esse design assustador?
— Vamo lá, vamo lá, seus insetos! Enfrentem Hanneman, se tiverem coragem!
Será que dá pra culpar os guardas por terem confundido esse cara com um viajante? E por que ele tá gritando o próprio nome no meio de um surto?
Santo céu. Se Lucia e Sitri não estivessem comigo, eu já teria metido o pé.
Os guardas decidiram que não era boa ideia encarar o Braço de Ferro de frente, então começaram a cercá-lo aos poucos. Por que estavam sendo tão óbvios? Por que o Luke ainda se chamava de Lâmina do Testamento? Enquanto esses pensamentos passavam pela minha cabeça, uma luz ofuscante envolveu o homem. Com o pilar ainda nas mãos, o Braço de Ferro voou pelos ares e caiu não muito longe de onde estávamos escondidos.
A expressão dos guardas congelou. Lucia deu um passo à frente. Ouvi passos leves no meio da chuva e virei na direção. Vi um jovem alto, de manto preto e um cajado imponente. Imune à chuva, ele se mantinha firme com uma postura digna de um monarca. Soltei um suspiro.
Mas o que mais chamava atenção era o rosto dele.
— Aquela máscara…
Era uma máscara de caveira. Parecia com as que usamos nos Grieving Souls, mas o design elegante dava um ar completamente diferente. E ela tinha buracos pros olhos! Confesso que fiquei com inveja.
O homem bateu o cajado no chão e anunciou, com uma voz que ecoava mesmo em meio à chuva:
— É só isso, Braço de Ferro? Duvido que ainda consiga me ouvir, mas vou dizer mesmo assim. Meu nome é Krahi Andrihee! O Mil Artes e líder dos Bereaving Souls!
Todos ficaram em choque. Ele tinha força suficiente pra derrubar aquele brutamontes com um só golpe. Tinha um carisma inabalável, nascido de sua postura régia. Os guardas começaram a cochichar entre si.
— É ele mesmo? O Alma líder sobre quem todo mundo fala?
— Dizem que é o homem mais forte da capital imperial e que quase nunca sai das sombras.
— O que ele tá fazendo aqui? Será que é mesmo ele?!
— Disseram que o tal de Proteano não sei o quê apareceu mais cedo também.
Prendi a respiração, não conseguia evitar ser arrastado pela empolgação deles.
— Esse é o verdadeiro Mil Truques?! — gritei antes de conseguir me controlar. — Que máscara irada!

Ouvi um gritinho adorável vindo da Lucia. Isso não acontecia com muita frequência.
— Ele é real?! Ah, me poupe — ela resmungou.
— Mil Artes — repetiu Sitri com uma voz serena, ignorando a minha empolgação. — Esse título não existe. Deve ser autoproclamado.
Apesar de sua fúria violenta, Hanneman, o Braço de Ferro, agora estava desmaiado. Como se quisesse mostrar que havia perdido o interesse, o Mil Artes se virou com um movimento elegante da capa e se afastou. Ele se portava com orgulho e austeridade, sem se importar com os inúmeros olhares voltados para ele. Definitivamente, não era um sujeito comum. Até seus menores movimentos eram refinados. Ele era estiloso. Um durão de verdade.
E então finalmente me dei conta — será que esse era o Krahi Andrihee da lista da Eva? Não poderia haver mais de um “eu” de verdade, então não tinha como estar enganado. Que empolgante!
— O Mil Artes. Krahi Andrihee — falei para mim mesmo. Parecia que eu estava vendo uma lenda viva. — Será que ele vai participar do Festival do Guerreiro Supremo?
— Ao que tudo indica — respondeu Sitri num tom monótono.
De repente, Krahi virou na nossa direção. Lucia começou a tremer. Olhos da cor de ônix espiavam por baixo da máscara. O cabelo dele era da mesma cor. Ele estava encharcado pela chuva, mas isso só aumentava sua presença. Percebi que tanto Sitri quanto Lucia haviam tirado as máscaras sem que eu percebesse. Comecei a ficar nervoso.
— Essa máscara é bonita, rapaz — ele me disse.
Quanto mais eu olhava, mais certeza tinha de que ele era o verdadeiro. Nós compartilhávamos muitos traços, mas cada detalhe dele era cem vezes mais estiloso do que eu. Lembrei de um ditado sobre como todo mundo tem três sósias por aí. Era muito mais provável que eu fosse a cópia. Mas até dizer que eu me parecia com ele parecia presunçoso.
— Hm. Me desculpe — ele disse —, mas não pude deixar de ouvir a conversa. Por acaso vocês três são meus fãs?
— Isso mesmo! — respondi. — Posso pegar um autógrafo?
— Hããã?! — soltou Lucia.
— Mas é claro! — respondeu Krahi.
Na real, eu nem era tão fã assim, mas não tinha escolha senão me tornar um. Ele era igualzinho a mim e superforte.
Numa situação dessas, eu normalmente daria um sorriso sem graça, mas Krahi apenas assentiu. Essa é a diferença entre o original e a cópia. Ele tirou do bolso uma caneta e um pedaço de papel e escreveu com um movimento fluido. Fiquei profundamente impressionado. A essa altura, já o considerava tão incrível que jamais conseguiria imitá-lo.
— Aqui está — disse ele. — Essa é a minha primeira vez nesta cidade, o que faz de você meu primeiro fã por aqui.
— Muito obrigado! Olha, meu nome é Krai.
Os olhos de Sitri e Lucia quase saltaram das órbitas. Krai e Krahi. Que coincidência engraçada.
Krahi Andrihee engoliu em seco e então disse:
— Ora ora. Que reviravolta do destino!
Ele parecia genuinamente feliz. Fiquei imaginando como reagiria ao descobrir que nossos sobrenomes também eram parecidos.
— E eu não pude evitar ficar curioso…
— Incrível! Que reviravolta adorável do destino! Agora, adoraria apresentar vocês ao resto dos Bereaving Souls, mas infelizmente ainda não me reuni com eles. Chegaram antes de mim, sabem.
— Que pena. Que tipo de grupo eles são?
— Ah, de fato, os nomes deles ainda não são muito conhecidos. Mas não vejo motivo para escondê-los de vocês. — Krahi levou a mão ao queixo, numa pose bem durona. — Primeiro, um Espadachim de inteligência excepcional, que encurrala seus inimigos com calma — Kule Saicool, o Sortie Proteico. Ele é o designer desta máscara e o cérebro do nosso grupo — declarou Krahi com orgulho.
Fui pego de surpresa. Kule parecia uma versão evoluída de Luke, e soava muito legal.
Os ombros da Sitri tremiam. Não a via assim fazia um bom tempo. Ela sempre mantinha uma postura fria, mas na real tinha um senso de humor muito bom, embora meio estranho. Enquanto isso, a expressão da Lucia estava tão rígida quanto pedra. A última vez que a vi assim… bem, na verdade não fazia tanto tempo assim.
— Em seguida, uma Ladina perspicaz. Às vezes usa sua esperteza para o mal, mas já salvou nosso grupo em várias ocasiões — Elizabeth Smyat, a Sombra Sufocada. Ou Izabee, como gostamos de chamá-la.
Smyat. Um nome até fofinho. E Izabee. Hmm.
Parece que eu não era o único que tinha um sósia. Era uma coincidência incrível, mas nem se comparava a encontrar um cofre do tesouro nos céus. E como uma sombra poderia ser “sufocada”, afinal?
Olhei para a Smart ao meu lado, cabeça baixa e ombros tremendo, e perguntei ao Krahi:
— Por acaso vocês têm uma Alquimista?
— Temos sim! Kutri Smyat, a Ignorável!
Isso sim era algo. Não fazia muito sentido, mas Krahi falava com tanto orgulho que eu tinha certeza de que ela era uma boa garota, assim como nossa Sitri.
— Incrível, né? — falei, cutucando o ombro trêmulo da Sitri. — Mas duvido que ela seja tão inteligente quanto você.
— Ignorável — disse minha querida amiga com uma voz baixa e forçada. — Por favor. Se esforce um pouco mais. — Então me deu um tapa.
O belíssimo Krahi se aproximou da Lucia — que estava tão expressiva quanto uma estátua — e se curvou um pouco para encará-la nos olhos.
— Não precisa ficar tão tensa, senhorita — ele disse. — Vocês três são meus primeiros fãs. Que tal um autógrafo?
Sem dizer uma palavra, Lucia fechou o punho e, num movimento fluido, socou Krahi bem no rosto.
Quando reencontramos o resto do grupo, todos ficaram perplexos ao ouvir nossa história.
— Hããã?! Ele não é nosso fã?! — gritou Liz.
— Droga — disse Luke, com um estalo de língua —, eu tava entediado, então pensei em cortar ele no meio, mas a Liz disse que eles podiam ser um grupo subordinado nosso.
Ansem resmungou, e nossa nada facilmente ignorável Smart sinalizou concordância com um gemido.
Por que raios a gente teria grupos subordinados?
Depois de conversar com eles, descobrimos que o objetivo dos bandidos era uma Relíquia sob forte segurança num museu local. Os incêndios foram causados pra lançar a cidade no caos, mas graças à ajuda de pessoas como meus amigos (e o Krahi), a situação foi resolvida sem nenhuma vítima e a Relíquia permaneceu segura. Eu queria muito ver que tipo de Relíquia justificava a cooperação de tantos criminosos, mas não tinha tempo pra isso.
Ser forçada a correr tudo aquilo só para depois ser jogada em um time de assalto deixou a princesa imperial e sua guarda completamente exaustas. Liz não estava nem um pouco incomodada com isso; ela estava muito mais interessada na expressão da irmã.
— Aliás, Siddy — disse ela —, o que tá acontecendo com seu rosto? Tá todo vermelho.
— Parece que ela achou algo engraçado — falei.
— Ah, claro. “Ignorável” — disse Sitri. — Isso não faz o menor sentido. Que nome idiota. Como é que alguém acaba com um título desses?!
— É, uhum. Enfim, parece que vamos ter problema pra nos dar bem com eles. Nunca vi a Lucia socar um estranho daquele jeito antes.
O jeito como Krahi derrubou Hanneman com facilidade, mas depois foi mandado voando por um soco da Lucia, foi totalmente absurdo. Mas Krahi a perdoou, um sinal da sua profunda magnanimidade.
— C-Como é que vão me culpar? — protestou Lucia. — Aquilo foi demais.
— Ah, esqueci de perguntar se eles tinham uma sósia da Lucia.
— Krai — disse Sitri —, a Lucy ama demais o irmão pra deixar esse tipo de coisa—
Antes que Sitri pudesse terminar a piada, o punho da Lucia acertou ela em cheio. Um verdadeiro feito pugilístico. Parecia que ela melhorava a cada soco. Logo, ia conseguir enfrentar o mundo inteiro.
Ignorei a algazarra dos meus amigos e, tentando iniciar uma conversa com Krahi, falei com uma voz de detetive durão:
— Tô ansioso pra ver ele no Festival do Guerreiro Supremo.
Um homem de estatura mediana, vestindo um casaco preto e usando uma máscara de raposa, estava frente a frente com um caçador temível. No momento em que Galf Shenfelder, o Rei dos Ladr… Ladinos e Raposa da sétima cauda, viu aquilo, achou que seu coração ia parar.
O plano estava indo bem. Eles tinham um time de distração e outro para roubar a Relíquia. Até tinham infiltrados. O fracasso era praticamente impossível, e de fato, conseguiram fugir com a Relíquia. A distração feita por Hanneman tinha funcionado, e ninguém percebeu que o item em exposição tinha sido trocado por uma falsificação.
Então por que havia um homem com uma máscara de raposa lá atrás? Raposas eram o símbolo da Raposa Sombria de Nove Caudas. A maioria dos membros possuía uma máscara vulpina e as usavam nas operações. Mas poucos sabiam que uma máscara de raposa branca era prova de que alguém pertencia à alta cúpula. O próprio Galf Shenfelder tinha uma posição bem elevada, e só tinha visto uma daquelas máscaras uma vez antes.
A Raposa Sombria de Nove Caudas foi formada depois que seu fundador adquiriu uma máscara de um cofre de tesouros habitado por um deus. A máscara era linda; só de olhar dava um arrepio na espinha. E a máscara usada por aquele jovem era, sem dúvida, a verdadeira.
Galf mal conseguia acreditar. Os membros da alta cúpula raramente saíam das sombras, mas aquele homem estava ali, em plena luz do dia. Inconcebível. Os membros normais usavam máscaras de raposa durante as missões para divulgar a organização, mas aquilo era totalmente diferente.
Mesmo enquanto executava o plano, Galf não sentia medo. Mas ao ver aquela máscara branca, sentiu um calafrio. Foi uma sensação nova pra ele. A única vez que tinha sentido algo parecido foi quando Hanneman foi capturado, mas aquilo foi só um incômodo menor.
Galf se interrompeu. Percebeu algo. O homem da máscara branca estava conversando com aquele caçador. Estava falando com o Mil Truques. Aquele era o homem que acreditavam ser responsável por deter o Contra-Cascata e o Chamador de Dragões. Será que o chefe estava tentando avaliar o inimigo com os próprios olhos?
Os chefes da Raposa não eram estranhos ao combate. Alguns rumores diziam que os da cúpula estavam no nível de um caçador nível 10. Um rumor extraordinário, mas não impossível. Para Galf, aquele homem de máscara parecia completamente indefeso, mas aquilo podia ser só confiança.
Nada parecia ter sido resolvido na conversa deles. O chefe falou com o Mil Truques, e o Mil Truques nem parecia perceber quem estava na frente dele.
