Grieving Soul – Capítulo 5 – Volume 6
Nageki no Bourei wa Intai shitai
Let This Grieving Soul Retire Volume 06
Capítulo 5: A Pousada Peregrina e as Crianças Perdidas
— Oooh. Estamos voando! Estamos realmente voando!
— Claro que estamos! Senhor! Isto é uma aeronave.
Kris, um ser cuja casa natural era no coração da floresta, olhou para mim como se eu fosse algum caipira. Acho que a vida na capital imperial a tinha urbanizado completamente.
Nossa decolagem tinha sido suave, e o voo era a experiência aérea mais silenciosa que eu já tinha tido. Achei absolutamente incrível que isso fosse algo feito pelas mãos humanas. Apoiei-me no meu cajado estupidamente grande e olhei pela janela.
— A propósito, que cajado é esse, senhor? — perguntou Kris, desconfiada.
— É uma Relíquia — respondi orgulhoso. — Bem legal, né?
Sem mencionar que era estiloso. Percebi Kris observando seu próprio cajado. Como seus designs vinham de eras há muito passadas, muitas Relíquias tinham aparências estranhas. Isso incluía o Round World. A maioria dos cajados usados por Magos era de madeira, mas este era de metal. Ninguém sabia como a gema no topo flutuava, ou por que flutuava em primeiro lugar. Era misterioso e desafiava explicações, características muito típicas de uma Relíquia.
Cajados eram um dos tipos mais raros de Relíquias de armas, tornando-os incomuns até mesmo entre caçadores de alto nível. O Round World não cumpria o papel usual de um cajado de amplificar mana, o que significava que era mais ou menos inútil como arma. Ainda assim, sua principal função fazia com que tivesse um preço alto.
Essa é uma boa oportunidade para explicar que as pulseiras de Telm eram Relíquias. Cajados em forma de pulseira eram um tipo de Relíquia muito mais caro do que um cajado puro. Ele era o líder do melhor clã de Magos da capital imperial, então fazia sentido que seu equipamento estivesse um nível acima dos demais.
— Por que você não estava com isso antes, senhor?
— Porque eu não precisava.
Kris ergueu uma sobrancelha bem desenhada, como se tivesse mais a dizer.
Era a primeira vez em muito tempo que eu segurava aquele cajado, e quase tinha esquecido o quão pesado ele era. Claro, parecia incrível, o que era ótimo, mas carregá-lo o tempo todo seria exaustivo. Eu devia ter pedido para Liz trazer também uma Relíquia de redução de peso enquanto estava nisso. Veja bem, para pessoas como ela, até mesmo um grande cajado de metal era tão leve quanto o ar, então ela não pensaria em trazer um redutor de peso a menos que eu pedisse.
— Eu não fazia ideia de que você tinha uma Relíquia de cajado, senhor.
— Também tenho Relíquias de espada e de machado. Esse é só mais um item da minha coleção.
— Entendo. Seria um desperdício uma Relíquia dessas ficar parada em uma coleção. Mas que item peculiar. É verdade que Relíquias de cajado têm uma conversão de mana incrível, senhor?
— É… Aham.
Parece que Magos não conseguem evitar se fascinar por cajados. Os olhos de Kris iam e vinham entre o Round World e seu próprio cajado. A triste verdade era que o meu era mais como um grande dispositivo de tradução, enquanto o dela era uma arma muito superior.
Ainda consciente do olhar de Kris, olhei ao redor e vi Kechachakka observando pensativo a paisagem pela janela. O motivo de eu ter mandado Liz de volta à capital imperial era justamente para poder conversar com esse cara. Segurei firme o cajado e me aproximei dele. O Shaman de capuz baixo e aparência suspeita virou-se para mim.
— Ei, Kechachakka, algo chamou sua atenção?
— Hee hee.
— He? He quem?
— Hee hee hee.
Como sempre, não conseguia me comunicar com ele. Mas isso estava prestes a mudar. Ativei o Round World e abri um sorriso.
— Desculpa, pode repetir? — perguntei.
— Uhe hee. Hee hee.
Suas palavras eram sombrias, mas seus olhos estavam surpreendentemente calmos.
— Hee hee hee — respondi com um aceno.
— Uhee?!
— Hee hee hee hee. Hee hee.
— Hee hee! Hee hee hee hee!
— Hm. Entendo. Interessante.
Fiz o meu melhor para manter meu rosto sem espasmos, agradeci a ele e me afastei. Voltei para Kris, que observou toda a interação atentamente.
— Kecha é nosso companheiro de equipe, então você não deveria mexer com ele! Senhor!
— É, uh-huh. Mas eu não estava mexendo com ele.
Que mundo estranho.
Percebendo a óbvia confusão de Kris, estendi o cajado.
— Durante esta missão, vou te emprestar isso — disse a ela.
— Hã?
— Você parecia querer testá-lo. Acertei? Só não perca.
— O quê?! Você pretende fazer essa missão sem uma arma?! Senhor?!
Seus olhos estavam arregalados, mas não para mim, e sim para o cajado místico.
Adotei uma postura confiante.
— Está tudo bem. Minha arma — bati na lateral da minha cabeça — é esta. Se algo, um cajado só me atrapalharia.
Na verdade, é bem pesado, então, por favor, carregue para mim.
Confusa, Kris pegou o cajado. Apesar do peso considerável, não disse nada. Mesmo com sua estrutura pequena, ela era mais forte que eu. Que deprimente.
— Hmph. Mesmo sendo companheiros de clã, ainda não consigo acreditar que um caçador emprestaria sua própria arma. Mas já que insiste, eu aceito.
— Valeu mesmo. Ah, certo. Esse cajado é bem poderoso, então não teste dentro do dirigível.
— Eu sei disso, senhor.
Sorrindo, lancei um olhar para Kechachakka. Não consegui entender uma única palavra do que ele havia dito. Pelo visto, ele realmente só estava dizendo “Hee hee hee.” Round World não funcionava decifrando as regras de uma língua, mas compreendendo intenções. E como era uma Relíquia, seus poderes eram absolutos. Ele funcionava sob princípios semelhantes aos das Lágrimas da Verdade, que detectavam mentiras.
Caçadores realmente eram só um bando de esquisitos.
***
Tirando as turbulências ocasionais, a viagem de dirigível foi bem tranquila. Perfeitas Férias provavelmente ajudou nisso, mas o principal foi o esforço de Franz. Durante esses três dias, ele garantiu que tudo estivesse em ordem. Todos os passageiros foram verificados e o dirigível passou por mais uma inspeção. Olhando para o rosto exausto dele, eu já tinha uma ideia do quanto aquilo deu trabalho.
— Nenhum rato a bordo — disse ele. — Então, Mil Truques, ainda acha que o dirigível vai cair?!
— Acho que vai ficar tudo bem. Mas se cair, caiu. Onde mesmo fica a saída de emergência?
— Saindo daqui, fica à sua esquerda. Droga, você não recebeu um mapa da nave? Tá tentando me deixar louco?!
Ah, é mesmo. Eu recebi um mapa.
Franz estava muito tenso. Como se ficar nervoso fosse ajudar. Não havia sentido em pensar demais no assunto.
— Tenho certeza de que tudo vai dar certo — afirmei com um tom tranquilizador. — Anéis de Segurança protegem contra quedas. Sei disso por experiência própria.
— Isso pra você é uma piada?! — Franz bateu na mesa. Acho que ele não gostou do meu comentário. Dei um passo para trás, e ele avançou.
— Seu trabalho é impedir que isso aconteça! — rugiu ele, apontando um dedo para mim. — Como pode estar tão despreocupado?! Aja como se se importasse com esse trabalho!
— I-Isso é, uh, apenas uma questão de experiência.
— O que disse?!
Já passei por todo tipo de situação. Proteger o imperador era novidade, mas já lidei com ataques de dragões e também com gente gritando comigo. Inclusive, já passei por algumas quedas… e essa nem foi a pior. Tenho um histórico de azar e sei quando não vale a pena lutar contra o destino. Pelo menos isso me tornou o maior especialista do mundo no uso de Anéis de Segurança. Mas não era nada além de ativá-los.
— Tenho certeza de que vai dar tudo certo — repeti.
— Esta nave é uma fortaleza. Está equipada com repelentes de monstros. Nada se aproximará de nós, seja em terra ou no céu!
Franz quase parecia estar tentando se convencer. No momento seguinte, um cavaleiro entrou correndo na cabine.
— S-Senhor, recebemos um alerta da superfície. Há sinais de uma tempestade se formando—
— Droga. Isso não teria acontecido se não tivéssemos atrasado a decolagem! — Franz gritou comigo antes de se virar para o cavaleiro. — Avise a todos para ficarem em alerta. Nem vento, nem chuva, nem mesmo raios vão nos derrubar!
Parecia ridículo ficar bravo comigo quando tempestades são só uma parte de viajar. Há pouco tempo, fui atingido por uma tempestade nas minhas férias.
Franzi a testa, relembrando minhas experiências anteriores.
— Espero que seja apenas uma tempestade — murmurei com um pequeno sorriso.
***
O dirigível balançou violentamente. Kechachakka olhou pela janela e cerrou os dentes ao ver as nuvens negras. Sua cabeça e seu estômago sofriam com a tensão. Desde que entrou para a Raposa, nunca havia passado por algo assim. Ele sabia o que estava causando isso. Era aquele homem que dizia ser da décima terceira cauda, Krai Andrey.
Nada nele impressionava Kechachakka. Antes e depois de sua identidade ser revelada, ele parecia despreocupado, e mesmo as descrições mais gentis não escondiam o fato de que ele era um palhaço.
Ele simplesmente fazia o que queria. Kechachakka nunca tinha visto alguém “Hee hee hee” para ele. Além disso, aquele homem transformou o imperador em um sapo e convocou elementais de lençóis. Era impressionante que Franz ainda não tivesse chutado o Mil Truques da guarda. Kechachakka estava disposto a acreditar que tudo era calculado. Antes, achava que a guarda imperial era cheia de idiotas, mas agora estava reconsiderando.
—
Lá no fundo, Kechachakka não tinha certeza se queria continuar na Raposa Sombria de Nove Caudas, se era assim que os figurões do grupo agiam. Mas será que aquele homem era realmente um dos superiores? Desde o momento em que o Mil Truques afirmou fazer parte da alta hierarquia, dúvidas começaram a rodopiar na mente de Kechachakka.
Ele tinha certeza de que Telm era um dos membros da Raposa, mas não podia dizer o mesmo do Mil Truques. Maldições eram um tipo de magia formada por inimizade e outras emoções intensas. Como usuário desse tipo de magia, Kechachakka era muito bom em discernir a verdadeira natureza das pessoas. Pelo que podia perceber, o Mil Truques era simplesmente, ou melhor, extremamente despreocupado. Ele não era movido por nenhuma má intenção, mas mais do que isso, não tinha o cheiro da morte que permeava todos os caçadores. Mas como isso era possível?
Enquanto observava as grandes gotas de chuva batendo contra a janela, Kechachakka soltou um lamentoso “Hee hee”. Sua avaliação dizia que o Mil Truques não era um membro da Raposa. Mas essa mesma avaliação também insistia que ele não poderia ser um caçador de Nível 8! Dizia que ele era apenas uma pessoa normal, e uma fraca ainda por cima!
Deixando de lado a questão de ele ser ou não um Raposa, não havia como negar que aquele homem era um caçador de Nível 8. Ele até cogitou a possibilidade de que fosse um dublê, mas certamente, se o Mil Truques quisesse fazer isso, teria escolhido outra pessoa. Além disso, um cidadão comum jamais poderia conhecer os sinais de código usados pela Raposa, nem poderia ser apenas uma coincidência.
Nada se encaixava. Kechachakka não fazia ideia do que era verdade e do que era mentira. Embora fosse um processo cansativo, a Raposa possuía um sistema de emergência para confirmar a filiação de um membro. Não por dever, mas por si mesmo, Kechachakka planejava utilizá-lo assim que voltasse à capital imperial.
A tempestade rugia do lado de fora da aeronave. Isso não era suficiente para derrubar uma embarcação como a Estrela Negra, mas, mesmo assim, o interior estava tão agitado quanto uma colmeia. Nem Kechachakka nem Telm podiam controlar tempestades. Aquela tempestade era apenas uma coincidência. Embora fosse incrivelmente conveniente para eles, ainda assim, era apenas isso.
— Ouvi dizer que o Mil Truques pode invocar tempestades — sussurrou Telm Apoclys, seu superior. — Será que chegou a hora? Agora não seria um momento estranho para cairmos.
Kechachakka se recusava a acreditar que alguém havia convocado aquela tempestade. Feitiços desse tipo existiam, mas sempre apresentavam sinais claros antes de serem ativados. Kechachakka não havia visto nenhum presságio assim, e aquele homem sequer possuía mana para começar. Normalmente, o Xamã poderia afirmar com confiança que aquilo não era resultado de magia, mas estavam falando do Mil Truques, alguém capaz de transformar instantaneamente o imperador em um sapo.
Kechachakka soltou uma risada fraca.
— Vejo que está incerto, Kecha — disse Telm, esfregando seus braceletes. — Não se preocupe, as defesas mágicas desta nave farão pouco contra ataques vindos de dentro.
Com um Magus tão poderoso ao seu lado, seu objetivo estava ao alcance. Em termos de discrição e poder, Telm Apoclys era o Magus mais forte que Kechachakka já tinha visto. Quando se tratava de combate contra outras pessoas, ele provavelmente superava até mesmo o Inferno Abissal.
E ainda havia o clone de água. Ao emprestar o poder de suas Relíquias, Telm possuía a habilidade única de criar um clone que podia controlar à vontade. Não importava quantos guardas o imperador tivesse, matá-lo estava bem dentro do possível para Telm.
Um mês atrás, as palavras tranquilizadoras de Telm poderiam ter confortado Kechachakka. Mas não agora. Não deveria haver problemas. Suas chances de falha eram praticamente nulas, e eles poderiam convocar dragões, caso realmente precisassem.
Foi então que o Mil Truques entrou na cabine. Ao ver Telm, deu aquele seu sorriso meio bobo. Telm começou a se levantar, mas ele ergueu as mãos.
— Ah, não precisa.
— Hm. Então está dizendo que ainda não é a hora? — perguntou Telm.
— Hã? Ah, Franz disse que ele e seus cavaleiros vão agir.
— O quê? Ele é um dos nossos?!
— Hm? Ah, sim — disse o Mil Truques, surpreso. — De qualquer forma, ainda não é hora de nos mexermos.
Kechachakka queria gritar que aquilo era um absurdo, mas se conteve. Sua impressão era de que Franz Argman era íntegro, completamente e absolutamente íntegro. Ele mesmo havia provado sua inocência com as Lágrimas da Verdade. Não havia como um homem assim ser um Raposa. Por outro lado, a mesma Relíquia também havia mostrado que o Mil Truques era inocente.
Se esse trabalho der certo, vou tirar um tempo disso tudo, Kechachakka disse a si mesmo.
— Hm. Que seja — disse Telm, recostando-se novamente. Ele começou a acariciar o queixo. Ao contrário de Kechachakka, ele mantinha a compostura. Como será que o Mil Truques aparecia da perspectiva dele? — Isso me lembra que há algo que gostaria de confirmar com você. O que pretende fazer sobre Kris?
— Hm? O que quer dizer com isso?
— Vocês parecem bastante próximos. Não se importa se ela for eliminada?
— O quê?!
O Mil Truques pareceu completamente surpreso. Mas eles precisavam fazer tudo ao seu alcance para reduzir os riscos de falha, e aquele Espírito Nobre era um obstáculo.
— Não somos particularmente próximos — continuou ele —, mas não vamos eliminá-la. Vocês dois têm algo contra ela?
Um profissional sabia separar sentimentos pessoais do trabalho. Se ele dizia que não eram tão próximos, então será que sua conversa amigável com ela era apenas um teatro? E, se sim, com qual propósito?
— Eu não diria isso — respondeu Telm. — Mas posso assumir que devemos deixá-la com você?
O homem da décima terceira cauda inclinou a cabeça de um lado para o outro por um momento antes de assentir para si mesmo. — É, acho que devo fazer algo de líder de vez em quando. Vou dar um aviso verbal para a Kris.
— Verbal? — Nem Telm nem Kechachakka sabiam como responder. — M-Muito bem.
Eles acharam isso extremamente preocupante. Esse homem estava falando sério? Ele realmente achava que um aviso verbal seria suficiente para silenciá-la? Isso não poderia funcionar. Mas, como Raposas, tinham que obedecer seus superiores.
Ouviram barulhos do lado de fora. Parecia que estavam verificando possíveis danos causados pela tempestade. Não havia chance de aquela fortaleza voadora ser afetada por um simples mau tempo. Mas se a aeronave caísse agora, a culpa recairia sobre a tempestade. Era a oportunidade perfeita para sabotagem—como poderiam esperar algo melhor?
Como se estivesse lendo a mente de Kechachakka, o Mil Truques de repente virou-se para ele. O coração de Kechachakka disparou, e ele sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Com uma expressão séria, o Mil Truques se levantou e caminhou na direção de Kechachakka. Então, passou direto por ele. Ele olhou pela janela, então Kechachakka fez o mesmo.
Lá fora, voando em meio à tempestade brutal, havia uma pipa gigante. Kechachakka esfregou os olhos, mas ao olhar novamente, a pipa ainda estava lá. Agarrados a ela estavam aqueles ridículos elementais de lençol.
— Nada mal — disse o Mil Truques, parecendo um pouco perplexo.
Então, como se estivesse esperando o momento perfeito, um raio atingiu a pipa. O estrondo foi alto, e ela despencou. Com uma expressão de leve surpresa, o Mil Truques observou a cena.
Kechachakka soltou um gemido baixo enquanto seguia para seu quarto, onde se jogou na cama.
***
— Ei, Kris, você fez algo rude com o Telm?
Kris cruzou os braços e me lançou um olhar insatisfeito. — Hã? Se alguém foi rude com ele, esse alguém foi você. Senhor.
