Grieving Soul – Capítulo 4 – Volume 6
Nageki no Bourei wa Intai shitai
Let This Grieving Soul Retire Volume 06
Capítulo 4: O Espaguete Abissal e o Enxame de Fantelençóis
Depois de me encontrar com Franz, arrastei meu corpo de volta para o meu quarto. Quando abri a porta, fui emboscado pelo Tapete. Ele estava carregado e me deu uns tapinhas rápidos enquanto eu passava por baixo dele, como se fosse uma cortina. Kris tinha carregado minhas Relíquias enquanto eu estava fora. Ela não estava muito animada com isso, mas, aparentemente, Lucia a tinha encarregado dessa função antes de partirmos. Seja qual fosse o motivo, eu estava extremamente grato.
Ela me perguntou o que Franz queria me dizer, então expliquei.
— Hã? — Seus olhos se arregalaram e ela parecia completamente confusa. — Como diabos isso aconteceu? Senhor?
— Isso é o que eu queria saber.
— O que você fez, seu humano fraco?
— Se eu tivesse que dizer, acho que não fiz nada.
— Quando é que você vai levar isso a sério?! Senhor?!
Eu tinha me afastado brevemente da caravana para resgatar o Tapete, e isso resultou no nosso time sendo colocado ao lado do imperador. Eu sei como isso soa vindo de mim, mas eu estava cem por cento perplexo. Na verdade, quando Franz me deu a notícia, acabei dizendo: “Hã? Do que você está falando?” Ele ficou muito irritado.
Mas eu já tinha feito coisas que fariam qualquer pessoa normal perder a fé e me demitir. Acho que era justo questionar a sanidade deles. Talvez fosse para que qualquer erro meu fosse cometido bem diante dos olhos do imperador. Assim, Franz poderia justificar facilmente me decapitar. Mas isso seria usar a posição do imperador para benefício próprio. E isso não era bom. Nada bom. Desrespeitoso. Espero que Franz não esteja fazendo isso.
Eu só quero ir para casa.
Mal podia acreditar que só tinham se passado dois dias até agora. Eu aceitei esse trabalho com a condição de que a defesa do imperador fosse principalmente responsabilidade dos cavaleiros. Isso não era o que tínhamos combinado, mas eu também não estava em posição de discutir. Então, eu estava no meu limite. Quem sabe o que poderia acontecer se colocassem alguém tão azarado quanto eu ao lado daquele imperador amaldiçoado?
— Certo, suas Relíquias estão todas carregadas. Senhor. Tem mais alguma? — disse Kris.
— Ah, essa também, por favor — falei, entregando a ela três Anéis de Segurança descarregados.
Kris fez uma careta ao vê-los.
— Ugh. Senhor. M-Mais desses sugadores de mana? Quando você usou esses?!
Apenas soltei uma risada vazia. Depois que Franz terminou de falar comigo, acabei batendo a cabeça ao sair do quarto dele. Bati três vezes, então usei três Anéis de Segurança! Senhor!
— Agora é hora de ficarmos sérios — falei para ela. — Precisamos dar o nosso melhor nisso. Conto com você lá fora, Kris.
— Hmph! Mas é claro que conta! Senhor! Mas que fique bem claro que não estou aqui pelo seu bem! Só estou aqui porque não posso desobedecer uma ordem da Lapis! Senhor!
— Aham, tá bom.
Pensando bem, Telm estava aqui por ordem do Inferno Abissal, e Sitri tinha me confiado o Sir Matadinho. Percebi que a única pessoa que realmente estava aqui por vontade própria era Kechachakka. Agora me senti mal por ter escolhido ele só porque o nome era esquisito. Ele parecia bem forte e me passava a impressão de ser alguém em quem eu poderia confiar.
Isso mesmo. Preciso avisar Telm e os outros que fomos realocados para o lado do imperador.
Eu tinha certeza de que os efeitos acumulados do meu azar e da maldição do imperador fariam do dia seguinte um verdadeiro inferno. Mas minhas mãos estavam atadas. Resignado ao meu destino, soltei um bocejo, mesmo sem estar com sono. O trabalho infernal de escolta havia começado de verdade.
***
O homem já havia aceitado vários trabalhos ao longo da vida, mas nenhum tinha se desenrolado como esse. O que quer que estivesse acontecendo, parecia algo muito além de sua compreensão. Primeiro veio a horda de monstros. Depois, os cadáveres dos dragões, provavelmente dragões que haviam sido invocados pela Relíquia daquele homem. Normalmente, qualquer um desses eventos já seria o suficiente para cancelar a operação.
No entanto, esses acontecimentos estavam funcionando a favor do homem, muito mais do que ele poderia ter esperado. Até agora, a guarda imperial havia formado um círculo fechado ao redor do imperador. Em nenhuma circunstância o homem acreditava que um trabalho tão importante seria confiado a mais alguém. E, no entanto, de alguma forma, eles estariam trocando de lugar com a guarda imperial.
O homem acabara de ser informado de que ajudaria a proteger o imperador. Nem ele conseguiu manter a calma diante de circunstâncias tão desconcertantes. Quando ouviu a notícia pela primeira vez, teve dificuldade em acreditar no que estava escutando. O comportamento do Mil Truques era enigmático. Ele abandonou seu dever, foi para algum lugar e nem sequer tentou dar uma desculpa. Tudo isso eram atitudes que nenhum caçador deveria tomar.
O homem estava certo de que seriam dispensados. Afinal, eram forasteiros, e agora seu líder havia feito algo que normalmente destruiria sua credibilidade. Não era algo que ele admitiria, mas, por um momento, sentiu um certo alívio. Pensou que finalmente poderia se retirar desse trabalho. Mas o resultado foi exatamente o oposto do que esperava.
Debaixo do capuz, o homem franziu a testa. Será que o Mil Truques era algum tipo de idiota? Depois de observá-lo, o homem jamais o consideraria uma ameaça, se não fosse pelos rumores sobre seus supostos artifícios sobre-humanos.
Se eles estivessem ao lado do imperador, o homem nem precisaria de Relíquias para assassiná-lo. Mesmo que o círculo ao redor dele fosse sólido como pedra, eles não poderiam se defender de um ataque vindo de dentro de suas próprias fileiras. Tirar a vida do imperador e fugir não estava fora do alcance do homem. Afinal, ele era um especialista em feitiços feitos para assassinatos.
Os Mil Truques ainda não haviam descoberto a identidade do homem. Enquanto isso permanecesse assim, ele tinha uma chance de matar o imperador e escapar antes que alguém percebesse o que havia acontecido. Havia apenas um problema: Sir Matadinho. Aquele sujeito era o único membro da equipe capaz de combate corpo a corpo e estava envolto em mistério.
O homem conhecia os nomes de praticamente todos os caçadores famosos, mas nunca ouvira falar de um tal “Sir Matadinho Versão Alpha”. Mas esse nome provavelmente era apenas um pseudônimo. O problema maior era que ele era forte o suficiente para derrubar dragões gélidos com facilidade.
Após conjurar uma magia, havia um pequeno atraso antes que outro feitiço pudesse ser lançado. Mesmo nesse curto intervalo, um guerreiro habilidoso poderia atacar várias vezes. O homem sabia que o imperador estava usando um Anel de Segurança, o que significava que seriam necessários dois golpes para matá-lo. Um ataque era possível, mas desferir um segundo seria praticamente impossível com Sir Matadinho por perto.
Enquanto o homem analisava a situação, ouviu-se uma pequena batida na porta. Ela se abriu antes que ele pudesse dizer qualquer coisa. Quem entrou foi um velho mago com postura impecável. Seu cabelo grisalho estava penteado para trás e, no lugar de um cajado mágico, ele usava pulseiras encantadas em cada pulso. Era Telm Apoclys, a Cascata Contrária.
A magia da água muitas vezes era menosprezada como algo mundano, mas ele a dominava no mais alto nível. Suas habilidades com magia aquática eram inigualáveis, até mesmo na capital imperial. Alguns diziam que ele era tão poderoso quanto o Inferno Abissal. Mas ele parecia diferente do habitual. Estava sério.
Telm verificou os arredores antes de falar em voz baixa.
— Kecha, isso é urgente. Há uma possibilidade de que os Mil Truques sejam membros da Raposa.
O homem, Kechachakka Munk, foi completamente pego de surpresa por essa afirmação. Seus olhos se arregalaram, e ele sentiu como se tivesse sido atingido por um raio.
— Hee hee? — ele disse em uma voz baixa.
— Você acha surpreendente? Sei que o que estou dizendo soa ridículo. Mas não consigo encontrar outra explicação para o comportamento estranho dele e para as circunstâncias atuais.
O olhar de Telm deixava claro que ele estava falando muito sério.
— Aquele sujeito que ele trouxe, Sir Matadinho, provavelmente também é da Raposa — continuou o mago da água. — Devíamos ter percebido isso antes. Era tão óbvio que deixou passar bem debaixo dos nossos narizes. Não há nada de natural em alguém que avança contra uma horda de monstros gritando “Matar, matar!”.
Kechachakka não sabia o que dizer.
— Lembre-se, os Grieving Souls dizimaram a Serpente, a arquirrival da Raposa. Você entende o que isso significa?
Precisamos mudar os planos.
***
Existiam diversos perigos que se tornaram algo como lendas urbanas.
Havia o esquivo fantasma felino, que parecia estar em todos os lugares e em nenhum ao mesmo tempo; o Tirano das Estrelas, que atacava de além dos limites do céu, um domínio onde nenhuma criatura poderia ser carregada por asas; a sociedade secreta que atacava caminhantes desavisados; o homem que espalhava má sorte apenas por existir.
Outra dessas lendas era um cofre do tesouro errante. Não tinha um nível designado porque estava sempre em movimento, raramente encontrado, e aqueles que o encontravam raramente voltavam vivos. Era chamado de Pousada Peregrina. Não apenas possuía poderes semelhantes aos de um deus, como também desafiava toda a lógica comum.
Se eu parecia não estar familiarizado com o conceito de vigilância, era por causa do meu encontro com esse cofre do tesouro. Limpá-lo estava além de nossas forças. Seu mestre possuía um poder tremendo, e na época ainda éramos novatos na caça. Não, isso não importa. Mesmo se enfrentássemos esse cofre agora, com nosso poder atual, ainda seria inútil.
Aquele fantasma—aquele amálgama de mana materializado no cofre errante—tinha a forma de uma raposa.
Quando o sol estava se pondo no horizonte, chegamos ao nosso ponto de parada para o dia. Nosso primeiro dia ao lado do imperador havia transcorrido sem problemas. Não houve monstros, bandidos ou dragões. Até mesmo Franz parecia aliviado.
— Fomos agraciados com um dia de completo nada, senhor.
— Será que somamos dois negativos e obtivemos um positivo? — eu me perguntei, completamente relaxado.
— N-Não, é que tivemos dois dias anormais! — disse Kris, com a voz trêmula. — Ontem enfrentamos dez vezes mais monstros do que guardas, senhor!
— A Starlight pode aceitar missões de escolta?
— Vou te socar.
Por um lado, eles sempre desprezam os humanos. Por outro, são todos belos. Talvez haja gente que os contrate.
Franz enviou um mensageiro para resolver uma pequena tarefa e então se virou para nós.
— Hmm. Hoje nada aconteceu — disse ele, me lançando um olhar severo. — E nada foi provocado.
— Ainda nem chegamos na metade do caminho — respondi com um olhar sério. — A complacência mata. É quando você se sente mais seguro que está mais vulnerável.
— Eu já sabia disso — resmungou ele.
Suspirei e olhei ao redor da cidade. Era pequena, mas desenvolvida. Mesmo em Zebrudia, nem todos os lugares eram necessariamente prósperos. Me perguntei se alguém havia escolhido deliberadamente uma rota que passasse pelas áreas mais favorecidas. Então comecei a pensar se alguém poderia ter usado esse padrão para deduzir nosso caminho. Alguém poderia descobrir a rota da caravana sem precisar de um espião. Não era algo comum para mim, mas pensei seriamente nisso.
Foi então que percebi algo. Vi uma placa com o nome da cidade. O nome me parecia familiar, e eventualmente me lembrei de onde o conhecia. Era uma cidade famosa entre os apreciadores por sua produção de nozes amiuz.
Amiuz eram um tipo único de noz. Uma característica peculiar delas as tornava impopulares entre os caçadores, mas eu adorava bolo de amiuz. Elas eram difíceis de encontrar na capital imperial, então fazia um tempo que eu não comia nenhuma. Agora que estava em uma cidade famosa por elas, queria aproveitar a oportunidade para me esbaldar um pouco.
Já havíamos chegado à cidade, e a Contra Cascata e Sir Matadinho podiam proteger o imperador. Kechachakka também. Kris… bem, decidi levá-la comigo como minha proteção.
— Franz, tudo bem se eu sair por um instante? — perguntei em um tom animado.
— Hm? Tem algo que precisa fazer?
— Digamos que é um pequeno recado. Não vou demorar. Além disso, Telm e Kechachakka estão aqui, você pode contar com eles.