Felizmente, Galf e seus companheiros estavam prestes a iniciar uma grande operação. Ele tinha uma forma de receber o chefe e confirmar que era mesmo quem parecia ser. Galf fechou os olhos, ajustando o foco. Precisava ter certeza. Com isso em mente, saiu correndo.
Eu realmente me sentia mais seguro com o resto do grupo por perto. Enquanto afastávamos monstros e os encrenqueiros de sempre, seguimos até nosso destino. Já tinha tido um encontro legal, então talvez essa sorte continuasse.
Talvez minha má sorte combinada com a da Murina tenha virado sorte positiva. Pera. Já não falei isso antes?
— Realmente é diferente quando você tá com a gente, Krai — disse Luke, depois de cortar uma criatura lupina com sua espada de madeira.
— Diferente como?
— Esses caras não são grandes coisas, mas são bom treino pro torneio.
Ansem grunhiu, concordando com nosso nada estiloso Luke.
Ei, me digam, o que é que é diferente?
Sempre me perguntava o que meus amigos faziam quando eu não tava por perto, mas eles sempre me chamavam, então não achavam que eu era um peso.
— Não pense! — ralhou Liz. — Você não precisa usar esse cérebro inútil, só anda! Se você não matar eles, os outros vão matar primeiro! Não pense, só mate qualquer inimigo no seu caminho!
A princesa Murina soltou um grito, bem mais alto que antes.
— Alteza Imperial, cuidado! — gritaram os guardas.
Realmente… é meio pacífico. De um jeito esquisito.
Apostaria que nosso grupo era o único que competia por abates. Mas será que os Grieving Souls também faziam isso?
Esse festival era conhecido em todos os cantos. Vivíamos numa era dominada pelos recursos retirados dos cofres de tesouros. Qualquer um que conseguisse derrotar monstros poderosos e fantasmas ganhava atenção.
A empolgação em torno do Festival do Guerreiro Supremo superava até a do leilão de Zebrudia. Estávamos seguindo por uma estrada que cruzava várias nações, e à medida que nos aproximávamos do destino, encontrávamos cada vez mais carruagens indo na mesma direção.
Não eram só caçadores que estavam se reunindo para o Festival do Guerreiro Supremo. Havia os candidatos óbvios como mercadores e nobres, mas também grupos de pessoas que faziam os caçadores parecerem gentis, e carroças que claramente pertenciam a civis, mas que viajavam descaradamente sem nenhuma proteção. Era um vislumbre do caos variado que era o mundo.
— É mesmo. Você vai participar? — perguntei ao Ansem, que caminhava ao lado da carroça.
Nosso firme Paladino, vestido com sua armadura completa, assentiu em resposta. Mesmo sendo uma entre várias carroças, ele não chamava muita atenção. Isso porque estava usando sua Relíquia, Fortaleza Flutuante, para reduzir sua altura para cerca de dois metros — menos da metade do seu tamanho natural.
Apesar de exigir que ele estivesse completamente coberto de armadura para ser ativada, era uma ferramenta inestimável agora que Ansem estava praticamente imune à magia da Lucia. A armadura parecia extremamente desconfortável, mas eu não queria que ninguém perturbasse o membro mais sensato do grupo. Só que, ainda assim, dois metros era bem grande.
— Mesmo que nem todos participem, vai ter talento de sobra pra todo lado — disse Luke, com o sangue fervendo, em contraste com Ansem.
— E se você fizer bonito no torneio, pode chamar a atenção de alguém — acrescentou Sitri, jogando mais lenha na fogueira.
Estaríamos entrando num período de decadência? Eu sei que fui eu quem sugeriu irmos ao torneio, mas só agora estava me dando conta de que talvez estivesse me metendo em encrenca. O Ark era a prova de que nem todo caçador de alto nível tinha sede de sangue, mas esse era um lugar onde as pessoas se reuniam pra lutar pela supremacia.
Decidi esconder meu rosto o máximo que conseguisse. Provavelmente haveria outras pessoas usando máscaras, embora não muitas. Eu não gostava de chamar atenção, mas mostrar o rosto era ainda pior.
E assim, finalmente chegamos a Kreat, a cidade das lâminas e batalhas, anfitriã do Festival do Guerreiro Supremo. Ainda faltava um tempo até o evento, mas a cidade já estava tomada por uma atmosfera estranha. Já tínhamos sentido isso em pequenas quantidades nas cidades por onde passamos, mas nada se comparava à intensidade de Kreat.
As ruas estavam lotadas de caçadores experientes, mercenários e outros tipos que ganhavam a vida pela violência. De vez em quando dava pra ver um caçador de tesouros na capital imperial, mas não desse jeito.
No entanto, o número de participantes do torneio era relativamente limitado, então a maioria dessas pessoas provavelmente estava ali pelo mesmo motivo que eu. Tinham vindo testemunhar os confrontos entre pessoas que tinham confiança absoluta em sua força, e ver o nascimento de um novo Guerreiro Supremo. Não era sempre que tantos nomes famosos se reuniam num só lugar.
Qualquer homem se empolga ao ver guerreiros disputando pra ser o melhor. Ainda bem que eu vim!
Cercado pelos meus amigos, eu caminhava pelas ruas usando minha máscara. Qualquer um podia estar escondido no meio da multidão, então a princesa imperial manteve o capuz erguido. Ela parecia nervosa, como se fosse a primeira vez que se enfiava numa multidão. Mas ela não precisava se preocupar. Com o Ansem liderando o caminho, até o azar sairia correndo de medo.
— Ei, quem você acha que é o desafiante mais forte? — perguntou Liz. — Ah, tirando eu, claro.
— Deve ter um dragão com uma espada. Tem que ter — disse Luke. — Se o Krai tá aqui, então eu sei que vai ter um. Venha a mim, dragão empunhador de lâminas!
— Mmm. Desgaste e cansaço já decidiram vencedores antes — disse Sitri, pensativa. — E nem todo participante foi exatamente honrado, então já rolaram uns métodos meio… duvidosos. Mas imagino que todos os campeões tenham sido irrepreensíveis.
Ela parecia estar tranquila, mas eu tinha que me lembrar de que ela também ia entrar na briga, mesmo sendo uma Alquimista.
— Métodos duvidosos, hein? — falei com uma voz de detetive durão, cerrando o punho. — Já tô empolgado só de pensar. Flechas, canhões, dragões, manda tudo!
— Líder, do que você tá falando? — perguntou Lucia.
— Ah, tá todo mundo empolgado, resolvi entrar no clima também.
A cidade parecia estar no meio de um festival. Havia vendedores com barracas, e aromas deliciosos flutuavam pelo ar. Olhei de um lado pro outro até encontrar uma que chamou minha atenção. Tinha dragões feitos de chocolate e sorvete. Nunca tinha visto algo assim, mas não tem como errar com chocolate e sorvete.
— O que foi? — Lucia me olhou desconfiada quando me viu parado. Entre nós dois, ela era a mais responsável com dinheiro. Toda vez que eu gastava sem pensar, levava bronca dela.
É, tá. Eu sei, minha dívida e tudo mais.
— E-eu já volto. Espera aqui.
— Hã? Ah. Tá bom…
Achei que eles iam me perdoar, então fui.
Eu me esgueirava até a barraca tentando evitar a multidão, quando senti alguém puxando a manga da minha roupa. Virei e vi que quem tinha me parado era uma jovem bem-apresentada, usando uma túnica parecida com a de um sacerdote. Tinha cabelos prateados compridos e parecia alguns anos mais nova do que eu. Mas o jeito como se portava e o olhar meio vago davam a ela um ar distante.
Obviamente, eu não fazia ideia de quem ela era.
— Posso ajudar? — perguntei.
— Por aqui, por favor — disse ela.
— Hã?
Sem dizer mais nada, a garota segurou minha mão. Não foi uma puxada forte, mas ainda assim suficiente pra me arrastar. Confuso, deixei que ela me levasse no meio da multidão, passando pelas barracas, até um beco estreito. Consegui me virar uma vez e vi a Lucia me olhando boquiaberta.
Normalmente, quando eu era sequestrado, ela resmungava, mas acabava vindo me ajudar. Só que dessa vez parecia que ela não achava que eu estava sendo sequestrado.
Sequestro. Não é exatamente violento, mas é um sequestro, né?! Ok, mesmo que não seja um sequestro exatamente—
— Hã, acho que você está confundindo com outra pes—
— Não, tenho certeza de que é você. Por aqui, por favor.
Ela com certeza tinha me confundido com outra pessoa. Minha memória não era das melhores, mas com certeza eu lembraria de uma esquisita dessas. Só que minha sequestradora não parecia nem um pouco interessada na minha opinião sobre o assunto.
— Eu queria muito ter experimentado um daqueles dragões — falei.
— Vou providenciar isso.
Você faria isso por mim?
Ela me arrastou pelos becos estreitos entre os prédios. Diferente das ruas movimentadas, não havia uma alma viva nesses becos. Eu jamais teria vindo sozinho pra um lugar assim, mas a sacerdotisa misteriosa andava sem a menor hesitação.
No meio do beco, uma porta se abriu do nosso lado. Eu nem tinha notado aquela coisa toda arrebentada. A garota entrou sem nem pausar. E como ainda estava segurando minha mão, eu fui puxado junto.
Eu estava completamente perdido.
— Por aqui — disse ela.
Aquilo não me deixou nem um pouco menos perdido.
A gente atravessou o que parecia ser um prédio abandonado e então desceu uma escada que surgiu do nada. A iluminação era quase inexistente, o que me fez tropeçar algumas vezes. Parecia que alguém estava mantendo o lugar limpo, já que não tinha nenhum cheiro ruim.
No subsolo, havia uma porta de metal reforçada que destoava completamente do cenário caindo aos pedaços. A garota sussurrou alguma coisa pela porta, e no momento seguinte um barulho alto soou quando a tranca se abriu.
— Por aqui.
Fui seguindo e fiquei completamente pasmo com o que vi. A sala era ampla, com incontáveis velas nas paredes afastando a escuridão. Mas o que me fez parar foram as figuras no centro.
Não dava pra saber a idade ou o gênero de ninguém. Mesmo com tanta gente, não se ouvia sequer uma respiração. Mas o que mais me incomodou foi que todos usavam máscaras de raposa. Pareciam ter sido compradas em loja, e os designs eram diferentes da minha. Tinha raposa gordinha, raposa vermelha, raposa sorridente… sinceramente, impressionante. Eu fiquei encantado e hipnotizado.
Quem eram aquelas pessoas? Não fazia ideia, mas a gente estava num cômodo subterrâneo e todo mundo tinha máscara de raposa. Pensei um pouco, então resolvi arriscar meu melhor palpite.
— Parece que você realmente confundiu a pessoa — falei num tom durão. — Eu até tenho uma máscara de raposa, mas não faço parte do Clube de Fãs da Máscara de Raposa.
Que diabos esse cara tá falando?
Por trás da máscara, Galf franziu a testa. Os outros membros pareciam igualmente confusos com a declaração enigmática do chefe. Usar essas máscaras fazia parte da organização. As máscaras não eram autênticas, mas ninguém jamais tinha zoado chamando de “Clube de Fãs da Máscara de Raposa”.
O chefe deu de ombros. Ele parecia totalmente comum, mas a máscara dele tinha uma presença marcante. Dentro da Fox, membros de alto escalão precisavam ser obedecidos em qualquer circunstância. Se aquele homem dizia que eles eram o Clube de Fãs da Máscara de Raposa, então Galf não tinha escolha a não ser se dedicar ao tal clube.
— Ah. Posso tirar uma foto de vocês? — perguntou o homem, tirando uma placa do bolso.
Galf já tinha ouvido rumores sobre essas Relíquias. Eram chamadas de Smartphones. Esse homem parecia informal demais pra ser um líder da Fox, mas não cabia a Galf decidir essas coisas. Ele olhou para a Donzela da Raposa Sagrada que tinha chamado para esse plano.
As Donzelas da Raposa Sagrada tinham um papel especial na organização. Elas cultuavam os deuses que inspiraram a fundação da Fox. Um dos papéis delas era verificar a identidade dos chefes — algo geralmente envolto em camadas de mistério.
A Donzela fechou os olhos. Galf não fazia ideia de como ela fazia aquilo, mas estava feliz que tivesse trazido o chefe até eles. Já tinha encontrado outras Donzelas antes, mas essa era das mais novas. Ainda assim, isso não diminuía o respeito que ela merecia, nem a discrição que se oferecia a outras como ela.
A Donzela abriu os olhos lentamente, como se estivesse em transe. Em silêncio, olhou para o homem. Galf sentiu uma pontada de incerteza.
Os olhos da Donzela se arregalaram e ela declarou:
— Não há dúvidas sobre sua divindade. Ajoelhem-se, pois estão diante da Raposa Branca.
Galf imediatamente caiu de joelhos, assim como seus colegas. Derivado das máscaras que usavam, “Raposa Branca” era o título dado aos chefes. Se a Donzela dizia que ele era autêntico, então era isso mesmo. Galf era relativamente alto na hierarquia da Fox, mas essa era a primeira vez que ficava tão próximo de um chefe. Não parecia alguém que ele já tivesse conhecido, mas era segredo aberto que existia mais de uma Raposa Branca.
O chefe parecia surpreso com a demonstração repentina de lealdade.
— Quê? Por que vocês tão se ajoelhando?! — ele disse.
— Por favor, perdoe minha grosseria anterior, ó Raposa Branca.
— Você tá falando dessa máscara? Ela é realmente tão rara assim pra merecer ajoelhar?