Não era a forma mais gentil de colocar as coisas, mas eu não podia discordar.
O tempo ainda estava tempestuoso. Eu já estava acostumado com tempestades e relâmpagos, mas poucas vezes havia lidado com isso no ar. Luzes piscavam, estrondos ecoavam, e a aeronave balançava de um lado para o outro. Sem o Férias Perfeitas, eu estaria muito desconfortável.
O Tapete, no entanto, estava tão animado como sempre e dançava ao redor com o tapete que eu havia comprado na cidade. Aquela compra me custara caro. Era um tapete normal, sem poderes, mas a Relíquia Tapete não parecia se importar nem um pouco. Na verdade, eu temia que os dois fugissem juntos.
Que coisas misteriosas as Relíquias podem ser. E aqueles dois realmente têm uma baita diferença de altura.
— Por que você sempre me chama para o seu quarto? — Kris resmungou enquanto eu observava os tapetes dançando. — Eu entendo que você queira confiar em mim, mas me chamar todo santo dia já é demais! Senhor! Será que você gosta de mim? Senhor? Pois tire o cavalinho da chuva. Eu estou aqui por ordens da Lapis, não porque gosto de você. Senhor.
Eu nem havia me confessado, e já fui rejeitado.
Desculpa por te chamar toda noite. Mas não tire conclusões erradas só porque eu dependo de você o tempo todo.
Não é que eu não gostasse da Kris. Eu tinha apreço por todos que recarregavam minhas Relíquias, e a atitude dela não era tão ruim quanto a de alguns com quem já lidei. Com ela, Telm e Kechachakka, eu realmente tirei a sorte grande na escolha de equipe dessa vez. Dá até para dizer que estou numa maré de sorte.
— Ah, é — eu disse. — Acho que o Telm ainda está com a impressão errada sobre nós.
— Ugh. Esse é o problema de vocês humanos e seu cio o ano todo—
— Não diga isso na frente do imperador.
— Você não precisa me dizer. Acha que sou uma idiota? Diferente de certas pessoas, eu sei segurar a língua. Senhor.
Quando tudo isso terminasse, eu teria que demonstrar minha gratidão. Pensei em mandar um grande saco de nozes amiuz para ela. Parecia gostar delas, e não lhe faziam mal, desde que não usasse mana.
Parece que tínhamos passado pelo pior da tempestade, pois a aeronave parou de balançar. Pelo que se ouvia, havíamos atravessado sem danos sérios. Meus preciosos elementais de lençol tinham sido atingidos por um raio, mas demorava mais do que isso—ou uma queda—para matá-los, então não me preocupei.
Então ouvi passos apressados, e a porta foi escancarada.
— HA HA HA HA!
Era Franz, encharcado de suor.
Eu conseguia ver que ele estava cansado, provavelmente de coordenar a tripulação, mas havia um brilho em seus olhos. Ele nem percebeu o choque da Kris ao apontar o dedo para mim.
— Viu isso, Mil Truques?! — ele rugiu, empolgado. — Conseguimos. Passamos pelo pior da tempestade! Mau tempo não é nada para esta aeronave. Suas previsões estavam erradas. Este navio é imparável!
— Ahm, é, uh-huh.
Ele não estava um pouco empolgado demais? Afinal, eu disse que havia noventa por cento de chance de não cairmos. Ele parecia prestes a começar a dançar. Se ele queria um parceiro, eu estaria disposto a emprestar meu Tapete.
— Você realmente gosta de arranjar briga sempre que pode. Senhor.
Estranho. Não lembrava de ter provocado essa briga de que a Kris falava. Mas depois de ver Franz tão convencido, parte de mim se sentiu compelida a argumentar.
— Ainda não saímos completamente da tempestade. Precisamos ser cautelosos — eu disse.
— Ha ha ha! Diga o que quiser, perdedor amargo! Cansei de jogar seus joguinhos, então fique fora do caminho! Agora, devo me reportar a Sua Majestade Imperial.
Com essa declaração confiante, Franz estufou o peito e saiu marchando. Sua postura me lembrou bastante a de um nobre. Então lembrei que ele era um nobre. Até a Kris parecia que havia sido atropelada por um furacão.
— Ele tem muito estresse acumulado — ela murmurou depois de um tempo. — Quando isso acontece, você deveria tomar um chá de ervas. Vocês humanos deveriam aprender com nós, Espíritos Nobres, e não se preocuparem tanto. Senhor.
— Chá de ervas, hein? — Assenti. — A Sitri adora preparar esse tipo de chá.
Kris parecia desapontada por algum motivo.
— Acho que não é isso que você precisa, senhor. Você já é mais relaxado do que a maioria dos Espíritos Nobres.
A aeronave continuava sua viagem suavemente, o que não era algo muito comum quando eu estava por perto. O navio não balançava muito e, enquanto minha Relíquia me mantinha perfeitamente confortável, eu podia dizer que essa era uma embarcação de primeira classe, já que Kris não estava reclamando.
Sendo feita para transportar a elite do império, nossas cabines eram tão confortáveis quanto os quartos de estalagem em que havíamos ficado. O mobiliário era excelente e as camas, macias e fofas. Liz era aventureira, então eu tinha certeza de que ela adoraria explorar cada canto da nave se estivesse a bordo. Uma pena que ela tenha sido atingida por aquele raio.
Continuei olhando pela janela, mas tudo que via eram nuvens negras e densas. Nenhum sinal de uma pipa ou de espectros de lençol. Meus amigos de infância eram imprudentes o suficiente para tentar voar pela tempestade novamente, mas talvez tivessem aceitado que era impossível. Mas se tivessem tanto bom senso, não teriam tentado desafiar a tempestade em cima de uma pipa em primeiro lugar.
Sir Matadinho estava parado no canto, aparentemente satisfeito (eu acho), mais dócil do que o Tapete. Deitado na minha cama, observei o Tapete e o tapete girarem ao redor.
— Será que vamos cair? — Me perguntei em voz alta.
Considerando minha péssima sorte, parecia possível. Mas se Franz estivesse certo, essa aeronave era resistente. Ele disse que ficaríamos bem mesmo se dragões viessem atrás de nós, e acho que ele podia afirmar isso com confiança porque já tinha experiência com dragões. Claro, eu estava torcendo para que não caíssemos de jeito nenhum.
Quando pousássemos, seria na capital do país desértico de Toweyezant. Era um país pequeno, mas estável, então estaríamos seguros lá.
— Os próximos dias serão decisivos.
Mas se não tivéssemos visto nenhum sinal da Raposa recentemente, talvez tivessem desistido de nos perseguir.
Meu devaneio foi interrompido por uma batida na porta. Ouvi a voz de Telm do outro lado, então pulei da cama e tentei parecer ocupado. Telm enfiou a cabeça para dentro, parecendo completamente desperto apesar do horário avançado.
— Perdoe-me por invadir assim no meio da noite — disse ele. — No entanto, achei que havia algumas coisas que devíamos confirmar. Kecha pensa da mesma forma.
Hesitei, então tentei bancar o durão. Não conseguia evitar quando Telm era tão durão.
— Imaginei que você viria mais cedo ou mais tarde.
Ele queria confirmar as coisas! Que caçador diligente. Esse senso de responsabilidade… Isso era Nível 7, era o que um veterano calejado pela batalha deveria ser. Eu queria que Luke e meus outros amigos incontroláveis aprendessem uma ou duas coisas com ele. Mal podia acreditar que alguém tão centrado era amigo daquela velha maluca.
— Vou ter que retribuir o Inferno Abissal — murmurei.
Os olhos de Telm se arregalaram ao me ouvir.
— Muito confiante de sua parte, mas Rose não tem igual quando se trata de destruição, e você não conseguirá pegá-la desprevenida. Ela é a própria destruição encarnada, e não acho que você realmente compreenda isso.
Hã? Ela vai me carbonizar se eu agradecer? Por quê? Que diabos, que criatura terrível.
Se alguma coisa fosse me reduzir a cinzas, era mais provável que fosse o fato de eu não dizer nada. Mas Telm não parecia estar brincando. Então, fiz uma anotação mental para garantir que todos os meus Anéis de Segurança estivessem devidamente carregados antes de ir até ela.
— Então, você queria confirmar algumas coisas, certo? Acho que isso não é necessário, vou apenas seguir você como sempre fiz.
— O quê?!
Talvez eu estivesse jogando responsabilidade demais para ele. Mas eu não tinha habilidades de combate nem de comando. Se precisávamos de alguém para assumir a liderança, isso deveria ser deixado para alguém experiente, como Telm. Se eu começasse a dar ordens, provavelmente seria culpado se algo desse errado. Quero dizer, provavelmente seria culpado de qualquer forma, mas pelo menos me sentiria melhor deixando outra pessoa no comando.
— Desculpe, mas esse é o meu jeito de fazer as coisas — disse a ele. — Ah, e sobre a Kris. Já conversei com ela, então não precisa se preocupar.
— Hm. Então você está deixando a execução para nós? — Telm perguntou.
— Algum problema com isso? Se algo acontecer, eu dou suporte.
Eu não tinha mostrado muitas habilidades de liderança, mas não via nada de errado em deixar isso nas mãos deles.
— Sem objeções. Se esse é o seu modo de agir, nós nos ajustaremos. Com o palco preparado tão perfeitamente para nós, essa será uma tarefa fácil.
Ele parecia incrivelmente sério para alguém que dizia esperar um trabalho fácil, mas acho que um senso de responsabilidade adequado faz isso com a pessoa. E ele mencionou que o palco estava preparado, mas eu não tinha feito nada do tipo. Até sua bajulação era de alto nível. Que sujeito assustador. Eu só esperava envelhecer tão graciosamente quanto ele.
Então me lembrei de algo: Telm tinha uma cauda. Essas caudas eram aglomerados de mana, o que expandia imensamente as habilidades de um Magus. Sem pensar, sorri e disse:
— Certo. Agora, mostre-me o poder da sétima cauda.
Depois disso, a viagem na aeronave seguiu sem incidentes. Assim que passamos pela pior parte, o restante da jornada foi surpreendentemente tranquilo. Durante o briefing, notei que a aparência de Franz havia melhorado. E justo quando comecei a pensar que poderíamos concluir a viagem sem mais problemas, aconteceu.
Eu estava no meu quarto, matando o tempo com Kris, quando Franz entrou correndo. Ele não parecia assustado ou em pânico, apenas confuso.
— Mil Truques, Sua Majestade Imperial solicita sua presença.
— Aconteceu alguma coisa?
Fiquei surpreso. Não tinha ouvido nenhuma comoção.
— Olhe lá fora — disse Franz, preocupado. — Tenho certeza de que você percebeu, mas, mesmo depois de todo esse tempo, ainda não saímos da tempestade.
Virei-me para a janela. Lá fora, o céu continuava escuro como sempre.
***
Telm Apoclys olhava pela janela e suspirava. Já havia se passado um dia inteiro, e ainda assim não haviam escapado da tempestade.
— Pensar que a diferença entre nossas habilidades é tão grande…
Essa tempestade era, sem dúvida, anormal. O vento era fraco e a chuva, fina, mas a escuridão não se dissipava. Manter um feitiço por tanto tempo era algo extremamente difícil. Telm era especializado em magia da água; tinha recebido o título de Contra-Cascata quando conseguiu deter uma cachoeira colossal. Mas nem mesmo toda a experiência que acumulou ao longo da vida o ajudava a entender a natureza dessa tempestade.
Era a terceira vez que Telm era forçado a reconhecer a superioridade de outra pessoa. E, desta vez, essa pessoa era um homem muito mais jovem que ele. Perdido em pensamentos, Telm esfregou as pulseiras em seus pulsos. Chamavam-se Graça do Deus das Águas, e ele as havia conseguido por pura sorte na câmara do tesouro de nível 6 conhecida como Ermitério do Deus das Águas.
As pulseiras concediam uma bênção poderosa baseada em água ao usuário, o que ampliava imensamente os poderes de Telm. Vendê-las no lugar certo garantiria que as próximas três gerações de sua família jamais precisassem trabalhar.
Telm estava muito mais forte do que quando deteve aquela cachoeira, vinte anos atrás. Ainda assim, ele não conseguia entender como essa tempestade estava sendo criada. E não era só isso — aquele feitiço que transformava pessoas em sapos também estava além de sua compreensão.
Isso definitivamente ultrapassava seu campo de expertise, mas o que o assustava era a maneira como aquele homem conjurava feitiços repentinamente, sem qualquer aviso. Telm sempre se orgulhara de sua velocidade na conjuração, mas as habilidades daquele jovem eram, sem dúvida, muito superiores.
— Rose, depois o Mestre dos Magos, e agora ele.
O mago da água mais forte da capital imperial já havia tido dois rivais. Ou melhor, talvez fosse mais correto dizer que duas pessoas já tinham sido consideradas seus rivais. Para um mago medíocre, Telm poderia parecer comparável a eles. Mas seu próprio conhecimento limitado lhe permitia entender o quão absurdamente superiores aqueles dois realmente eram.
Um se tornou caçador como Telm, especializou-se em feitiços de fogo e recebeu o título de Inferno Abissal. O outro permaneceu na academia, aprofundando suas pesquisas até ser expulso por ousar encarar o abismo. Telm não se entristeceu com isso. Para aqueles que buscavam poder, as leis eram apenas um fardo. Mas havia uma ironia inegável no fato de que uma mulher como Rosemary Purapos, temida por sua fúria, ainda fosse uma cidadã livre.
Telm havia se fortalecido usando todos os meios possíveis, incluindo sua adesão à Raposa de Nove Caudas. Se o Mil Truques havia acumulado tanto poder, então, sem dúvida, ele também já havia cruzado os limites da lei. Ainda assim, Telm não sentia inveja. Talvez isso fosse um sinal de que estava ficando velho. O pensamento trouxe um sorriso amargo aos seus lábios, e ele se recompôs.
O fracasso era apenas uma possibilidade remota, mas isso não era motivo para baixar a guarda. A guarda imperial era bem treinada, mas a rapidez de Telm ao conjurar feitiços fazia deles meros obstáculos. Ele podia se aproximar e matar seu alvo antes que qualquer um percebesse. Havia obtido a Graça do Deus das Águas décadas atrás e já usava as Relíquias como se fossem uma extensão de seu próprio corpo.
Telm criou uma poça d’água diante de si, que começou a mudar de cor e forma. Após alguns segundos, assumiu a aparência de um humanoide usando uma máscara de raposa. Aquilo era uma exibição suprema de magia da água, viabilizada por seu domínio das Relíquias. Era um feitiço original — e a única forma em que ele superava o Inferno Abissal.
À primeira vista, o humanoide era indistinguível de uma pessoa real. Mas não era um ser vivo, então não possuía presença. Ninguém jamais tinha sido capaz de enxergar através desse feitiço… exceto o Mil Truques. Ele o chamou de “falso”, mas ele era uma exceção.
Se um dos principais membros da Raposa havia pedido diretamente a ajuda de Telm para essa missão, isso significava que tinham grandes expectativas para ele. Ao mesmo tempo, mostrava o quão importante essa missão era. O homem da décima terceira cauda permitiu que Telm escolhesse o momento de atacar. E esse momento havia chegado — dificilmente haveria uma oportunidade melhor.
— Kecha, vamos. Está preparado?
— Hee hee hee.
Kechachakka enfiou a mão no bolso e mostrou a Telm a gema envolta em um tecido negro. Como sempre, Telm não fazia ideia do que passava pela mente de Kechachakka, mas havia um certo brilho em seu olhar. Parecia um pouco cansado depois de ter sido provocado pelo Mil Truques, mas isso não seria um problema para eles.
A Revanche do Dragão era ainda mais rara que as pulseiras de Telm. O poder da gema era incomparável e seria extremamente útil para a situação atual. Nem mesmo um dragão poderia trazer a Estrela Negra abaixo, mas, se o navio afundasse nessas circunstâncias, todos chegariam à mesma conclusão.
Foi então que Telm notou outro objeto que Kechachakka segurava.
— O que é isso? — ele perguntou.
— Uheh. Uhe hee hee hee.
Era uma caixa com uma alavanca e vários botões. Parecia algum tipo de controlador. Kechachakka colocou o item cuidadosamente no bolso e soltou outra risada estridente e indecifrável. Telm não conseguiu evitar o suspiro que escapou de sua boca. Magos tendiam a ser pessoas estranhas. Xamãs, que convertiam emoções em poder mágico, eram especialmente peculiares. Mas Telm não iria reclamar de alguém competente, leal e que entregava resultados.
Telm desistiu de tentar entender o sujeito excîntrico e apontou com o queixo. — Primeiro, engenharia. Vamos ser rápidos. Isso deveria ser nosso trabalho, então não podemos dar trabalho extra para o Mil Truques.
A chuva caía. Com um amplo suprimento de água disponível, a Contra-Cascata era imbatível. Ele mostraria ao mundo, ao Inferno Abissal e ao homem da décima terceira cauda do que era capaz.
***
Entrei em uma sala ampla onde o imperador, a princesa imperial e a guarda imperial já estavam esperando. Havia uma grande janela projetada para deixar a luz do sol inundar o cômodo, mas tudo o que eu conseguia ver através dela eram nuvens negras. A tempestade já parecia assustadora pela pequena janela da minha cabine, mas vê-la dessa forma fazia parecer que o mundo estava chegando ao fim.
— Estamos mantendo contato com a superfície via pedra de comunicação, e parece que lá embaixo não está chovendo — Franz me informou.
— Hmm. Entendo — murmurei com um aceno.
Por alguma razão, todos os olhos estavam sobre mim. Isso incluía o imperador e o olhar aflito da princesa imperial. No entanto, não havia um único pensamento útil passando pela minha mente. Então, não conseguimos escapar da tempestade. Não havia nada que eu pudesse fazer a respeito. Se houvesse alguma solução tão óbvia a ponto de me ocorrer, já teria ocorrido a Franz ou a outra pessoa antes. Tudo o que restava para mim era tentar acalmar os nervos de todos.