Eu tinha bastante dinheiro para gastar. Eva e Sitri haviam garantido isso. Franz fez uma careta para mim, mas no fim soltou um suspiro.
— Ah, tudo bem. Mas seja rápido.
— Pode deixar. E obrigado.
— E faça algo sobre essa roupa desleixada!
Não há nada que eu possa fazer. Perdoe-me.
Perfeitamente confortável, levei Kris e saí para a cidade.
***
Kechachakka o observava atentamente. Com aquela Espírito Nobre sisuda ao seu lado, Kris era o nome dela, o Mil Truques partiu para algum lugar, ainda vestindo aquele traje irreverente. Kechachakka queria segui-lo, mas perseguir um caçador de Nível 8 estava além das habilidades da maioria dos Magos.
Hoje, Kechachakka havia decidido não organizar nenhum ataque. Sentia que era necessário parar e observar a situação. A ideia de que o Mil Truques era um Raposo parecia absurda a princípio, mas isso não era brincadeira. Na verdade, se ele fosse um Raposo, isso ajudaria a explicar seu comportamento de outro modo incompreensível.
— Hee hee — ele riu em voz baixa, com um sorriso no rosto.
A Raposa Sombria de Nove Caudas, também conhecida apenas como “Raposa”, era uma organização construída sobre sigilo absoluto. Kechachakka era um caçador, mas também eliminava os inimigos da Raposa. No entanto, mesmo um membro como ele sabia muito pouco sobre a organização a que servia. Ele não sabia onde ficava a base, o tamanho do grupo, o que os outros membros faziam, e certamente não conhecia os rostos de seus superiores.
O posto de um Raposo era simbolizado por suas caudas. Kechachakka tinha a quinta cauda. As regras da organização estabeleciam que Raposas podiam conhecer aqueles de um posto inferior, mas não os de um posto superior. Por exemplo, Kechachakka sabia sobre os membros das primeiras cinco caudas, mas não sabia nada sobre aqueles da sexta à nona cauda.
Nesta missão, Kechachakka havia sido contatado por um membro de posto mais alto. Naturalmente, Kechachakka lhe passava seus relatórios, mas esse membro os transmitia a uma Raposa de posto ainda mais elevado.
O Mil Truques havia evitado todas as armadilhas que Kechachakka armara até agora. No início, os mercenários que ele contratou nem sequer apareceram. Mas se o Mil Truques soubesse sobre os mercenários, então detê-los teria sido fácil para ele. Talvez aquela farsa nos portões da capital tivesse sido apenas para ganhar tempo e poder chamá-los de volta.
Isso também explicaria por que tudo estava contrariando as expectativas de Kechachakka e, ainda assim, funcionando a seu favor. Tudo estava sendo orquestrado pelo Mil Truques. A horda de monstros e dragões havia sido exterminada (muito provavelmente por ele mesmo). Era possível que tudo fizesse parte de uma artimanha sobre-humana para ganhar a confiança do imperador. E era muito mais fácil acreditar que isso tudo havia sido tramado pelo Mil Truques do que acreditar que foi mera coincidência o fato de Kechachakka ter sido envolvido nesta missão.
Mas se esse fosse o caso, então que homem assustadoramente astuto ele era. A ideia sequer havia passado pela cabeça de Kechachakka até Telm mencioná-la. Afinal, o comportamento do Mil Truques era nada menos que patético.
Ele usava aquela roupa ridícula que em nada indicava que era um escolta do imperador. Ele destruiu seu Tapete Voador e atrasou a partida. Ele sumiu sem avisar ninguém. Aquele homem não mostrava nenhuma consideração por sua própria vida. Seus métodos eram impensáveis para um assassino cauteloso como Kechachakka. Ele se perguntava: seriam todos os membros de posto mais alto da Raposa assim?
Ainda assim, Kechachakka estava tomado pela incerteza. O Mil Truques era tão natural, tão irreverente. Havia uma grande chance de que ele fosse uma Raposa, e se isso fosse verdade, o imperador já estava morto. A missão logo chegaria ao fim.
E se a suposição de Telm estivesse errada? Quem era realmente um aliado e quem era um inimigo? Telm suspeitava que Sir Matadinho era um dos seus, mas e Kris? Além disso, o Mil Truques era um caçador renomado; isso era um grande trunfo para uma Raposa, caso ele realmente fosse uma. Descartar essa reputação ao assassinar o imperador era realmente uma decisão inteligente? Kechachakka parou no meio do caminho, chamando a atenção dos cavaleiros.
Seja como for, Telm disse que confirmaria a verdade com o Mil Truques. Poderiam esperar até então para agir.
— Heh. He he — Kechachakka riu enquanto entrava na estalagem.
***
— Então você só queria fazer compras?! — Kris exclamou, cruzando os braços. — Nenhuma palavra pode expressar minha decepção! Senhor!
Eu, no entanto, estava satisfeito; tinha conseguido o que queria.
— Vamos, Kris, você só vai se cansar se não relaxar um pouco.
— Me arrependo de minha cautela! Senhor! Leve este trabalho a sério!
Mesmo depois de voltarmos à estalagem, a fúria de Kris continuava em alta. De certo modo, isso me tranquilizava. Eu era mais velho que ela, mas sua bronca ao estilo da Lucia me fazia sentir como se fosse o mais jovem.
— Sério, você não devia ficar tão tensa assim — falei para ela. — Os melhores caçadores sabem quando relaxar, para que possam lutar com toda a energia quando for preciso.
— E isso vindo de alguém que só relaxa!
Aposto que ela estava tão irritada porque nunca comia nada doce. Peguei o grande saco de nozes amiuz que tinha acabado de comprar e joguei algumas na boca. Eram viciantes. Tinham uma doçura sutil, mas distinta, e mesmo sem serem torradas, possuíam um aroma forte. Além disso, tinham uma textura crocante bem agradável.
Enquanto aproveitava as nozes, estava prestes a oferecer algumas para Kris, mas então me contive. As nozes amiuz tinham um efeito colateral: dificultavam o controle de mana. Comer essas nozes impedia temporariamente alguém de lançar feitiços e carregar Relíquias. Não tornavam isso impossível, apenas doloroso. Era por isso que caçadores nunca comiam nozes amiuz.
Mas isso não era um problema para mim, então continuei mastigando.
Irritada, Kris enfiou a mão no saco. — Pelo menos compartilhe. Senhor. — Antes que eu pudesse detê-la, ela encheu as bochechas com as nozes. Seus olhos se arregalaram. — Mmm. Vocês, humanos, fazem petiscos decentes. Senhor.
Bem, talvez não tenha problema. Não tenho nenhuma Relíquia para carregar hoje à noite.
Cedi e entreguei as nozes para Kris. Só fiquei preocupado se ela não deixaria espaço para o jantar.
— Nada mal. Senhor — disse ela. — Acho que reconheço esse sabor. Mas de onde— URK?!
Kris segurou o peito e se curvou. Suor escorria de sua testa e lágrimas brotavam de seus olhos.
— Urgh. O-o que você me deu? Minha circulação de mana, ela…
— E-essas eram nozes amiuz.
— O quê?! Ack!
Kris fechou os olhos com força e começou a tremer. Acho que ela nem tinha força para reclamar. Seu braço esquerdo bateu fraco contra meus joelhos. Mas não achei que ela fosse morrer nem nada. Se essas nozes fossem venenosas para o povo dela, ela provavelmente teria feito um escândalo maior.
Parece que essas nozes não fazem bem para Espíritos Nobres. Agora que penso nisso, Lucia teve uma reação semelhante quando comeu amiuz há muito tempo. Além disso, eu não te alimentei. Você que pegou as nozes da minha sacola.
Então, ouvi uma batida na porta e a voz de Telm.
— Mil Truques, quero conversar.
De certa forma, era um péssimo momento, mas pensei que talvez ele usasse magia para criar um pouco de água para Kris beber. Abri a porta, e entraram Telm e nosso duvidoso aliado, Kechachakka. Ambos pareciam muito sérios.
Telm e Kechachakka formavam uma dupla estranha. Ambos eram Magos, mas um Mago ortodoxo como Telm parecia ser o oposto de alguém como Kechachakka. Porém, mesmo sem ter pensado muito ao escolhê-los para a equipe, acabaram se revelando aliados excelentes.
Mas ainda precisava conquistar o favor deles. Afinal, poderiam surgir mais dragões no horizonte.
Os olhos de Telm se arregalaram ao ver Kris. — O que aconteceu com ela?
— Hm? Ah, ela? Apenas um pequeno acidente. Nada com que se preocupar.
Ela era uma orgulhosa Espírito Nobre. Nunca permitiria que soubessem que comeu nozes amiuz por conta própria e acabou com uma dor de estômago.
— É como o humano fracote disse — ela gemeu, lançando-me um olhar venenoso. — Não se preocupem com isso.
Ela ainda conseguia bancar a durona, o que tomei como um sinal de que provavelmente ficaria bem. Mas que vidas tristes os Magos deviam ter se não podiam comer nozes amiuz.
Coloquei um sorriso despreocupado no rosto. — Isso é sobre os turnos de escolta? — perguntei antes que fizessem mais perguntas sobre Kris. — Eu esperava que pudéssemos continuar conforme o planejado, com vocês dois fazendo dupla. A guarda imperial está fazendo um bom trabalho, mas não sei se podemos deixar tudo nas mãos deles.
A decisão de emparelhar Telm e Kechachakka foi resultado do meu julgamento bem equilibrado. Primeiro, achei que não conseguiria aprender a me comunicar com Kechachakka durante essa missão. Também não queria colocá-lo com Sir Matadinho, em quem ainda não confiava. E Kris era ainda pior na comunicação do que eu. Por eliminação, Kechachakka ficou com Telm. Um efeito colateral infeliz do método do “joga na parede e vê se gruda”.
— Certo, quer um pouco?
Telm fez uma careta ao ler as letras impressas no saco que estendi para ele.
— Nozes amiuz dificultam a manipulação da mana — disse ele com uma voz sombria. — Não é algo que um Mago em uma missão de escolta deveria comer.
— É, uhum.
Ainda segurando o peito, Kris me lançou um olhar rancoroso. Mas eu não era um Mago, então continuei me deliciando com as nozes amiuz. Um usuário de Relíquias não precisava de mana.
Algo que Sitri disse uma vez foi: “Se você realmente tentar, pode superar o impedimento de mana causado pelas nozes amiuz. Nesse sentido, pode usá-las para treinar sua resistência.” Lucia apoiava essa ideia. Eu só gostava delas porque eram saborosas.
— Então, se não é sobre os turnos, do que se trata? — perguntei.
Será que tinham vindo me dizer que se recusavam a seguir um líder como eu? Se fosse o caso, eu estava totalmente disposto a passar o chapéu para um deles.
Telm fez uma expressão grave e sussurrou para mim, quase como se estivesse discutindo um segredo. — Mil Truques? Você tem um rabo, não tem?
Olhei para ele chocado. — Hã? — balbuciei.
Telm, no entanto, estava completamente sério.
Ridículo. Impossível. Ninguém deveria saber disso. Onde diabos ouviram isso?
As únicas pessoas que sabiam sobre meu rabo eram os outros membros dos Grieving Souls, e duvido que algum deles teria espalhado isso. Mas Telm parecia certo do que dizia. Provavelmente não foi um erro de fala.
Normalmente, um humano nunca teria um rabo, e não havia como convencê-los de que estavam enganados. O proverbial gato não poderia ficar no saco para sempre. Talvez eu tenha ficado bêbado e deixado escapar alguma coisa em algum momento. Mas, seja como for, isso era um problema. Eu queria manter o rabo em segredo.
— Desculpe, Kris, mas pode sair um pouco? Precisamos discutir algo importante.
Kris parecia confusa. Eu me sentia mal por expulsá-la quando estava com tanta dor, mas não queria que ela soubesse disso. Em um mundo perfeito, Telm ou Kechachakka também não saberiam.
— Hã? — ela disse. — O que é—urgh.
— Desculpe, mas isso é um assunto muito delicado. Lembre-se, estou no comando por enquanto. E não vou demorar.
— Ugh. Vou contar para a Lucia sobre isso.
Kris rastejou para fora como uma lagarta.
Vou ter que oferecer algo além de nozes de amiuz para compensar.
Respirei fundo e olhei para os dois Magos à minha frente.
O rabo. Para ser mais preciso, não era exatamente um rabo, e sim um aglomerado de mana viva. Meu encontro com o Peregrine Lodge terminou com minha total rendição, mas isso não significava que saí de mãos vazias. Peguei uma coisa comigo. Na verdade, não peguei, foi enfiado em mim.
Era um rabo. O décimo terceiro e último rabo da raposa aberrante. Era a prova de que eu havia entrado e sobrevivido ao Peregrine Lodge. Mesmo depois de anos desde que foi cortado daquela fera, ele não estava nem um pouco mais próximo de se dissipar do que no dia em que o obtive.
Chamávamos esse rabo de “Último Rabo do Deus Raposa”.