O clima ficou tenso. Apesar de soar genuíno, não podia estar falando sério. Devia estar bravo. Galf não via outra explicação. Provavelmente estava irritado por terem demorado tanto pra perceber. Eles não deviam ter duvidado da autenticidade da máscara. Mas a postura daquele homem era ousada o suficiente pra despertar as suspeitas de Galf — e ele sabia bem como era uma máscara autêntica. As Donzelas costumavam ser compostas, mas essa parecia um pouquinho nervosa.
— Digo, é… acho que não se vê uma dessas todo dia — continuou o chefe. — Mas ainda assim, eu não entendo. Eu não sou do Clube de Fãs da Máscara de Raposa, só vim aqui pra assistir o Festival do Guerreiro Supremo.
O que ele realmente queria dizer era que não tinha paciência pra quem nem conseguia reconhecer o próprio chefe. Ninguém ousou sequer respirar depois daquelas palavras carregadas de sarcasmo.
Como o membro de mais alto escalão presente, cabia a Galf dizer algo. Forçou a língua a se mover e falou:
— Chefe, nós do “Clube de Fãs da Máscara de Raposa” já começamos os preparativos para o Festival do Guerreiro Supremo. Por favor, permita-nos mostrar o que já fizemos.
— “Chefe”? Ah, entendi. Agradeço a consideração, mas vim aqui com meus amigos.
Galf não havia sido informado disso, mas parecia que havia outra equipe. Talvez alguns membros de elite estivessem de prontidão caso sua equipe falhasse. Ou talvez houvesse outro plano em andamento. No pior dos casos, o chefe estava sugerindo que outra equipe poderia assumir o comando. Mas, se lhe fosse negada a oportunidade de executar seu próprio plano, nem mesmo alguém da sétima cauda aceitaria isso calado.
— Aguardamos com expectativa — disse Galf. — Se precisar de qualquer coisa, é só nos chamar.
O chefe pareceu ligeiramente incomodado, mas então deu de ombros com resignação.
Sora Zohlo, a Donzela Sagrada da Raposa, lutava ferozmente para esconder o quanto estava nervosa em seu primeiro trabalho.
Nascida em uma respeitada linhagem de clérigos, era praticamente inevitável que começasse seu treinamento como Donzela desde muito jovem. A história das Donzelas Sagradas da Raposa precedia a própria organização a que pertenciam. Elas passavam por um treinamento especial e eram abençoadas com a habilidade de ver quem era ou não ligado às raposas divinas.
No entanto, a verdade era que tinham poucas oportunidades reais de julgar se uma máscara de raposa era autêntica ou não. Os deuses raposa evitavam interferir no mundo material, e os chefes mantinham seus paradeiros em segredo. Dizia-se que algumas Donzelas haviam passado suas carreiras inteiras sem jamais ver um chefe.
Era uma honra imensa estar diante de um chefe da Raposa Sombria de Nove Caudas, pois eles eram abençoados e portavam máscaras concedidas pelos próprios deuses. Mas isso também era um fardo tremendo para Sora Zohlo, já que ela ainda era nova em sua posição.
O peso de seu julgamento causara uma hesitação momentânea. Uma Raposa jamais duvidaria das palavras de uma Donzela, portanto, julgamentos errôneos eram imperdoáveis. A máscara do jovem ao seu lado era, sem dúvida, autêntica. Ela tinha certeza disso mesmo antes de levá-lo até a toca da raposa.
Os olhos de Sora eram abençoados, o que tornava inconcebível que confundisse uma máscara falsa de raposa branca com uma verdadeira. Porém, mesmo sem utilizar sua visão especial, ela sabia que nenhuma falsificação conseguiria replicar a presença esmagadora de uma máscara de raposa branca autêntica. Embora o homem que a usava parecesse inofensivo, isso não influenciava seu julgamento.
Por mais que o observasse, ele lhe parecia muito mais fraco do que o esperado de outros membros das Raposas. Dizia-se que o primeiro chefe da organização havia recebido sua máscara após superar uma provação imposta pelo deus raposa. Depois disso, todos que herdaram a posição foram escolhidos por sua força. Se aquele homem apenas estivesse escondendo seu poder, então era extremamente bom nisso. Mas qual seria o motivo para enganar uma Donzela? O papel delas era de submissão.
Reforçando sua expressão serena, Sora declarou com uma voz austera:
— A Raposa Branca exige um dragão sacrificial.
— Um dragão?! — sussurrou Galf. Ele olhou para Sora com uma expressão interrogativa, mas nem esperava que ela tivesse uma resposta.
Dragões eram as mais poderosas de todas as bestas míticas, mas ele e seus subordinados conseguiriam derrubar um se trabalhassem juntos. Isso é, se houvesse algum dragão por perto. Ainda assim, Galf não levantou objeções àquela exigência absurda.
Ele se virou e disse:
— Tem algum dragão por aqui?
Todos balançaram a cabeça.
Sora sentiu seu coração congelar e sua expressão neutra se desmanchar. Aquilo era péssimo. Enquanto arrastava a Raposa Branca até a toca, havia dito que providenciaria um dragão. Na hora, estava com pressa e nem cogitou que poderia estar fazendo uma promessa impossível de cumprir. Não importava qual fosse exatamente sua falha — ela podia muito bem ser morta por isso.
— Ah. Ahhh — disse a Raposa Branca, notando Sora cerrar o punho. — Se não tiverem um dragão, pode ser daqueles de sorvete com chocolate.
— Vão comprar! O máximo que conseguirem! — ordenou Galf.
Alguns de seus subordinados saíram correndo.
Era seguro assumir que estavam sendo feitos de bobos? Sora ainda lutava para se recuperar da falha. Galf, por sua vez, tirou uma bolsa e entregou o conteúdo à Raposa Branca.
— Isso mesmo, chefe — disse ele. — Aqui está a Relíquia em questão. Por favor, aceite.

—Voltei —eu disse.
Tinha saído daquela sala subterrânea e encontrei meus amigos me esperando, exatamente como eu tinha combinado. Graças à Visão Tripla, a mudança repentina de iluminação não me desorientou nem um pouco. Eu não costumava usar máscaras, então não tinha tido muitas oportunidades de usar essa Relíquia, mas parecia valer o preço que ela custava.
Lucia olhou boquiaberta para o pacote que eu carregava. Ela franziu a testa e perguntou:
—Onde você foi?
—Hmm. Não sei direito.
—Como é?
Ela parecia incrédula. Mesmo que eu contasse o que tinha acontecido lá embaixo, duvidava que ela acreditasse. Realmente existem todos os tipos de fã-clubes por aí. E aparentemente, ter uma máscara de raposa rara me tornava o chefe deles. Ainda parecia que algum espírito estava me pregando uma peça. Tinha me metido em mais uma “experiência interessante”.
Raposas definitivamente se tornaram um elemento constante na minha vida. E de alguma forma eu tinha acabado com uma Relíquia. Não era estranho eu me envolver com coisas esquisitas, mas um estranho me dar uma Relíquia de graça era novidade. Mesmo assim, eu não ia reclamar de ser o chefe do Fã-Clube das Máscaras de Raposa se essa era a forma deles de me recompensar. Que bom gosto o deles, impressionados com uma máscara da Peregrine Lodge.
Já que eu ficaria em Kreat por um tempo, imaginei que não seria a última vez que cruzaria com eles.
O alojamento que Sitri tinha conseguido pra gente parecia priorizar segurança em vez de luxo. O prédio em si era simples, mas dava pra notar que não era um lugar comum por causa dos vários cavaleiros patrulhando do lado de fora. As janelas eram feitas de vidro grosso e as paredes tinham um brilho incomum.
Quando dei meus primeiros passos tímidos pra dentro, parecia tudo normal, mas ao olhar ao redor, notei guardas posicionados em lugares discretos. Os outros hóspedes eram pessoas como mercadores ricos e nobres viajando com uma legião de criados. Não vi nenhum outro caçador além de nós.
Nos levaram até o último andar, onde havia um quarto grande o bastante pra acomodar um grupo do nosso tamanho. Liz soltou um grito de alegria e começou a correr, olhando debaixo das camas e atrás dos quadros. Lucia observava pela janela enorme. Aquilo me lembrava os passos que tomávamos quando acampávamos no meio do mato.
—Consegui o alojamento mais seguro que pude —disse minha querida amiga Sitri com orgulho, lançando um olhar na minha direção.—Kreat pode ficar caótica durante o Festival do Guerreiro Supremo.
Eu não sabia nem o que dizer. Pra mim não fazia sentido, já que estávamos ali só como turistas. Tá, eu entendia que a Princesa Murina estava com a gente e tal, mas mesmo assim…
—Você acabou de antagonizar a Raposa Sombria de Nove Caudas, afinal —disse Lucia pra mim.—Não custa nada andar com cuidado —ela suspirou.
—Tô curioso pra ver quantos eles vão mandar. Tô prontíssimo —disse Luke, dando socos no ar.
Ansem assentiu com a cabeça.
—Hmph. Uma estalagem usada até por nobres. Uma precaução inteligente —Karen comentou com um aceno arrogante.—Foi uma boa escolha. Nem precisava dizer, mas teremos que dividir os quartos. Não podemos permitir que homens durmam no mesmo espaço que Sua Alteza Imperial.
Parece que só eu não tinha entendido o que estava acontecendo. Talvez me sentisse mal por isso… se já não estivesse acostumado. Então apenas dei um sorrisinho cínico.
—Líder, a gente irritou umas pessoas e não tá faltando inimigo por aí. Por favor, tome cuidado, tá? —Lucia me deu uma bronca.—Já espalharam que vamos participar do torneio, e tem restos de várias organizações se reunindo aqui.
Bom, isso era novidade pra mim. Tirando a parte de ter irritado gente, claro.
Tendo terminado sua inspeção do quarto, Liz se jogou descaradamente sobre uma mesa e cruzou as pernas.
—Dane-se isso! A gente pode esmagar todos eles. Né, Anssy?
Confiante como sempre.
—Nem um pouco —respondeu Ansem.
Ele tinha um fraco pelas irmãs, mas nem ele passava pano pra isso.
Luke assentiu de forma solene — um gesto bem atípico vindo dele.
—Liz, temos coisas mais importantes pra focar.
Ele estava certo. Tínhamos coisas mais importantes. E por que ela tava assumindo que seríamos atacados? Nem era garantido!
Então Luke continuou, ainda completamente sério:
—O que deveríamos estar preocupados é que não dá pra dividir eles igualmente… a não ser que o número deles seja divisível por nove! Né, Krai?
—Hã?! Ah, é… é claro —respondi, pego no embalo do Luke.
—É mesmo?! —gritou Liz.
Eu nunca conseguia ir contra o entusiasmo do Luke. Era por isso que eu ainda era um caçador. E ele falava da Murina e dos guardas dela com a maior naturalidade.
Enquanto organizava a bagagem da carruagem, Sitri encerrou o assunto dizendo:
—Bom, se decidirem nos atacar, provavelmente virão em grande número. Se vai ter algum Espadachim entre eles, já não posso garantir.
—A gente fez algo tão ruim assim? —perguntei.
—Fazer um estrago sangrento em um desafiante do Festival do Guerreiro Supremo é um ótimo jeito de fazer seu nome circular por aí —ela disse como se fosse a coisa mais normal do mundo. Ainda me parecia imoral pra caramba.
—Então botar eles pra correr vai servir de treino e ainda melhora nossa imagem! Dois coelhos com uma cajadada só! Né, Krai?
—Você é um gênio, Luke.
Disse a mim mesmo que provavelmente não tinha com o que me preocupar. Afinal, meus amigos eram fortes o bastante pra lidar com isso.
—Ah, não me faz esperar mais —disse Luke, dando golpes de treino no ar.—Vem logo, Espadachim Dragão de Oito Braços!
—Você ainda acha que isso vai acontecer? —Liz suspirou.—Não tem como algo assim existir. Tem?
—É… uhum —respondi.
Tinha algo mágico na habilidade do Luke de fazer até a Liz, o Evento de Extinção, parecer minimamente ajustada.
Um Espadachim Dragão de Oito Braços, hein? Bom, existem os Trogloditas. Eles têm braços de sobra.
Cansado de falar de carnificina, tirei a Relíquia que tinha recebido do Galf. Os olhos carmesins do Luke brilharam quando viu o que eu tinha.
—Ooooh! É uma espada! Krai, deixa eu ver!
—Daqui a pouco.
A Relíquia do Fã-Clube das Máscaras de Raposa era mesmo do tipo espada. O cabo estava coberto por um padrão geométrico estranho. Ela vinha guardada em uma bainha de madeira, que era bem sem graça em comparação.
— Interessante — disse Sitri. Ela olhava para aquilo com fascinação. — É curta demais pra ser uma espada longa, mas comprida demais pra ser uma espada curta.
— Mas com certeza é uma Relíquia — respondi. — É leve demais. Talvez seja só uma peça cerimonial?
No fim das contas, eu era só um colecionador, então não me importava de ter uma espada que eu nem podia usar. E como ganhei de graça, também não esperava muito.
Removi a lâmina da bainha com cuidado. Era cerca de metade da largura de uma espada reta comum e não parecia uma arma muito confiável. Era de dois gumes e tinha um brilho parecido com cobre. Canais minúsculos estavam gravados em sua superfície, formando um padrão estranho.
Relíquias eram manifestações de memórias do passado, então sua função nem sempre batia com a aparência. Mas como eram baseadas em coisas que realmente existiram, o formato ainda era um bom indicativo do que a Relíquia fazia.