— Isso é um azar e tanto — comentei.
— Azar?! — Franz exclamou. — É só isso que você tem a dizer?!
— C-Calma. É apenas uma tempestade. Elas acontecem o tempo todo.
— Onde isso é normal?! — O rosto de Franz estava vermelho, e ele cuspiu ao gritar.
O que eu deveria dizer? Eu não sabia o que não sabia, e coisas que acontecem o tempo todo, acontecem o tempo todo. Inferno, até mesmo meu Tapete estava perplexo.
Se eles iam chamar alguém, ao menos deveriam ter chamado Telm, o Mago da Água. Talvez ele pudesse usar sua magia para fazer a tempestade desaparecer ou algo assim. Por que pessoas como Franz e Gark sempre me chamavam quando algo acontecia? O julgamento deles sobre as pessoas era terrível. Me colocar como líder provava que o discernimento deles era tão ruim quanto o do resto dos Grieving Souls.
— Eu não conseguiria ser um caçador se entrasse em pânico toda vez que uma tempestade estranha surgisse — comentei. — Esta nave não vai cair.
Franz rangeu os dentes e ficou em silêncio por um momento. Eu permaneci quieto, esperando, até que ele começou a falar com uma voz tensa. — Peço desculpas, Krai Andrey, por não ter dado ouvidos aos seus avisos. Mas agora, nossa maior prioridade é a segurança de Sua Majestade Imperial! O que vai acontecer? O que devemos fazer?
A guarda imperial ficou surpresa com a declaração de Franz. Naturalmente, eu também fiquei. Embora a expressão de Franz não parecesse nada arrependida, sua disposição para se desculpar ainda era significativa. Mas, infelizmente, eu não sabia a causa dessa tempestade, nem o que deveríamos fazer a respeito. Mesmo que ele se curvasse, mesmo que ele se humilhasse, eu ainda não poderia oferecer informações que não possuía. Aliás, não tenho certeza se ele fez algo que justificasse um pedido de desculpas.
Completamente perdido sobre o que fazer, cocei a bochecha e disse: — Desculpe mesmo, mas eu não sei.
— Seu desgraçado! — Franz me agarrou pela gola e me sacudiu de um lado para o outro. — Mesmo depois de eu ter me desculpado!
Um grito escapou dos meus lábios. — Calma! — exclamei enquanto o mundo tremia diante de mim. — Se você quer saber por que a tempestade está aqui, então pergunte a ela!
Eu estava impotente para impedir a sacudida de Franz, mas então um braço esguio se colocou entre nós. Meu mundo se estabilizou, e vi que o braço pertencia a Kris, que vinha observando silenciosamente até aquele momento.
— Isso é o suficiente. Senhor — disse ela, parecendo mais irritada do que o normal.
— O quê?! — Franz rosnou.
— Agora não é hora para isso. Senhor. Você está estressado, mas precisamos que nossos líderes estejam calmos mais do que nunca. Senhor.
Com um grunhido, Franz me empurrou para longe. Cambaleei, mas de alguma forma consegui me manter de pé. Kris então se colocou casualmente entre nós.
— Para começar — disse ela —, eu me sinto mal vendo esse sujeito levar a culpa por uma tempestade que não é culpa dele.
— S-Sim — assenti. — Ela está completamente certa!
Eu estava fora de perigo, pelo menos. Os cavaleiros pareciam aliviados ao ver que a raiva de seu capitão estava diminuindo. Franz era tenso demais. Eu entendia que ele carregava uma responsabilidade enorme por estar encarregado da segurança do imperador, mas nada de bom viria de se deixar levar por uma tempestade um pouco mais longa que o normal.
— Mas esse homem obviamente sabe de algo! — Franz gritou, apontando um dedo para mim. — Ele entende o que está acontecendo e está zombando de nós. Vocês ouviram ele, não ouviram? Ele disse para não baixarmos a guarda até saírmos da tempestade e que esperava que fosse apenas uma tempestade! Como ele poderia pensar que uma aeronave de ponta poderia cair? Como você explica isso?
Kris se virou para mim instantaneamente, lançando um olhar suspeito.
— Humano fraco, você é mesmo tão ignorante quanto finge ser? Senhor?
Eu não sabia o que não sabia. Enquanto tentava pensar em uma desculpa para ganhar tempo, olhei ao redor—e minha mente ficou em branco. Atrás do imperador, perto da janela, havia uma figura vestindo um manto e uma máscara de raposa. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, Franz, Kris e o imperador notaram para onde eu estava olhando e começaram a se mover.
— De onde ele veio?! — o imperador gritou. Ele cobriu a filha e recuou.
Os cavaleiros sacaram suas armas, Kris ergueu seu cajado e Sir Matadinho avançou sobre o inimigo. Era uma sincronização incrível; o único que não estava se movendo era eu.
— Sir Matadinho?! — gritei.
— Kiiiill.
No entanto, até mesmo um amador poderia perceber que os ataques de Sir Matadinho careciam de refinamento.
Ele já está sendo atingido? Essa coisa é uma das criações da Sitri!
Sir Matadinho suportou os golpes e desceu sua espada com um grito horrível. Máscara de Raposa desviou com facilidade. Apesar de estar cercado por cavaleiros e em uma desvantagem severa, ele não parecia nem um pouco preocupado. Então, a porta se escancarou. Que timing perfeito! Entraram os melhores aliados do mundo, Telm e Kechachakka.
— Que bom timing — disse a eles. — Eu estava esperando por vocês dois.
— Telm, é uma Raposa! — Franz gritou. — De onde ela veio?! Apenas não a deixe escapar!
O imperador estava atrás de mim. Franz, Kris, a guarda imperial e o imperador estavam todos olhando para Máscara de Raposa—o que significava que eu era a única pessoa que viu a expressão de Telm. Seus olhos se arregalaram ligeiramente, mas logo ele sorriu.
— Perdoe-nos pelo atraso — ele disse. — Esta aeronave é bem grande.
No momento seguinte, ouvi uma série de baques altos.
— O quê?!
Eu não fazia ideia de como aquilo havia acontecido, mas os cavaleiros e serviçais ao redor de Máscara de Raposa tinham todos desabado. Apenas Franz ainda estava consciente, mas ele estava de joelhos e sua cabeça balançava. Máscara de Raposa não se moveu um centímetro. Kris não foi afetada por algum motivo e olhava freneticamente de um lado para o outro. As únicas pessoas ilesas eram ela, o imperador, a princesa imperial, Sir Matadinho, Telm, Kechachakka e Máscara de Raposa.
O que está acontecendo?! Por que eles desabaram?!
Eu não tinha ouvido ou visto nada que pudesse ter causado aquilo. E eu estava ileso, e não senti nenhum dos meus Anéis de Segurança ativando. Apenas fiquei ali, ainda com o sorriso que tinha dado quando Telm entrou.
— Meu Deus, eu não esperava que a conclusão fosse tão fácil — ele disse com um suspiro. — Você é uma série de surpresas, Mil Truques.
***
— Hã? Por que eu tenho que cooperar com o humano fraco?! Senhora?! — Kris protestou. — Ele nem sequer me trouxe um souvenir das férias dele!
Os Nobres Espíritos eram seres de longa vida. Além de viverem muito mais que os humanos, eles também envelheciam mais devagar. Suas vidas eram pacíficas, quase como as das plantas. Os humanos, no entanto, nasciam, reproduziam-se e chegavam ao fim três vezes mais rápido, o que era absolutamente vertiginoso para os Nobres Espíritos.
Em parte, a maioria dos Nobres Espíritos não deixava suas florestas porque desprezavam os humanos incompetentes, mas também porque achavam o ritmo acelerado da vida humana nauseante. Com isso em mente, Nobres Espíritos como Kris, que viviam entre humanos por vontade própria, podiam ser considerados incrivelmente animados e curiosos.
— Kris, esta é uma oportunidade maravilhosa — Lapis insistiu, um sorriso nos lábios. Ela era a líder do grupo de Kris e uma pessoa que a jovem Nobre Espírito respeitava. — Não há muitas chances de trabalhar com o Mil Truques, já que ele raramente se envolve pessoalmente em assuntos. Esta é uma chance de obter insight sobre como Lucia Rogier, o Avatar da Criação, se tornou tão poderosa. Esta é uma missão importante. Você poderia dizer que diz respeito ao nosso futuro.
— Mas, Lapis, eu não estou acostumada a proteger pessoas. Posso acabar atrapalhando.
Kris entendia a linha de raciocínio de Lapis. Ela era muito mais curiosa e ambiciosa do que o espírito nobre médio. Sem contar que estava disposta a cooperar com humanos, embora talvez não tanto quanto a enigmática Eliza Beck, a Vagante. Mas, no fundo, Kris ainda era um Espírito Nobre, o que a deixava incerta. Ela sabia disso, mas tinha a tendência de irritar as pessoas não importa o que fizesse. Falar de forma educada exigia um esforço deliberado de sua parte.
Ela conseguia se virar ao lidar com um simples mercador, mas não havia como prever o que poderia acontecer caso tivesse que interagir com um nobre ou até mesmo com o imperador. As consequências de suas ações poderiam ir além de seu grupo e afetar todo o seu clã. Kris não fazia ideia do que levava aquele fraco humano idiota a procurar Lapis para aquele trabalho.
Lapis assentiu. — Eu não sei o que fez esse homem pedir nossa ajuda, mas seguir com o Mil Truques nunca é um erro. Precisamos entender a origem de seu poder e seus métodos. Kris, isso é algo que só você pode fazer.
Kris não podia recusar a tarefa depois de ouvir aquilo. Era um trabalho importante. Descobrir o segredo do Mil Truques tornaria seu grupo mais forte e ainda satisfaria sua própria curiosidade. Ela reuniu coragem e cerrou os punhos, mas então algo lhe ocorreu.
— Mas, Lapis — disse Kris com um olhar cético —, por quê eu? Com certeza temos opções melhores no grupo.
— Ah, isso? Parece que você se dá melhor com o Mil Truques do que qualquer um de nós — respondeu Lapis, dando de ombros.
Lapis estava completamente enganada. De jeito nenhum Kris se dava bem com o Mil Truques. Ele pedia sua ajuda, e seu orgulho como Espírito Nobre e seus poderes a obrigavam a atender. E Kris só tolerava seus pedidos porque ele era o irmão mais velho de Lucia. E, embora aquele humano fraco fosse um idiota que não levava nada a sério, para um humano, ele não era um cara tão ruim. Ou pelo menos era isso que ela pensava.
A cena diante dela a deixou completamente perplexa, algo que não acontecia com freqüência a um Espírito Nobre. Corpos cobriam o chão. Todos os cavaleiros ao redor da Máscara de Raposa estavam caídos, sem nem mesmo se mover. O único membro da guarda imperial ainda consciente era Franz, e ele estava ajoelhado. Do lado de fora, o mundo estava escuro e sombrio.
— O-O que diabos…? — murmurou ela.
— Hmm. Então o imperador não foi afetado por causa do seu Anel de Proteção? — ouviu Telm dizer. — Mas este aqui absorveu o dano destinado à princesa imperial? Sua armadura fez isso? Ele não era um dos nossos? — Sua voz não tinha emoção, quase artificial. — De qualquer forma, aconselho que não se movam. Vocês morrerão em breve, mas se mexerem apenas irão drenar ainda mais sua já mísera força vital.
Máscara de Raposa desapareceu com apenas o mais sutil dos sons. Telm parecia despreocupado e, ao seu lado, o Mil Truques mantinha um sorriso no rosto. Kris não conseguia compreender o que estava vendo. Não, na verdade, ela não queria compreender.
A guarda imperial havia sido derrubada por uma magia. Uma magia incrivelmente silenciosa e poderosa, destinada a sugar a vida de alguém. Era uma forma desprezível de magia, o tipo de coisa que os Espíritos Nobres não usavam.
Os guardas imperiais ainda estavam vivos. Haviam sido derrubados, mas Kris conseguia sentir um leve pulso. Esse pulso, no entanto, estava enfraquecendo gradualmente. Se não fossem tratados rapidamente, logo morreriam. Era apenas um palpite, mas Kris tinha uma forte suspeita sobre o que essa magia priorizava: eficiência. Era em nome da eficiência, não da misericórdia, que esse feitiço não matava instantaneamente. Como os alvos morreriam de qualquer forma, seria um desperdício para o feitiço também cortar sua respiração.
Quando Kris viu Telm derrotar a prole de dragões gélidos, algo em sua magia a fez estremecer. Ela pensou que fosse apenas sua imaginação, mas sua intuição estava correta. Os humanos eram aterrorizantes. Suas vidas curtas os faziam se desenvolver rapidamente. Eles viviam como se não houvesse amanhã, uma mentalidade que os levava a cometer homicídios.
E agora ela entendia a Máscara de Raposa. Se ele era apenas um clone, isso explicava sua falta de presença e sua capacidade de aparecer sem aviso. Era um tipo de magia que ela nunca tinha visto antes, mas entendia seu propósito: pegar as pessoas desprevenidas. Assim como acontece com ataques físicos, ataques mágicos também se tornam mais eficazes quando o alvo é pego de surpresa.
Kris sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Esse homem possuía uma força esmagadora e estava preparado para qualquer coisa. Ela sentiu o bastão de metal em sua mão direita, uma sensação diferente do seu habitual bastão de madeira. Ela abriu a boca, mas o que saiu não foi uma invocação, e sim um grito.
— O-O que significa isso?! Senhor?! Você entende o que fez? Kechachakka, por que não impediu Telm?!
— Você não ia explicar tudo para ela, Mil Truques? — disse Telm. — Bem, não importa. Seus métodos não são da minha conta, e ela não representa ameaça para nós. Se não quer vê-la ferida, afaste-a.
Kechachakka soltou uma breve risada.
Agora Kris entendia a situação. Por mais que não quisesse, ela havia descoberto.
— Eu sabia que tínhamos um traidor entre nós — disse o imperador. Ele estava calmo, mas sua mão repousava sobre a espada em seu quadril. — Mas era você? Telm Apoclys, você é um Raposa?!
Telm não demonstrou reação. — De fato. Mas agora devemos nos despedir. Logo, esta nave irá cair.
Kris não tinha como vencer ali. Mesmo que conseguisse um ataque surpresa, não seria capaz de derrubar Telm. As habilidades da Contra-Cascata eram praticamente desumanas. Ele era um Grande Magus e provavelmente superava Lucia Rogier quando se tratava de magia da água. Mesmo de costas para ela, Kris não via nenhuma brecha. Sua única esperança de vitória repousava no cajado que lhe haviam confiado.
A expressão do Mil Truques permaneceu inalterada desde a entrada de Telm. Pela primeira vez, Kris achou seu sorriso patético assustador. As palavras anteriores de Telm sugeriam que aquele humano fracote também era um Fox. Rápida, Kris recuou e ergueu seu cajado. Franz, apoiando-se em sua espada, conseguiu se levantar, mas seus olhos estavam turvos e seu rosto pálido. Naquele estado, até mesmo Kris estava em melhores condições para o combate corpo a corpo.
— Krai Andrey — Franz disse entre respirações irregulares. Ele não tinha ferimentos graves, mas parecia à beira da morte. — Você é um Fox?
Apesar de sua condição, ele sacou sua arma com um movimento trémulo. A lâmina bem polida brilhou enquanto tremia em suas mãos.
— Eu vou te impedir. Eu tinha certeza de que não podia confiar em você. Droga!
— Você nos subestimou, e é nisso que pode culpar sua derrota — Telm disse. — Fox está em todos os lugares. Aqui em cima, vocês não receberão reforços. Que tal nos mostrar do que o capitão da Ordem Zero de Zebrudia é capaz?
Eles haviam sido superados. O imperador também era habilidoso com a espada, mas certamente não o suficiente para ser um oponente à altura de Telm. Isso valia para todos ali. Mesmo que Franz estivesse bem, os guardas imperiais em pé e Kris os ajudassem, eles não teriam chance contra a Contra-Cascata e o Mil Truques.
— Eu nunca deveria ter acreditado em você, seu humano fracote! — Kris gritou.
Apenas Sir Matadinho permaneceu inerte. Ele também provavelmente era um Fox. Quando pensou um pouco sobre isso, percebeu que alguém com um nome como Sir Matadinho não poderia ser uma pessoa confiável. O destino desta missão estava selado desde o início, quando o Mil Truques escolheu seus companheiros de equipe.
Kris conteve sua raiva e avaliou a situação com calma. Não havia esperança de vitória. Sua sobrevivência dependia do Mil Truques. Ele pretendia convencê-la a se juntar a ele? Se fosse esse o caso, havia cometido um erro de cálculo. Kris nunca trairia o cliente que deveria proteger. Um Nobre Espírito preferia morrer de pé a viver de joelhos. Ela havia escolhido cooperar com o humano fracote porque tinha certeza de que ele era uma boa pessoa.
A única opção era fugir. Ela teria que abrir um buraco na aeronave e escapar por ali. Poderia usar magia para sobreviver à queda, mas isso não adiantaria nada se eles decidissem persegui-la. E ela não poderia levar todos com ela. Sua primeira prioridade seria o imperador, a segunda a princesa imperial.
Com a decisão tomada, Kris se preparou para conjurar um feitiço poderoso. Ela controlou sua respiração e começou a se concentrar. A hostilidade e a imensa concentração de mana de Telm pairavam sobre a sala.
Então, o Mil Truques quebrou o silêncio. Com um olhar sério no rosto, ele murmurou:
— Eu sou um Fox? Do que eles estão falando?
— Hã?! — Kris exclamou.
***
Eu não conseguia entender nada do que estava acontecendo. Sabia que meu cérebro não era o mais rápido do mundo, mas os acontecimentos diante de mim estavam simplesmente além da minha capacidade mental. Nem parecia real. Eu nem conseguia mudar minha expressão.