***
Kechachakka não tinha dúvidas—o Mil Truques era uma Raposa. Perguntaram a ele sobre a presença de seu rabo, o sinal usado para reconhecer outros membros. Era raramente utilizado, mas, se uma Raposa acreditasse ter encontrado um membro de nível superior, poderia usar o sinal para confirmar suas suspeitas. As Raposas, é claro, já sabiam quem estava abaixo delas.
Depois de expulsar Kris, o Mil Truques ergueu as mãos em rendição.
— Não sei onde você aprendeu isso, mas, por minha causa, espero que não saia espalhando por aí — disse ele com um sorriso.
— Achou que isso passaria despercebido? — Telm perguntou. — Você foi conspícuo demais.
Telm Apoclys era um homem temível. Com força e prudência, conquistou seu nível sem sombra de dúvida. Sua magia estava entre as mais impressionantes que Kechachakka já testemunhara. Mesmo um Xamã de primeira categoria como ele não poderia rivalizar com a Contra-Cascata.
Telm concentrou a mana circulando por seu corpo. Ele estava se preparando para atacar. Superficialmente, parecia relaxado, mas, como um colega Mago, Kechachakka podia sentir sua mana se alterando e sua fúria crescendo.
No entanto, mesmo estando em perigo, o Mil Truques parecia ainda mais descontraído do que Telm. Ele quase parecia nem entender o que estava acontecendo.
— Aah. Droga. Fiz algo chamativo? — perguntou.
— Você admite ser uma Raposa? — Telm disse.
— Hã? Raposa? Não, como pode ver, sou humano.
O Mil Truques havia dado a resposta correta ao sinal. Que atuação brilhante. Mesmo com todas as provas diante dele, Kechachakka ainda lutava para enxergar aquele homem como algo além de um civil inofensivo. Ele observou enquanto um sorriso incômodo se formava nos lábios do homem.
Em um tom baixo, Telm continuou seu interrogatório.
— Qual é o seu rabo?
— Hã? Ah, o décimo terceiro, acho.
Os olhos de Kechachakka quase saltaram das órbitas. Finalmente, Telm não conseguiu manter a expressão neutra. O mais alto escalão das Raposas era o nono rabo. Não existia um décimo terceiro. Kechachakka ficou tomado pela confusão, mas Telm insistiu.
— Isso é absurdo. Só existem nove rabos — disse ele em um tom grave.
— Hã? Ah. Mais foram crescendo, sabe. São o resultado de poder acumulado e tal. Ah, não percebi que você não sabia disso.
Se ele estivesse dizendo a verdade, então estavam astronomicamente superados por esse jovem de vinte anos à sua frente. Ele não parecia estar mentindo, e não havia qualquer notícia de que o sinal tivesse vazado.
Kechachakka já suspeitava disso, mas ter suas suspeitas confirmadas o deixou aterrorizado. Que tipo de talento e genialidade eram necessários para alcançar o topo das Raposas de Nove Caudas com uma idade tão jovem? Subir tão alto nos escalões de uma organização tão secreta devia ser muito mais difícil do que alcançar o Nível 8.
— Kris está envolvida nisso?
— Não, isso não tem nada a ver com ela.
— Hmm. Bom, então, poderia nos mostrar seu rabo? — Telm perguntou. A Contra-Cascata era do sétimo rabo, abaixo do Mil Truques, mas ele disse isso sem hesitar.
O Mil Truques piscou e então deu uma risada desajeitada.
— Desculpe, não posso mostrar agora.
Essa era a resposta correta.
— Minha irmãzinha está cuidando dele para mim.
Irmãzinha?
***
Que troca estranha e incompreensível essa foi.
— Conte-nos seu plano — Telm exigiu.
Acho que ele estava pronto para seguir em frente em relação ao rabo. Eu estava me perguntando se isso tinha algo a ver com a Raposa que Telm havia atacado outro dia. Quaisquer que fossem suas razões, aprendi que Telm também possuía um rabo. O sétimo, aparentemente. Decidi não insistir nisso. Se me deram um rabo, então não havia nada de estranho em outra pessoa ter um. E, pelo visto, esses rabos eram bem úteis para Magos como ele.
Mas se Telm disse que só existiam nove rabos, então ele deve ter conseguido o dele antes de nós. Mas isso levantava outra questão: qual era a idade desse cara? Eu tinha quase certeza de que aquela raposa aberrante disse que haviam crescido seu décimo terceiro rabo cerca de cem anos atrás.
— Não mudou nada desde antes — eu disse. — As divisões permanecerão as mesmas e seguiremos as ordens de Franz.
— O Sir Matadinho pode ser confiável?
Telm parecia sério. Ele vinha escondendo isso, mas, pelo visto, Sir Matadinho estava incomodando ele.
— Aquele lá? Sir Matadinho é bem suspeito, mas tudo bem. Eu tenho o controle da situação.
Agora, onde foi parar aquele controle?
Bem, eu não precisava disso. Imaginei que Matadinho ficaria bem no Modo de Ação Autônoma se Sitri confiava em mim para deixá-lo assim.
— Não há necessidade de se preocupar — continuei. — Não acho que nada vá acontecer tão cedo.
Ouvi Kechachakka soltando uma risada.
— Se tivermos algum problema, será depois que tomarmos os céus.
— Hm. — Telm assentiu. — Muito bem.
Agora que eu sabia que ele também tinha uma sombra o seguindo, acho que me senti um pouco mais próximo do velho Magus. Comecei a pensar que talvez, se me tornasse amigo dele, ele poderia amenizar o rancor que aquela mulher piromaníaca tinha contra mim. Mas talvez isso fosse só um pensamento esperançoso.
— Você me mostrou uma magia extraordinária antes. Vou deixar as lutas para você — falei para Telm. — Você provavelmente é até mais forte que o Inferno Abissal.
— Rose não tem sutileza, mas simplesmente nos destacamos em aspectos diferentes.
— E você também não é nada mal, Kechachakka — acrescentei, tentando parecer o mais durão possível. — Vou contar com você lá fora. Aquilo são maldições, certo? Pode soltar todas que quiser.
Kechachakka assentiu vigorosamente. Parecia ser um sujeito melhor do que sua aparência sugeria. Gostaria que Liz e alguns dos meus outros amigos fossem tão cooperativos quanto ele.
— Não se preocupe — falei. — Somos os melhores que existem. Um trabalho como esse não deve ser problema para nós. Vamos detonar.
Assenti e, empolgado, joguei os braços para o alto.
Já fazia quase cinco anos desde que comecei nesse ofício perigoso de caçador de tesouros. Superar uma ampla variedade de desafios me ensinou que o que um caçador mais precisa são companheiros, aqueles em quem você pode confiar e depositar sua fé.
Depois de criar um vínculo mais forte com Telm e Kechachakka, os dias seguintes passaram tão tranquilamente que comecei a me perguntar se alguém, em algum lugar, não estava cometendo um erro. Talvez minha sorte negativa realmente tivesse se somado à má sorte do imperador e o resultado fosse algo positivo.
Depois do nosso fortalecimento como grupo, o Espaguete Abissal (como eu nos chamei) operava perfeitamente. Se algum monstro se aproximava, era eliminado num instante. Do meu ponto de vista, nosso time era impecável. Eu ficava perto da carruagem fingindo ser a última linha de defesa, e o Espaguete Abissal era tão eficiente que realmente nos safávamos dessa maneira.
O mais digno de elogios era a magia de Kechacha… não, era Telm, o Contra-Cascata. Talvez fosse normal para alguém do calibre dele, mas vê-lo de perto me deixou claro o quão excepcional ele era. Isso ficou evidente depois de eu ter observado a variedade e diversidade da magia de Lucia.
Não era a força dele que me deixava boquiaberto, era o fato de que—comparado a Lucia—ele era silencioso. Telm conseguia conjurar feitiços quase instantaneamente. Tive a impressão de que suas pulseiras ajudavam nisso, mas ainda assim era impressionante. Esse era, sem dúvidas, um talento útil e algo a ser louvado, mas quanto mais eu via, mais aquilo me assustava.
Não que ele parecesse do tipo que faria algo assim, mas ele poderia facilmente assassinar o imperador se quisesse. Não havia ninguém são em toda a Maldição Oculta?! Ele era poderoso, mas, ao contrário da piromaníaca, não era impulsivo.
Não tivemos problemas para seguir nosso cronograma, e amanhã chegaríamos à cidade onde pegaríamos um aerobarco. Fui para o meu quarto na estalagem. O dia passou sem que eu fizesse nada em particular, mas ainda assim estava exausto. Com uma acomodação confortável e comida deliciosa, eu me sentia meio que de férias. Mas não importava o quão confortável eu estivesse, não dava para evitar a fadiga, que era um fato básico da vida.
O pior era que, sem a sempre confiável Sitri por perto, eu mesmo precisava responder a qualquer chamado. Queria deixar Telm encarregado de tudo, mas se eu o sobrecarregasse, não dava para saber o que o Inferno Abissal teria a dizer sobre isso.
Suspirei, destranquei a porta e entrei no quarto. Sou do tipo que gosta de dar uma olhada geral no lugar antes de fazer qualquer coisa. Não era por razões de segurança nem nada, só um hábito meu. Abri o armário casualmente e Liz sorriu e acenou para mim lá de dentro. Movido pelo instinto, fechei a porta. Então respirei fundo.
Ultimamente, algumas estalagens têm uma decoração de gosto bem duvidoso.
No momento seguinte, a porta se escancarou e uma garota de cabelo rosa e pele bronzeada saltou para fora. Rindo o tempo todo, Liz me derrubou na cama enquanto eu tentava, sem sucesso, entender o que estava acontecendo. Senti meu corpo afundar no colchão macio.
— P-Por que você está aqui? — consegui perguntar.
— Achei que você poderia estar se sentindo sozinho! Então aqui estou eu! — disse ela, esfregando a cabeça contra o meu peito.
Em outras palavras, ela não tinha motivo nenhum. Ainda assim, eu não iria reclamar.
— Fico feliz em te ver, mas você não deveria estar aqui — falei, passando a mão suavemente pelo cabelo dela.
Ainda não tinha compensado todas as minhas falhas anteriores, e Franz ainda não confiava em mim. Essa situação só ficaria pior se alguém me encontrasse com uma amiga que, supostamente, eu tinha deixado para trás. Não me entenda mal, eu realmente fiquei feliz em vê-la. Se ela tivesse vindo mais tarde na noite, eu até poderia dar atenção a ela, mas ainda tinha coisas a fazer e Liz só complicaria as coisas.
Liz, no entanto, não me ouviu e apenas se aconchegou contra mim como uma loba que não brincava com seu dono havia muito tempo. Seu cabelo cheirava bem, me fazendo pensar que ela tinha tomado banho antes de eu chegar.
Então, no pior momento possível, ouvi batidas na porta.
— Humano fraco! Saia daí. Quero acertar logo sua cobrança! Senhor! E depois, se eu puder pegar algumas daquelas nozes amiuz. Senhor.
O Tapete girou no ar, quase como se estivesse exasperado. Naquele momento, fiquei muito grato por ele não poder falar. Mas isso não mudava o fato de que Kris poderia nos ver. Ela não era do tipo que tentava — ou queria tentar — ler nas entrelinhas.
Empurrei Liz para longe de mim e me levantei, então agarrei um lençol e joguei sobre ela.
Quase no exato momento seguinte, a porta se escancarou antes que eu pudesse dizer qualquer coisa. Com uma expressão de desagrado, Kris entrou, deu um passo à frente e me viu junto ao amontoado contorcido de lençóis ao meu lado. Seus olhos se arregalaram, e ela engasgou de confusão.
— G-Entendido. Vou deixar isso com você — eu disse para Liz Lençol. — Agora, volte para onde pertence.
Felizmente, parecia que nosso breve contato tinha sido suficiente para satisfazê-la até certo ponto. Ela assentiu e, ainda se contorcendo de alguma maneira, dirigiu-se até a janela e a destrancou com as mãos cobertas pelo lençol. Sem dizer nada para Kris, pulou pela janela e flutuou para baixo. Estávamos no terceiro andar da estalagem, mas isso não era suficiente para machucar Liz.
Fechei a janela e me certifiquei de trancá-la bem. Respirando fundo, encarei Kris novamente e a vi parada como uma estátua.
— Desculpa, desculpa. Você mencionou algo sobre recarga? — perguntei, sorrindo como se absolutamente nada tivesse acontecido.
— O-O que foi isso? Senhor.
— Hoje foi um dia fácil, então só preciso recarregar o Tapete e minha camisa. Ah, e você mencionou as nozes de amiuz, certo? Mas tem certeza disso? Elas te afetam bastante.
Talvez eu não devesse ter contado a ela que podiam ser usadas para treinamento. Todo caçador tem um lado competitivo. Peguei o saco e me servi de alguns punhados. Talvez por estar internamente em pânico, não senti gosto de nada.
Kris marchou até mim e agarrou minha gola. Ela franziu a testa e me sacudiu para frente e para trás.
— Com licença?! Isso é uma piada às minhas custas?! Você realmente espera que eu caia nessa?! Senhor?! Estou perguntando o que foi aquilo, então desembucha! Senhor!
— Aah. Ha ha ha. Foi um daqueles. Você não conhece? Aquilo era, uh, um espectro de lençol.