As sobrancelhas da Lucia se ergueram enquanto ela encarava a espada.
— Isso não foi roubado naquela cidade por onde a gente passou?
Ah, por favor.
Lucia tirou um jornal da bagagem.
— Aqui, tem uma foto disso nesse jornal que comprei antes da gente sair.
Dei uma olhada. A capa explicava orgulhosamente como os bandidos tinham sido detidos e como milagrosamente não houve nenhuma vítima. No centro da página, havia uma foto em preto e branco de uma espada idêntica à Relíquia que eu segurava.
Não. Pera aí.
— As bainhas são diferentes — falei.
— É mesmo.
As duas espadas eram idênticas, mas a bainha da foto tinha as mesmas inscrições da lâmina. As duas eram cópias perfeitas, mas não podiam ser o mesmo item. Afinal, o roubo tinha sido impedido e a maioria dos criminosos já estava presa.
Então meus olhos se arregalaram e estalei os dedos.
— Já sei! A Relíquia do museu se manifestou com uma bainha, mas essa aqui não.
As Relíquias geralmente apareciam em conjunto. Espadas vinham com bainhas, sapatos vinham com cadarços e Smartphones com caixa e manual de instruções. Mas às vezes só uma parte do conjunto aparecia. Era raro uma espada aparecer sem bainha, mas já tinha acontecido. E infelizmente o contrário também, com bainha aparecendo sem espada.
— Isso não é coincidência demais? — perguntou Lucia.
— Mas tenho certeza que foi isso que rolou.
Não era incomum a mesma Relíquia se manifestar mais de uma vez. Acreditava-se que a taxa de aparecimento de uma Relíquia estava ligada à frequência com que existiu no passado. Mas também já tinham ocorrido casos de múltiplas Relíquias surgirem mesmo que só se soubesse da existência de um único exemplar original. Isso fazia muito mais sentido do que acreditar que o Clube dos Fãs da Raposa de Máscara tinha incendiado uma cidade só pra roubar uma Relíquia.
O que eu segurava era igual ao item da foto, mas não era o item da foto. Mesmo assim, Lucia ainda parecia duvidar.
— Além disso — falei, batendo no jornal —, acho precipitado dizer que são iguais só por… pera aí.
— O que foi?
Meus olhos ficaram do tamanho de pratos enquanto lia a matéria. Segundo o artigo, a Relíquia se chamava Chave da Terra e era um tesouro nacional. Mesmo que a que eu tivesse não fosse exatamente a mesma Relíquia, e mesmo sem a bainha, encontrar um item idêntico ainda assim era uma baita descoberta, né?
Talvez, se eu levasse até o museu, deixassem eu ver a Relíquia deles de perto. Quem sabe até tocar nela. O artigo não falava quais eram os poderes da Relíquia, mas o pessoal do museu com certeza saberia. A gente definitivamente ia ter que passar lá na volta pra casa.
Com isso resolvido, entreguei a espada pro Luke, que estava me olhando com cara de cachorrinho abandonado fazia uns minutos.
— Toma. Mas não vai sair cortando ninguém.
— UOOOU! Então posso cortar se não for gente?!
O amor do Luke por espadas incluía as Relíquias também. Na maioria das vezes, a gente forçava ele a usar uma espada de madeira pra não ser tão perigoso, mas eu já tinha deixado ele testar a maioria das minhas Relíquias do tipo espada.
Ele examinou o comprimento da lâmina e engoliu seco.
— Essa lâmina, o comprimento, o peso, o padrão… Krai, esse negócio é incrivelmente difícil de usar. Parece um brinquedo.
— Aham.
— E não importa quanta mana eu coloque, não carrega! Tem uma sensação estranha. Não consigo carregar! Isso é mesmo uma espada?
— Aham?
Apesar de ser um Espadachim, a mana dele era bem maior que a minha e dava pra carregar quase qualquer Relíquia do tipo espada. Se nem o Luke conseguia carregar essa por completo, devia ser um sugador de mana absurdo. Com a mesma expressão que fazia sempre que eu pedia pra ela carregar alguma coisa, Lucia observava as tentativas empolgadas do Luke.
— Então se eu conseguir carregar isso direito — ele disse —, vai significar que virei um espadachim melhor. É assim que funciona, né, Krai?
— É. Aham.
— Alguém pode aprender com o meu exemplo.
Agora ele tava fazendo a Lucia parecer mal.
Com os olhos arregalados, a princesa Murina observava o comportamento infantil do mentor dela. O Luke não tinha mudado nada desde a infância.
— Krai, posso usar essa?
— Claro. Essa bainha aqui não é uma Relíquia, então pode usar a sua mesmo.
A bainha do Luke tinha um design especial que permitia carregar várias espadas. Eu já tinha deixado uma espada cair no meio de um cofre de tesouro antes, então era bem mais seguro nas mãos dele.
Mesmo em viagem, minha rotina diária não mudava muito. Ainda mais com o lado de fora sendo perigoso. Sentei na varanda e usei meu Smartphone pra mandar uma foto do Clube dos Fãs da Raposa de Máscara pra Raposinha e me gabar da experiência.
— Ei, Krai Baby — disse Liz de repente —, o que a gente vai fazer sobre o treinamento da princesa?
Então agora ela tá só chamando de “a princesa”.
Isso não era meio desrespeitoso? O olhar tímido da princesa sentada entre suas guardas no sofá dava a entender que ela também achava isso meio rude.
Mas o que será que a Liz queria dizer com isso?
— A gente vai treinar ela, né? A gente faz se você mandar, mas, tipo… você sabe como é, mas ela não vai ficar mais forte. Não tem material de mana por aqui, e deixar ela mais forte vai levar tempo. Eu não sei o que você tá planejando pra ela—
— É mesmo? Eu pretendo, é claro, mandar ela para o Festival do Guerreiro Supremo.
A Princesa Murina me encarou. “Perdão?”
— Como é que é?! — Karen exclamou.
— Irmão, eu realmente acho que— — começou Lucia.
— Você tá falando sério? — Liz interrompeu. — Acho que é demais pra ela. É uma completa amadora, e não vejo como ela se encaixaria nisso.
Nossa, que reação forte. Achei que já tinha deixado meus planos bem claros há muito tempo.
— Nesse caso — Sitri disse, batendo palmas — por que não colocamos ela contra alguns bandidos? Vai dar experiência real de combate também.
— Siddy?! — Lucia gritou. — É por ficar sempre passando a mão na cabeça do meu irmão que—
— Mas a Lizzy tem razão. Fazer com que Sua Alteza Imperial fique mais forte em tão pouco tempo vai ser complicado. Então pensei em abordar isso de outro jeito. A cidade tá cheia de fora-da-lei no momento, então acho que essa é a melhor aposta, considerando nosso prazo. Quanto a como ela vai entrar no torneio, é outra história!
— Em parte, eu até admiro o jeito como você tenta puxar o saco do Krai em qualquer oportunidade — Liz comentou.
Mas não era uma má ideia. Lutar contra fantasmas era bem diferente de lutar contra pessoas. Mas será que a gente podia mesmo colocar a princesa imperial contra bandidos? O imperador até era capaz de enfrentar dragões gélidos, mas duvido que ele já tenha enfrentado criminosos. Matar dragões era uma honra, mas acabar com ladrões de estrada… nem tanto.
— Achei que podia ser útil — Sitri disse, tirando com orgulho uma pasta — então consultei um intermediário de informações sobre quais organizações estão por aqui.
— Então era lá que você tava? — Liz perguntou.
— Boa, hein! — Luke comemorou. — Deixa eu dar uma olhada!
— Nada disso. Fiz isso pra entregar pro Krai!
Bem… contanto que estejam se divertindo. Sério, falo de coração.
Dentro da pasta havia uma lista organizada de grupos de bandidos e organizações criminosas. Era mais do que eu imaginava. Nem todos eram famosos, mas dava pra montar um exército se pegasse um lutador de cada grupo.
— Muitos deles têm talento pra participar do Festival do Guerreiro Supremo. E, sejam grandes ou pequenos, vários têm recompensas por suas cabeças. Há também grupos que odeiam ver seus rivais no torneio e se juntam pra atacar inimigos em comum. Isso e muito mais.
Eu tô no inferno?
— Dizem que todo ano tem alguns participantes que nem chegam a entrar no torneio — Sitri continuou. — Às vezes, alguém tenta se vingar de quem perdeu, mas essas tentativas raramente dão certo.
Tive um vislumbre do lado sombrio daquele torneio glamouroso.
Eu detesto violência, mas vou dizer mesmo assim!
— Isso não aconteceria se alguém cuidasse desses fora-da-lei! — falei.
— Também tem gente tentando vingar companheiros que caíram. Zebrudia tem seus cavaleiros de elite protegendo tudo, mas esse país aqui não tem nada parecido.
Meus pesadelos constantes me deixaram cego, mas Zebrudia era, na real, um lugar especial.
— Você tá falando como se dependesse só de você, mas sabe que estamos falando de um membro da família imperial, né? — Karen disse. — Sua Alteza Imperial não pode sair por aí enfrentando bandidos!
Uma objeção totalmente razoável. Se você perguntasse pra cem pessoas, todas diriam que ela tá certa. A guarda imperial era realmente fiel, considerando que ela ainda se opunha aos meus amigos mesmo depois do treinamento brutal.
— Isso quem decide é o Krai — respondeu Sitri, com um sorriso tranquilo.
— Hmm. Tem bastante gente aí — Liz disse. — Mas será que a gente sabe onde eles estão?
— Esse é o nosso maior obstáculo. Acho que conseguimos descobrir isso se investigarmos com calma.
Se fosse só luta o problema, eu até confiaria a princesa imperial a eles, mas ainda assim não parecia um risco que valia a pena. A lista era longa e as coisas podiam sair do controle se a gente irritasse o grupo errado.
Fugi da responsabilidade de decidir e caminhei até a janela enorme. Estando no último andar de uma estalagem de luxo, tinha uma bela vista das ruas de Kreat. Olhando em volta, vi colunas de fumaça subindo aqui e ali. Algumas daquelas deviam ser restos de brigas. Que lugar insano eu vim parar.
— Hmm. Bandidos. Bandidos. O que a gente pode fazer? — murmurei.
No momento seguinte, um homem usando uma máscara de raposa preta se grudou do lado de fora da janela. Um brilho feroz saía dos buracos da máscara. Fiquei tão surpreso que nem consegui reagir.
— Chefe, se precisar da gente — ele disse, como se aquilo fosse completamente normal —, nós, do Clube dos Fãs da Máscara de Raposa, estamos à disposição.
Era pra ser impressionante isso? Porque eu só tô com medo. Que tipo de organização eu fui me meter?!
Num aposento subterrâneo, Galf da sétima cauda olhava uma lista e soltava um gemido.
— Isso é o que o chefe quer? Vai ser uma operação e tanto.
A Fox controlava várias subsidiárias e até tinha membros infiltrados em altos cargos de vários governos. Nenhuma outra organização secreta chegava perto do mesmo nível. Mas o número de verdadeiros membros da Fox era limitado aos melhores entre os melhores. O completo oposto de sua antiga rival, a Serpent, que possuía exércitos enormes.
Em operações maiores, a Fox usava pessoal das subsidiárias e aliados. Os papéis principais ficavam com os Foxes, enquanto o restante das tropas era formado por recrutas de outras organizações. Mantendo todos no escuro, quase nenhuma informação vazava.
Essa operação, no entanto, seria diferente de tudo feito antes. A tarefa de recrutar os lutadores ficou com Galf. Ele olhou para o subordinado que conseguiu a lista. O cara era excelente quando o assunto era furtividade.
— Ele quer essa quantidade toda? — Galf confirmou.
— Sim. E quer que a gente descubra onde eles estão. Mas falou pra não se esforçar demais.
Galf olhou novamente para a lista. Aquilo parecia uma operação importante demais para permitir falhas. Mas mais pessoal nem sempre significava melhor. O tamanho da lista lhe pareceu absurdamente longo. Era quase como se tivessem que procurar por toda organização criminosa ativa em Kreat.
—Não acredito que esse seja o tipo de tarefa que normalmente seria confiada a nós —disse o outro Raposa. —Considerando que isso foi arquitetado pelo chefe, provavelmente tem mais coisa aí do que ele está deixando transparecer. Mas ele tem suas expectativas.
Isso parecia bem possível. Galf era de uma das caudas superiores, mas aquele homem estava no topo. O chefe estava guardando as partes mais importantes em segredo. Era bem provável que existisse outra equipe secreta operando por trás.
Aquilo era uma boa oportunidade. A Raposa estava sempre em busca de indivíduos capazes. Se Galf conseguisse causar uma boa impressão no chefe, uma promoção viria com certeza. Ninguém seria idiota o suficiente para não dar o seu melhor só porque disseram que tudo bem não se esforçar.
Eu—não, nós não somos como o Contra-Cascata. Ele era um mago brilhante, mas faltava liderança.
Galf talvez não tivesse o poder de combate de Telm, mas tinha uma legião de subordinados confiáveis.
—Devemos convidar todos dessa lista, e mobilizar cada um de nós para fazer isso acontecer —disse Galf.
—Mas eles ainda estão fazendo os preparativos.
O plano de Galf estava perfeitamente traçado. Ele nunca negligenciava os preparativos com antecedência se isso pudesse garantir seu sucesso. Já tinha reservado tempo para garantir rotas de fuga e coordenar as forças de segurança, mas agora parecia que não teria espaço para isso.
—Não há nada que possamos fazer —disse ele ao outro Raposa. —Mesmo que não estejamos totalmente prontos, o plano vai seguir em frente. Não perca a floresta por causa das árvores.