No momento em que Telm entrou na sala, os guardas imperiais caíram, a Máscara de Raposa desapareceu e acusações vieram na minha direção. Mas mesmo depois de entender isso, minha mente ainda estava mergulhada na confusão. Eu já era um peso morto na maioria das situações, mas era ainda pior quando surgiam complicações inesperadas.
Eu não sabia o que pensar. Fiquei surpreso ao descobrir que Telm e Kechachakka eram nossos inimigos, mas fiquei ainda mais surpreso ao ver que todos achavam que eu estava do lado deles. Que choque.
Eu sentia vários olhares me perfurando. Há pouco tempo, Franz estava prestes a me matar, e agora me encarava com um olhar afiado. Kris também me fuzilava com os olhos. Telm mantinha um sorriso tranquilo, e Kechachakka estava como sempre. Até o imperador e a princesa imperial estavam fixados em mim. O tempo pareceu parar, mas provavelmente eu era a pessoa mais confusa ali.
— Que piada sem graça, Mil Truques — Telm disse, sorrindo para mim. — Você não precisa mais fingir.
— Hã?
Eu estava prestes a explicar que não estava fingindo, mas então meu cérebro finalmente começou a funcionar. Normalmente, eu estaria suando frio, mas não suava porque estava completamente confortável. Na verdade, a única razão pela qual eu não estava em pânico era por causa do Férias Perfeitas. Era uma Relíquia poderosa, mas sua capacidade de forçar parcialmente seu portador a se sentir bem tinha suas desvantagens.
Eu não podia parar para me preocupar. Ter Telm e Kechachakka como inimigos era, bem, terrível. Eles eram meu principal poder de fogo. Agora, tudo o que eu tinha ao meu lado era Kris, Sir Matadinho e Franz, que, por algum motivo, estava de joelhos.
Respirei fundo e decidi esclarecer as coisas. Dei um passo para trás e gritei:
— Telm, Kecha, vocês dois são traidores?! Eu acreditei em vocês!
— O que você está dizendo?! — Telm exclamou. — V-Você é um Fox, não é?!
O que ele está falando? me perguntei, quando finalmente as peças se encaixaram. Demoraram bastante para isso. Talvez o “Raposa” que Franz mencionou não fosse o fantasma? Algo sempre pareceu errado. O esquivo Peregrine Lodge não era muito conhecido, e era impossível acreditar que seus habitantes se interessariam ou se envolveriam em assuntos humanos. Além disso, se fossem nossos inimigos, nenhum número de guardas seria suficiente para manter o imperador seguro!
Se não era o fantasma, então do que estavam falando? Pelo comportamento deles, meu melhor palpite era que estavam desconfiados de algum grupo de bandidos ou terroristas. Infelizmente para Telm e Kechachakka, eu era um covarde, mas jamais me rebaixaria a trabalhar com criminosos.
— Raposa? — eu disse. — Não, sou humano. Um caçador. Não sei de onde tiraram essas ideias.
— O quê?! Então por que você conhece os sinais códigos?! — Telm gritou.
— Eu não tenho a menor ideia do que você está falando.
— Isso não tem graça! Você não disse que era da décima terceira cauda?!
— Eu não tenho a menor ideia do que você está falando!
Telm recuou. Mas eu estava sendo honesto. Sinais códigos? Décima terceira cauda? A única coisa que me vinha à mente era a cauda que eu tinha recebido daquela raposa aberrante, mas isso não podia ter nada a ver com isso.
Telm começou a parecer cada vez mais inseguro. Mesmo sem eu fazer nada, ele deu um passo para trás. — Eu… Eu não acredito. Droga, isso tudo foi uma armadilha?! É por isso que essa tempestade está aqui?
— Hã? Armadilha?
Do que esse velho está falando? Eu não sabia nada sobre a tempestade. Mas o jeito que ele falava de armadilhas estava fazendo parecer que eu era de alguma forma responsável por isso, e isso não me agradava.
Telm ergueu a mão direita, mas eu o interrompi. — Não se mexam, nenhum dos dois — eu disse em um tom afiado, diferente do que eu vinha usando recentemente. — Se se mexerem, eu vou transformar vocês em sapos-boi. Vocês viram do que sou capaz, não viram? Eu só estava me segurando nessa viagem.
Telm congelou no lugar. Uma gota de suor frio escorreu por seu rosto. Mesmo depois de múltiplas tentativas, meus talentos mágicos florescentes ainda não tinham reaparecido. Mas se não fosse agora, quando seria? Levantei o braço para tornar minha ameaça mais convincente.
— P-Poderia deixar claro de que lado você está?! Senhor?! — Kris gritou.
— Acho que minha inocência já foi provada pelas Lágrimas da Verdade.
Eu não entendia como ainda havia dúvidas sobre minha lealdade, sendo que um tesouro nacional já tinha me declarado inocente. Franz, que duvidava de mim o tempo todo, parecia chocado. Sua falta de fé era bem irracional, se me perguntarem. Ele me viu falhar várias vezes, mas eu não lembrava de ter feito nada ilegal.
— Você não sabe?! — Telm berrou. — Então por que me escolheu para esse trabalho?! Foi para nos observar?!
— Eu não tenho a menor ideia do que você está falando! — insisti.
— Mas os sistemas de propulsão da aeronave já foram destruídos. Vamos cair!
O quê?! Bem, ainda bem que eu me dei bem com o Tapete.
Então eu estava certo. Iríamos cair de qualquer forma. Por sorte, ainda não parecia que estávamos despencando. Meu palpite era que a parte do balão da aeronave estava garantindo que nossa descida não fosse tão rápida. Mas isso era só chute, eu não sabia nada sobre como aquela coisa funcionava.
Eu sorri com resignação. Eu não me importava mais. Esse trabalho de escolta estava claramente perdido. Mas o imperador ainda estava vivo, e ainda havia uma chance de salvar os cavaleiros.
— Qualquer coisa que é montada pode ser desmontada — eu disse. — Franz… certo, ele está indisposto… Sir Matadinho, detenha esses dois.
No entanto, o amigo de Sitri não se moveu um centímetro. Eu tentava entender por quê, mas então ouvi uma risada duvidosa.
— Hee hee. Uhe hee hee. Eu sabia. Hee hee. Eu sabia que você não era um de nós. Hee hee hee hee!
— Kecha pode falar?! — Kris gritou.
— Hee hee?! Zombem de mim o quanto quiserem, mas, hee hee.
— E você parece tão feliz com isso?!
Ela estava certa; Kechachakka estava brilhando.
Então tanto meus aliados quanto meus inimigos achavam que eu estava do lado oposto? Que droga.
Kechachakka puxou um pequeno controle. Era o mesmo que meu querido amigo Sitri tinha me dado para controlar Sir Matadinho. Eu achei que tinha perdido, mas como isso foi parar nas mãos dele?
— Eu não acredito… — murmurei.
Era absurdo. Eu não me lembrava de ter usado o controle na frente de Kechachakka, mas parecia que ele de alguma forma inferiu a conexão entre ele e Sir Matadinho. O amigo de Sitri deveria estar no modo automático, mas não se moveu.
— Hee hee. Eu sabia desde o começo que isso era um golem. Hee hee. Nunca subestime a Raposa, Mil Truques. Agora morra!
Kechachakka mexeu no joystick e apertou um botão grande. Sir Matadinho se contorceu brevemente e começou a se mover de forma desengonçada, fazendo uma espécie de dança estranha.
— Hm?!
A função de dança era meio inacabada. Kechachakka assistiu em silêncio, parecendo estar tendo um pesadelo. Assim que a rotina acabou, Sir Matadinho ficou parado e depois desabou. Então me lembrei de que nunca o alimentei. O que ele comia? Carne crua?
Bem, pelo menos não vamos precisar lutar contra Sir Matadinho.
Olhei para Kechachakka, que estava boquiaberto, e dei de ombros com indiferença. — Aaah. E aqui estava eu, planejando usar isso depois. Agora, o que você estava dizendo?
— Heh?! Hee heee? Eeee!
Kechachakka desmoronou. Telm ergueu as mãos em minha direção, o que me fez pensar que ele estava se rendendo. Enquanto suplicava mentalmente para que eles fossem transformados em sapos-boi, posicionei-me protetoramente à frente de Kris e dos outros.
Então, um feitiço foi lançado. Incontáveis lanças de água se formaram num instante. O tempo de conjuração era inacreditável, eu não tinha visto nenhum sinal de aviso! As lanças voaram diretamente para mim, e eu não tinha para onde correr. Elas carregavam uma força imensa e viajavam em uma velocidade extraordinária, mas o que as tornava realmente perturbadoras era o fato de serem completamente silenciosas. Mas eu estava perfeitamente confortável, graças ao Férias Perfeitas.
Cada uma das lanças foi bloqueada sem sequer me forçar a recuar. Eu devia isso aos meus Anéis de Segurança.
— Ele está ileso?! — berrou Telm. — Será essa sua famosa Barreira Absoluta?!
— Incrível conjuração, Telm. Você é definitivamente um dos Magos mais poderosos que já conheci.
Por fora, eu parecia completamente tranquilo, mas por dentro, não estava tão calmo quanto aparentava. Que mago assustador! Não apenas era rápido e poderoso, como seu controle era fenomenal. Eu podia dizer isso porque todas as lanças tinham sido bloqueadas por um único Anel de Segurança. As barreiras ativadas pelos anéis duravam apenas um instante. Se as lanças não tivessem atingido ao mesmo tempo, uma delas poderia ter atravessado. Duvido que até mesmo Lúcia conseguiria um nível de precisão semelhante.
Sorri e me preparei para soltar um feitiço.
— Mas a brincadeira acabou! — gritei. — Aaaah! Transformem-se em suco de laranja!
Telm e Kechachakka deram passos cautelosos para trás. Meu feitiço foi conjurado. Provavelmente. Quase com certeza. Mas Telm e Kechachakka não demonstraram nenhum sinal de se tornarem uma deliciosa bebida cítrica. Dei uma pequena tossida.
Talvez eu não consiga usar magia, afinal?
— Parece que hoje é um daqueles dias — murmurei. — Mas se vocês fugirem, não irei atrás de vocês.
— Mesmo agora, continua a nos ridicularizar?! Transforme-se em gelo!
Os braceletes de Telm começaram a brilhar levemente. Ouvi um pequeno estalo que se aproximava cada vez mais até me envolver. Nenhum dos meus Anéis de Segurança foi ativado, resultado do Férias Perfeitas. Essa Camisa-Relíquia oferecia quase nada em termos de defesa, mas tornava mudanças de temperatura irrelevantes. Mantinha-me perfeitamente confortável. Embora estivesse atrás de mim, Kris não foi afetada, provavelmente porque Telm havia estreitado a área de efeito do feitiço em troca de mais poder.
— Impossível! Como isso é possível?! — gritou Telm. — O ar gelado não foi apenas bloqueado, foi apagado?!
— Calor e umidade não têm efeito sobre mim — falei sem pensar.
— Agora é hora para piadas, senhor?! — Kris interveio.
O sangue subiu ao rosto de Telm.
— Vamos derrubar esta nave inteira — rosnou.
Com uma risada aguda, Kechachakka começou a pisotear o chão. Eu não sabia o que ele estava fazendo, mas percebi que meus Anéis de Segurança estavam sendo gradualmente drenados. Parecia sinistro, mas eu não tinha certeza se era realmente uma maldição. O que quer que fosse, parecia mais difícil de enfrentar do que os ataques de Telm.
Não podíamos deixar a nave cair, mas meus poderes misteriosamente desaparecidos me deixavam sem meios de contra-atacar. Kris, no entanto, percebeu isso e começou uma invocação.
— Ah, já disse que não sou boa com feitiços de fogo. Tempestade de Fogo!
Ativei um Anel de Disparo em desculpas. O fraco projétil disparou contra Telm enquanto ele continuava sua própria invocação, mas desapareceu antes de atingi-lo. Criar uma barreira rudimentar era uma prática comum entre os Magos, então devia ser isso. Ouvi dizer que essas barreiras não protegiam contra feitiços de verdadeiro poder, o que dizia muito sobre a utilidade dos Anéis de Disparo.
Depois que meu projétil desapareceu, a Tempestade de Fogo de Kris acertou Telm. Uma chuva de faíscas caiu sobre ele, mas sem efeito. Não fazia sentido que um feitiço de Kris fosse tão fraco. Ela estava se segurando? Não pude deixar de olhá-la e percebi que estava mais confusa do que eu.
Ela olhou para o Mundo Redondo (o cajado que eu lhe emprestara) e gritou:
— Hah?! O que há de errado com este cajado?! Senhor?!
— V-Você não deveria culpar o cajado — respondi.
Estamos condenados. Nada está saindo como deveria.
Enquanto isso, uma luz mística emanava dos braceletes de Telm. Eu não possuía muitas Relíquias do tipo cajado, então meu conhecimento era limitado, mas eu tinha certeza de que aquela luz azul era um sinal de algo extraordinário.
Estamos ferrados!
O ar ondulou e a nave tremeu violentamente.
— ACEITEM SEU FIM! — rugiu Telm. — GÉLIDO ABSOLUTO!
***
— Mais rápido, Lúcia! Mais alto! — ordenou Liz.
— Urgh. Cala a boca! Esta não é uma tempestade comum!
Vermelha de raiva, Lúcia lutava para manter o controle do feitiço da pipa. O grupo já tinha abandonado seus lençóis de cama. Havia coisas mais importantes a se preocupar. A pipa era enorme, e carregar cinco pessoas (incluindo Ansem) e suas bagagens a tornava monstruosamente pesada.
Ainda assim, as tentativas de Lucia de manter o controle tiveram pouco efeito. Ela se sentia como se estivesse segurando as rédeas de um cavalo selvagem. Para alguém que havia treinado para lançar feitiços mesmo em circunstâncias extremas, isso era inacreditável. A sensação era como tentar usar magia dentro de uma barreira antimagia. Obviamente, isso não era uma tempestade comum.
Mesmo assim, ela conseguiu guiar os ventos intensos, e a pipa ascendeu. Nuvens apocalípticas cobriram o céu, e eles sentiram a presença de algo enorme dentro delas. Agarrada à ponta superior da pipa, Sitri inclinou a cabeça.
— Não poderia haver uma barreira nessa altitude — disse ela. — E o movimento das nuvens está longe de ser natural.
— Oh! Olha o quão alto estamos! — Luke comemorou. — Lucia, acerta a tempestade de frente! Eu vou ser o primeiro a atacar! Só observa, da última vez fui pego de surpresa, mas agora eu vou cortar um raio ao meio! Que tipo de homem eu seria se não conseguisse?!
Ansem resmungou em concordância.
E assim, a pipa branca e seus passageiros excêntricos avançaram direto para as nuvens escuras.
***
Uma das coisas mais assustadoras sobre magia era que ela nada mais era do que uma extensão do mundo comum em que eu vivia. Eu entendia como balançar uma espada permitia cortar algo, mas não conseguia nem começar a compreender como um mago podia criar fogo apenas estalando os dedos.
Aparentemente, a magia seguia suas próprias regras, mas só os magos conseguiam entendê-las. Foi com esse profundo conhecimento que Lucia obteve o prestigiado título de “Avatar da Criação”.
Mesmo enquanto palavras mágicas ecoavam da boca de Telm, eu não fazia ideia do que ele estava prestes a fazer. Me tranquilizei dizendo a mim mesmo que os Anéis de Segurança me protegeriam. Fechei os olhos e estendi a mão direita. Correr era inútil. Tudo o que eu podia fazer agora era agir como um escudo.
O navio de repente parou de tremer. Eu esperava sentir outro Anel de Segurança se ativando, mas isso não aconteceu. Quando abri os olhos, vi Telm com uma expressão confusa.
— R-Ridículo. Impossível — disse ele. — Eu tenho mana de sobra, então por que não consigo lançar feitiços?!
Hã? Ele falhou? Ele invocou aquelas palavras mágicas com tanta confiança e… falhou?
Telm estava claramente vulnerável, mas nossos cavaleiros estavam incapacitados, e eu não conseguiria vencer um mago em um combate corpo a corpo, então não podíamos aproveitar a abertura. Acho que minha esperança de que o imperador tomasse a iniciativa era apenas um desejo ingênuo.
Kechachakka nem tinha feito nada, mas deu um passo para trás.
— Uhe hee. O que você fez?
— Isso é obra da tempestade?! Ela está interferindo com nossa magia?! — Telm disse, tentando freneticamente usar suas pulseiras.
Eu não conseguia usar magia, então estava perfeitamente tranquilo, como sempre. Não entendia o que estava acontecendo, mas parecia que havíamos sido salvos. Mas eu tinha a impressão de que essa tempestade era coisa de Telm. De qualquer forma, fiz a única coisa que podia fazer: exibir o sorriso durão que passei tanto tempo praticando na frente do espelho.
— Parece que o jogo virou — eu disse. — Sem sua magia, você não passa de um velho.
— Maldição! — Telm começou a correr. Linhas de luz brilharam em seu corpo como veias. Parecia que ainda havia alguns feitiços que ele podia usar, já que aquilo era resultado de feitiços de fortalecimento. Esse era o último recurso de um mago quando sua magia não funcionava. Eles colocavam uma carga pesada no corpo do conjurador e nem sempre tornavam um mago tão forte quanto um combatente corpo a corpo dedicado, então eram considerados uma medida desesperada.
— Hã?! Eu também não consigo usar magia! Senhor! — Kris disse.
— Nem eu — respondi.
Telm se movia como alguém muito mais jovem. Sua postura baixa lembrava a de um ladino. Sua experiência e provações superavam as minhas em muito. Rapidamente, comecei a disparar descontroladamente com meus Anéis de Disparo. Uma saraivada de projéteis brilhantes, mas fracos, voou em direção a Telm, mas ele os evitou. Sem parar, ele pegou uma espada descartada no chão e a lançou contra mim. A lâmina voou reta como uma flecha, mas, mais uma vez, um Anel de Segurança ativou uma barreira. Só me restavam cinco.