— M-Maldito! Você tentaria dar essa desculpa para o imperador?! Senhor?!
Você não está errada. Está perfeitamente—urk—certa. Não estou tentando te enganar, sinceramente. Só não há nada que eu possa dizer.
Enquanto me deixava ser sacudido, Telm e Kechachakka invadiram o quarto.
— Aconteceu alguma coisa?! — ele gritou. Ao ver Kris, sua expressão imediatamente se fechou e ele ergueu um braço.
— Telm, esse humano fraco estava conversando com um estranho! Senhor! — Kris exclamou em um tom agudo. — Ele definitivamente está aprontando alguma coisa e não quer nos contar!
Telm não respondeu.
— Somos membros do grupo dele por enquanto, então ele nos deve uma explicação! Senhor! — Kris continuou. — Se nada mais, ele não deveria agir por conta própria durante um trabalho de escolta!
Suas palavras doeram, porque ela estava completamente certa. Se fosse apenas ela, talvez eu considerasse dar uma explicação, mas eu não queria que Telm e Kechachakka soubessem sobre Liz.
Ah, o que eu faço?
Vermelha de raiva, Kris me soltou e contou a Telm e Kechachakka o que tinha visto. Durante todo o tempo, o Contracascata me olhava com desconfiança. Pode ter sido imaginação minha, mas Kechachakka parecia exasperado. Realmente não havia nada que eu pudesse dizer em minha defesa. Mas, ei, Kris era uma companheira de clã. Por que ela não estava me apoiando?
— Hm. Agora entendo — Telm disse assim que Kris terminou. — Isso foi, de fato, um, erm, espectro de lençol.
Eu não esperava esse tiro de cobertura de Telm. A expressão em seu rosto era algo que eu nunca tinha visto antes. Se eu tivesse que descrever, “desconfortável” seria a palavra.
Kris pareceu momentaneamente surpresa antes de ir para cima de Telm.
— O quê?! Você está com a mente encharcada?! Senhor?! Como pode chegar a uma conclusão dessas?!
— A-Acalme-se, Kris. Eles são realmente raros, mas há histórias sobre tais espectros. Eu não vou negar a plausibilidade. Presumo que esteja de acordo, Kecha? Kecha?
— Hee. Hee hee hee. Hee hee.
Kechachakka assentiu lentamente com a cabeça para cima e para baixo, acompanhando a baboseira de Telm. Ele definitivamente era meu favorito entre todas as pessoas suspeitas, mas cooperativas, que eu conhecia.
— O que há com vocês três?! — Kris bateu o pé no chão, e lágrimas se formaram no canto de seus olhos finamente moldados. — Estou sendo ridicularizada?! Vocês realmente acham que um espectro de lençol raro apareceria em uma estalagem de luxo?! Se acham, então tentem contar isso para Franz! Senhor!
— N-Não estamos mentindo para você. Não é verdade, Mil Truques?
— Erm, não exatamente.
— Hã?!
Senti-me mal jogando Telm e Kechachakka debaixo do ônibus, mas não podia sustentar essa história. Se eu tentasse convencer Franz de que aquilo era um espectro de lençol, ele provavelmente me daria uma surra. Então cruzei os braços e assenti enquanto pensava em uma nova desculpa.
— A verdade é — eu disse — que era um elemental sob meu comando. Como precaução, ordenei que ele desse uma olhada na cidade.
— Um elemental?! — Kris me olhou com incredulidade parcial. — Você pode usar magia apesar de não ter mana, senhor?
Minha prioridade era apenas me afastar da história do espectro de lençol, então disse qualquer coisa que veio à mente.
— Desculpe por não ter sido honesto sobre isso, mas gosto de manter em segredo. Não sou um Magus, mas tenho alguns feitiços excêntricos à minha disposição.
Isso pelo menos deveria ser mais crível do que o espectro de lençol. Kris era — de acordo com Sitri — muito ingênua.
— Se isso for verdade, então que tipo de elemental era? — ela perguntou, com a voz muito mais calma do que antes.
— Uhh, um elemental de lençol?
Eu sabia que isso não ia funcionar. Claro que não funcionaria, não existia tal coisa como um elemental de lençol. Eu sabia que meu status de Nível 8 não funcionaria contra um Espírito Nobre, então simplesmente aceitei a derrota.
—Não acredito nem por um segu—
A voz estridente de Kris foi cortada por um chamado do lado de fora do quarto. Aquela voz pertencia a Franz. Kris fechou a boca, demonstrando que ainda tinha o bom senso de não discutir na frente do nosso empregador. Fiquei aliviado, como se tivesse sido salvo por intervenção divina.
Franz entrou no meu quarto com uma expressão péssima. Tão ruim que talvez me cortasse ao meio se eu começasse a falar sobre espectros de lençol ou elementais.
—Sua Majestade Imperial solicita sua presença — informou ele, sem rodeios. — Parece que ele quer falar com você. Imagino que não tenha problemas com isso?
Rodrick Atolm Zebrudia dispensa apresentações. Ele estava no auge do império Zebrudia e era o gênio por trás de sua prosperidade. Zebrudia era governada por uma monarquia absoluta, tornando qualquer caçador nada mais do que uma folha ao vento diante do poder do imperador.
À medida que o nível de um caçador de tesouros aumentava, era comum acabar interagindo com a nobreza. Algumas famílias, como os Rodin, apoiavam o imperador há muito tempo e tinham direito a audiências com ele. Eu, no entanto, era um covarde que tentava evitar qualquer contato com a nobreza a todo custo.
Quando Franz me chamou, senti um frio no estômago. Já tinha experiência em interações com figurões, como no Encontro da Lâmina Branca, mas isso não significava que estivesse acostumado. Tentei recusar a ordem de Franz de forma humilde e indireta, mas ele me lançou um olhar que dizia que eu era um verme.
—Apenas venha logo — disse ele.
O que eu fiz dessa vez? Ah, talvez ele esteja bravo porque eu não fiz nada. Cara, essas nozes amiuz são muito boas.
—Certo — falei. — Mas vou levar minha equipe comigo. Tudo bem?
—Não. Sua Majestade Imperial convocou apenas você.
Era para eu fazer isso sozinho? Queriam que eu morresse? Não planejava cometer nenhum erro, mas a ideia de não ter ninguém para me apoiar caso eu pisasse na bola não me agradava.
Mantive minha posição. —Não. Não vou sem minha equipe.
—Não precisa proteger nossos sentimentos nem nada — disse Kris. — Agora vá. Senhor.
Não, não era isso.
Kris estava entendendo tudo errado. Eu não estava protegendo os sentimentos deles, eu queria que eles sofressem junto comigo. Além disso, se algo relacionado ao nosso trabalho surgisse, Telm era muito mais qualificado para tomar decisões.
—Eles são confiáveis — garanti a Franz. — Verifique se Sua Majestade Imperial permite isso.
—Exigências de um mero caçador? — resmungou Franz ao sair pisando forte.
Qualquer deslize de etiqueta que eu cometesse certamente seria ignorado se eu estivesse com Kechachakka e Kris. Havia claramente algo de estranho com o primeiro, e a segunda não tinha o menor respeito pelo título de imperador.
—Por que você simplesmente não coopera? — perguntou Kris, exasperada. — A única coisa que tem nível 8 em você é sua audácia. Senhor.
Ela era a última pessoa que podia me dar sermão sobre cooperação. E minha audácia era completamente mediana.
Dei de ombros. Palavras eram baratas, então apenas disse: —Acredito em falar o que acho certo, independentemente de com quem estou falando, e foi isso que fiz. Um mestre de clã precisa se manter fiel ao que acredita.
A irritação de Franz era evidente. Ele estava nos guiando — minha equipe e eu, claro — até a suíte do imperador.
—Hmm. Mesmo entre as nações humanas, é preciso alguém magnânimo para liderar um império tão vasto como Zebrudia — comentou Kris.
—Mas que fique bem claro — alertou Franz —, se disserem algo impróprio, pagarão o preço.
—Hmph. Não deveria dizer isso para o fracote, e não para mim?
—Isso foi direcionado aos dois!
Ouvi Kechachakka soltando uma risadinha.
Sou o único que parece nervoso aqui. Esses caras não percebem que estamos indo ver o imperador? Isso passou despercebido por eles?
Eu estava com toda minha equipe, exceto Sir Matadinho, mas ainda me sentia incrivelmente isolado. Talvez pessoas competentes como eles não se deixassem intimidar tão facilmente.
Nos curvamos diante dos cavaleiros na porta e entramos assim que nos foi dada permissão. O imperador estava sentado, com uma expressão solene e orgulhosa, cercado por cavaleiros de rostos inexpressivos. Ele nos observou com um olhar penetrante. Sua postura austera fazia dele um soberano em toda a essência da palavra. Se eu usasse minhas famosas habilidades de bajulação diante dele, certamente daria uma bela cena.
Ao lado do imperador estava alguém de aparência bem diferente. Era a princesa imperial, que parecia extremamente nervosa.
O imperador olhou para Franz e depois para mim, antes de acenar com a cabeça.
—Obrigado, Franz — disse ele com uma voz clara. — E bem-vindos, bravos caçadores. Agradeço por aceitarem minha missão.
Essa recepção foi mais gentil do que eu esperava. Pelo visto, não fomos chamados para levar uma bronca. Corrigi minha postura, saindo da posição de pré-bajulação.
—Gostaria de aproveitar esta oportunidade para conversar com todos vocês — continuou o imperador. — Queria ter feito isso no primeiro dia da nossa viagem, mas as circunstâncias não permitiram.
—Não somos dignos de tamanha gentileza, Vossa Majestade Imperial — respondi.
Mas também não é como se eu quisesse falar com você.
Como estava tentando falar o mínimo possível, Franz pigarreou e tomou a palavra.
—A situação pode ter se acalmado por ora, mas ainda é difícil acreditar na quantidade de monstros que encontramos na estrada. Hoje enfrentamos nada menos que cinco grandes hordas de monstros. Não avistamos nenhuma Raposa desde o incidente do dragão glacial, mas Sua Majestade Imperial teme que isso possa ser um sinal de algo maior no horizonte.
Franz, do que diabos você está falando?
Claro, dragões eram anormais, mas cinco ataques em um dia era pouco. E nenhuma dessas hordas tinha mais de cem monstros, então eram hordas médias ou pequenas, não grandes.
Nenhum desses monstros era excepcionalmente forte, e as hordas não representavam problema algum, então era quase como se não tivéssemos encontrado nada. Claro, se eu estivesse sozinho, teria morrido num instante. Mas Franz era um nobre, então talvez ele não soubesse muito sobre o mundo real?
Eu era um adulto, então apenas sorri e disse:
— Não acho que isso seja motivo de preocupação. Eu não chamaria isso de um sinal de algo. Tudo até agora pode ser atribuído ao azar, e mesmo que vejamos dez vezes mais monstros amanhã, acho que estamos equipados para lidar com a ameaça.
Todos os cavaleiros se enrijeceram quando mencionei “dez vezes mais”. Isso podia soar como muito, mas realmente não era. Para um Magus de primeira linha como Telm, cem monstros não eram muito diferentes de um único monstro. Mas eu morreria na hora se tivesse que enfrentar tantos.
— Você é exatamente tão confiante quanto os rumores sugerem — disse o imperador.
— Tenho minha excelente equipe para agradecer por isso — respondi.
Lancei um olhar para os membros do grupo. Telm estava tranquilo, Kecha mantinha sua expressão habitual e Kris estava em silêncio, mas parecia um pouco exasperada. Nem precisava dizer, meu grupo era a única coisa sobre mim que poderia ser descrita como excelente.
— Certamente é mais do que isso — disse o imperador com um leve sorriso se formando nos lábios. — Não ouvi muito, mas há rumores. Pelo que entendo, sua luta contra os dragões gélidos não foi sua primeira contribuição para o império.
— Esses são realmente apenas rumores e nada mais. Não fiz nada.
Mesmo tentando refutar as insinuações, havia um brilho opaco nos olhos do imperador. Parecia que ele não acreditava em mim. Para ser justo, nos registros oficiais, uma parte das conquistas dos meus amigos parecia ser minha.
— Por exemplo, ouvi dizer que você transformou todo o Esquadrão de Ladinos Barrel em sapos recentemente. Isso é verdade?
— Er… Bem, não é mentira.
Eu não fiz nada naquela ocasião. Nem sequer sabia por que eles estavam atacando até que tudo estivesse resolvido.
— Essa não é uma resposta muito entusiasmada. Você se opõe aos rumores?
Como diabos eu deveria responder isso?
— Não — murmurei após alguma deliberação. — É só que o feitiço também afetou alguns caçadores. Isso nos causou um pouco de problema.
— O quê? Até caçadores foram afetados?
Em algum momento, todos estavam prestando atenção na nossa conversa. Até a filha do imperador parecia impressionada.
— Ahm… Isso mesmo — encolhi-me um pouco. — Claro, garantimos que eles voltassem às suas formas originais. O feitiço foi criado para não ser letal.