Com um grande sorriso, Galf começou a dar suas ordens.
—Vamos sair em busca de inimigos fortes!
—Uhul!
O entusiasmo de Luke e Liz estava no mesmo nível do resto de Kreat. Nós outros, os Grieving Souls, fomos junto com eles. Alguém precisava impedir os dois de começarem brigas, e depois de vir até Kreat, eu queria aproveitar para fazer um pouco de turismo. A Princesa Murina tinha assuntos oficiais para cuidar, então pela primeira vez em um bom tempo, estávamos só nós, os Grievers, reunidos.
O Festival do Guerreiro Supremo ainda estava a alguns dias de começar, mas a cidade já estava tão lotada que mal conseguíamos andar pelas ruas.
—Você não vai usar aquela máscara de raposa? —perguntou Sitri.
—Nah —respondi, esfregando a bochecha.
Eu queria esconder o rosto o máximo possível, o que me deixava tentado a usar a máscara, mas ela parecia atrair o Clube de Fãs da Máscara de Raposa. Um deles chegou a ir até meu quarto, então não dava pra saber quantos apareceriam se eu andasse com ela por aí.
Contando com a proteção dos meus amigos, fiquei de ouvido aberto para ouvir fofocas enquanto caminhava. Sem surpresa, todo mundo parecia interessado em quem venceria o torneio. Os competidores ainda não tinham sido anunciados, mas os rumores estavam circulando, e ouvi os nomes do Luke e do Ansem sendo mencionados. Como amigo deles, era uma sensação estranha. Mas teve um nome em especial que chamou minha atenção.
—Mil Artes —repeti para mim mesmo. —Parece que ele é famoso. Vou ter que torcer por ele.
Segundo a Sitri, esse título era autoproclamado, mas se os boatos estavam se espalhando, talvez logo virasse oficial.
—Não, ele disse Mil “Truques”. Eles estão falando de você! —disse Lucia.
—Não, isso é ridículo.
Por que falariam de alguém que nem vai participar?
Antes, as pessoas frequentemente vinham arrumar confusão com a gente quando entrávamos em alguma multidão, mas dessa vez não. Liz parecia achar aquilo entediante, mas com uma disputa importante se aproximando, ninguém ia querer comprar briga com alguém claramente forte (ainda mais se essa pessoa fosse o Ansem).
Depois de andar um pouco, Luke estalou a língua.
—Que se dane, vamos pra uma taverna.
—Concordo! —disse Liz, com uma empolgação totalmente desnecessária. Ela com certeza se interessava mais em acabar com as pessoas do que em acabar com os copos.
Lucia e Sitri estavam visivelmente exasperadas, mas eu achei que estava tudo bem. Luke e Liz eram impulsivos. Com um pouco de bebida no sangue, eles iam esquecer completamente das brigas. E se começassem uma confusão, a gente intervia.
Juntos, entramos em uma taverna qualquer. A cidade já estava pegando fogo de tanta empolgação, mas quando você adicionava álcool à mistura, dava até tontura. No interior escuro e apertado, vários rostos carrancudos bebiam em silêncio. Talvez o risco de arrumar encrenca em um lugar como aquele fosse o motivo de estar bem mais silencioso do que qualquer bar na capital imperial.
No instante em que entramos, os olhos de Luke começaram a brilhar enquanto ele escaneava o lugar.
—Eentão, por onde começamos?
Ou seja, ele estava mesmo decidido a dar início à festança. Eu já ia tentar acalmá-lo, mas ele parou sozinho.
—Pera aí. Aquela ali não é a Touka?
Em um canto da taverna estava um grupo de pessoas com armaduras de um tom marrom-avermelhado bem característico. Era comum que os grupos usassem cores uniformes. Por exemplo, no grupo Obsidian Cross do Sven, todo mundo usava equipamentos pretos. Mas aquele grupo era muito maior do que a média.
Quando se tem mais de dez caras casca-grossa usando a mesma cor, “grupo” já não parece o termo certo. Companhia mercenária. Espadachins de aluguel. Eles eram os militantes do Primeiro Degrau, ganhavam mais com combate do que com exploração de tesouros. Eram os Cavaleiros da Tocha.
Eva tinha me dito que Touka participaria do torneio, mas eu não esperava dar de cara com ela num lugar assim. Vi que ela estava sentada no centro do grupo. Mesmo sendo a líder do clã, fazia tempo que eu não a via. O olhar da capitã de cabelos negros se virou direto para nós. Sem hesitar, ela bateu o copo na mesa e se levantou.
—Em posição, todos!
O jeito como todos pararam de socializar e se levantaram ao mesmo tempo foi uma cena estranha. Todos os olhares se voltaram para mim. Os outros clientes também olharam, curiosos pra saber o que estava acontecendo.
—Saúdem nosso cliente mestre!
Os cavaleiros saudaram em uníssono e mantiveram a posição.
Dois fatores principais determinavam a eficácia de um grupo: força individual e coordenação entre os membros. Derrotar fantasmas poderosos e monstros excepcionais exigia um grupo de indivíduos forjados em batalha, capazes de multiplicar suas capacidades ao lutar em conjunto. Qualquer grupo de primeira linha podia afirmar que tinha ambas as qualidades, mas os Grieving Souls tendiam mais para a força individual, enquanto os Cavaleiros da Tocha iam na direção oposta.
Acho que nunca vou esquecer o choque que senti quando os conheci pela primeira vez. Seus movimentos refinados eram como os de uma verdadeira ordem de cavaleiros. Mesmo com os outros clientes do bar encarando, os cavaleiros não vacilaram.
Ei, será que eles recrutaram novos membros?
— A-Aqui… todo mundo tá olhando. Podem relaxar — falei, quando percebi que eu também estava sendo encarado.
— À vontade! — anunciou Touka.
Eu não fazia ideia de por que estavam me chamando de “cliente mestre”, sendo que era a Sitri quem estava contratando eles. Era ela quem fornecia fundos e equipamentos.
Os únicos valores que os Cavaleiros da Tocha respeitavam eram aqueles que podiam ser depositados numa conta bancária. Eles ocupavam um espaço estranho dentro da Primeiros Passos, e tinham uma atitude igualmente estranha comigo. Me obedeciam porque sabiam que eu era amigo de longa data da Sitri — o que, de certa forma, os tornava mais fáceis de lidar do que aquelas pessoas que tinham uma fé esquisita demais em mim.
— Não me diga que você vai participar do torneio, Touka — disse Luke, sempre empolgado com a ideia de enfrentar oponentes fortes.
— Estarei lá — confirmou ela. — Recebi um convite. Você também vai participar, Espada Proteana?
O Festival do Guerreiro Supremo atraía todos os tipos de pessoas. Capitães de cavalaria que garantiam a segurança do reino, e também mercenários famosos. Touka provavelmente recebeu o convite por causa de sua fama entre as companhias mercantes e nobres.
Luke fez uma expressão tão estranha que nem dá pra descrever com palavras. O motivo pelo qual Luke, o Matador de Homens, nunca tentou cortar Touka ao meio era simples: ela não se envolvia em lutas sem lucro (literalmente — se não houvesse dinheiro envolvido, ela não lutava). Eles eram incompatíveis, mas de um jeito bom. Luke não queria apenas bater em alguém — ele queria que batessem de volta.

Touka olhou para Sitri, depois para Lucia, e por fim para mim, antes de dizer —Perdoe-me, CM, mas não vou pegar leve no torneio. Vocês não pagam o suficiente pra isso.
Então ela pegaria leve se a gente pagasse mais? Mas mais importante que isso… parecia que ela estava achando que eu ia participar. Provavelmente ouviu os boatos que andavam circulando.
Só entre a gente, Touka: eu não sou o Mil Truques. Esse aí é o eu verdadeiro!
Mesmo alguém tão centrada como a Touka ia ficar bem confusa se encontrasse o Krahi. Eu mal podia esperar pra ver essa cena.
—Do mesmo jeito, meu eu verdadeiro não pega leve —disse eu, com um sorriso cheio de pose. —O verdadeiro eu é bem forte. E usa um sobretudo que esvoaça.
Embora o falso também curtisse balançar o casaco quando dava.
Touka me encarou surpresa, arruinando minha diversão na hora. —A-Ah. Entendi. Um sobretudo? B-Bem, espero que não seja pedir demais um pouquinho de misericórdia.
—B-Bem, eu tô aqui só pra assistir. Vocês é que deviam ficar de olho nesses aqui atrás de mim.
Queria diminuir um pouco as expectativas. Vai que eles ficavam bravos se achassem que eu ia participar.
Como sempre, os Cavaleiros da Tocha passavam uma impressão única. A relação deles com os Grieving Souls não dava pra dizer que era boa ou ruim. Só que eles raramente estavam na capital imperial, então quase não tínhamos contato com eles. Mas ainda assim, pareciam contentes em nos ver. Sentamos em volta de uma mesa com eles, e Touka e os outros membros mais destacados começaram a me servir bebida.
—Não acho que foi coincidência a gente se encontrar aqui —eu disse. —Bebam à vontade, a gente traz mais.
Quer dizer, tudo isso estava saindo do bolso da Sitri. Ela parecia gostar dos Cavaleiros da Tocha. Provavelmente porque com eles, dinheiro resolvia qualquer coisa.
—Ouviram o que ele disse —disse Touka pros cavaleiros. —Nosso cliente mestre pediu. Não desperdicem essa generosidade. Bebam! Lembrem-se de agradecer à Sitri —clientes assim tão generosos são raridade. Saúde!
—Obrigado! —responderam os cavaleiros, saudando em uníssono pela segunda vez.
Sitri parecia levemente surpresa. Esse pessoal parecia achar que saudar nunca era uma má ideia. E o que seria um “cliente mestre”?
Enquanto bebíamos, fiquei sabendo das últimas aventuras deles. Tinham feito o de sempre: caçadas com recompensa, combates aqui e ali enquanto viajavam pelo mundo, e voltaram para o Festival do Guerreiro Supremo. Derrotaram um bando de orcs que atacou uma vila, esmagaram um grupo de homens-fera ladrões, e visitaram um cofre de tesouros só por diversão. Fiquei impressionado, mas então percebi que nós também tínhamos passado por muita coisa.
Liz estava numa competição de bebida com um dos cavaleiros, e Lucia assistia tudo com cara de quem já perdeu a paciência. Luke já estava de olho nos fregueses, olhando ao redor do salão com olhos de águia.
Enquanto um cavaleiro me servia mais bebida, fiz a pergunta que não saía da minha cabeça.
—Vocês aumentaram o grupo?
Touka me lançou um olhar afiado. Falei alguma besteira?
Os Cavaleiros da Tocha eram um grupo nômade que ia pegando novos membros enquanto viajava. Normalmente, era malvisto quando um grupo aumentava de tamanho sem avisar o clã, mas a Primeiros Passos permitia isso.
Não lembrava exatamente quantos membros eles tinham antes, mas parecia que tinham ganhado uns dois ou três. Mas… talvez eu estivesse enganado. Não lembrava direito os rostos de cada um, então talvez eu tivesse mesmo errado.
Tentei disfarçar com uma risada e falei —Só pensei que vocês eram um grupo menor antes. É o quê? Ganharam uns dez, onze membros?
Era uma piada. Vai que tinham crescido um pouco, mas com certeza não tanto assim. Esperei que a Touka risse e dissesse que eu tava viajando. Talvez até falasse que eu era engraçadinho. Em vez disso, ela cruzou os braços.
—Hmph. Afiado como sempre. De fato, ganhamos onze novos membros.
Hã? Sério? Não, não, não.
Não tinha como. Será que ela tava entrando na brincadeira, esperando que eu fizesse o papel de cara sério? Eu talvez até fizesse, se fosse com o Ark, mas a Touka era outra história. Sitri, que tinha ainda mais gente servindo bebida pra ela do que eu, olhou em volta, confusa.
—Não parece que vocês têm rostos novos por aqui —ela comentou. —Eles estão em outro lugar?
—Exato —respondeu Touka. —Estão em uma missão. Ficamos conhecidos, mas isso também atraiu muitos inimigos. Perdoe-me por não ter informado antes —disse, fazendo uma reverência.
Então ela não tava brincando? E ainda por cima, os que estavam na taverna eram todos membros antigos! Eu realmente não sabia como reagir.
—Levante a cabeça —falei. —Vocês são livres pra expandir o grupo. Esse foi um dos seus termos pra entrar no nosso clã, lembra?
—Krai tem razão —acrescentou Sitri. —Vocês sempre ajudam a gente, e não nos importamos com isso, desde que não nos cause problemas.
—É, exatamente isso aí. Vocês sempre fazem tanto por nós, conseguir novos membros não é nenhum problema. Ha ha ha.
A única que talvez tivesse dor de cabeça com isso era a Eva. Ela que cuidava da administração dos membros do clã. Eu estava completamente negligenciando minhas responsabilidades, mas Touka assentiu como se eu tivesse razão.
—Agradeço pela compreensão. O Festival do Guerreiro Supremo é uma época bastante lucrativa pra gente. Veja bem, vários dos participantes têm recompensas pela cabeça.
Palavras violentas chamavam nossos membros violentos.
—Hm? Como é? Recompensas? —Luke se intrometeu.
—Ooh? O que vamos matar? —perguntou Liz.
Então eles estavam caçando participantes. Mesmo antes do torneio começar, os Cavaleiros da Tocha já estavam a todo vapor. Aguentando os olhares famintos de Luke e Liz, Touka suspirou.