Telm engoliu em seco. Antes, ele nem se preocupou em desviar dos meus disparos, mas agora fez questão de evitá-los. Tive um pressentimento do que isso significava.
— Parece que você nem consegue erguer uma barreira — eu disse. Apesar do número cada vez menor de Anéis de Segurança, eu estava perfeitamente confortável e me sentindo ousado.
Minha brilhante dedução o fez recuar.
— Seu desgraçado — rosnou ele, ofegante.
Isso era uma piada? Ele era muito mais bizarro do que eu.
— Não fique aí parado! Acabe logo com ele! Senhor! — Kris me disse, escondida atrás de mim.
Não via por que ela não podia usar o cajado que eu tinha emprestado para acertar Telm. Mesmo sem magia, eu tinha quase certeza de que Kris ainda era menos inútil do que eu. Não sabia o que fazer. Restringir um mago exigia ferramentas que pudessem sufocar magia, e mesmo assim elas nem sempre funcionavam contra magos bem treinados. Por causa disso, a maioria das batalhas entre magos poderosos só terminava quando alguém morria.
— Telm, não tenho desejo algum de matar a mão direita do Inferno Abissal — eu disse, mostrando um sorriso niilista. — Jogue essas pulseiras no chão e se renda.
Não era como se eu estivesse interessado nas suas Relíquias nem nada. Porém, era óbvio que aquelas pulseiras contribuíam para o seu poder. Para um mago, um cajado tanto amplificava quanto controlava a mana. Assim como Kris tinha dificuldade para conjurar feitiços com um cajado ao qual não estava acostumada, Telm perderia grande parte de seu poder sem o dele.
Ao ouvir meu pedido, os traços bonitos de Telm se contorceram, deixando clara sua antipatia. Mas, antes que ele pudesse dizer algo, Kechachakka o interrompeu.
— Telm — disse ele em um tom plácido, diferente de qualquer um que eu já tivesse ouvido dele —, os dragões não estão vindo. Devemos recuar.
— Droga.
Por que meus aliados ficam mais fortes quando se tornam meus inimigos, e meus inimigos ficam mais fracos quando se tornam meus aliados? Há não muito tempo, tudo o que você conseguia fazer era rir de forma suspeita.
Silenciosamente, Telm se virou. Movendo-se tão rápido quanto qualquer guerreiro, ele arrombou a porta e fugiu da sala. Kechachakka o seguiu. Tudo o que pude fazer foi assistir enquanto eles iam embora. Mesmo que eu os alcançasse, não conseguiria vencê-los em uma luta. Eu poderia ter liberado a Corrente Perseguidora, mas isso não seria suficiente para capturar um nível 7.
— Vamos atrás deles! Senhor! — gritou Kris, me empurrando por trás.
— Calma, Kris. Podemos esquecer deles por enquanto — disse eu, desviando do pedido dela quase por instinto. — Nossa prioridade deve ser salvar vidas. Franz e todas essas pessoas precisam de cura!
Por sorte, nosso suprimento, devido à sua abundância, havia sido dividido e armazenado por toda a nave. Embora eu não estivesse acostumado a curar pessoas, Kris conseguiu preparar rapidamente as poções e administrá-las aos cavaleiros caídos.
Mesmo os primeiros a tombar ainda estavam vivos. Depois de receberem as poções especiais de Sitri, suas expressões melhoraram rapidamente e a respiração se estabilizou.
— Parece que isso não foi apenas um feitiço de destruição. Senhor — disse Kris, soltando um suspiro de alívio.
— Mas eu não conseguia me mover. Minhas forças me abandonaram — ofegou Franz. Ele estava suando e arfando.
— Ele apenas fez pequenas alterações na água dentro dos corpos deles. Isso exige um nível de habilidade inacreditável. Mesmo com a vantagem da surpresa proporcionada pelo disfarce, nem mesmo Lapis poderia ter feito algo assim. Senhor.
Kris parecia grave. Como era um princípio básico da magia, até eu sabia que era incrivelmente difícil afetar diretamente o interior de outra pessoa com um feitiço. Até certo ponto, todos os corpos humanos eram resistentes à magia. Isso significava que os poderes de Telm estavam entre os melhores que existiam, se ele conseguiu derrubar tantas pessoas em questão de segundos. Uma barreira automática de um Anel de Segurança poderia protegê-lo, mas nenhum feitiço poderia defendê-lo de um ataque furtivo como aquele.
Franz cambaleou ao se levantar, mas parecia que os outros cavaleiros nem sequer conseguiam fazer isso. Suas vidas não estavam mais em perigo, mas eles não seriam capazes de lutar contra Telm e Kechachakka.
Mesmo agora, o imperador continuava impassível. Ele se sentou em sua cadeira e me perguntou:
— E agora? Temos alguma chance de vitória?
— Nem um pouco. Senhor — respondeu Kris. — Não concorda, humano fracote?
Seu olhar afiado implorava para que eu concordasse com ela, mas eu ainda estava perfeitamente confortável. Se tivesse que dizer de um jeito ou de outro, diria que não tínhamos chance alguma de vitória. Mas, como a nave estava caindo, escapar deveria ser nossa prioridade de qualquer forma.
— Kris, ah, você sabe voar? — perguntei a ela.
— Sei, mas não com esse cajado de merda! Senhor!
— Isso porque isso não é um cajado, é um dispositivo de tradução.
— Como é que é?!
Olhei gentilmente para o lado enquanto Kris começava a golpear o Round World no chão. Eu não esperava que as coisas tomassem esse rumo.
O que fazer? Não faço ideia. Mal entendo o que está acontecendo. Que enrascada.
Sem saber o que fazer, peguei um pouco de carne defumada dos suprimentos e a coloquei diante de Sir Matadinho, que estava caído no chão, tremendo de — pelo que presumi ser — fome. Achei que era o mínimo que podia fazer.
Disse a mim mesmo para manter a calma. É isso que se faz quando entrar em pânico não vai ajudar. Cruzei os braços e fechei os olhos. Estava perfeitamente confortável.
Tive uma ideia! Talvez, se comprarmos tempo suficiente, meus queridos Grieving Souls nos salvarão.
Uma voz aguda interrompeu meu devaneio.
— Atrás de você!
Girei rapidamente e olhei para baixo. Agachada ao lado de Sir Matadinho estava uma pequena figura. Era uma criança, uma criança humana. Liz era pequena, mas não tanto. Ela vestia um robe branco folgado. Seus pequenos braços se estenderam, pegaram a carne defumada, levaram-na à boca e começaram a mastigá-la lentamente.
Não me lembrava de haver nenhuma criança a bordo da nave. Era uma visão estranha, mas eu não estava inquieto. Estava perfeitamente confortável. Mas isso não quer dizer que eu não estivesse surpreso. A criança não disse nada. Todos os outros estavam pálidos como fantasmas. O imperador estava atônito. Até o Tapete parecia desconfortável.
O cabelo branco da criança era longo, mas eu não conseguia dizer seu gênero. Isso porque uma estranha máscara cobria a metade superior de seu rosto. Minha mente congelou novamente, deixando minha boca se mover por conta própria.
— Ah, um de verdade.
Era um pouco tarde, mas finalmente percebi o ar estranho que permeava a nave. Duas orelhas brancas e lisas brotavam de sua cabeça. As palavras misterioso e sobrenatural me vieram à mente. Havia diferenças marcantes entre sua máscara de raposa e a usada pelo amigo de Telm. A que estava diante de mim era real.
A criança inclinou a cabeça para mim. Não havia buracos para os olhos na máscara, mas eu podia sentir que ela me olhava. Diante de mim estava algo contra o qual nenhum humano poderia vencer. Eu deveria ter tremido. Deveria tê-lo temido tão naturalmente quanto os humanos temem a morte. Mas eu estava perfeitamente confortável.
Considerei não usar o Férias Perfeitas da próxima vez que pegasse um trabalho como escolta.
Uma memória antiga veio à tona — a última vez que encontrei um desses também foi durante uma tempestade estranha. Parecia que o mau tempo era um companheiro deles.
Não tinha ouvido relatos de avistamentos desde nosso primeiro encontro, mas se eles estivessem no céu esse tempo todo, isso certamente explicaria algumas coisas.
Por que isso aconteceu? Isso foi obra do Telm? Não, não poderia ser.
Isso não foi nada além de um golpe de azar. Algo que não podia ser controlado pelas mãos de um homem. Era para ser impossível encontrá-los duas vezes em uma única vida, mas acho que eu era apenas azarado assim. Achei que meus dias estavam relativamente livres de acidentes ultimamente, mas, no fim, eu só estava acumulando um reservatório de má sorte.
Olhando para fora, por um instante pensei que a tempestade havia diminuído, mas então percebi que isso era porque o que estava além das janelas já não era mais o nosso mundo. Do lado de fora, era um branco puro. Cofres de Tesouro eram mundos alternativos recriados a partir de material de mana. As de nível baixo eram baseadas no mundo real, mas as de nível alto eram diferentes. Eram espaços que operavam sob leis muito distantes das do nosso mundo. Tecnicamente, eram mundos separados. Isso explicava por que nossa magia havia parado de funcionar.
Mas compreender a situação não significava que eu pudesse melhorá-la. Não pude evitar sorrir. A estranha criança com a máscara de raposa—o fantasma—também sorriu. Em algum momento, a paisagem além da porta, derrubada por Telm, havia mudado. Havíamos colidido. Havíamos sido engolidos.
— Bem-vindos. Não tenham medo.
O interior da boca da criança era vermelho como fogo. Sua voz era fraca e a entonação, truncada, mas falava nossa língua.
Era um Cofre de imenso poder. Um reino insondável que atravessava o mundo. Um pesadelo vivo. Uma terra divina. Um lugar quase impossível de encontrar e lar de um fantasma que ninguém jamais derrotou. Ela era classificada como Nível 10. Seus habitantes estudavam, viajavam e participavam de jogos. O nome desse estranho Cofre era Peregrine Lodge.
— Estamos felizes em recebê-los — disse o fantasma.
Eram deuses. Memórias de deuses onipotentes que governaram nosso mundo. Eu já havia sobrevivido a um encontro com eles, mas não esperava que isso acontecesse uma segunda vez. Eles não podiam ser mortos. A única esperança para meros humanos estava na negociação. Era esse o tipo de ser que os deuses eram.
— Mentiroso — eu disse.
Essa acusação repentina fez a raposa sorrir.
— Eu não estava mentindo.
***
Kris sentiu como se fosse vomitar, como se algo estivesse tocando diretamente seu interior. Havia uma pressão, quase como se tivesse escorregado para outro reino. Apenas seu orgulho como Espírito Nobre e sua função como caçadora em serviço a mantiveram de pé.
Para caçadores com baixos níveis de material de mana, entrar em Cofres de tesouro repletos de mana poderia, em raras ocasiões, causar desconforto. Esse era um dos fatos mais básicos da caça. No entanto, na prática, não era algo comum, desde que não houvesse uma diferença significativa entre o nível do caçador e o do Cofre.
Kris olhou pela janela e viu um mundo diferente daquele em que estava antes. Ela queria gritar de medo e confusão, mas mal conseguiu manter a sanidade. Estava em um Cofre interdimensional e sentia náusea induzida pelo material de mana. Ao unir esses dois fatos, percebeu que esse Cofre estava muito acima de seu nível.
Além disso, tinha certeza de que a criança com a máscara de raposa era um dos fantasmas desse Cofre. Que coisa aterrorizante. Não se parecia com nenhum fantasma que já havia visto. Comparado àquela criança raposa, dragões pareciam meros lagartos. A forma era de uma criança, mas claramente não era uma. Falava algo parecido com a linguagem humana, mas não parecia certo chamar aquilo de palavras. Seus instintos de guardiã da floresta estavam gritando como sirenes.
Enfrentar aquele fantasma era ainda mais impossível do que enfrentar Telm. E isso, claro, valia tanto para ela quanto para a guarda imperial. No entanto, Kris não cedeu ao desespero, porque seu líder, o Mil Truques, não havia perdido a compostura. Mesmo sendo um Nível 8, ainda era um humano, mas sua postura não havia mudado nem um pouco com a aparição do fantasma.
Kris não sentiu nenhuma força vinda dele. O fraco humano continuava sendo apenas isso. Mas se ele conseguia manter a calma e até mesmo chamar o fantasma de mentiroso de maneira casual, então ele devia ser tão monstruoso quanto a entidade à sua frente. Ela precisava ajudá-lo, garantir que sobrevivessem, mas ainda tentava compreender a situação.
— Fraco humano—
— Agora não, Kris — ele disse, colocando um dedo em seus lábios. — Às vezes você diz as coisas erradas, e não queremos provocar esses caras.
Ela queria retrucar, insistir que nunca faria tal coisa. Senhor. Mas a tensão no ar a fez se calar.
— Não me importo — disse a criança raposa em um tom leve.
— Sério? — Krai perguntou. — Podemos dizer coisas rudes?
— Sim, sim. Você pode me acariciar.
Kris não conseguia entender. Não fazia sentido. As palavras da criança eram afáveis, mas emanavam uma aura de sede de sangue. Era um diálogo entre predador e presa. As palavras do fantasma eram vazias, sem relação com o significado original. Era algo inquietante, como quando o tilintar de um sino de vento soa acidentalmente como uma voz humana. Kris ficou atordoada ao ver o fraco humano conversando tão tranquilamente com o fantasma. Tudo o que podia fazer era confiar nele, pois parecia compreender melhor a situação.
— Estou com fome. Quero sorvete.
— Sorvete? Você nos deixaria ir se déssemos sorvete?
— Claro. Eu vou vomitar.
— Você é engraçado.
— Eu quero me aposentar.
O fraco humano riu ao ouvir isso, como se estivesse relaxado. Mas um fantasma jamais diria coisas como “quero sorvete” e “vou vomitar”. Isso desafiava a razão, e o fraco humano deveria estar bem ciente disso.
Desnorteada, Kris deu um passo para trás e percebeu o cajado em suas mãos—Round World. Apesar da aparência impressionante, era uma ferramenta defeituosa que não amplificava mana. Mas o que o fraco humano havia dito sobre ele? Ah, certo, que não era um cajado, e sim um dispositivo de tradução. Kris não sabia como usá-lo, mas tentou canalizar mana nele.
A gema no topo começou a girar. O fantasma abriu a boca, e conforme falava, o significado de suas palavras foi filtrado para a mente de Kris. Ela recuou diante da pura fúria do fantasma.
— Ha ha ha, eu gosto de você — disse Krai.
Como ela suspeitava vagamente, a troca de palavras era apenas superficialmente amigável. Suas falas não refletiam suas verdadeiras intenções.
— Sim, aham. Eu também gostaria de um chocolate.
— Fraco humano?! Se você—
— Kris, não te disse para ficar quieta? Deixa comigo. Estamos apenas conversando agora, mas se isso correr bem, poderemos negociar nossa saída. O importante é não provocar eles. Não temos chance alguma de vencê-los.
O que ele estava tentando fazer? A criança sorriu e estendeu um braço esguio para o fraco humano. Ao mesmo tempo, o ambiente se encheu de uma inimizade palpável. Muitos guardas imperiais já haviam desmaiado. Todos, exceto Krai, estavam prendendo a respiração, como se esperando que a tempestade passasse.
— O quê? Você é meu fã? — ele disse. — Poxa, eu nem sei o que dizer. Que honra.
Mesmo que ele não pudesse entender o que a criança raposa estava dizendo, a hostilidade no ar deveria ser óbvia. Ainda assim, ele não hesitou nem por um instante ao segurar a mão da criança raposa, sem dar chance para Kris detê-lo.
***
Que fantasma simpático.
Ver a criança raposa sorrindo me deu um pequeno alívio. Dentro da Pousada Peregrina, existiam dois tipos de fantasmas: a imensa raposa aberrante que era o núcleo do cofre e seus numerosos servos. A raposa aberrante nunca saía do centro do cofre, então a criança à minha frente só podia ser um servo.
Mesmo os fantasmas mais fracos desse cofre não caíam sem muito esforço. Na minha última visita, me disseram que pouquíssimos servos haviam sido derrotados desde a criação do cofre. Em termos de poder, diria que eram comparáveis aos chefes de muitos cofres de alto nível. Mesmo que Telm estivesse do nosso lado, nossas chances de vitória seriam mínimas. Sua magia era aterrorizante porque os humanos são frágeis. No entanto, não havia garantia de que ela teria o mesmo efeito contra fantasmas.
Nossa melhor opção era tentar apaziguá-los de qualquer forma e depois fugir. Que se dane o orgulho. Felizmente, esses fantasmas eram poderosos, mas não eram sedentos por sangue como a maioria.
Da última vez, conquistei o perdão deles ao me curvar e oferecer um presente. Mas, desta vez, o fantasma não pediu nada disso. Ele apenas falava palavras fragmentadas, sem fazer exigências específicas. Eram tão cordiais que parecia possível que nos deixassem ir sem nada em troca. Será que essa Pousada Peregrina era diferente daquela que visitei antes? Talvez não estivessem mentindo quando disseram que estavam felizes em nos receber. Mas eu não queria ser recebido, queria ser libertado.
— Na verdade, eu sou seu fã — disse a criança raposa. — Por favor, aperte minha mão.
Que mudança cultural fez com que eu me tornasse conhecido entre os fantasmas?
Mas a criança estendeu a mão, então eu a segurei. E foi aí que aconteceu. Ouvi Kris soltar um grito. Eu não fazia ideia do que a criança raposa tinha feito. Não houve som, cor, nada. Tudo que eu sabia era que meu anel de segurança caríssimo havia sido ativado.
Olhei freneticamente ao redor. Os olhos de Kris estavam arregalados. Ainda não entendi o que estava acontecendo. Pisquei algumas vezes e, ainda segurando a mão do fantasma, perguntei:
— O que você fez?
— Isso foi divertido.
— Hã!?

O fantasma começou a desaparecer. A partir dos pés, virou pó como se estivesse apodrecendo. Minha mão não segurava nada além do ar. Ouvi um barulho seco e vi que a única coisa que restava era a máscara de raposa da criança.