Disseram-me que Rhuda e os outros tinham sido tratados e que ninguém foi esquecido. Se tivessem sido, o Conde Gladis provavelmente já teria ouvido falar. Se ninguém estava reclamando, então provavelmente estava tudo bem.
O imperador, por sua vez, soltou uma gargalhada como se a história fosse hilária.
— Maravilhoso. Absolutamente maravilhoso, Mil Truques. Você é tão fascinante quanto os rumores sugeriam.
Gemidos internos. O que estão dizendo sobre mim agora? Que saco. Quando as histórias começam a ser exageradas, é difícil pará-las.
O imperador assentiu e então jogou uma bomba inesperada:
— Devo admitir que sempre quis testemunhar esses seus poderes lendários. Mostre-me como você manipula a magia para transformar alguém em um sapo.
Hã? Não, pera aí. Isso foi coisa da Lucia. Espera… As pessoas acham que fui eu?!
Kris parecia bastante divertida com meu desespero.
— Hmph, essa história é absurda, e nunca ouvi falar de um feitiço assim — ela disse. — Mas tenho certeza de que, se você consegue comandar um elemental de lençol, transformar alguém em um sapo não deve ser problema. Senhor.
— Fascinante. Por favor, mostre-me um vislumbre dos poderes de um Nível 8.
Eu ouvi Kechachakka rindo. O Tapete Delinquente estava batendo palmas, me incentivando. Eu era um homem sem aliados. Por que todos tinham tanta certeza de que eu conseguia lançar esse feitiço? Eu me recusava a acreditar que não conseguiam perceber o quão baixa era minha reserva de mana. Eu não tinha quase nada. Fazia tempo que eu não segurava nada mais pesado que um garfo. Estavam me sacaneando?
Olhem para eles. Já é tarde demais para dizer que não consigo fazer isso. Mas tenho que dizer. Sou o mestre das desculpas, e agora é hora de provar isso!
— Transformar pessoas em sapos é desumano — eu disse. — A situação anterior não deixou alternativa—
— Não me importo — o imperador interrompeu. — Agora faça. O feitiço pode ser desfeito, não pode?
Precisei de um momento para pensar em uma nova desculpa.
— Meu controle sobre o feitiço ainda é impreciso. O fato de que os caçadores também foram afetados é prova disso—
— Não me importo. Faça.
Rodrick parecia completamente sério. Ele realmente acreditava que eu podia transformar pessoas em sapos? Que piada. Mas senti vários olhares fixos em mim, então respirei fundo e fiz o que pude.
— B-Bem, se insiste — falei. — O feitiço só funciona sob circunstâncias ideais, e mesmo assim sua taxa de sucesso é de talvez dez por cento. Meu estômago não está muito bem, então não acho que terei sucesso. Sério, eu diria que há noventa e nove por cento de chance de falhar—
— Se seu estômago dói, deve ser por causa das nozes amiuz que você está devorando — Kris interveio. — Agora anda logo e faz isso. Senhor.
Não vejo mais o que posso fazer. Com tantas desculpas lançadas, ninguém pode me acusar de ser uma fraude, então vamos tentar.
Minha boca se curvou em um sorriso parcial e eu estalei os dedos, exatamente como Lucia faria.
— Kris, vire um sapo!
Não que isso vá fazer alguma coisa.
Eu não conseguia usar magia. Eu era geralmente inepto, mas magia era uma área na qual eu era excepcionalmente inepto. Tanto minha falta de mana quanto o Magus da minha cidade natal podiam atestar isso.
Ninguém disse nada. Nem Franz, nem o imperador, nem Kris.
— Absurdo — Telm sussurrou, com os olhos tão arregalados quanto podiam ficar. — Mil Truques, o que você fez?
Essa era exatamente a pergunta que eu me fazia. Eu sentia como se estivesse em um pesadelo.
Havia um sapo no lugar onde o imperador estava sentado. Havia um sapo onde Franz estava de pé. Havia um coro de coaxares no lugar onde a guarda imperial estava. A única pessoa que não havia sido afetada era uma mulher que parecia ser a principal Magus da guarda, que gritava em choque.
Virei-me e vi um sapo prateado onde Kris estava. Ela tremia, mas quando nossos olhos se encontraram, o pequeno sapo pulou na minha perna.
Eu estava tão confuso que dei a volta completa e fiquei calmo de novo.
Esses sapos… Não são as pererecas da última vez. São rãs-touro.

— Pelo menos Telm e Kechachakka estão bem — eu disse.
— Hee hee?! Hee hee?!
— Achei que você só tivesse comido nozes de amiuz! Isso não deveria ser possível! E quanto à sua mana?
Minha garganta estava seca. Tentei respirar fundo algumas vezes, e isso me ajudou a entender a situação.
Hã? Será que… meus talentos mágicos floresceram da noite para o dia?
Kris costumava me dizer que, por causa da Lucia ser minha irmã, eu poderia desenvolver algumas habilidades se me esforçasse um pouco (lembrando que Lucia não tem nenhum parentesco de sangue comigo). Será que as coisas finalmente estavam começando a mudar para melhor?
Ouvi a princesa sapo imperial coaxar. Se meus talentos haviam despertado, ainda era cedo demais para comemorar. Frog Franz e a guarda imperial dos sapos protestaram em coro. Somente o imperador dos sapos manteve sua dignidade solene. Sua forma anfíbia possuía uma pele dourada, um vestígio de sua antiga aparência humana.
Então esses são meus verdadeiros poderes, pensei, enquanto exibia um sorriso niilista, tentando evitar encarar a realidade diante de mim.
— Parece que sou o melhor dos dois irmãos — eu disse. — Mana não significa nada para um verdadeiro Magus.
(Total besteira, aliás.)
— Essa é a hora pra isso?! — a Magus da guarda imperial gaguejou. Ela parecia estar em pânico, o que era uma reação perfeitamente normal ao ver todos os seus companheiros transformados em sapos.
Mas o imperador não estava usando um Anel de Segurança? Eu tinha conseguido contornar isso? Dizem que há muito de verdade nas brincadeiras.
— Não falei? — eu disse. — Meu controle sobre o feitiço ainda é falho.
— Reverta isso! — a Magus gritou. — Reverta isso agora mesmo!
Que ideia genial. O único problema era que eu não tinha a menor ideia de como fazer isso.
— Uh, reverter! — gritei, mas nada aconteceu. Devia estar realmente em pânico, porque então ouvi uma alucinação auditiva.
— Isso é impossível!
Parecia a voz da Lucia.
A situação era sombria. Do jeito que as coisas estavam indo, eu ia acabar sendo acusado do crime sem precedentes de regicídio por feitiço de sapo. Tentei desesperadamente me lembrar de como desfizemos o feitiço da última vez.
— Ah, é mesmo — falei, batendo o punho na palma da mão. — Agora me lembrei. Só precisamos esmagá-los.
Com muito alvoroço, os sapos foram todos revertidos a humanos. Felizmente, parecia que o feitiço que eu lancei era o mesmo da Lucia. Talvez um único olhar tivesse sido o suficiente para que meus instintos processassem e aprendessem o feitiço. Se meus talentos mágicos finalmente haviam despertado, isso estava acontecendo rápido demais.
Depois de esmagar alguns sapos, Franz apontou um dedo furioso para mim. Seu rosto estava vermelho de raiva.
— Sua Majestade Imperial, eu não posso mais suportar a insolência desse homem! Ele precisa ser removido imediatamente! Mesmo sem ele, a guarda imperial e a Contra-Cascata são mais do que suficientes para protegê-lo!
— Oh, boa ideia — eu disse.
— C-cale a boca! O que você está tentando fazer?!
— Entendo sua raiva, Franz, mas acalme-se — o imperador tentou apaziguar.
Não, está tudo bem. Me mandem embora, eu não quero estar aqui mesmo. Olha só, até a Princesa Murina está com medo de mim.
— Esse homem transformou Vossa Majestade e a princesa imperial em sapos! — Franz protestou. — Ele insistiu que seria desrespeitoso se ele os esmagasse, e jogou a responsabilidade para mim, dizendo que tudo bem se fosse eu. Mas eu discordo totalmente!
— Você fez o que precisava ser feito, e fui eu quem ordenou que o Mil Truques lançasse o feitiço.
— Recuso-me a acreditar que essa era a única maneira! Esse homem está zombando do império!
— N-Não, não estou — rebati.
— Silêncio! Você nem está vestido apropriadamente para este trabalho!
Franz estava perdendo a cabeça. Mas por que ele tinha que tocar no assunto da minha camisa de novo? Ele parou bem na minha frente, olhando para mim de cima. Olhei para cima e vi uma veia saltada em sua testa.
— Assim que isso acabar e retornarmos à capital, farei com que você pague por isso! — ele rugiu.
— E-eu sinto muito que isso tenha acontecido. Mas eu avisei que não consigo controlar bem o feitiço.
— Quieto! Você não deveria ter sido capaz de usar magia depois de comer algo que impede a manipulação de mana!
Se eles entendiam isso e ainda assim me fizeram lançar o feitiço, então só me restava dar de ombros. Como uma provocação, o Tapete fez o mesmo. Que carinha adorável.
— Você também irritou Sua Alteza Imperial!
— N-não, ela sempre foi assim— quer dizer, esquece.
Kris também estava completamente furiosa. Seu rosto estava pálido, e ela tremia como se estivesse lutando para conter sua raiva. Eu já tinha pedido desculpas. Nem eu esperava que realmente lançaria um feitiço.
— No entanto — o imperador disse, pigarreando e lançando um olhar para sua filha —, este não é momento para brigas internas. As Lágrimas já certificaram a inocência do Mil Truques. Acho que Murina está muito mais segura com ele por perto.
— Uau — eu disse. — Vossa Majestade perdoa qualquer cois— Ah! Não era pra eu falar isso.
Franz soltou um grito mudo. Murina abaixou a cabeça. Mas, pelo visto, eu ainda não tinha sido demitido. Que sujeito indulgente esse imperador.
Assim que retornamos ao meu quarto, Kris me deu uma bronca daquelas. Acho que nem todo mundo podia ser tão compreensivo quanto o imperador.
— Não acredito em você! Você tá querendo acabar comigo?! Senhor?!
— Agora, agora. Eu só estou feliz que o feitiço foi desfeito.
— Existia a possibilidade de ele não ser desfeito?!
— Ah, talvez uns cinco por cento de chance — eu disse, jogando um número aleatório.
Kris recuou visivelmente.
Enquanto pensava nisso, percebi que meus talentos recém-despertados significavam que eu talvez pudesse partir em aventuras com o resto dos Grieving Souls. Só essa ideia já me deixava muito feliz.
Notei um jarro sobre a mesa. — Aqui, acalme-se e tome um gole d’água. Ah, por que não transformo essa água em vinho? Não deve ser tão difícil se consigo transformar pessoas em sapos.
— Isso é impossível!
A Lucia na minha cabeça refutou a ideia. Limpei a garganta e levei o aviso dela a sério. Eu jamais poderia ir contra minha irmã.
— Só brincando — falei para Kris. — Claro que não posso transformar água em vinho. Suco de laranja, por outro lado…
— Impossível!
— Tô só brincando. A magia tem seus limites.
— Depois de toda a minha ajuda, você só fica tirando sarro de mim — Kris reclamou, com os olhos cheios de lágrimas. — Chega! Vou dormir! Faça o que quiser! Senhor!
E com isso, ela saiu pisando firme do meu quarto.
— Eu também estou me retirando! — disse a Lucia na minha cabeça. — Transformar água em vinho é impossível. Faça o que quiser. Boa noite!
Não era minha intenção irritá-las nem nada. Droga. Vou me desculpar com ela amanhã. E o que diabos está acontecendo com essas alucinações auditivas?!
Assim que Kris saiu, Telm e Kechachakka chegaram. Meu quarto estava movimentado. No entanto, eu já estava pronto para dormir depois de uma noite tão agitada. Afinal, eu tinha transformado o imperador em um sapo, então não dava para dizer que foi um dia tranquilo. Mas a experiência me ensinou a esconder o cansaço.
— O que foi aquilo?! — Telm perguntou de imediato. Sua expressão era mais séria do que nunca.
Imagino que ele não tenha gostado muito de ver o imperador transformado em sapo. Bom, acho que ninguém gostaria. Foi mal.
— Aconteceu meio que sem querer — falei. — Não foi minha intenção transformá-lo num sapo.
— O que você está tentando fazer? Por favor, explique seu plano para nós.
— Plano? O plano é seguir as ordens do imperador. Somos apenas os guardas contratados dele.
Algo parecia estranho nisso. Nosso trabalho era garantir a segurança do caminho do imperador; eu não pretendia me envolver no planejamento.
Telm se acalmou. — Mas essa foi uma oportunidade perfeita — disse ele em voz baixa. — Você transformou o imperador e sua comitiva em sapos.
Eu não fazia ideia do que ele queria dizer com isso. Ele disse “oportunidade perfeita”, então talvez estivesse sugerindo que poderíamos viajar mais rápido carregando os sapos? Ele parecia sensato, mas ainda era a mão direita do Inferno Abissal. Na minha cabeça, mudei sua classificação de perigo de D para A.