—Certo, CM —ela disse. —Tem algo estranho nos movimentos dos bandidos esse ano. Estão menos ousados do que o normal. É só um pressentimento meu, mas estou preocupada. Você sabe de algo que possa explicar isso?
Eu estava prestes a dizer que não sabia, que devíamos era ficar felizes por eles estarem quietos. Mas aí algo me veio à cabeça e eu estalei os dedos. Os olhos da Touka brilharam como o nome do grupo dela.
—É, isso também estava me incomodando, então chamei reforços. Eles talvez saibam de algo. Quer encontrá-los?
— Oh?
O Clube de Fãs da Máscara de Raposa. Eles eram absurdamente competentes e tinham um amor fervoroso por máscaras de raposa. Faziam coisas malucas como me arrastar até o esconderijo deles só porque eu estava usando uma máscara dessas, ou aparecer do nada na janela do meu quarto. Mas não me pareciam pessoas más — alguns deles até pareciam bem fortes.
Eu tinha passado pra eles a lista de bandidos da Sitri e pedi que encontrassem as pessoas listadas. Parecia o tipo de coisa que eles poderiam manjar. Era uma tarefa perigosa, então deixei claro que não precisavam se esforçar demais… mas duvido que sejam do tipo que escuta esse tipo de conselho. Por isso era reconfortante saber que a Touka ia estar com eles. Diferente do Clube de Fãs da Máscara de Raposa, ela era uma profissional experiente.
Funcionava pra todo mundo — inclusive pra mim. O Clube de Fãs ganhava uma aliada poderosa, e os Cavaleiros da Tocha funcionavam melhor em grupos grandes do que pequenos. Também podia fazer os Grieving Souls irem junto. E já que tava nessa, podia jogar a Princesa Murina no meio também.
Cara. Tô impossível hoje.
— Ah, isso me lembrou de uma coisa — falei, quando algo me veio à cabeça. — Tem uma coisa que vocês precisam primeiro — máscaras de raposa! Quanto mais raras, melhor. Claro, seria ótimo se conseguissem umas que combinassem com a armadura de vocês. Acham que conseguem?
O Plano X estava em andamento. Tudo o que eles tinham que fazer era seguir as ordens do chefe ao pé da letra. Membros da organização não precisavam pensar — só tinham permissão pra cumprir ordens fielmente. Pensar era trabalho pra quem estava acima na hierarquia.
Galf Shenfelder, anteriormente o Rei dos Bandidos, era mestre em bolar planos e dar ordens. Mesmo dentro da Sétima Cauda, provavelmente não havia ninguém que o superasse nesse ponto. O grupo de bandidos que ele liderava antes não era um bando qualquer que atacava vilas ou viajantes. Em vez disso, eles infiltravam vilas e iam tomando o controle aos poucos, mas com firmeza.
Fazia todo sentido que alguém que reforçava cautela com ainda mais cautela tivesse sido convidado a entrar para a Raposa Sombria de Nove Caudas. Anos depois, suas habilidades continuavam afiadas. A Raposa Sombria de Nove Caudas tinha membros em várias nações, mas a teia de subordinados do Galf ia ainda mais longe.
No submundo, a Raposa tinha amigos e inimigos. Às vezes, eles pediam ajuda a fora-da-lei — algo que era bem típico do Rei dos Bandidos. Mas mesmo pra ele, a missão recebida dessa vez era um baita desafio.
Seus subordinados revisaram a lista mais uma vez, soltando um gemido coletivo antes de começarem a reclamar.
— Tem gente demais nessa lista. E alguns desses aí são caras com quem a gente briga faz anos.
— As negociações vão ser um inferno. Talvez a gente tenha que ceder em algumas coisas.
— E juntar todo mundo dessa lista pode botar o Plano A em risco.
Eram objeções completamente válidas. O plano em andamento tinha sido calculado com precisão. Galf já tinha mandado um relatório detalhando quais criminosos pretendiam usar, então o chefe não podia estar alheio à sobreposição. Mesmo assim, vários desses figurões do submundo estavam na lista de organizações que deviam reunir. Até o Galf não conseguia deixar de se perguntar o que o chefe tinha na cabeça.
— Nessas horas, queria que a gente não tivesse que ser tão discreto com cada coisinha — resmungou um dos subordinados.
Galf deu de ombros. Era essa dedicação ao sigilo que tinha feito a Raposa crescer tanto. Ninguém sabia onde estavam os chefes, e trocar informações exigia seguir certos protocolos. Assim, mesmo que um membro de nível baixo fosse preso, os principais nomes da organização não seriam comprometidos.
Por outro lado, esse mesmo sistema significava que confirmar ordens em situações irregulares não era algo rápido. E o que Galf mais temia era um impostor. Era difícil imaginar alguém se passando por uma Raposa de ranking mais alto que ele, mas não impossível. Só que existiam sinais de código pra essas ocasiões. E, nos casos realmente sérios, havia as Donzelas Sagradas da Raposa.
— O chefe — murmurou Galf. — Ele não era como eu me lembrava. — Lançou um olhar pra Donzela que estava de pé ali perto.
— Está duvidando da Raposa Branca? Estou bem certa do meu julgamento — ela afirmou.
— Ter dúvidas faz parte do meu trabalho — ele respondeu.
— Nós, Donzelas, fomos abençoadas com olhos especiais por nosso serviço aos deuses. Nossa visão não mente. E se ele não fosse a Raposa Branca, por que estaria usando uma máscara daquelas em público?
Ela tinha razão. As máscaras de raposa não eram pra uso constante, e aquela máscara em particular não era algo que qualquer um conseguiria.
O protocolo pra verificar a autenticidade de um chefe era chamar uma Donzela. As Donzelas Sagradas da Raposa eram consideradas sagradas e acima de qualquer suspeita. Seus olhos viam através de qualquer disfarce e jamais confundiriam algo divino. Galf não acreditava em forças superiores, mas sua carreira na Raposa acabaria rápido se descobrissem que ele duvidava de uma Donzela.
Independente das suspeitas, o plano seguia o mesmo. No pior dos casos, ele poderia confirmar tudo durante o contato regular com a sede. Decidiu que devia olhar as coisas de forma simples. No fim das contas, o que estava acontecendo era só que ele e sua equipe iam ter um pouco mais de trabalho. Além disso, formar alianças com criminosos que antes eram inimigos podia ser útil no futuro. A única coisa que não podia acontecer era o fracasso do Plano X.
Foi então que o homem encarregado de ficar de olho no chefe apareceu correndo. Ele era um sujeito extremamente talentoso, usava uma máscara de raposa completamente preta e era treinado nas artes dos shinobi. Com uma Relíquia que distorcia a percepção, não havia ninguém mais indicado pra cumprir tarefas pro chefe.
Galf preferia que ele estivesse reunindo informações, mas outras pessoas podiam cuidar disso. Já manter o chefe satisfeito era prioridade.
O homem se aproximou de Galf e falou num tom neutro:
— Galf Shenfelder. O chefe está te chamando.
— Oh. Eles realmente vieram.
Ao encontrar meu amigo perseguidor do Clube de Fãs da Máscara de Raposa do lado de fora da minha janela, fiz um pedido a ele. Então, coloquei minha máscara de raposa, assumi uma pose imponente, e logo o cara com cara de líder e a sacerdotisa foram trazidos até mim.
O líder era alto, com um corpo musculoso e definido. Não dava pra ver o rosto dele por causa da máscara, mas com certeza ele passava uma impressão de força. Ao lado dele estava a sacerdotisa, tão distante quanto da primeira vez que a vi.
— Você realmente veio. Leva isso bem a sério, hein — eu disse.
— Estou honrado, chefe — respondeu o líder, ajoelhando-se junto com a sacerdotisa diante de mim.
Quão valiosa essa máscara tinha que ser pra justificar tanta lealdade exagerada? Eu nunca disse que era o chefe deles.
Notei os olhos deles se voltarem de mim para as pessoas ao meu lado — Touka e Princesa Murina. Touka estava com sua armadura habitual em tom castanho-avermelhado e a katana presa à cintura, mas agora usava uma máscara de raposa vermelha, exatamente como eu tinha sugerido. Murina não conseguiu uma máscara de raposa, então improvisou com uma inspirada num tanuki. Achei que estava tudo certo, contanto que o rosto dela ficasse escondido.
— Hã? O que significa isso, chefe? — perguntou o líder, os olhos arregalados indo de uma para a outra.
Desculpa. Perdão por complicar as coisas.
— Achei que elas poderiam ajudar com o pedido que fiz pra você — falei. — Sei que te pedi algo um pouco demais. Por isso chamei essas duas. Uh, hum, a Tsuneko aqui é boa de briga e tem muitos subordinados.
— Tsune…ko? — repetiu Touka.
Vou garantir que ela tenha Grieving Souls no grupo dela.
Touka deu um passo à frente e disse num tom claro e decidido:
— Podem me chamar de Tsuneko! Lutamos sob ordens do chefe, e só ele tem o direito de nos comandar. Por favor, nos vejam apenas como colaboradoras!
Que loucura. A gente nem tinha combinado esse nome antes, e ainda assim ela entrou no personagem sem hesitar. Corajosa demais. Mas no caso dela, acho que era só profissionalismo mesmo.
— Esse é o time principal do chefe? — perguntou o líder. — Essa armadura, eu já vi antes. É o que estou pensando?
Pelo visto, graças ao esforço deles, os Cavaleiros da Tocha tinham ganhado certa fama. Achei que não seria o fim do mundo se Touka não se mantivesse no anonimato. Podia ser problemático se descobrissem a identidade da Murina, mas isso parecia improvável, já que ela quase nunca aparecia em público.
— E, aqui do lado — continuei — temos, certo, a Ponta. Ela ocupa uma posição única, então só lembrem disso.
— Ponta — repetiu ela.
Ah, será que fui desrespeitoso?
A Princesa Ponta ficou ali, parada, olhando pro nada. Justo quando eu pensava em como seria bom se ela fosse menos passiva, ela deu um passo à frente e, por algum motivo, fez uma reverência graciosa.
— P-Podem me chamar de Ponta — disse. — Espero que possam perdoar qualquer erro que eu cometa.
Na longa história de Zebrudia, eu provavelmente era a única pessoa que apresentou a princesa imperial como “Ponta”.
Enquanto o líder continuava olhando de Ponta para Tsuneko e vice-versa, superei meu estranhamento e disse:
— Você não é muito fã, é isso?
O Clube de Fãs da Máscara de Raposa me parecia confiável, a ponto de ser até meio absurdo, mas Touka era um ótimo bônus. Além disso, quem tava bancando ela era a Sitri.
Depois de pensar um pouco, o líder curvou a cabeça e respondeu:
— Nada disso. Agradeço pela consideração.
Assim que o Clube de Fãs da Máscara de Raposa levou elas embora, senti como se um peso tivesse sido tirado dos meus ombros.
— Graças aos céus.
Todas as minhas preocupações tinham sido resolvidas de uma só vez, e era tudo graças à minha querida amiga Sitri, que financiava os Cavaleiros da Tocha. Eu tinha mesmo que agradecer a ela. Agora o treinamento da Murina também estava resolvido. Era como se tudo tivesse se encaixado. Aproveitei o momento pra relaxar um pouco.
— Liderança excelente, ó Raposa Branca — disse a sacerdotisa do Clube de Fãs da Máscara de Raposa com uma voz digna.
— O que você ainda tá fazendo aqui? — perguntei.
— Não tenho outro dever além de servi-lo.
Eles levavam isso muito a sério. O Clube de Fãs da Máscara de Raposa claramente não era só diversão e zoeira. Mas o que meus amigos diriam se vissem essa garota me seguindo por aí?
E quantos anos ela tem mesmo?
Não sabia qual posição ela ocupava no clube, mas era a única que não usava máscara. Pelo olhar dela, dava pra ver que estava um pouco tensa.
Hmmm.
— Hããã…
— Meu nome é Sora Zohlo, uma Donzela Sagrada da Raposa — disse ela depois de uma pausa, com a tensão se desfazendo um pouco à medida que falava. — Por favor, me chame de Sora.
Donzela Sagrada da Raposa. Nunca tinha ouvido esse título antes, mas talvez ela fosse famosa entre os fanáticos por máscaras de raposa.
Será que ela tinha ligação com os deuses raposa do Peregrine Lodge? Hahaha, claro que não.
Embora estivesse um pouco envergonhado, havia algo que eu precisava confirmar. Limpei a garganta e me preparei.
— Sora, tem uma coisa que tá me incomodando. Essa máscara é mesmo tão rara assim?
Era uma pergunta sincera, mas recebi uma reação exagerada depois de uma longa pausa.
— O quê?
Essa máscara que caiu no Peregrine Lodge era, sem dúvidas, um item valioso. Mas pelo que eu sabia, não tinha nenhum poder especial.
Quando fantasmas eram derrotados, geralmente se dissipavam completamente, sem deixar nem um fiapo de pano pra trás. Embora fosse extremamente raro, às vezes um item ou outro acabava sobrando. A chance disso acontecer era proporcional ao poder do fantasma. No entanto, esses itens geralmente eram bem fracos em comparação com uma Relíquia. Podia-se dizer que eram os restos de um fantasma.
Então, mesmo sendo rara, não parecia algo que inspirasse a lealdade absurda que o Clube de Fãs da Máscara de Raposa demonstrava. Era uma peça estilosa, sim, mas a tecnologia atual conseguiria reproduzi-la com facilidade, e os outros membros do clube também tinham máscaras bem legais.
Sora perdeu a compostura devota e parecia totalmente confusa. Olhou por cima do ombro, se certificando de que ninguém mais estava por perto, e depois voltou o olhar pra mim.