No momento seguinte, fui pego de surpresa por um barulho alto de vômito. Franz estava de joelhos e mãos no chão, vomitando sem parar. O imperador ainda não estava nesse estado, mas seu rosto estava completamente pálido.
— E-Então é assim que os fantasmas desse cofre são derrotados, senhor — disse Kris, cobrindo a boca com a mão. — Que estranho.
— Hm?
Kris deu um passo para trás. Notei que ela olhava fixamente para a máscara no chão.
— Isso era uma condição? Eles não podem mentir? Eles morreram porque o próximo ataque não matou? U-Urgh. Como você aguenta essa densidade de material de mana, senhor?
— Isso? Ah, estou perfeitamente confortável.
O material de mana do cofre parecia ser a causa do mal-estar de todos. Eu nunca senti nada porque tenho quase nenhuma capacidade de absorver ou reter material de mana, mas caçadores com alta taxa de absorção às vezes adoeciam se absorvessem demais. Era semelhante à fadiga muscular. Pensando bem, todo o meu grupo sentiu o mesmo enjoo da última vez que entramos nesse cofre.
Peguei a máscara. O fantasma a esqueceu? Ou foi um drop? Como ele morreu se tudo o que fiz foi apertar sua mão? Essa era a fraqueza dele? Difícil de acreditar, considerando que foi ele mesmo quem pediu o aperto de mão.
Bom, se ele deixou a máscara para trás, vou considerar isso uma lembrança. Eu a devolverei se ele disser que quer de volta.
No entanto, a nave estava envolta em branco. Além da porta por onde Telm e Kechachakka fugiram, a paisagem era a mesma do meu último encontro com a Peregrine Lodge. Não havia motivo para ficar na nave. Esse não era um cofre comum, e eu realmente não queria sair lá fora, mas não conhecia nenhuma outra maneira de escapar além de conquistar o perdão do chefe.
— Não tem outro jeito — murmurei. — Melhor eu ir logo.
Não levei ninguém comigo. Ser forte pelos padrões humanos não fazia diferença contra esses fantasmas. Como eu sabia um pouco sobre esse lugar, eu era, na verdade, nossa melhor chance de sobrevivência. Anteriormente, um dos fantasmas daqui me disse que esse cofre tinha uma regra: nada pode conter um deus, exceto o próprio deus.
Enquanto eu me aproximava da saída da nave (ou seria a entrada?), Kris me chamou:
— Humano fraco, leve este cajado—
— Hã? Não preciso disso.
— O quê? Então por que fez questão de trazê-lo, senhor?
— Achei que você pudesse querer usá-lo.
Não precisava dele quando os fantasmas já podiam falar. O que eu precisava era de amor. Sim, amor. Enfrentar o fantasma não me levaria a lugar nenhum. Para eles, humanos eram insignificantes. Mas no momento em que passei pela porta, ouvi uma voz próxima aos meus pés.
— Quero tofu frito. Me dê tofu frito ou eu atacarei.
Tinha certeza de que não havia nada ali um momento atrás. Olhando para baixo, vi uma criança, semelhante à anterior, sentada sobre as tábuas vermelhas do chão. Ela usava uma máscara de raposa, mas não era exatamente igual, e sua fala não era fragmentada. Essa era uma garota, com cabelos dourados claros. Vestia um quimono branco curto e apontava um dedo fino para mim.
Tofu frito? Desculpe, só tenho as conservas que a Sitri preparou para mim.
***
Kris Argent tinha certeza de que esta era a situação mais terrível em que já se encontrara. Estava em um cofre de tesouro que superava em muito suas capacidades, e a densidade de material de mana era suficiente para deixá-la enjoada. Não tinha o cajado ao qual estava acostumada (carregar dois teria sido difícil, e ela não esperava que as coisas ficassem tão ruins). As leis únicas do cofre não permitiam que ela manipulasse mana. “Condenação certa” parecia uma boa descrição da sua situação.
A essa altura, sua única opção era confiar no humano fraco, que parecia saber algo sobre o cofre. Mas ela ainda tinha seu orgulho; não deixaria que ele fizesse tudo sozinho. Bom, talvez deixasse, mas não queria ser um estorvo. Cerrou os punhos trêmulos, incerta sobre o que fazer. Não havia nada que pudesse fazer se estivesse privada de sua magia. Nem sequer tinha uma arma. Podia pensar, mas isso era algo que aquele artífice preter-humano fazia melhor do que ela.
Então se lembrou do que Telm fez antes. Quando seus feitiços ofensivos falharam, ele imediatamente mudou para um feitiço de fortalecimento. Kris não perdeu tempo em tentar o mesmo. Feitiços de fortalecimento eram uma forma básica de magia que envolvia converter mana em poder. A energia mágica percorreu seu corpo, e ela sentiu um calor profundo dentro de si. Conforme o feitiço fazia efeito, seus tremores diminuíram.
Então era isso. As leis do cofre não se aplicavam dentro dos corpos. Nenhum mago sensato entraria em um cofre onde não pudesse usar magia, mas depois de pensar um pouco, Kris se lembrou de já ter ouvido falar desse fenômeno antes. Assim como as leis de um cofre eram alteradas pelo material de mana, um corpo podia ser alterado pelo próprio material de mana.
Agora, Kris podia lutar. Usar mana de um jeito ao qual não estava acostumada causava um pouco de dor, mas isso não era nada comparado à sua experiência com as nozes amiuz. Seu treinamento recente estava sendo útil. Espíritos Nobres tinham uma aptidão incrível para a magia, e suas reservas de mana superavam em muito as dos humanos. Isso não duraria muito, mas, no momento, Kris podia lutar tão bem quanto qualquer guerreiro dedicado. Claro, ainda não achava que poderia vencer os fantasmas desse cofre.
O fraco humano ignorou a hesitação de Kris, e sua saída foi tão casual que era irritante. Ele tinha ido para aquele espaço distorcido pelo cofre do tesouro. Ir sozinho era suicídio. Ele tinha vencido o primeiro fantasma, mas para Kris estava claro que estavam muito além de suas capacidades. Ela sabia que conflitos eram decididos por mais do que apenas poder, mas não quando a diferença era tão grande.
Se quisessem sobreviver a essa emergência, precisariam cooperar. Não era como se ela estivesse com medo nem nada. Justo quando Kris estava prestes a seguir o fraco humano, seus olhos se arregalaram. Ela a notou.
Perto dos pés de Krai estava um fantasma de cabelos dourados usando uma daquelas máscaras de raposa. Esse fantasma era muito mais poderoso do que o anterior e tinha uma presença mais avassaladora do que qualquer inimigo que Kris já havia enfrentado. Isso significava que o fantasma anterior — aquele cuja mana dissipada foi suficiente para fazer Franz vomitar — não era o chefe nem um tenente, apenas um inimigo comum.
Apoiando-se na Relíquia, Kris ordenou que suas pernas se movessem. Ela sentia que, se parasse agora, nunca mais conseguiria se mover de novo. Era melhor seguir em frente do que fazer algo tão vergonhoso. Não podia se dar ao luxo de pensar na segurança do imperador. Sua presença não ajudaria em nada naquele cofre, então a melhor opção era se aliar ao fraco humano.
— Eu quero tofu frito — disse o fantasma. — Me dê tofu frito, ou eu atacarei.
Parecia uma piada, mas a Relíquia nas mãos de Kris dizia que, ao contrário do fantasma anterior, esse falava sério. Ela não sabia por que esse fantasma queria tofu frito, mas, naturalmente, não tinha nenhum. No entanto, pensou, não seria estranho se o fraco humano tivesse. Afinal, ele havia abarrotado o navio com comida e não demonstrava nenhuma hesitação no cofre.
Krai ficou em silêncio por um momento, mas então sorriu quando o fantasma fez o pedido.
— Desculpa — disse ele —, eu não tenho.
— Tá de sacanagem comigo?!
Antes que Kris pudesse acrescentar um “Senhor?!”, tudo já tinha acabado. Um vendaval varreu o local. Ela sentiu uma onda de dor percorrer seu corpo e soltou um gemido. Percebeu que tinha sido arremessada contra a parede. Doía, mas seu fortalecimento mágico impediu que o dano fosse mais grave.
O que Kris sentiu foi apenas uma onda de choque. O fantasma tinha simplesmente balançado seu pequeno braço em direção a Krai. Sem o uso de magia, foi apenas um movimento de um membro. Mas os fantasmas de cofres de alto nível tinham poder suficiente para obliterar um caçador experiente com um simples arranhão. Kris tossiu violentamente ao se levantar. Ela viu que o fraco humano estava completamente ileso e que o fantasma estava caído no chão.
— O quê?!
Ela não conseguia acreditar no que via. A última coisa que tinha enxergado antes da rajada de vento foi o ataque do fantasma. Aceitava que o ataque não tivesse surtido efeito, mas não entendia como a garota mascarada tinha sido derrubada. Um fio de sangue escorria dos lábios do fantasma, manchando de vermelho seu quimono branco. Seu corpo, feito de mana materializada, se contorcia, seus braços estavam abertos e seus dedos tremiam.
— O que você fez?! Senhor?!
— Eu não fiz nada — respondeu ele, confuso.
Não havia uma gota de sangue em suas mãos. As habilidades do Mil Truques eram desconhecidas até mesmo para seus companheiros de clã e envoltas em mistério, mas isso ia além. Ele tinha feito algo bem diante dos olhos de Kris, e ela não conseguia compreender.
— N-Não esconda isso de mim. Senhor.
— O quê? Não, eu não estou escondendo nada.
Ele parecia sério. Não parecia estar mentindo. E então Kris Argent compreendeu — ele realmente não escondia nada. Ele não mantinha nenhum segredo, mas suas habilidades desafiavam a compreensão, assim como o trabalho de um Magus avançado podia confundir a mente de um novato.
— Eu tenho muitas perguntas para te fazer, mas, por enquanto, quero que seja claro sobre uma coisa. Senhor. Você pode derrotar o chefe deste cofre?
Ele se ajoelhou e tocou o fantasma trêmulo.
— Não, isso é impossível — disse ele, com sua voz fraca de sempre.
***
Eu já tinha desistido de tentar entender isso. Qualquer esperança de compreensão estava tão distante que eu realmente estava começando a me divertir. Kris parecia preocupada, mas minha ignorância me deixava sem condições de acalmá-la.
O fantasma simplesmente tossiu sangue do nada. Pelo menos, era assim que eu explicaria. Nenhum dos meus Anéis de Segurança tinha ativado. Esses fantasmas eram tão poderosos que meus amigos ficaram completamente indefesos contra eles na minha última visita a este cofre. Mesmo se eu pegasse um desprevenido, provavelmente não teria sido capaz de causar nem um arranhão no que essencialmente era uma entidade superior.
Ajoelhei-me ao lado do fantasma trêmulo. Ela parecia incapacitada. Não estava morta, mas claramente não conseguia se mover. Seu rosto estava voltado para mim, a máscara ligeiramente desalinhada. Ao olhar para ela, percebi que já a havia visto antes. Nós a encontramos durante minha visita anterior aqui.
Naquela época, ela era um pouco menor e simplesmente pedia algo gostoso, em vez de tofu frito especificamente. Mas não havia como confundir o estilo e a cor de seu cabelo. Naquela época, eu havia lhe dado um tofu frito (na verdade, era um inari bento) que eu tinha comigo. Era apenas algo que eu havia comprado na cidade onde estávamos hospedados pouco antes, mas o fantasma gostou bastante.
Ela pediu várias porções, então não me surpreende que tenha pedido de novo… Ah, agora entendi.
— Você esqueceu da nossa promessa, não foi? — perguntei a ela.
Certo, nossa promessa. Da última vez, fiz com que ela prometesse que, se eu lhe desse tofu frito, nunca mais atacaria a mim ou aos meus amigos. Ela concordou com os termos e depois garantiu, com todas as letras, que os fantasmas do Peregrine Lodge nunca mentiam. Os dedos do fantasma de cabelos dourados se contraíram levemente, como se respondessem à minha pergunta.
— Isso acontece com frequência? — murmurei.
Eles desabariam se mentissem. Que grupo complicado de fantasmas. Ainda assim, cumpriam suas promessas. O fantasma parecia ainda estar vivo. Não tínhamos meios de matá-lo, mas fazê-lo provavelmente só despertaria a ira dos outros.
Os deuses eram cheios de fúria e desprezo. Suas trocas eram violentas. Na minha visita anterior, um fantasma me disse que este lugar era um espelho. Ele concederia o que você desejava, mas exigiria algo de igual valor em troca. Foi esse aspecto do Peregrine Lodge que me permitiu escapar uma vez.
— Então vocês não me deixam escolha — disse, exibindo um sorriso perfeitamente tranquilo. — Vou mostrar do que sou capaz.
Eu havia crescido desde nosso último encontro. Minhas habilidades de bajulação na época eram apenas uma sombra do que haviam se tornado. Agora, eu era imbatível em implorar por perdão.
— H-Humano fraco! — Kris gritou.
A voz dela me trouxe de volta à realidade. Olhei ao redor e vi que um enxame de fantasmas mascarados nos cercava. Não estavam apenas no chão, mas também no teto. Eram facilmente mais de uma centena. Nossa saída estava bloqueada, sem chance de fuga. Quando me levantei, Kris vacilou e se apoiou em mim, nossas costas pressionadas uma contra a outra. Soltei um pequeno suspiro. Como estava completamente à vontade, me dei ao luxo de esboçar um sorriso irônico.
Estamos encurralados. Sempre houve tantos assim?
O mar vulpino se abriu, revelando um fantasma alto com uma máscara de raposa negra. Ele parecia mais poderoso que os outros, mas eu não tinha como avaliar até que ponto, já que era o pior de todos em medir força. O fantasma de máscara negra se aproximou silenciosamente, deslizando pelo chão.
— Bem-vindo — disse ele com uma voz controlada. Suas palavras eram fluidas, indistinguíveis das de um humano. — Faz tempo desde que nossa hospedaria recebeu visitantes. Ah, vocês não precisam temê-los. Estão apenas lutando para conter a curiosidade, pois não veem humanos há muito tempo. Posso garantir que estão seguros. — Então, um sorriso sarcástico surgiu em seus lábios. — Mas, em troca, tomarei aquilo que você mais valoriza.
Aquilo que eu mais valorizo?
Não consegui evitar franzir a testa ao ouvir essa exigência. Notei o sorriso discreto do fantasma. Eles não haviam feito esse tipo de exigência da última vez. Parecia que tinham evoluído. Senti o coração de Kris disparando, mas minha Relíquia me mantinha completamente à vontade. Quanto ao que eu mais valorizava, eram as vidas dos meus amigos de infância. Sem dúvida. No entanto, eles não estavam aqui conosco.
O fantasma sorriu, como se soubesse o que eu estava pensando.
— Ah, quero dizer aquilo que você mais valoriza dentre o que pode oferecer no momento. Ah, e isso não inclui sua própria vida. Isto é, veja bem, uma troca justa.
Quando vim aqui pela primeira vez, anos atrás, nunca tinha ouvido falar de um cofre chamado “Peregrine Lodge” e, naturalmente, não sabia nada sobre os fantasmas que o habitavam. Sem querer, vagamos até este lugar e uma raposa de força incomum apareceu diante de nós.
— Humanos errantes, pisais em um domínio que não vos pertence — a raposa disse. — Quantos anos se passaram desde que recebemos vosso tipo? Independentemente das circunstâncias que trouxeram vossa chegada, sois indesejados. No entanto, curvem-se e peçam desculpas, e sereis libertos.
Eu era o único que conseguia se mover. As taxas de absorção de mana, capacidade máxima e dissipação variavam de pessoa para pessoa. Taxas melhores eram essenciais para ser um caçador poderoso, mas essas mesmas qualidades tornavam alguém facilmente afetado pela mana. Como eu era abaixo da média nesses aspectos, Peregrine Lodge apenas me causava um leve desconforto. A mana passava por mim como água por um escorredor.
Na época, eu não estava completamente à vontade, mas fiz o que o fantasma mandou e imediatamente demonstrei minhas habilidades exemplares de pedir desculpas. E assim, fomos perdoados. Foi nesse momento que aprendi a utilidade da habilidade de bajulação. Desde então, abaixar a cabeça se tornou quase divertido (e esse comportamento vergonhoso me rendeu socos da Lucia).
Nosso encontro com o Peregrine Lodge me marcou profundamente. Foi esse cofre de tesouros que me tornou parcialmente imune ao medo. Não que isso fizesse diferença desta vez, já que eu estava completamente à vontade.
Vou ter que cooperar. Não adianta lutar. O que será que esse fantasma pretende tomar?
O fantasma disse que não tiraria minha vida, o que significava que escolheria o que viesse depois disso. E eu não fazia ideia do que poderia ser. Se eu dissesse que era meu orgulho e ego, será que ele me perdoaria se eu me ajoelhasse? Minhas habilidades de bajulação haviam evoluído muito além do que eram antes. Transformei isso em uma arte. Poderiam até fazer uma ilustração de capa com isso.
O fantasma se aproximou ao alcance do braço. Ele ergueu a mão, e eu dei um passo para trás, inconscientemente. No instante em que seus dedos estavam prestes a me tocar, ele parou. Então, recuou bruscamente. Sua boca se abriu.
— O-O que é isso? — disse ele, com a voz trêmula. — Você é aquele jovem imprudente?
— Não. Não sou.
Isso não parecia comigo. Bem, agora eu estava perfeitamente confortável e tudo mais, mas eu sabia quando estava em perigo. Por alguma razão, o fantasma ficou nervoso. Ele olhou para a esquerda, depois para a direita. Então se inclinou, como se estivesse me examinando através de sua máscara sem buracos. Kris apertou minhas costas.
— Não, não, não. Hã? Por que você está aqui? Estamos no céu. Não se passaram nem cem anos.
— É, uh-huh.
— Como você chegou aqui? Estamos voando em velocidades incríveis! E-eu não entendo.