— Você tem um ponto — falei para ele —, mas achei melhor não deixá-lo assim. Como eu disse antes, foi mera coincidência. Além disso, um deles não foi afetado pelo feitiço, lembra?
— Sim, mas mesmo assim… — Telm desviou o olhar.
Ele parecia insatisfeito, mas eu não ia ceder. Não dá para esquecer que pessoas ainda são pessoas. Se transportássemos o imperador como um sapo, essa informação poderia vazar. E se isso acontecesse, não importaria se tivéssemos cumprido nosso dever como escolta, não teríamos mais lugar no império.
— Você tem que pensar no que vem depois deste trabalho — expliquei. — Por enquanto, seguiremos os planos de Franz. Não acho que teremos problemas em terra, mas o ar pode ser complicado. Se preparem o máximo possível.
— Entendo — Telm assentiu. Parecia que tinha voltado à razão. — Você tem razão, seria estranho se terminasse aqui. Mas que tipo de preparativos devemos fazer?
— Hm? Vou deixar isso por conta de vocês. Confio em ambos, e eu tenho meus próprios preparativos a fazer.
— Entendido.
Ouvi Kechachakka rindo. Parecia que eu tinha convencido ele. Aquele “Hee hee hee” soou como um sinal de concordância.
Quando os dois saíram, meu quarto voltou a ficar silencioso. Até agora a viagem tinha sido tranquila, mas era aqui que as coisas ficariam complicadas. Viajar pelo ar era perigoso. Lá em cima, fugir não era uma opção, e ainda havia o risco de queda. Mesmo que você sobrevivesse a uma queda, ainda correria um grande risco de ficar preso em algum lugar remoto.
Mas agora eu tinha um plano de contingência. Olhei para o meu Tapete Voador, que flutuava ali por perto, desperdiçando mana à toa. O Caminhante Noturno, a Relíquia que eu havia usado na Toca do Lobo Branco, tinha a desvantagem de só funcionar à noite. Mas esse aqui era diferente.
— Vamos nos dar bem — falei com um sorriso. — Podemos voar juntos pelo céu!
O Tapete parou de flutuar preguiçosamente e, de repente, avançou com tudo. Ele se lançou contra mim, me fazendo rolar pelo chão e bater a cabeça na parede. Lá se foi mais um Anel de Segurança. Será que o Tapete tinha alguma rixa comigo? Nesse ritmo, ele já tinha me causado mais dano do que o Arnold.
Eu precisava de tempo para treinar. Pelo menos três dias. Virei para o tapete grosso e nada violento no chão e fiquei pensando. Eu tinha quase certeza de que estávamos adiantados, então considerei pedir a Franz um pequeno atraso.
No dia seguinte, chegamos a uma das maiores cidades do império, Vettant. Era uma metrópole comparável à capital imperial. As muralhas eram resistentes, a cidade era limpa e, se eu não estivesse enganado, até as pessoas pareciam bem vestidas. Para completar, essa cidade abrigava o único porto de aeronaves de Zebrudia.
Como o nome sugeria, aeronaves eram navios que podiam voar. Eu não sabia como conseguiam fazer isso sem o uso de Relíquias, mas aparentemente era uma combinação de ciência aplicada e magia. Achei isso incrivelmente interessante.
Mas antes de decolarmos, precisávamos garantir que tudo estava seguro. Franz parecia aliviado por não termos sido atacados o dia todo, então me curvei e pedi um tempo extra. Meu objetivo era ao menos garantir um resgate para o imperador, caso começássemos a cair. Minha equipe sabia se virar sozinha; eram Magos, afinal. O mesmo valia para Franz, já que ele fazia parte da guarda imperial.
Eu insisti que esse atraso era pelo bem da jornada, mas não dei detalhes. Franz não parecia nem um pouco disposto a atender meu pedido, mas então o imperador interveio.
— Não vejo mal nisso, Franz. Temos tempo, e Murina está cansada da longa viagem.
— Mas, Vossa Majestade Imperial, é perigoso ficar muito tempo no mesmo lugar. A Raposa pode atacar a qualquer mo—
— É melhor do que sermos atacados no ar — interrompi sem querer.
— Quem?! Quem nos atacaria no céu?! E por que você ainda não está preparado?!
Ah, há muitas possibilidades.
Eu não comprava a ideia de que nossos inimigos poderiam manipular dragões, mas se realmente pudessem, então um dirigível seria um caixão flutuante. Era difícil imaginar que aquele fantasma de raposa pudesse voar, mas sendo o que era, eu não me surpreenderia se provasse o contrário. Simplesmente estar no chão fazia da cidade a opção mais segura entre as duas.
O imperador gemeu.
— Já os repelimos uma vez — disse, repreendendo. — Podemos lidar com eles, contanto que nos concentremos nisso. Estou muito mais preocupado com o que pode acontecer se decolarmos sem preparativos adequados.
Eu não entendia muito bem o motivo, mas parecia que o imperador estava do meu lado. Louvado seja o poder do Nível 8. Franz me lançou um olhar ressentido. Ser nobre devia ser difícil.
— Seja grato pela magnanimidade de Sua Majestade Imperial. Vou lhe dar três dias, nada mais. Agora vá, não perca um único momento!
***
Todos estavam reunidos em uma pousada de luxo que atendia caçadores.
— Faz tempo que isso não acontece, mas Krai está fazendo um ajuste de vários dias — disse Sitri com uma expressão séria. — Ele pretende agir em breve. Todos, preparem-se o máximo possível.
Um rugido de empolgação reverberou pela sala.
***
Depois que me curvei diante dela, Kris concordou em carregar minhas Relíquias. Ela ficou brava e disse para eu não baixar a cabeça tão facilmente. Foi ela quem me rotulou de “fraco humano”, mas pelo visto não queria que eu agisse como um.
Deixei Telm encarregado do imperador e saí em busca de um campo de treinamento. Encontrei o maior que pude e aluguei ele inteiro só para mim. Não queria dividir por causa dos perigos envolvidos ao voar no Tapete, mais pelo meu peso do que pela minha força inexistente. Se o Tapete me lançasse pelos ares e eu colidisse com alguém, meus Anéis de Segurança me manteriam ileso, mas a outra pessoa poderia se machucar. Já houveram casos de caçadores mortos pelo Night Hiker, que voava em velocidades semelhantes.
Havia algo intimidador naquele campo de treinamento vazio. Bater de cabeça no chão de terra poderia ser fatal. As paredes de metal resistente não tinham nenhum acolchoamento para suavizar colisões. Como um caçador se preparando para uma batalha decisiva, encarei o Tapete, que caminhava casualmente.
— Talvez seja melhor eu sair? — sugeriu Kris.
— Hã? Por quê?
— Bem, hum, dá para aprender muito observando alguém treinar. Tenho certeza de que até você tem algumas técnicas que não quer que ninguém veja. Senhor.
Que garota sensata. Mas ela estava se preocupando à toa. Eu não tinha problema nenhum em ser observado! E se Kris fosse embora, quem iria carregar meu Tapete, minha camisa e meus Anéis de Segurança?
Kris inclinou a cabeça em direção a um homem vestido inteiramente de preto que ria de forma suspeita.
— Não sei por que ele veio junto, mas talvez eu devesse levar Kecha comigo também?
— Não, não me importo se vocês dois ficarem aqui — disse a ela. — Embora eu ache que não vai ter nada de interessante para ver. Vai ser perigoso, então fiquem um pouco para trás. Hoje — dei ênfase nessa parte — vou dar tudo de mim!
Kris ficou surpresa.
Até eu conseguia ter sucesso quando me esforçava. Respirei fundo e estiquei os braços e as pernas. A expressão do Tapete Delinquente estava tranquila (não que ele realmente tivesse um rosto), mas eu estava prestes a mudar isso, afinal, eu era o homem que conseguiu domar o mortal Night Hiker. Claro, se não fossem meus Anéis de Segurança, eu teria sido só mais uma vítima dele.
O Tapete Delinquente ergueu a mão direita como se dissesse para eu avançar. Cerrei os punhos.
Talvez essa tendência violenta o torne mais valioso que um Tapete Voador normal?
Enquanto avançava contra o Tapete, soltei um grito tão patético que até eu admitiria. Minha mão direita agarrou um dos cantos dele. Ele disparou para o alto e eu bati no teto, morrendo no impacto.
— Qual é o sentido disso, fraco humano? Esse Tapete está claramente defeituoso. Senhor.
— Você não vai chegar a lugar nenhum, não importa quanto tempo gaste nisso. Senhor. O que exatamente pretende fazer com esse Tapete?
— Lembre-se, sou eu quem tem que ficar carregando suas Relíquias! Apenas desista! Ou ao menos faça sua própria recarga! Senhor!
— S-Só desista! Senhor! Por que você parece estar se divertindo?!
— Hah. Por favor. Coloque-se no meu lugar. Senhor. Já não chega?! Tenho certeza de que todos aqui por perto já estão cansados de ouvir você se espatifando por aí!
— D-Desista. Já chega. Aah. Vamos deixar para amanhã. Vou descansar. Senhor.
— Hah. Aaah. Aaaugh.
O Tapete era formidável. Tão formidável que, no fim do dia, Kris estava jogada no chão. Eu conseguia me segurar nele, mas na maior parte do tempo era jogado longe, ou então espatifado contra o chão ou uma parede. E então eu morria.
Kris parecia estar chegando ao limite. Já estava encolhida no chão, como se estivesse prestes a dar seu último suspiro. Mas ela estava bem, ninguém morria por gastar mana demais. E os Espíritos Nobres regeneravam mana rapidamente.
Afastei Kris para um canto e então olhei para o Tapete.
— Droga. Você acha que vou desistir tão fácil? — falei.
Como se estivesse pedindo um abraço, o Tapete abriu os braços (ou algo parecido com isso). Mergulhei em sua direção e fui imediatamente jogado no chão. Ele era feito de tecido, então seus ataques eram inevitavelmente fracos, mas talvez fosse ainda mais fraco do que eu.
Deitado no chão, olhei para seus padrões ornamentados.
— Eu sei de tudo — falei. — Sei que você quer deixar as pessoas montarem em você!
O Tapete não respondeu, apenas colocou as pernas na minha testa. Eu devia ser o único nível 8 a passar por isso. Mas essa reação não estava longe do que eu esperava. Como era um Tapete Voador, eu não conseguiria segurar suas pontas ou sequer tocá-lo se ele realmente não quisesse. Mas eu estava conseguindo fazer ambas as coisas. A única conclusão lógica era que, no fundo, o Tapete desejava um passageiro.
Mas agora eu estava em uma situação complicada. Não podia treinar se Kris estivesse fora de combate. Meus supostos poderes mágicos despertos não haviam dado as caras desde o incidente com o sapo. Isso me deixava com uma única opção. Virei-me para Kechachakka, que estava parado silenciosamente no canto. Diferente de Kris, ele só observava, sem expressar opinião alguma.
Eu ainda achava o homem tão suspeito quanto no dia em que o conheci, mas agora também sabia que ele era uma pessoa bastante prestativa.
— Com licença — falei, abrindo um sorriso ao me aproximar dele. — Preciso de um favor.
— Hee hee. Hee?
— Se não for um problema, poderia carregar minhas Relíquias para mim?
— Hee hee. Hee hee hee hee.
Então ainda não consigo me comunicar com ele. Esse cara não usava algumas palavras quando nos conhecemos?
Era curioso que esse homem, que só ria de forma suspeita, servisse como guarda do imperador. Ele estava falando algum jargão especial? Ou talvez fosse de uma terra estrangeira?
Gostaria de ter trazido meu Cajado de Tradução. Como o nome sugeria, ele traduzia palavras. O nome verdadeiro da Relíquia era Mundo Redondo. Se eu tivesse trazido esse cajado nas férias, poderia me comunicar facilmente com o Povo das Cavernas.
Era uma Relíquia extremamente conveniente, mas não a trouxe para esse trabalho porque era pesada e as pessoas no nosso destino falavam a mesma língua que nós. Se fosse um anel, eu o usaria o tempo todo, mas o mundo não é um lugar tão conveniente assim.
— Ehe hee hee? — disse Kechachakka.
— Eheh. Ehee hee — respondi, sem a menor ideia do que estava dizendo.
— Heh?! — Kechachakka recuou por algum motivo.
Isso funcionou com o Povo das Cavernas, mas palavras aleatórias aparentemente não bastavam desta vez. E ainda assim, de alguma forma, esse cara conseguiu fazer amizade com Kris. Talvez ela fosse mais mente aberta do que eu pensava.
Comecei a me preocupar com minhas chances de treino, ciente do limite de tempo que tinha. Então ouvi a porta se abrindo, embora tivesse quase certeza de que havia um aviso de que este campo de treino estava alugado. Olhei para a entrada e fui pego de surpresa pelo que vi.
Um grupo bizarro de figuras cobertas por lençóis brancos entrou. Kechachakka congelou no lugar. Decidindo ser amigável apenas quando lhe convinha, o Tapete se escondeu atrás de mim. Cinco espectros de lençol se aproximaram e ficaram em fila. Ainda caída no chão, Kris parecia estar tendo um pesadelo.