— Ó Raposa Branca, o que quer dizer com isso? Isso é algum tipo de piada? — perguntou com a voz trêmula.
— Veja bem, consegui essa máscara faz um tempo, quando derrotei um fantasma num cofre do tesouro.
— Huaaah?! O quê?!
A pele da Sora empalideceu, depois ficou vermelha, e então voltou a empalidecer. Foi meio engraçado.
Mas o que será que ela pensou que essa máscara era? Eu a tirei e examinei de novo. O design era excelente e ela passava uma impressão estranha, mas ainda era só uma máscara. Pessoalmente, quando se tratava de máscaras, eu preferia alguma com poderes, tipo o Rosto Reversível.
Sora cruzou os braços, suando frio.
— Hã? Ummm. Rrrrmmm.
— Ei, será que dá pra vender isso por uma boa grana? Tem algum valor?
— Vender?! — ela exclamou, com a bochecha tremendo. — N-N-Não, você não pode fazer isso.
Agora entendi. Era uma daquelas coisas valiosas demais pra serem vendidas. Mas ainda assim eu não entendia de onde vinha esse valor todo. Eu só tinha usado a máscara porque não tinha outra forma de esconder meu rosto. Se fosse possível, teria preferido algo com buracos pra enxergar, assim não precisaria depender daquela Relíquia.
Sora se aproximou até ficar a poucos centímetros de mim. Me encarou de perto, e então disse num tom conspiratório e baixo:
— P-Por favor me corrija se eu estiver errada. Você não é a Raposa Branca, e essa máscara é algo que você encontrou num cofre do tesouro?
Aquelas palavras desesperadas finalmente me fizeram perceber algo que eu já devia ter sacado faz tempo.
— Ah. Você me confundiu com outra pessoa?
Sora soltou um gemido fraco, segurou a cabeça e se contorceu.
— Isso não pode estar acontecendo… — ela sussurrou, devagar.
Coloquei a máscara de volta e tentei consolá-la.
— Calma, calma, essas coisas acontecem.
— Por que você não disse nada quando eu segurei sua mão?!
O que eu deveria ter dito? Ela foi quem segurou minha mão do nada, disse “por aqui” e me levou pro encontro do Clube de Fãs da Máscara de Raposa. Eu nunca tive a intenção de enganar ou usar ninguém. Eu tava confuso desde o primeiro minuto.
— E-E-Então por que você chamou a gente de Clube de Fãs da Máscara de Raposa? — Sora perguntou.
— Hm? Eu errei? Todos vocês pareciam estar usando máscaras de raposa.
— Quem? Quem faria isso?! Isso é normal? Não. Não é. Ninguém me avisou que isso podia acontecer!
E o que eu deveria responder a isso? O que eu devia ter dito lá naquela sala? Pela primeira vez, eu não tinha culpa de nada. Isso era problema da Sora e do Clube de Fãs da Máscara de Raposa (nome provisório) que mandou ela. Mas apontar isso agora não parecia uma atitude madura. Em vez disso, fiz uma pose durona e mantive a compostura.
— Calma, calma, se você for honesta e admitir o erro, aposto que eles vão te perdoar.
— Perdoar?! Foi isso que você disse? Eu não vou ser perdoada! Eu prometi pra eles! Eu jurei que você era a Raposa Branca!
— Uh. Não, você devia confessar. Precisa obedecer ao COCOA. COntar, COnfiar, Alertar.
— Por que você tem uma máscara autêntica?! Só a divina Raposa Branca e aqueles reconhecidos pelos nossos deuses vulpinos podem ter uma dessas! É um identificador de chefão!
— O quê? Eu consegui isso de um monstro qualquer no Peregrine Lodge.
Sora recuou.
Eu não fui a única pessoa que apareceu naquele cofre, sem contar que aquele fantasma foi derrotado só com uma conversa. Provavelmente tem várias dessas máscaras por aí.
— E você disse que isso é um identificador de chefão? — insisti. — Não acha que é um sistema meio estranho? Pode causar mal-entendidos facilmente. Acho que deviam mudar isso. Que tal conversar com o clube?
Sora tapou os ouvidos e se sentou.
Devia haver pelo menos umas poucas máscaras de raposa branca circulando por aí. Nem parecia impossível falsificar uma.
— Dessa vez foi só um engano inocente, mas alguém mal-intencionado podia usar esse sistema pra se aproximar de vocês.
— S-Só… fica quieto um pouco!
— Ah. Tá bom.
Eu só queria ajudar o Clube de Fãs da Máscara de Raposa (nome provisório), mas parecia que a Sora não tava no clima. Sem nada melhor pra fazer, cruzei os braços e esperei ela tomar uma decisão.
Eu não tinha feito nada de errado. Só usei uma máscara de raposa que eu tinha por perto pra esconder o rosto. Não havia um pingo de culpa em mim. Mas aquilo tava começando a parecer problemático. Se precisasse, eu até pediria desculpas. Afinal, eu tinha mandado neles.
Ouvi a Sora murmurando sozinha de vez em quando, como se estivesse organizando os pensamentos.
— Então?
— Foi um engano?
— Mas a máscara é autêntica?
— Mas eu errei ao chamá-lo de Raposa Branca.
— Mas a máscara divina é autêntica?
— Mas ele não é um chefão?
— Será que a culpa é da organização?
— Ahhh. Logo na minha primeira missão…
Eu não via motivo pra tanto drama. Todo mundo erra. Eu errava o tempo todo. O importante é seguir em frente. Ninguém ia morrer por causa de um erro da Sora, então achei que ela podia pegar mais leve.
Eventualmente, Sora pareceu colocar as ideias em ordem e se levantou. Cambaleou um pouco de tontura, mas logo se estabilizou. Quando me lançou um olhar penetrante, consegui ver minha máscara refletida nas lágrimas dela.
— Você é, sem sombra de dúvida, a Raposa Branca — ela disse.
— O quê? Tá enganada. Eu sou só um caçador que achou essa máscara por acaso.
Ela tinha escutado uma palavra sequer do que eu disse?
— Eu não estou enganada — ela disse, pressionando o dedo contra meu peito. — Você é a Raposa Branca, reconhecida pelos deuses, portadora de uma relíquia sagrada!
— Huh?! Isso tá errado!
— Fui ensinada que se a máscara é autêntica, o portador também é! Eu sou uma sacerdotisa, uma verdadeira Donzela Sagrada da Raposa. Meus olhos não podem ser enganados, eu juro!
— Entendo. Isso é, hum, impressionante.
Ela tava batendo o pé. O que diabos é uma Donzela Sagrada da Raposa? Aliás, o que é o Clube de Fãs da Máscara de Raposa (nome provisório)? Será que é divertido? Talvez eu devesse entrar também? Mas aí eu teria que jurar lealdade à Raposa Branca ou sei lá o quê?
— Em resumo, eu não cometi nenhum erro — insistiu Sora.
— Cometeu, sim — eu disse.
— E eu também não tenho a menor intenção de prejudicar a organização. Se alguém disser que eu cometi um erro, então esse alguém é o traidor.
Pera. Ela só tá tentando empurrar o erro pra debaixo do tapete? Será que ela só é ruim no que faz?
De repente, senti até empatia por ela. Ninguém precisava improvisar tanto quanto eu.
— Não seria melhor contar a verdade? — eu disse. — Se fizer isso, eu peço desculpas junto com você.
Vi que os olhos da Sora estavam girando. Parecia que ela não estava interessada em me ouvir. Suando em bicas, ela levantou um punho fechado.
—Se chegou a esse ponto, não temos escolha a não ser romper os laços antigos! Vamos forjar uma nova organização, liderada por nossa nova abençoada Raposa Branca! Chamaremos de—Raposa Sombria de Dez Caudas! Com uma cauda a mais, seremos a organização superior!
Parecia que ela estava em pânico. Será que ela estava mesmo de boa com isso?
—Não. Não, não podemos fazer isso —respondi.
—Hã?!
Raposa Sombria de Dez Caudas. Que nome infeliz. Depois do incidente com o imperador, raposas não tinham a melhor das reputações e a gente podia ser confundido com aquele outro grupo. Nomes são importantes. Frequentemente me arrependia de ter chamado nosso grupo de “Grieving Souls”. Tinha me acostumado com o nome e perdido o interesse em mudar, mas quando estávamos começando, ocasionalmente nos confundiam com um grupo de fantasmas.
Fui um idiota, mas nunca cometi o mesmo erro duas vezes. Sora me olhava com os olhos arregalados. Fiz uma proclamação completamente absurda.
—Esse é um nome ruim. Vamos com este: Tofu Frito de Dez Caudas.
—Tofu Frito. De Dez Caudas?!
Ela parecia prestes a surtar, mas eu estava falando sério.
—Isso mesmo. Tofu Frito de Dez Caudas. Tofu frito é algo maravilhoso. Pode até salvar vidas. É um nome delicioso.
Tofu frito já tinha me salvado de ter que ir para a batalha uma vez. E é gostoso. Coisas saborosas são a salvação do mundo.
—Você quer dar o nome de Tofu Frito de Dez Caudas pra uma organização secreta? Você perdeu completamente o juízo? —protestou Sora.
Organização secreta? Ela disse “organização secreta”?
—Secreta? —respondi. —Não, não seremos secretos. Vamos fazer bentôs deliciosos de inarizushi, um prato recheado com tofu frito. Vamos nos espalhar pela nação, e então dominar o mundo inteiro.
—Você tá falando sério?!
Iriamos produzir tofu frito. Depois, fazer bentôs de inarizushi deliciosos com o selo da Raposa Branca. Eu, claro, não participaria, mas parecia a escolha perfeita, já que os fantasmas da Peregrine Lodge adoravam tofu frito.
Cara, eu tô pegan— Ok, talvez eu não esteja pegando fogo hoje. Bem, vamos só fazer o que der.
Sora parecia ter alcançado algum tipo de iluminação quando entramos na luxuosa sala de estar.
—O-O que é isso? Líder, quem é ela? —disse Lucia, levantando os olhos do livro.
Eu realmente não sabia como responder a essa pergunta. Honestamente, dizer que eu não fazia ideia de quem era a Sora parecia a melhor opção, mas seria irresponsável. Mas eu não sabia quem ela era.
—Digamos apenas que as circunstâncias são complicadas —respondi. —Isso também é complicado pra mim.
Sora estava sem expressão. Seus olhos estavam mortos. Parecia que ela não queria voltar pra casa. Provavelmente temia as consequências que a esperavam lá. Em vez disso, insistia teimosamente que era seu dever acompanhar a Raposa Branca, então não tive escolha a não ser mantê-la comigo. Mas eu não podia cuidar dela pra sempre.
Sempre me envolvia com coisas que escapavam da minha compreensão, e tinha a sensação de que essa era mais uma dessas vezes. Ainda achava que nossa melhor opção era pedir desculpas honestas ao Clube de Fãs da Máscara de Raposa (nome temporário).
—Ai, meu Deus! Mais bobagens. Por que você está sempre—
—Certo, Lucia. Carrega isso aqui pra mim? —interrompi.
—Aaagh!
Joguei pra ela a Visão Tripla, que eu precisava pra enxergar com a máscara, e o Olho da Coruja, que me permitia ver no escuro. Lucia pegou ambas as Relíquias com destreza antes de me lançar um olhar mortal. Escondida atrás de mim, Sora observava tudo isso com olhos arregalados.
—I-Isso é, pode ser? Ó Raposa Branca, você faz parte das Grieving Souls? —ela perguntou num sussurro.
—É, isso mesmo. Vejo que você entende das coisas.
Eu mantinha o rosto coberto, mas o da Lucia era conhecido por muitos. Aparentemente, a fama dela a tornava reconhecida até mesmo pelo Clube de Fãs da Máscara de Raposa (nome temporário).
—Tudo bem. Tudo bem. Eu não sou uma traidora —murmurava Sora enquanto suava copiosamente. —Sou uma Donzela. Eu estou certa. Certa. Certa. Não sou eu quem está errada. Ó raposa divina, por favor me proteja. Certo, essa é uma missão de infiltração. Não. Sem encobrimentos. Eu estou certa!
Não acho que isso esteja certo. Sério, honestidade ainda é a melhor abordagem.
Ela não precisava se preocupar tanto. As pessoas esquecem a dor com facilidade. E, pela minha experiência, as coisas meio que se resolvem sozinhas. Ainda assim, eu conseguia entender um pouco o pânico que ela estava sentindo.
—Sitri! —chamei, sem saber se ela estava por perto. —Desculpa, mas posso te emprestar um pouco?
—Certamente —respondeu ela animada. —Aconteceu algo?
Ah, ela estava no quarto.
Eu ia mostrar à Sora como um Nível 8 improvisava.
—Estava pensando em montar uma organização que produz bentôs de inarizushi —disse com um sorriso patético. —Achei que deveríamos começar garantindo uma base de operações.
—Hã? Uh, bentô de inarizushi, é isso?
Sitri piscou. Lucia e Sora me olharam como se eu tivesse perdido completamente a noção. Comecei a achar que até a Sitri, minha salvadora de sempre, acharia isso demais.
Não. Se alguém pode fazer isso funcionar, é ela!
—Você acha que consegue dar um jeito? —perguntei.
—Ummm. Bem. Com licença, mas posso perguntar o motivo?
Motivo? Não tem motivo nenhum, cacete. Só estou sendo levado pela correnteza.
—É, claro, por isso —respondi com uma expressão séria. —Por aquilo.
Aquilo o quê? Era, claro, aquilo.