Era isso que eu queria saber. Cerrei os punhos. Tive o mesmo pensamento da última vez, mas não achei que tivesse feito nada de errado. Achei que fosse culpa deles, como uma carruagem batendo em uma pedra na estrada. Mas eu não podia reclamar para um ser transcendental. Tudo o que podia fazer era me humilhar se a situação exigisse. Parecia que o fantasma se lembrava de mim. Talvez nos perdoasse se eu me desculpasse.
— Honestamente, como você se infiltrou aqui? — lamentou o fantasma. Ele parecia perdido. — Achei que mamãe tinha dito que nunca mais veríamos você enquanto vivêssemos! E até nos mudamos para o céu, só para garantir que isso não acontecesse.
Hã?
Os deuses são onipotentes e, portanto, presos à sua palavra. Os deuses desse cofre do tesouro eram manifestações de material de mana, mas talvez fosse isso que qualquer deus realmente fosse. Isso me lembra algo que ouvi uma vez. Um cofre do tesouro de Nível 10 conhecido como Santuário do Deus Celestial havia se formado no local da antiga capital. Não sei se é verdade ou não, mas supostamente o próprio Deus Celestial foi derrotado pelo ancestral de Ark porque disse algo que resultou na limitação de seus próprios poderes.
O cauteloso fantasma raposa nos guiou mais fundo no cofre. Ao longo do corredor, fantasmas mascarados nos observavam em silêncio. Talvez não atacassem por causa do nosso guia. O interior do Peregrine Lodge ainda se assemelhava a uma estalagem, assim como na minha primeira visita. O piso era de madeira, e grandes pilares de madeira alcançavam o teto. Tons de vermelho e branco dominavam o interior, me lembrando dos santuários de alguma cidade oriental. Talvez fosse de lá que essas raposas vieram originalmente.
— Sei que estou me repetindo, mas todos aqui são absolutamente fascinados com a visão de humanos — explicou gentilmente nosso guia. Ele parecia estar em um alto escalão do cofre. — Veja, não recebemos muitas visitas aqui, e você, Sr. Cautela, é o único a vir duas vezes. É por sua causa que minha irmã mais nova é obcecada por tofu frito. Desisti de exigir desculpas.
Seguindo atrás dele estava a amante de tofu frito em questão. Mas ela não mostrou reação. Talvez estivesse em uma fase rebelde.
— Somos justos e corretos — continuou nosso guia. — Você não morrerá a menos que solicite. Não atacamos sem aviso. Aquele novato que você matou ainda não entendia nossos costumes. Imagino que não entendesse a língua humana?
Eu estava começando a sentir que não entendia a língua humana.
Espera. Ele morreu? Isso poderia ser a primeira vez que eu matei um fantasma?
Me senti um pouco mal com isso, mas como o fantasma trouxe isso sobre si mesmo, espero que me perdoem.
Chegamos a uma grande porta vermelhão. A disposição da estalagem parecia inalterada. Kris soltou um gemido e sentou-se. Ela tinha a expressão de alguém prestes a morrer.
— Isso é normal — disse o fantasma desconfiado, exasperado. — O que se passa nessa cabeça, Sr. Cautela?
— Ei, pelo menos percebo que tem algo errado.
Eu estava perfeitamente confortável, mas Férias Perfeitas não atrapalhava minhas funções cerebrais nem nada. Eu estava pronto para me humilhar a qualquer momento. Além disso, queria muito que ele parasse de me chamar de “Sr. Cautela”, mas não estava em posição de protestar.
— Kris, você espera aqui — disse a ela. — Eu resolvo isso.
Fantasmas poderosos eram compostos de quantidades incríveis de material de mana. Se apenas estar diante da porta era tão difícil para ela, eu temia o que poderia acontecer se ela realmente encontrasse o fantasma cara a cara. Kris olhou para mim. Ela respirava rápido e curto, e lágrimas se acumulavam em seus olhos, como se pudesse vomitar a qualquer momento.
— Não se preocupe. Vamos apenas ter uma conversinha. Vai ficar tudo bem. E olha, estou perfeitamente confortável.
A essa altura, eu estava quase desistindo. Esses fantasmas podiam me apagar com um simples sopro, então eu só podia fazer o que fosse possível. Se me faltava um senso de cautela, era porque eles o haviam roubado de mim.
Eu só quero deitar. Na verdade, se eu sair vivo dessa, é exatamente isso que vou fazer.
O fantasma abriu a porta. Respirei fundo e começei a me aproximar do deus aberrante.
***
Naquele momento, Kris aguardava—não, experimentava sua morte. O material de mana que jorrava da porta era avassalador, como nada que ela já tivesse experimentado. Eles estavam diante de um deus, o próprio reino em que haviam entrado. Seu corpo se recusava a se mover, seus instintos aceitavam a derrota.
E, no entanto, o humano fracote não se abatia. Kris tinha certeza de que ele era tão frágil quanto aparentava. Com o tempo, pode-se aprender a discernir os níveis de material de mana de alguém, e ela podia pelo menos dizer que seus níveis eram menores que os dela. Mas enquanto ela mal conseguia se manter de pé, ele caminhava até a porta. Kris não conseguia nem começar a imaginar que tipo de resiliência era necessária para que isso fosse possível. Mas agora ela tinha certeza do que era um Caçador de Nível 8. Era algo inumano.
E, ainda assim, seu alto nível não a tranquilizava. Além daquela porta estava um monstro de poder inacreditável. Mas, de alguma forma, ela ainda sentia confiança de que Krai voltaria.
Enquanto jazia no chão, incapaz de se mover um centímetro, o alto fantasma raposa soltou uma pequena risada e disse a ela:
— Não há motivo para se preocupar. Esse homem sem cautela obedece às regras tão bem que chega a ser frustrante. Nessa situação, um Nobre Espírito como você deveria se preocupar muito mais consigo mesma.
***
Minha carne tremia, minha alma gritava. Deuses não são como humanos. Deixando de lado se deuses autênticos existiam ou não, mesmo que fosse apenas um espectro, essa entidade tinha a presença de um ser superior.
Antes, quando eu não estava completamente à vontade, quando era apenas um qualquer, mantinha minha sanidade simplesmente porque já estava acostumado a sentir o medo da morte. Deuses ou semideuses, dragões ou semidragões, fazia pouca diferença para alguém no fundo da hierarquia. Todos os cofres de tesouro, não apenas o Peregrine Lodge, me aterrorizavam. Por sorte, foi isso que me permitiu encarar um deus. Mas agora eu era diferente. Agora eu podia ficar diante de um deus porque estava completamente à vontade.
Ela apareceu como uma raposa de pelo branco brilhante. Sua presença era muito maior do que sua figura real, que era bem mais modesta em comparação. Ainda assim, sua silhueta se assemelhava à de um dragão. Ela quase não parecia real.
Com toda a probabilidade, o corpo dessa raposa não tinha um grama de excesso. Assim como um caranguejo de qualidade.
Atrás dela se estendiam várias caudas, todas fofas e cintilantes. Ela era uma besta, mas também um deus. Mesmo que meus amigos estivessem comigo, derrotá-la simplesmente não era uma opção. Isso não era algo que um humano pudesse vencer.
— Oooh. O insaciável humano. Vieste me desafiar mais uma vez?
Eu me perguntava se Anéis de Segurança funcionavam contra seres superiores. Nunca tive a oportunidade de testar, mas não adiantava pensar nisso. Se esse espectro quisesse me matar, não haveria nada que eu pudesse fazer.
Sem querer me gabar, mas eu tinha mais experiência pisando em minas terrestres do que qualquer um que conhecia. Com medo de enlouquecer, evitei contato visual com o espectro. No entanto, isso parecia rude, então comecei a me prostrar ousadamente. A deusa raposa bateu no chão com suas caudas, fazendo o ar tremer.
— Não era minha intenção voltar — eu disse.
— Tolice.
Tolice mesmo. Quem já ouviu falar de alguém que simplesmente acaba tropeçando em um cofre do tesouro no céu? Mas foi isso que aconteceu. Que tipo de pessoa voltaria de bom grado a um lugar tão inerentemente perigoso? Mas eu não podia vencer uma discussão com um ser transcendental. A resposta dela faria a fúria de Gark parecer insignificante e benigna em comparação.
Ah, alguém me salve, pensei enquanto permanecia prostrado.
— Recordas-te do que eu disse?
A voz dela pesava sobre mim. Eu havia esquecido completamente do que ela havia dito, mas o alto espectro raposa havia mencionado algo. Vasculhei minhas memórias e respondi o mais honestamente possível.
— Você disse que nunca nos encontraríamos de novo.
— Eu disse que jamais nos encontraríamos novamente, enquanto estivermos vivos.
Eu queria protestar e apontar que era a mesma maldita coisa. Qual a diferença? Mas eu não estava em posição de levantar contradições.
— Isto… não é coincidência.
Algo na voz da raposa era incrivelmente impactante. Mas como isso não era coincidência? Eu não conseguia ver o que mais poderia ser.
Do que essa raposa está falando— Espera. Ah. Entendi.
Os espectros do Peregrine Lodge não podiam mentir. Mas a má sorte transformou esta diante de mim em uma mentirosa, então ela estava tentando reverter a situação a seu favor. Se eu quisesse cair nas boas graças dela, só precisava seguir o jogo.
Cara, estou afiado hoje.
Coloquei um sorriso amigável e falei diretamente:
— Você acertou em cheio. Isso não é coincidência. Eu vim aqui para te ver!
Perfeito, né? Não havia jeito melhor de mostrar que eu não tinha animosidade nem intenção de machucar. Mas recebi uma reação bem dramática.
— BAH! NÃO ME INSULTES. NÃO PRECISO DE PIEDADE DE UM HUMANO INSIGNIFICANTE!
Meu corpo foi sacudido por um rugido que quase arrancou minha alma do corpo. Meu cabelo ficou em pé e meu coração disparou. Foi um milagre eu ter sobrevivido. Provavelmente não teria, se não estivesse completamente à vontade.
Enquanto eu permanecia ali, chocado demais para me mover, a raposa continuou:
— Nunca um humano me insultou tanto quanto tu! Jamais quero ver tua face novamente! Comparar-me a um ‘caranguejo de qualidade’. Que audácia!
Então ela estava lendo minha mente. Ela parecia bastante irritada, mas eu não podia culpá-la por isso.
Mas me escuta—caranguejo bom é delicioso. Seria ainda melhor se fosse mais fácil de comer. Claro, meus amigos sempre tiram as cascas para mim, o que me faz sentir um pouco culpado.
— Silêncio! Silêncio! Silêncio! Jamais vi um humano tão desesperançado quanto tu! És um testemunho da idiotice humana!
A raposa bateu suas caudas fofas no chão enquanto gritava. Me lembrou um pouco uma criança fazendo birra. Adorável.
— Aaaaargh! Fico mais burra a cada segundo que passo em tua presença! Toma isso e desaparece!
— Ah. Voltou. Senhor.
Assim que minha audiência com a raposa terminou, saí pela porta. Não havíamos ficado separados por muito tempo, mas ainda assim parecia que eu estava ouvindo a voz de Kris pela primeira vez em anos. Humanos eram mesmo os melhores. Deuses não são bons para socializar, mesmo se você estiver completamente à vontade.
Kris me apoiou ao notar que eu cambaleava. Então seus olhos se arregalaram ao ver o que eu segurava na mão.
— O-O que é isso? Senhor?
— Ah. Quer?
Em minhas mãos havia uma cauda branca brilhante. Era a coisa real, crescida pela própria chefe. Assim como da última vez, ela me enfiou isso mesmo quando eu disse que não precisava. A última eu prendi a uma haste como uma vassoura e dei para a Lucia, mas não sabia o que fazer com essa. Queria apenas jogá-la fora.
— N-Não, não quero! Larga isso! Sai de perto, senhor! — gritou Kris.
Acho que ela não via isso apenas como uma cauda. Mas, sério, quem ficaria feliz em receber uma cauda de presente? O alto espectro raposa—vou chamá-lo de Irmãozão Raposa—pressionou os lábios por um momento.
— Então mamãe perdeu? — disse ele desanimado.
— Não, nem um pouco — respondi. — Não que eu realmente saiba o que se passa na cabeça de um deus ou algo assim.
Eu só a irritei muito por algum motivo. É, bem, meio difícil interagir com alguém que lê sua mente. E mesmo que fosse uma deusa, ser tão odiado ainda me deixava desanimado.
— Essa cauda é sua essência vital. Independentemente do que aconteceu, você venceu, Sr. Cautela.
Essência vital? Essa cauda era a essência vital dela?
A chefe tinha doze caudas. Agora eu tinha uma, deixando-a com onze.
— Então se eu fizer isso mais onze vezes, posso derrotá-la? — perguntei.
— Quer tentar? — perguntou Irmãozão Raposa com um sorriso. Kris se escondeu atrás de mim quando ele fez isso.
Isso só escapou sem querer. Foi mal.
— Não, não pretendo voltar aqui nunca mais — respondi. — Agora me diga, o que acontecerá com a aeronave?
Dessa vez, não apenas fomos libertados do cofre — tínhamos um dirigível conosco.
— As regras dizem que devemos libertá-lo sem ferimentos — suspirou Raposa Mais Velho. — Seu dirigível, ou seja lá o que for, não sofrerá danos. Se dependesse de mim, eu destruiria qualquer coisa que pudesse nos alcançar aqui em cima, mas não posso simplesmente fazer o que quero.
Oh? Será que realmente vamos sair daqui?
Esses fantasmas não podiam mentir. Claro, tivemos alguns momentos difíceis, mas escapar do Peregrine Lodge tão facilmente provava que até eu poderia ter sorte nos momentos mais inesperados. Mas, justo quando soltei um suspiro de alívio, Raposa Mais Velho sorriu cruelmente.
— No entanto — disse ele —, o único que estou libertando é você. Não tenho intenção de deixar os outros partirem.
O quê? Isso… não é bom.
Eu valorizava a vida dos meus amigos e a minha acima de tudo, mas isso não significava que eu estava bem com todo mundo morrendo. Me perguntei se nos deixariam ir em troca da cauda.
— Essas são as regras, e se eu não receber nada dos nossos convidados, mamãe vai me dar uma bronca. Agora, é a sua vez, Kris Argent.
Kris espiou por trás das minhas costas, mas suas mãos ainda tremiam.
— Se quiser ir embora, terá que me dar aquilo que mais valoriza — disse o fantasma em um tom baixo. Sua voz era gentil, o que só o tornava ainda mais intimidador.
E o que Kris mais valorizava? Estávamos no céu, longe do grupo dela ou de qualquer outro Espírito Nobre. Raposa Mais Velho estava pedindo algo muito mais significativo do que uma simples súplica, mas era justo à sua maneira. Afinal, ele não pediu nossas vidas nem nada que não pudéssemos oferecer naquele momento.
Se eu estivesse no lugar da Kris, estaria pronto para entregar quase qualquer coisa. Mesmo se o fantasma quisesse um Anel de Segurança, eu simplesmente teria que ceder. Mas então me lembrei de algo: tínhamos o imperador conosco. E se Kris fosse obrigada a entregá-lo? Isso seria um problema. Se falhássemos em proteger o imperador, seríamos perseguidos por Zebrudia.
Talvez o imperador estivesse isento por não estar nas proximidades imediatas? Não, isso não aconteceria. Raposa Mais Velho seguia suas regras; ele não faria esse tipo de exceção. Ele não tiraria sua própria vida, mas ainda poderia ser cruel. Se um casal entrasse aqui, um dos dois acabaria separado do outro.
Kris não disse nada. Apenas apertou minha camisa e encarou o fantasma. Ele ficou em silêncio por um momento, até que uma carranca surgiu em seus lábios.
— Isso não vai servir, Kris Argent. Não posso aceitar o Senhor Cauteloso porque já concordei em deixá-lo partir.
— Hã? — disse eu.
O que essa raposa estava falando?
— H-Hããã?! — gaguejou Kris antes que eu pudesse dizer mais alguma coisa. — Como assim?! Senhor?!
Então ela estava pensando a mesma coisa que eu. Engraçado como estávamos exatamente na mesma página.

— Estou explicando para você que não posso pegar o que você mais valoriza — disse o fantasma. — Ele está protegido pelas regras.
— E-E-Ele é o que eu mais valorizo?! Nem ferrando! Senhor!
— Ah, não, eu tenho certeza. Não adianta tentar me enganar, pois consigo ler os corações das pessoas. Não importa se você percebe isso ou não, você valoriza o Sr. Cautela. E o Sr. Cautela não tem nenhuma cautela.
Kris rapidamente se afastou de mim. Seu rosto estava vermelho até as orelhas e suas mãos ficaram brancas de tanto apertar o cajado.
Bem, isso é um pouco embaraçoso. Nunca imaginei que Kris me valorizasse.
— N-Não fique tão feliz! Senhor! Isso é só porque ninguém que eu conheço está aqui! Senhor!
— Entendo — respondi. — Então sou mais importante para você do que o imperador.
Kris começou a tremer, seu rosto corado enquanto batia o cajado no chão.
Isso foi ainda mais revigorante depois de ser repreendido por um deus. Kris estava sempre me chamando de fraco humano. Eu não tinha ideia de como poderia ter conquistado algum ponto com ela. Talvez estar no mesmo clã tenha ajudado a inflar os números?
Irmão Raposa pareceu pensar no assunto por um momento antes de suspirar.
— Suponho que não tenha escolha. Sr. Cautela, pegarei o que você mais valoriza. No entanto, para compensar minha grave violação das regras, deixarei você e todos os seus companheiros irem.
Então é isso, hein?
Eu não sabia se deveria ou não considerar esses termos favoráveis, mas havia uma coisa que eu queria confirmar.
— E o que aconteceria se o que eu mais valorizo fosse a Kris, o imperador ou outra pessoa?
Ainda com o rosto vermelho, Kris prendeu a respiração.