Mas eu sabia quem eram essas pessoas sob os lençóis. Não podia contar o segredo para Kris e Kechachakka, mas aquelas eram as pessoas em quem mais confiava no mundo.
— Vieram me ajudar? — perguntei. Meus punhos se cerraram ao perceber que as coisas talvez dessem certo agora.
O Ladino-fantasma tentou pular em mim, mas sua pele (o lençol, no caso) foi segurada por um Alquimista-fantasma com uma mochila grande. Um dos espectros de lençol teve dificuldade para passar pela porta, mesmo se abaixando, e se erguia muito acima dos outros.
— Ans— digo, Gigante-fantasma — falei para ele. — Estou impressionado que tenha encontrado um lençol tão grande.
Ele grunhiu em concordância.
***
Observando a cena diante de si, Kechachakka ficou perplexo pela enésima vez. A Raposa era uma organização imensa, então não era surpreendente que um de seus principais membros tivesse muito mais pessoas à sua disposição do que um agente comum do submundo. Portanto, não havia nada de estranho em um grupo aparecer de repente e receber ordens do Mil Truques.
No entanto, quando todos no bando estavam cobertos por lençóis brancos, isso seria o suficiente para abalar até mesmo a Cascata Inversa, se ele estivesse presente. Kechachakka, dentre todos, não tinha muito direito de achar isso estranho, mas achou os elementais de lençol extraordinariamente suspeitos.
Os guardas poderiam prendê-los só por andarem por aí assim. O membro mais marcante do grupo era o que era tão alto que Kechachakka precisava esticar o pescoço para vê-lo completamente. Sir Matadinho era alto, mas aquele sujeito não era nada comparado ao tal “Gigante-fantasma” que o Mil Truques mencionou. Ele não conseguia ver o que havia sob aquele lençol, mas a voz distorcida deixava claro que era algo inteligente.
Kechachakka já estava confuso com o treinamento do Mil Truques, mas isso foi um choque muito maior. Ele estava curioso para saber como alguém da décima terceira cauda se aprimorava, mas os resultados o fizeram desejar nunca ter vindo. Teria sido melhor ajudar Telm na patrulha ou se preparar para a jornada aérea.
Um dos elementais de lençol estava encarando Kechachakka calmamente. Ele podia sentir pela presença que o elemental era poderoso, mas não conseguia discernir nada além disso. O motivo pelo qual o elemental carregava uma espada de madeira era um completo mistério para o Magus. Mas ainda mais confuso era o jeito alegre com que o Mil Truques dava ordens aos elementais. Kechachakka sequer conseguia determinar se tudo aquilo era uma farsa elaborada. Ele se perguntava como Franz reagiria se estivesse ali.
O elemental com a mochila grande o suficiente para caber uma criança a colocou no chão e saltou sobre Kris. O Espírito Nobre não teve forças para resistir e foi arrastado para dentro. Seu estado de esgotamento de mana deveria impedi-la até mesmo de levantar a voz, mas ela ainda conseguiu soltar um grito distorcido. No entanto, o som morreu imediatamente quando os lençóis se contorceram levemente.
— Isso deve resolver — disse o Mil Truques com um aceno. Ele notou o olhar de Kechachakka e sorriu para ele. — A Aparição da Alquimia é uma especialista em cura.
— Hee hee?
Cura? Aquilo era cura? Mesmo a análise mais generosa ainda descreveria aquilo como um ataque. Kechachakka estava completamente perplexo, mas o homem da décima terceira cauda continuava falando com orgulho.
— A Aparição do Ladino é incrivelmente rápida. Ela consegue ir daqui até a capital e voltar em menos de três dias. Agora vá, estou contando com você.
A menor das aparições tornou-se um borrão momentâneo antes de desaparecer. Ela tinha partido. Kechachakka tinha uma grande confiança em suas habilidades de rastreamento visual, mas até mesmo a Aparição do Ladino foi rápida demais para ele. O Mil Truques não estava brincando sobre a velocidade dela. Esse tipo de aceleração instantânea era o pior pesadelo de um Magus. Até mesmo Telm, que conseguia conjurar feitiços quase instantaneamente, provavelmente teria dificuldades contra um alvo tão rápido.
Seu traje podia ser ridículo, mas ela claramente superava um capanga médio. Se pessoas como essas estivessem do lado deles, o assassinato seria muito fácil. Kechachakka começou a se perguntar se talvez esses elementais também fossem a razão pela qual os mercenários nunca apareceram.
— A Aparição Mágica é especializada em magia — continuou o homem da décima terceira cauda — e a Aparição da Espada, uh, gosta muito de espadas. Ah, e tem a Aparição Gigante. Ele é bem grande.
Kechachakka não respondeu.
— Se eu explicar que são elementais sob meu comando, você acha que vão me deixar levá-los na aeronave?
— He he — foi a única resposta que Kechachakka conseguiu dar.
Kechachakka desistiu. Ele simplesmente não conseguia entender o propósito daquilo tudo. Nem mesmo sabia se era uma piada ou não. Mas não havia motivo para pensar muito sobre isso. Não havia a menor chance de que essas coisas fossem permitidas na aeronave. Isso era simplesmente absurdo demais.
Kechachakka soltou um pequeno som e então disparou para fora do campo de treinamento.
***
— Krai! O que você quer que a Aparição da Espada, que ama espadas, faça?
— Sua aparição ainda vai demorar um pouco. Que tal praticar alguns golpes?
— Oh. Ooh! Praticar golpes! — Segurando a espada através do lençol, a Aparição da Espada começou a balançá-la com fervor. — É complicado! Muito complicado! Ainda tenho muito a aprender!
Ninguém era tão bom em cortar quanto a Aparição da Espada, que amava espadas, mas infelizmente, isso era tudo que a aparição imperfeita sabia fazer. O fato de ele estar satisfeito com essa condição fazia dele uma aparição complicada.
Acho que não consigo convencer ninguém de que esses são meus elementais. Até Kechachakka foi embora por pura desilusão.
A Aparição da Alquimia lentamente se separou de Kris. O Espírito Nobre ainda estava no chão, tão imóvel quanto uma pedra. Provavelmente havia desmaiado depois de ser forçada a beber uma poção de mana super amarga.
— Valeu — disse para a aparição. — Sobre esses lençóis. Liz comentou algo?
A Aparição da Alquimia não respondeu. Em vez disso, ergueu seu lençol bem alto e tentou me arrastar para baixo, mas a Aparição Mágica a derrubou, fazendo-a se estatelar no chão. Então, foi lançada para longe. A Aparição Mágica não tinha características distintivas; eu apenas sabia que era a da magia por eliminação.
— Líder — disse ela em um tom frio, sem nem mesmo conferir os efeitos de sua magia —, por favor, pare de brincar durante sua missão de escolta. É por esse tipo de comportamento que você arranja tantos inimigos.
Não me lembrava de estar brincando. Mas agora que ela estava aqui, removi meus Anéis de Segurança gastos e os entreguei para a Aparição Mágica. Notei que ela estava tremendo.
Saímos do campo de treinamento e fomos para a estalagem onde meus amigos estavam hospedados. Sitri tirou seu lençol, mudando de Aparição da Alquimia para Alquimista.
— Estamos no limite do alcance das pedras de comunicação — disse ela.
— Pedras de comunicação?
— Uma ferramenta mágica desenvolvida recentemente que emprega magia de comunicação. Elas são baseadas nas Relíquias das Pedras Sonoras. Não são tão eficazes, mas podem ser produzidas em massa. Tem uma instalada no Sir Matadinho.
— Hmm. Isso é conveniente.
— Embora talvez “baseado em” não fosse a palavra certa. Pedras Sonoras são Relíquias, então a única coisa emprestada aqui é o design externo.
Sitri puxou uma pedra cúbica do tamanho aproximado do seu punho. Então era assim que eles estavam me vigiando.
Sentei-me enquanto Sitri foi preparar um chá. Senti como se um peso tivesse sido tirado dos meus ombros. Eu estava tão confortável que nem tinha percebido o quão tenso realmente estava. Mas ter meus amigos por perto era um tipo diferente de alívio. Com o Espectro Mágico, eu tinha certeza de que conseguiria terminar o treino com o Tapete Voador a tempo.
Sitri sorriu ao perceber que eu estava relaxando.
— Esse trabalho está chegando ao clímax — ela disse. — Assim que você tomar os céus, nossas opções vão se limitar consideravelmente. Então eu estava pensando se há algo que deveríamos fazer nesse meio-tempo.
— Valeu. Deixa eu pensar nisso.
Enquanto refletia sobre o assunto, me senti um pouco patético por depender tanto deles, mas imaginei que não haveria problema se isso me fizesse parecer bem perante Franz e o imperador. Sem falar que nunca se pode ter cuidado demais ao viajar de aeronave.
— Só para deixar claro — Lucia disse com uma careta — ainda não consigo transformar água em vinho, suco de laranja ou qualquer outro líquido que você queira.
***
— Mmm. Onde eu estou?
— Ah, finalmente acordou. Desculpa por tudo isso, Kris.
— Humano fraco?! Ah, é mesmo, eu…
Kris se sentou, os olhos percorrendo o ambiente em todas as direções. Segurando a cabeça, olhou para fora e viu que o sol já havia se posto. Em seguida, examinou a si mesma. Algumas horas tinham se passado desde que desmaiara. Parecia que o Espectro Alquímico não apenas lhe deu uma poção de mana, mas também algo para apagar suas memórias.
Não podia negar que apagar suas lembranças tornava as coisas mais fáceis para nós, mas também sentia que Sitri deveria ser um pouco mais hesitante ao usar essas poções. E Kechachakka? Ele só riu, então provavelmente não precisávamos nos preocupar com ele.
— Você está no meu quarto — eu disse. Sorri, tentando suprimir a culpa. — Você desmaiou por exaustão de mana, então te carreguei para cá. Está bem?
Talvez por causa da poção, Kris ainda parecia um pouco aérea. Seus olhos roxos se fixaram brevemente em mim enquanto ela tentava lembrar das coisas.
— O que eram aqueles espectros? Senhor? — perguntou ela, franzindo a testa.
— Tem certeza de que isso não foi um sonho?
— Está voltando para mim. Um daqueles espectros me forçou a beber algo.
Suas memórias não desapareceram nem um pouco.
Sitri era esperta, mas sempre cometia pequenos erros assim.
A confusão lentamente desapareceu do rosto de Kris.
— E-Eu me lembro. Senhor. Isso mesmo. Reconheci a pessoa debaixo do lençol. Ela é uma das suas companheiras. Ela estava lá quando negociamos a entrada de Starlight na Primeiros Passos. Senhor.
Parece que suas memórias estão bem nítidas. E ela até viu o rosto da Sitri.
— Isso foi só um sonho — garanti.
Kris cambaleou ao se levantar. Dei um passo em sua direção, mas uma força invisível me fez recuar. Antes que percebesse, já estava encostado na parede.
— V-Você realmente espera que eu acredite nisso?! — Seus olhos se estreitaram e sua voz ficou baixa. — Quero que me diga tudo o que está planejando! Senhor!
Tentei mais uma vez.
— Foi um sonho.
— Hã? Olhe bem nos meus olhos e diga isso de novo. Senhor. Jure pelos seus companheiros!
— Ei, você está perto demais! Dá um passo pra trás!
Pude ver suas orelhas pontudas se mexendo. Seus olhos estavam nítidos, e eu conseguia distinguir o formato de seus lábios. Apesar do nome “Espírito Nobre”, eles na verdade não pareciam tão diferentes dos humanos.
Não era pra que os papéis estivessem invertidos nessa situação? Eu ainda sou um homem, afinal. E Kris pode parecer delicada, mas ainda é uma caçadora.
Considerei contar a verdade. Ainda teria que manter Telm e Kechachakka no escuro, mas Kris era uma companheira de clã. Achei que talvez houvesse uma chance de ela entender se eu explicasse a situação. Ok, talvez fosse uma chance pequena. Eu realmente não sabia o que fazer.
Kris sorriu ao perceber minha hesitação. Era um sorriso convencido, bem diferente do normal dela.
— Vamos lá. Diga. Senhor — ela sussurrou. — Talvez eu te perdoe se contar a verdade. Senhor.
Então, de repente, a porta se abriu.
— Mil Truques, tem algo que eu gostaria de conversar sobr— Hm?!
Era Telm. Seus olhos se arregalaram ao me ver contra a parede e Kris com um sorriso confiante. Ele ficou congelado por um segundo, depois assentiu como se tudo fizesse sentido.
— Ah, então é isso. Eu me perguntava por que você a trouxe, mas se esse é o tipo de relação que vocês têm, então… ah, perdoe minha intromissão repentina. Se você dá ouvidos aos mais velhos, eu sugeriria trancar a porta nesses momentos. Minhas desculpas por interromper. Podemos conversar depois.
A porta se fechou com um rangido alto. Kris piscou e olhou alternadamente para mim e para a porta. Quando processou as palavras de Telm, seu rosto ficou escarlate.