Sitri pareceu confusa por um instante antes de sorrir e bater palmas. —Ah, entendi. Aquilo! Compreendido, vou começar! Quando precisa?
—Imediatamente.
—Imediatamente?! —os olhos da Sitri se arregalaram, deixando transparecer toda sua confusão. —O Festival do Guerreiro Supremo está prestes a começar—
—Sim, mas estamos falando daquilo, daquilo mesmo —afirmei.
Sitri ficou em silêncio por um momento e então assentiu. —Muito bem. Já que é aquilo. Vou sair um pouco. Posso demorar pra voltar.
Com um olhar desconfiado, Lucia acompanhava toda essa conversa.
—Líder, o que é esse “aquilo”? —perguntou.
—Hã? Sei lá.
—Irmão, você vai acabar sendo forçado a casar com ela!
Sitri era realmente confiável. Sempre fui do time Sitri. Ela era agradável, e sua personalidade combinava com a minha. Mas eu não ia me casar com ela.
Viu só, Sora? É assim que se improvisa.
Soltei um bocejo e me afundei numa poltrona confortável. Então me lembrei de que ainda tinha que me gabar. Precisava contar para a Raposinha que eu estava montando uma organização pra fazer bentôs de inarizushi.
Sora simplesmente não conseguiu acompanhar a mudança de cenário. Nada fazia sentido. A única coisa que ela conseguia entender era que tinha sido jogada numa situação lamentável.
Era absurdo pensar que ela tinha identificado a Raposa Branca de forma errada. Isso colocava em dúvida o próprio sentido da existência das Donzelas. Elas ocupavam uma posição especial dentro da organização, mas isso não tornava Sora insubstituível.
A máscara da Raposa Branca era autêntica. Normalmente, isso poderia dar a ela uma certa margem de manobra — mas não quando essa máscara era usada por um membro dos Grieving Souls, os arqui-inimigos da Raposa Sombria de Nove Caudas.
Resumindo, Sora tinha sido enganada. Tinha sido vítima de uma armadilha elaborada logo em sua primeira missão. E o homem por trás de tudo isso ainda zombou dela, dizendo que ela devia simplesmente contar a verdade para seus colegas.
Ela jamais poderia admitir o que havia feito. Fazer isso seria basicamente assinar sua própria sentença de morte. Mesmo que poupassem sua vida, ela seria presa — e não havia garantia de que isso seria melhor que morrer. E Sora não esperava que suas companheiras Donzelas viessem socorrê-la.
Ela estava num navio afundando, e já não havia como pular fora. Ela não queria morrer. Havia nascido para ser uma Donzela, e se recusava a deixar essa vida acabar por algo que nem foi culpa dela.
Talvez fosse indigno de uma Donzela pensar assim, mas Sora tinha certeza de que não havia feito nada de errado. Aquela máscara era genuína. Quem possuía as máscaras divinas se tornava objeto de adoração — e era com base nisso que existiam as Donzelas da Raposa Sagrada. Em algum momento, a ordem natural das coisas se inverteu e as Donzelas se tornaram servas da Raposa Sombria de Nove Caudas, mas não era pra ser assim.
O que Sora estava fazendo agora era um retorno às origens. Era seu dever colocar as coisas nos trilhos. Ela não estava errada. Ela ia restaurar as coisas como deviam ser. Ia se devotar à Raposa Branca e à sua nova organização, o Tofu Frito de Dez Caudas. Eles espalhariam inarizushi por toda a terra! Sora não estava errada!
— Isso serve, Krai? — perguntou a Alquimista. — Não foi fácil, mas consegui isso. Em troca daquilo.
Por que ela tá se esforçando tanto por esse plano idiota…?
— Bom trabalho conseguindo isso tão rápido — respondeu o Mil Truques.
Com um sorriso idiota e irritante, ele ignorava completamente os pensamentos de Sora.
Era manhã do dia seguinte e eles estavam em um prédio pequeno, não muito longe do centro de Kreat. Parecia ter sido um café ou algo do tipo, já que havia uma cozinha excelente que quase destoava do lugar. No segundo andar, havia espaços residenciais com móveis básicos.
Sora não entendia muito do mundo, mas até ela sabia que isso não era algo que se conseguia por causa de uma simples piada. Havia algo de errado com essa tal de Sitri, se ela estava disposta a cumprir uma ordem tão absurda.
Sora começou a cogitar fugir. Talvez conseguisse despistar a Raposa se mudasse de roupa e de cabelo.
O falso — não, o novo — Raposa Branca provavelmente estava tentando impedir a operação que a organização estava conduzindo em Kreat. Como mera Donzela, Sora não tinha sido informada dos detalhes, mas ouvira que era uma empreitada gigantesca, capaz de mudar o mundo. Tudo estava sendo gerenciado por um homem da sétima cauda, que havia planejado tudo nos mínimos detalhes. Mas Sora achava que tudo tinha ido por água abaixo no momento em que ela confundiu um impostor com o chefe.
Mas ela não conseguia entender como uma organização que fazia tofu frito podia atrapalhar tudo isso. Ela nem sabia o que era inarizushi!
— Também preparei tofu frito! — disse Sitri. — Não é um alimento comum por aqui, então foi bem difícil de conseguir.
— Hã? Você conseguiu mesmo? — respondeu o Mil Truques.
Sora estava confusa, mas não podia simplesmente ficar parada. Ela já não tinha mais lar na antiga organização. Tinha que sobreviver. Não — era seu dever sagrado servir ao novo Raposa Branca! Sora não havia feito nada de errado! Forçando-se a animar, ela cerrou o punho e levantou a cabeça.
— Aguardo suas ordens, ó Raposa Branca. Eu, Sora Zohlo, a Donzela, irei te apoiar até meu último suspiro. Por favor, olhe por mim! Ah, e só pra constar… eu não sei cozinhar! Nunca fiz isso na vida!
Será que dá mesmo pra conquistar o mundo com comida…? Que diabos esse cara tá pensando? Seria esse o mesmo tipo de artimanha sobre-humana que enganou Sora? Era confuso demais, fazia sua cabeça girar. Mesmo assim, ela estava desesperadamente tentando apoiar o novo Raposa Branca. Mas ele só franziu a testa.
— Krai, vou lembrar que a coisa que mais odeio é ficar no prejuízo — disse Sitri.
— E o que você mais gosta? — ele respondeu, após uma breve pausa.
— Isso seria, é claro… aquilo. Você devia me dar mais daquilo.
— Hahaha, você é engraçada.
— Hehe, eu me esforço. Também é em nome daquilo. Sim — daquilo.
A Raposa Branca não tinha nem um pouco a aparência de alguém pronto e motivado pra atrapalhar um dos planos da Raposa. Será que ele entendia que Sora correu pra Kreat porque um impostor podia arruinar o plano de Galf?
Ela decidiu ignorar o biquinho de Sitri por ora e ficou observando a Raposa Branca. Mas logo desistiu de tentar usar o cérebro. Não havia nada que uma mera Donzela pudesse fazer nessa situação.
Era uma era de esplendor, proporcionada pela fartura dos cofres de tesouro. Os caçadores de tesouros que recuperavam Relíquias desses cofres às vezes eram aclamados como campeões. A caça era considerada o caminho mais rápido para a riqueza, glória e poder — fazendo desta a era dourada da caça ao tesouro.
Demonstrando talentos excepcionais desde jovem, Krahi Andrihee teve um caminho inevitável rumo à caça. Desde que se entendia por gente, sonhava com aquela vida — e por tanto tempo quanto isso, até os adultos à sua volta tinham certeza de que ele se sairia excelente nela.
Krahi não cresceu com um corpo particularmente grande, mas seus instintos eram afiadíssimos, e sua aptidão mágica era de um nível frequentemente considerado impossível para homens (afinal, dizia-se que mulheres tinham mais afinidade natural para se tornarem magas). Mas, acima de tudo, ele tinha o que todo caçador precisava: a habilidade de absorver e reter eficientemente material de mana.
E assim, como se guiado pela mão do destino, Krahi Andrihee tornou-se um caçador. Mas mesmo com suas habilidades — que pareciam um presente dos próprios céus — os cofres de tesouro mostraram-se desafiadores.
O caminho que escolheu era cheio de espinhos, mas ele se dedicou completamente a trilhá-lo. Conquistou diversos cofres. Evoluiu. Quase perdeu a vida, sendo constantemente alvo de criminosos. Não desperdiçava um segundo. Sacrificou até o sono. Para Krahi Andrihee, as dificuldades eram provações oferecidas pelos deuses, e superá-las era motivo de alegria.
Antes que percebesse, seu nome já havia se espalhado por toda parte. Ainda não havia recebido um título, mas muitos caçadores já conheciam seu nome. Ostentá-lo com orgulho valeu a pena. Títulos geralmente eram concedidos pela Associação dos Exploradores, mas Krahi não suportava a ideia de receber algo sem graça.
Mil Artes — os poderes dos deuses, forjados incessantemente. Esse era o ideal que Krahi almejava. Às vezes, as pessoas erravam ao mencionar seu título, mas isso era um detalhe. Alguns até tinham a falsa impressão de que ele era Nível 8 — devia ser porque ele realmente passava essa sensação de poder.
Krahi Andrihee, o Mil Artes, (poderia ser confundido com um) Nível 8. Finalmente, havia conquistado o direito de participar do maior evento marcial de todos — o Festival do Guerreiro Supremo! Uma enxurrada de emoções tomou conta dele.
Na época, circulavam boatos absurdos a seu respeito. Que Krahi não era Nível 8, que não tinha título, que nunca havia destruído organizações criminosas de peso, e que jamais transformara campos de flores em cofres de tesouro. Certamente, esses rumores eram fruto das altas expectativas que as pessoas depositavam nele.
Ao vencer o Festival do Guerreiro Supremo, ele conseguiria pôr fim a esses rumores. Enfrentaria adversários formidáveis. Muitos deles provavelmente trilhavam o caminho do guerreiro há mais tempo que ele. Mas Krahi estava em plena forma. Conseguiria. Seu poder estava no mesmo nível de um Nível 8.
Sem contar que ele tinha aliados. Krahi havia começado como um caçador solo, mas seus ideais acabaram atraindo companheiros valiosos para seu lado. No Festival do Guerreiro Supremo não era permitido lutar ao lado dos amigos, mas só de saber que estavam lá já era o suficiente para dar forças a Krahi.
Todos faziam parte de um mesmo grupo. Krahi ficou surpreso quando seus amigos sugeriram o nome “Bereaving Souls” e decidiram usar uma máscara como símbolo. No entanto, ele não era do tipo que rejeitava os amigos sem ao menos ouvir o que tinham a dizer.
Na sala de estar da suíte alugada pelos Bereaving Souls, Elizabeth Smyat — a Sombra Sufocada — e Kule Saicool — o Sortido Proteico — estavam tendo uma conversa séria.
— Então a gente tá ferrado? O que a gente faz, Kule? Não tem como eu ganhar da versão original.
— Hmm. Isso é realmente ruim. Eu não esperava que os verdadeiros fossem aparecer.
Elizabeth Smyat era uma Ladina. Tinha um cabelo rosa fluorescente que doía nos olhos e usava um traje que deixava pouca coisa para a imaginação. Mas mais chamativo que isso era seu busto avantajado — a origem do seu título, “Sombra Sufocada.” Ela achava o apelido uma idiotice e tinha o mau hábito de ser sarcástica, mas não era uma ladina ruim.
Kule Saicool era o cérebro do grupo. Era facilmente identificado pelos óculos e pelo jeito educado de falar. Inexplicavelmente, afirmava ser um Espadachim, mesmo nunca tendo empunhado uma espada. Em combate, era praticamente inútil, mas como Krahi não tinha experiência como líder, o Sortido Proteico mantinha tudo funcionando.
Os outros membros também tinham suas excentricidades, mas para alguém como Krahi — que até então fora um caçador solo — eles eram insubstituíveis.
— Fora o Krahi, nosso grupo não tem nada de especial — suspirou Kule.
— Ué, pois é. Se eu fosse especial, tu acha que eu ia deixar me chamarem de “Izabee”? — disse Izabee.
— Isso não é verdade! — Krahi interveio, incapaz de ouvir os amigos falarem assim de si mesmos. Independente de como haviam se conhecido, o fato era que agora eram um grupo. Ele tentou fazê-los mudar de ideia, mas a baixa autoestima era algo que pairava sobre os Bereaving Souls.
— Kule, Izabee. Se não fosse por vocês dois e pelo resto do grupo, eu nunca teria chegado a um torneio tão prestigiado. Meu sincero agradecimento.
O rosto de Izabee ficou sério. Kule pareceu desconfortável.
— Por que esse cara é tão absurdamente forte? — murmurou Izabee. — Eu não achei que ele fosse mesmo chegar ao Festival do Guerreiro Supremo.
— Pois é isso que acontece quando você se vira sozinho por tanto tempo. Ele é o único que não tá fingindo.
Era verdade. Krahi não ia perder — não importava o oponente. Estava pronto para tudo!
Vou mudar as coisas. Mais do que fazer meu nome ser conhecido, vou fazer o nome dos Bereaving Souls ecoar por toda a terra.
Esse era o outro sonho de Krahi. Reafirmou sua determinação e olhou pela janela. Com os olhos ardendo de paixão, observou as ruas de Kreat, que ficavam mais agitadas a cada dia com a aproximação do Festival do Guerreiro Supremo. De repente, lembrou-se daquele jovem que se parecia com ele. Será que ele viria torcer por Krahi no torneio?
Tradução: Carpeado
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Tradução feita por fãs.
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