— Então não haveria nada que eu pudesse fazer. Seria minha derrota — disse o fantasma, dando de ombros. — Eu deixaria você e seu grupo irem. Afinal, é uma troca justa.
Agora eu sabia que tinha vencido. No início, eu não fazia ideia do que era mais importante para mim, mas Kris mudou isso.
É ela. Kris é o que eu mais valorizo. Desculpe, mas o imperador fica em segundo. Eu sei, estou falhando na minha missão.
Mas talvez tudo isso fizesse parte dos planos do Irmão Raposa? Eu tinha certeza de que ele queria a cauda. Talvez por isso tenha começado a negociar com Kris. Ele sabia que não poderia tomar dela, o que lhe daria uma desculpa para pegar de mim e, assim, recuperar a cauda.
Mas ninguém sairia ganhando se ele pegasse a Kris. A cauda era um pedaço de mana que poderia ser usado com grande efeito, mas eu não me importava com isso. Do jeito que as coisas estavam, eu ia acabar entregando algo que nem precisava.
Respirei fundo, fechei os olhos e rezei.
Essa cauda é o que é importante para mim. É o que eu mais valorizo, muito mais do que a Kris. Muito mais? Ok, talvez só um pouco mais. É bem valiosa e tem um brilho bonito. Eu também gosto das orelhas que aparecem quando ela se anexa a você. Se ao menos a Lucia não me socasse toda vez que eu as tocasse…
Abri os olhos. Vi o Irmão Raposa com a mesma expressão problemática de um minuto atrás. Para minha decepção, parecia que ele não ia levar a cauda.
— Entendo — declarou o fantasma. — Parece, Sr. Cautela, que o que você mais valoriza é… um tapete. Talvez soe estranho vindo de mim, mas você está bem da cabeça?
E assim, fiz o que me pediram e entreguei obedientemente. Eu não tinha escolha. Estava tão nervoso que achei que meu coração fosse explodir do peito. De cabeça baixa, vi o fantasma enrolar o item e segurá-lo ao lado do corpo.
— E agora nossa troca está completa — disse o Irmão Raposa. — Espero que tenha aprendido sua lição e nunca mais volte aqui.
— Eu não estou aqui porque quero. Foram vocês que cruzaram meu caminho.
Eu dizia isso com toda sinceridade, mas o fantasma deu de ombros, como se não acreditasse em mim.
— Não faz diferença — disse ele.
Não importava o quanto ele dissesse que suas trocas eram justas, a ideia deles de justiça não era a mesma que a nossa. O que ele realmente obedecia eram as regras do cofre do tesouro. No entanto, essas regras não se aplicavam a nós, apenas ditavam o comportamento dos fantasmas. Por exemplo, se eu tivesse força suficiente, poderia derrotá-los e escapar sem entregar nada. Mas, é claro, isso era um ponto discutível.
Não houve despedidas. O mundo simplesmente voltou ao normal e o fantasma desapareceu. Diante de mim, um dos corredores da aeronave surgiu. Era como se o cofre tivesse sido apenas uma ilusão. Lá fora, o céu estava azul e sem nuvens. Assim que tive certeza de que havíamos saído do Peregrine Lodge, suspirei aliviado.
Com perdas mínimas, sobrevivemos a algo do qual poucas pessoas saem vivas. No entanto, tivemos um trágico sacrifício na forma de um certo tecido. Eu não sabia o que aconteceria com aquele cofre do tesouro daqui para frente, mas se continuassem no ar, provavelmente nunca nos encontraríamos de novo. Só me restava rezar para que essa suposição estivesse correta.
Enquanto eu olhava pela janela, senti uma mão se apoiar nas minhas costas, que sem dúvida pareciam pesarosas. Era Kris. A cor havia voltado ao seu rosto e ela não parecia mais nauseada.
— O-O que você estava pensando lá atrás?! Senhor?!
Eu tinha feito algo ruim para ela. Mas eu realmente pensei que ela fosse o que eu mais valorizava. No fim, acabou sendo o meu tapete, algo que nem passou pela minha cabeça. As habilidades de leitura mental daquele fantasma eram extraordinárias.
— Ei, calma. Aquilo definitivamente foi um esquema para nos separar!
— Você acha que eu sou idiota? Senhor?! Pode parar de brincar com fogo?!
Eu não achava que ela era idiota, mas realmente me sentia mal pelo que aconteceu. Tinha várias coisas para me desculpar e queria fazer o possível para compensá-la.
— Mas, Kris, agora não é hora de brigar. Precisamos garantir que o imperador esteja bem. Aquele fantasma não mentiria para nós, mas qualquer caçador de primeira linha ainda assim iria querer ter certeza.
— Se você não levar isso a sério, eu vou te bater.
Seguindo o mapa na minha cabeça, voltamos para a sala anterior. Cavaleiros, administradores, servos, magos—todo tipo de gente estava desmaiada pelos corredores. Essas pessoas provavelmente não foram vítimas dos fantasmas, mas sim de Telm. Kris correu até uma delas, verificou o pulso, observou os olhos e escutou os batimentos cardíacos.
— Eles estão vivos — murmurou. — Eles ainda estão vivos. Senhor, eu não entendo.
A magia de Telm estava entre as melhores que existiam. Eu não conseguia entender como alguém poderia ser atingido por um de seus feitiços e sobreviver por tanto tempo.
— Ah, será que foi o material de mana, senhor?
Isso explicaria muita coisa. O material de mana fortalecia os corpos. Se você quisesse se aprimorar de uma forma específica, podia fazê-lo. Fosse em poder mágico, força ou a habilidade de proteger pessoas, você obtinha o que desejava. Se fosse absorvido por alguém à beira da morte, esse alguém agarraria a vida com mais força. Essas mudanças geralmente demoravam para surtir efeito, mas com a extrema concentração de mana na Peregrine Lodge, qualquer coisa era possível.
E por que exatamente eu não estava sendo afetado, se até civis estavam sendo fortalecidos? Era possível que o fantasma tivesse feito algo. Ele disse que nos mandaria de volta ilesos. Se alguém tivesse morrido dentro do cofre do tesouro, dificilmente poderia ser considerado “ileso”. Mas agora que havíamos saído do cofre, eu não tinha como saber com certeza. Preferi encarar isso como um golpe de sorte.
Quando chegamos à sala, ela continuava do mesmo jeito que a deixamos.
— Você voltou, Mil Truques — disse o imperador ao me ver. Enquanto todos pareciam à beira da morte, ele ainda mantinha sua dignidade. Não era à toa que estava no topo do império. — Você resolveu a situação lá fora?
Meus olhos percorreram a sala e deixei escapar um suspiro de alívio. Atrás do imperador estava meu Tapete Marginal.
Ótimo. Não perdemos ninguém.
Tremendo, Kris sussurrou ameaçadoramente no meu ouvido:
— Sério, pare de brincar com fogo. E se você tivesse falhado, senhor?
O fantasma só mencionou um tapete. Ter comprado aquele outro tapete como companheiro para minha Relíquia valeu muito a pena.
***
Que criaturas misteriosas os humanos são. Especialmente aquele jovem imprudente. O número dois da Peregrine Lodge era o Irmão Raposa. Em nome da grande Mãe Raposa, ele era responsável por boa parte do que acontecia no cofre.
Ele analisava atentamente o tapete azul. Humanos valorizavam todo tipo de coisa diferente. Alguns davam valor a objetos, outros à vida de alguém, e alguns escolhiam memórias. Mas com tantos aliados e um rabo da Mãe Raposa, o Irmão Raposa não conseguia entender como um tapete poderia ser o que aquele homem mais prezava.
Humanos raramente entravam na Peregrine Lodge, e ninguém havia entrado desde a última visita daquele homem, o que significava que essa era a primeira confiscação do Irmão Raposa. O Espírito Nobre ao lado do Sr. Cautela tinha valores bem razoáveis que ele conseguia compreender, o que só reforçava sua crença de que havia algo errado com aquele homem.
Ele estava começando a se perguntar se o tapete era uma relíquia de família ou algo assim quando seus olhos se arregalaram.
— Fui enganado.
Esse não era o verdadeiro. Ele sabia. Era de fato um tapete, mas não um que tivesse significado para o Sr. Cautela. O Irmão Raposa havia sido passado para trás. Soltou um suspiro de desprezo. A aeronave já havia sido liberada. Ele havia perdido—perdido um jogo de inteligência. Jamais imaginou que aquele homem lhe entregaria uma falsificação.
Ainda assim, o humano não havia trapaceado. Foi um jogo justo de gato e rato, uma batalha justa de astúcia. Era sua primeira tentativa, então o Irmão Raposa ainda estava aprendendo o jogo, mas isso não mudava o fato de que ser enganado tornava sua derrota incontestável. Ele não tinha permissão para se vingar. Na verdade, como perdedor, deveria compensar o vencedor, assim como a Mãe Raposa ofereceu um de seus rabos.
Agora, o Irmão Raposa tinha certeza—aquele humano era ardiloso. Sua falta de cautela só o tornava ainda mais difícil de lidar. Envergonhado por seus erros, o Irmão Raposa começou a planejar seu próximo passo.
Ele precisava de uma estratégia. Para alguém entrar na Peregrine Lodge duas vezes em tão pouco tempo era anormal. Talvez aquele homem tivesse uma sorte terrível, ou talvez possuísse poderes que superavam os da Peregrine Lodge. Embora ele não demonstrasse hostilidade, o Irmão Raposa não gostava da ideia de continuar no céu. Ao mesmo tempo, também não queria ir para um lugar além do alcance dos humanos. Foi a falta de conhecimento sobre os humanos que levou à derrota de seu irmão mais novo. Ele teria que encontrar um equilíbrio delicado.
Sua mãe, sua irmã mais nova, ele mesmo—todos haviam perdido. A única coisa que trazia algum consolo era o fato de que a aeronave humana, sem dúvidas, iria cair. Seus sistemas de propulsão haviam sido destruídos. O único motivo de ainda estar no ar era porque fora segurada pela Peregrine Lodge. Agora que fora liberada, voltaria a ser governada pela gravidade.
Aquele homem havia levado um dos rabos da Mãe Raposa. O Irmão Raposa não estava ressentido, mas também não era indiferente. O Sr. Cautela era um indivíduo fascinante, mas não alguém que os fantasmas fossem obrigados a salvar. Afinal, os fantasmas da Peregrine Lodge eram presos às suas regras.
Com um leve farfalhar, o Irmão Raposa dissolveu-se no ar. Ainda precisava coletar a compensação daqueles dois que haviam sido deixados para trás.
***
Então a aeronave começou a tremer de repente e inclinou-se para baixo. Franz rolou pelo chão inclinado. O único que estava confortável ali era eu.
— Droga! Estamos caindo! Senhor! — gritou Kris.
Meu mundo balançou. Os móveis estavam presos ao chão — as pessoas, não. Eu nunca entendi como estávamos voando para começo de conversa, mas isso não significava que eu queria ver a gente caindo. Nem todos os passageiros haviam sido tratados ainda. Todos estavam vivos, mas apenas alguns poucos conseguiam se mover.
— Kris, você consegue lançar alguma magia ou algo assim para nos salvar? — perguntei.
— Não! Magia não faz tudo! Senhor!
Causar um tumulto não adiantaria nada, então me sentei no chão trêmulo. Então íamos cair. Com meus Anéis de Segurança e Tapete Voador, minha vida não estava em risco, mas todo o resto estava ferrado. O mana material podia fazer coisas incríveis com as pessoas, mas você ainda precisaria ser tão resistente quanto Ansem para sobreviver a uma queda dessas. Sem falar que muitos dos passageiros eram civis.
— Acha que vocês conseguem sobreviver a isso? — perguntei a Franz.
— Como diabos conseguiríamos?!
Até sua resposta sarcástica era direta.
— Não dá! — disse um dos tripulantes ao entrar na sala. — Todos os paraquedas foram destruídos!
Telm realmente sabia o que estava fazendo. Se ao menos eu pudesse voltar no tempo e escolher outra pessoa…
— Se vocês pularem bem na hora do impacto, talvez consigam sobreviver — sugeri. Eu não estava falando completamente a sério, mas todos os cavaleiros ficaram pálidos como fantasmas.
— Mil Truques — disse Franz, se arrastando pelo chão —, você precisa salvar Sua Majestade Imperial!
— Você é uma pessoa melhor do que parece — falei.
— Vou te matar!
— Agora, agora, calma aí. Ainda temos tempo. Talvez meus poderes mágicos despertem. Talvez a gente caia na água.
— Estamos no deserto!
— Ah, já sei! Temos camas nesta nave, certo? Vocês podem amarrar mãos e pés em um lençol e planar como um esquilo voador!
— Você tá falando sério?! Senhor?!
Minha ideia genial foi rejeitada. Aposto que todo mundo em Grieving Souls teria tentado.
Levantei-me e olhei pela janela. Já dava para ver o chão nitidamente. Como Franz havia dito, estávamos sobre o deserto. Não sabia quanto tempo restava até o impacto, mas provavelmente era questão de minutos.
— Essa areia parece bem macia — comentei.
— Não tem realmente nada que você possa fazer?!
— Vocês realmente não deviam depender tanto de mim. Honestamente, eu disse que a nave podia cair.
Continuei tentando lançar um feitiço para transformar a aeronave em um pássaro, mas o plano não estava dando certo. Enquanto isso, senti alguns olhares bem intensos sobre mim. Não era fácil ser um artífice pré-humano.
Decidi que minha prioridade seria colocar o imperador e a princesa imperial no Tapete. Mas, se o imperador pudesse usar os Anéis de Segurança, talvez eu devesse ter dado um para ele? Kris era uma Nobre nada frágil, então saberia se virar. O resto… teria que pular no último segundo. A parte superior da aeronave era um balão, e embora eu não tivesse provas para sustentar isso, sentia que eles poderiam sobreviver dependendo de onde caíssem. Ou talvez eu estivesse só me iludindo.
Então meu olhar se voltou para a janela e meus olhos se arregalaram. Do lado de fora estavam os espectrolençóis. Eles não estavam mais usando lençóis de verdade, mas estavam voando em uma pipa ridiculamente grande. Parece que conseguiram evitar serem sugados para o cofre do tesouro.
Sorri e estalei os dedos com confiança.
— Bem, acho que posso dar uma mãozinha já que chegamos a esse ponto.
Lucia! Levanta essa nave com sua magia! Se alguém pode fazer isso, é você! Essa coisa é basicamente um balão gigante! Eu nunca vou te pedir mais nada, só salva essa nave! LUCIAAA!
— Uaaah!
A nave sacudiu violentamente. Os móveis estavam fixos no chão, mas caixas e utensílios foram arremessados. Todos se agarravam desesperadamente em cadeiras e mesas. Franz protegia o imperador. Por toda parte, via rostos de pessoas preparadas para morrer. A única que parecia confortável era a princesa imperial, que estava no Tapete. Como eu a invejava. O Tapete não havia me aceitado, mas ela? Bem, para ser justo, a princesa imperial ainda era uma criança.
Então a nave foi atingida por um golpe excepcionalmente forte, como se tivesse sido acertada por uma onda gigante. Ouvi vidro se quebrando, o tremor continuou e, então, tudo ficou silencioso. Não sentia mais a sensação de estar flutuando no ar. Por um momento, fiquei no chão observando a situação, mas parecia que nenhum outro impacto viria. Cambaleei um pouco ao me levantar. Respirei fundo.
Estamos vivos. ESTAMOS VIVOS!
O interior estava um caos. Acho que os cavaleiros nunca haviam passado por uma queda antes; não conseguiram lidar com a turbulência violenta e estavam todos empilhados em um canto. Mas, pelo menos, estavam vivos. Pressionando as mãos no chão, o imperador se ergueu. Ouvi um gemido de Franz.
Kris e os outros magos haviam lançado um feitiço para absorver o impacto antes da queda. No Tapete, a princesa imperial estava segura, embora um pouco abalada. O tapete (de alguma forma) me fez um joinha. Que Relíquia competente eu tinha ao meu serviço. Muitas pessoas estavam feridas, mas considerando a altura da queda, esse era um ótimo desfecho.
— O-O que aconteceu? — perguntou Kris, ofegante. Segurando o braço — devia ter batido nele —, abriu os olhos. Seu olhar estava vago e desfocado, sua voz não tinha o vigor de sempre. Parecia até uma amadora em sobreviver a quedas.
Nessas situações, se você abrir os olhos, só vai ficar mais tonto, então é melhor mantê-los fechados. Também ajuda se agachar e cobrir os ouvidos. Chamamos isso de “evitar a realidade”.
Com cautela, estendi a mão por uma janela quebrada e toquei a areia. Senti o calor intenso do sol. Com tantas pessoas feridas, eu não podia simplesmente ficar parado. Respirei fundo e saí.
Com cuidado para não perder o equilíbrio na areia, deixei a sombra do grande casco. Engoli em seco ao ver nosso entorno. Diante de mim estava o deserto, mas havia mais do que só areia entre nós e o horizonte.
Através do ar ondulante, vi uma grande cidade a poucos centenas de metros de distância. Além de algumas árvores e uma muralha baixa, vi prédios brancos. Havia sombras no portão; com minha visão, pareciam apenas feijõezinhos, mas eram provavelmente pessoas que tinham visto nossa queda.
Flutuando perto do portão, estava uma bandeira com cinco lanças sobre um fundo amarelo. Já haviam me mostrado essa bandeira antes de começar a missão de escolta — era a bandeira de Toweyezant.
Parece que caímos em um bom lugar. Nada de acampar dessa vez. Eu estava incerto sobre esse trabalho, mas, no fim, deu tudo certo. Assenti para mim mesmo e voltei para a nave para compartilhar as boas notícias.
— Ei, pessoal! Chegamos a Toweyezant!
Talvez ainda tonto, Franz esfregou as têmporas.
— Urgh. Não tenho mais nada para dizer para você — disse ele, com a voz arrastada.
Tradução: Carpeado Para estas e outras obras, visite Canal no Discord do Carpeado – Clicando Aqui
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