— Hah?! Haaah?! Esse humano claramente entendeu tudo errado. S-Sugerir que eu e você— isso só aconteceria no dia que o inferno congelasse! Senhor! Onde foi que ele bateu a cabeça pra pensar nisso?! Um Espírito Nobre, mágico e fisicamente superior, jamais se envolveria com um humano frágil! Senhor!
— Ouvi dizer que biologicamente falando, não somos tão diferentes assim. São raros, mas existem Meio-Espíritos Nobres.
— C-Cale a boca! A culpa disso é tod— Urgh! Só não pense que esse assunto está encerrado! Senhor! Teeeelm, espera aí!
— Com lágrimas nos olhos, Kris saiu correndo do quarto. Acho que o mal-entendido foi mais humilhante do que ser derrotada pelo Espectro da Alquimia.
Espera, pera aí.
Será que Telm fez isso de propósito? Era totalmente possível, considerando a discussão anterior sobre o Espectro de Lençol. Que boa equipe nós formávamos.
— Vou ter que agradecer ao Inferno Abissal — murmurei para mim mesmo.
Eu tinha feito o que podia, então podia descansar tranquilo. Amanhã, eu mostraria a eles o quão confiável o Mil Truques poderia ser.
***
O que Sua Majestade Imperial está pensando? Franz se perguntou. Ele reprimiu a vaga inquietação que tomava conta dele e começou a preparar a escolta. Ele sabia que o Imperador Rodrick era um espírito livre. Franz sempre presumiu que isso fosse natural para aqueles aptos ao trono, mas agora sentia que o homem estava assumindo riscos demais.
Franz conseguia entender por que o Imperador Rodrick estava disposto a confiar no Mil Truques. Sua inocência havia sido verificada por um dos tesouros nacionais de Zebrudia, e o título de Nível 8 era uma honra extraordinária. Embora não houvesse sinal de sua presença, o mana absorvido daquele homem devia superar em muito o de Franz, que nunca negligenciava seu treinamento. O breve vislumbre que Franz teve daquele poder desafiava a compreensão.
Mas era sua personalidade que tornava difícil confiar nele. Franz se orgulhava de sua habilidade em avaliar pessoas e nunca tinha visto ninguém tão despreocupado quanto o Mil Truques. Sua relutância em compartilhar informações, sua postura pouco impressionante, sua roupa ridícula, nada nele condizia com alguém encarregado de proteger o imperador.
Comparado a ele, até mesmo o excessivamente desconfiado Kechachakka ou aquele Espírito Nobre misantropo pareciam mais adequados para proteger o Imperador Rodrick. Telm, por sua vez, era um caçadora exemplar. Por que o líder deles não podia ser alguém mais confiável? Franz decidiu que escreveria uma carta de protesto à Associação de Exploradores assim que tudo isso terminasse.
Franz queria esmagar aquele caçador, nem que tivesse que recorrer ao apoio da Casa Argman. Mas ele jamais poderia sair impune disso se o Imperador Rodrick havia sido capaz de perdoar até mesmo o incidente do sapo. Ainda assim, não podia ignorar a possibilidade de que o Mil Truques tivesse agido supondo que receberia clemência.
Franz sentia apenas fúria ao lembrar daquele incidente. O que mais o enfurecia era o fato de ter sido forçado a pisotear o imperador e a princesa imperial. Só de lembrar disso, dava-lhe vontade de matar o Mil Truques.
Algo assim não aconteceria de novo. Se o Mil Truques parecesse representar o menor perigo para o imperador, Franz o prenderia. Se aquele homem realmente fosse o artífice sobre-humano que diziam, então deveria ser capaz de evitar problemas antes que eles acontecessem.
Mas Franz tinha coisas mais importantes a fazer do que se preocupar com o Mil Truques. A função da Ordem Zero era proteger o imperador. O restante da jornada seria a bordo de um dirigível. Nunca antes seu dirigível havia caído, e era um meio de transporte muito mais seguro do que as estradas.
No entanto, se uma Raposa conseguisse entrar a bordo, não haveria para onde o imperador fugir. Isso precisava ser evitado a todo custo. Com isso em mente, talvez levar três dias para os preparativos não fosse uma ideia tão ruim. Mas se algum patife aproveitasse esse tempo para se infiltrar, seria o fim da vida de Franz.
Enquanto ele emitia ordem após ordem sem parar, um cavaleiro entrou correndo em seu quarto.
— Senhor, o Mil Truques solicitou permissão para embarcar uma carga.
— Oh? Que tipo de carga?
— Poções, senhor.
— Ele tem permissão para embarcar pertences pessoais se forem relevantes para a missão! — gritou, deixando as emoções tomarem conta. — Não venha me importunar com esses detalhes triviais!
— Foi exatamente o que eu disse a ele, senhor. — O cavaleiro começou a parecer confuso. — Mas é que ele trouxe uma quantidade extraordinária.
***
Para caçadores de tesouros, os preparativos eram uma parte indispensável da jornada. Ter as informações certas, estar bem abastecido e fazer pequenos ajustes podiam determinar o sucesso de uma missão. Para os Grieving Souls, os preparativos eram todos responsabilidade do Espectro da Alquimia. Talvez fosse apenas sua personalidade, mas ela era absolutamente meticulosa.
Assenti satisfeito ao ver as caixas organizadas perfeitamente. Foi então que Franz veio correndo até mim. Ele pareceu momentaneamente surpreso com as caixas antes de me lançar um olhar furioso. Eu tentava lembrar de algum momento recente em que ele não estivesse com raiva.
— O que significa isso?! — ele perguntou. — Já providenciamos suprimentos básicos!
— Você sabe o que dizem, ‘É melhor prevenir do que remediar.’
— Claro que não! Você pretende abrir uma loja em Toweyezant?!
Eu não podia negar que o Espectro da Alquimia havia entregue mais do que eu esperava. O que será que ela estava antecipando? Devia haver pelo menos cem caixas de suprimentos, facilmente o bastante para um caçador de tesouros sobreviver por um ano inteiro. Eu não tinha pedido tanto, e não fazia ideia de onde ela conseguiu isso ou quanto custou. Mas seria errado ficar bravo quando ela se deu ao trabalho de preparar provisões extras para nós.
— Calma, Franz — eu disse. — Isso é para o caso de suas poções acabarem. Além disso, veja, não são só poções. Tem comida também.
— Já preparamos suprimentos de comida! Não precisamos da sua ajuda com isso!
— E agora temos esses suprimentos caso os seus acabem. O deserto é um lugar imenso. Se o dirigível cair, os seus suprimentos não serão suficientes. Ah, também preparamos água.
O perigo andava de mãos dadas com a viagem pelo deserto. Eu estava bem, perfeitamente confortável, na verdade, mas o Anel de Segurança do imperador não o protegeria dos raios do sol.
Eu estava bastante confiante na minha explicação, mas Franz não respondeu. Olhei para ele e, quando vi seu rosto, engoli em seco e congelei de medo. Sua pele já não estava avermelhada, na verdade, seu rosto estava completamente desprovido de emoção. Ele apenas me encarava como uma estátua. Eu tinha dito algo estranho?
— O que vai acontecer? — ele perguntou com uma voz que parecia um trovão vindo das profundezas do inferno.
— Hã?
Meus olhos se arregalaram. Do que ele estava falando?
— Estou perguntando o que vai acontecer! Você está brincando?! Se sabe de algo, então diga! Relate agora!
— O quê?!
Franz me agarrou pela gola e me sacudiu violentamente. Ataques de agarrão eram um dos poucos que os Anéis de Segurança não protegiam.
— E-Eu não sei! Eu não sei de nada! — protestei fracamente.
Os olhos demoníacos de Franz não acreditaram nem por um segundo.
— Pare de mentir! Vou acabar com você aqui mesmo!
Eu não sou um deus. Como ele esperava que eu soubesse o futuro? O que eu fiz foi apenas o básico para um caçador.
— C-Calma! São apenas suprimentos de emergência! Eles são para emergências!
— Quem no mundo consideraria isso apenas suprimentos de emergência?! Dá para abrir uma loja com isso! Você realmente espera que eu permita isso? Acha que sou um idiota?
— Acho justo chamá-los de suprimentos de emergência!
Eventualmente, Franz se acalmou um pouco. Parou de me sacudir e me soltou. Nobres podiam ser brutais. Claro, talvez houvesse um pequeno exagero, mas preparar-se para emergências era nosso trabalho como guardas. Que decepção ser tratado assim depois de finalmente ajudar.
— A aeronave. Ela não vai cair — Franz disse entre respirações pesadas. — Isso nunca aconteceu antes.
— S-Sim, uh-huh. Você está certo. Eu diria que há noventa por cento de chance de que ela não caia. São realmente só suprimentos de emergência. Ha ha ha, eu sou tão medroso.
Eu esperava que ele me perdoasse se tornasse isso uma piada, mas Franz continuava tão tenso quanto antes.
— Me corrija se eu estiver errado — ele disse —, mas você está me dizendo que a aeronave de última geração de Zebrudia, que já resistiu a ataques de monstros e todo tipo de clima, tem dez por cento de chance de cair?
Parece que houve um mal-entendido. Por que as pessoas tinham que pegar no pé de cada coisinha que eu dizia? Eu falava de forma meio descuidada, tanto que às vezes Sitri fazia cartões de dicas para mim.
— Não se preocupe, Franz — eu disse de forma tranquilizadora. Eu realmente não acreditava que a aeronave cairia. — Mesmo se começarmos a cair, eu pego Sua Majestade Imperial.
— Verifiquem a aeronave mais uma vez! — ele latiu para alguns de seus subordinados. — E reavaliem todos que vão a bordo. Certifiquem-se de que não há nenhuma possibilidade de queda! Vocês têm dois dias.
Franz se virou para mim com um olhar cheio de rancor.
— Ela não vai cair. Eu garanto. Droga, eu não vou deixar você conseguir o que quer!
Não é como se eu quisesse que ela caísse. Bem, não adianta discutir. Se esse trabalho for um sucesso, podemos nos reconciliar quando tudo acabar.
Agora que isso estava resolvido, eu tinha uma última preparação a fazer. Precisava praticar andar no Tapete Voador. Ele já havia me matado algumas vezes, mas eu havia pensado em um jeito de ficar do lado bom dele. Não sabia se funcionaria, mas ia tentar.
Os dias seguintes passaram num piscar de olhos e o dia do destino chegou. Ultimamente, tínhamos tido céu limpo, mas agora só havia nuvens densas sobre nós. O clima não parecia ideal para voar.
Estávamos quase prontos para partir. Telm, Kechachakka, Kris, todos estavam o mais preparados possível. Franz estava diante de mim de forma imponente. Uma veia em sua testa pulsava e sua sobrancelha tremia.
— Eu ouvi isso direito? — ele perguntou.
— Me desculpe imensamente.
O único problema era que a Ladina-espectro ainda não tinha voltado da missão. Pedi para ela correr até a capital imperial e pegar algo para mim. Achei que ela conseguiria a tempo, mas agora estava começando a pensar que calculei errado. Ou melhor, não antecipei que a aeronave partiria tão cedo de manhã.
O imperador estava se preparando para a decolagem e ninguém estava me ajudando a argumentar. Depois de todo o problema que causei para ela, Kris estava bem irritada comigo. Quando olhei para ela, ela simplesmente virou o rosto. Sir Matadinho Versão Alpha ficou parado como sempre.
— Fizemos mais do que o suficiente para atender seus pedidos — Franz disse. — Atrasamos nossa partida em três dias. Inspecionamos a aeronave inteira mais uma vez. Carregamos toda a sua carga! E, além de tudo isso, você quer que atrasemos ainda mais a decolagem?!
Eu achei que ele me cortaria em pedaços a qualquer momento. Eu não queria fazer esse pedido e sabia que isso o irritaria, mas eu me sentiria mal se Liz corresse tanto por mim e eu não estivesse lá quando ela voltasse.
— Eu também não esperava por isso — eu disse. — Que tal vocês partirem e eu alcanço depois?
Meu Tapete Delinquente estava de ótimo humor, prova de que meu plano tinha funcionado. Ele se deu muito bem com o tapete azul que comprei para ele. Sempre presumi que ele era um Tapete macho, mas agora estava começando a achar que estava errado sobre isso. Eu tinha certeza de que, em seu estado atual, ela me aceitaria como passageiro e me deixaria alcançar a aeronave.
— De jeito nenhum! Por mais que eu odeie admitir, Sua Majestade Imperial escolheu você para ficar ao lado dele. Você não pode simplesmente fazer o que quiser. Partimos em uma hora. Se três dias não foram suficientes para completar suas preparações, a culpa é só sua!
Não havia como argumentar com essa lógica. Franz se levantou para me expulsar do quarto e encerrar nossa conversa, mas, no momento em que estava prestes a abrir a porta, ela se escancarou por conta própria.
— O quê?!
— Oh.
Entrou uma Ladina-espectro envolta em um lençol esfarrapado. Eu sabia que era a Ladina porque ela carregava o item que eu havia solicitado.
— O-o quê? — Franz balbuciou. Dominado pela confusão, ele ficou paralisado no lugar. A Ladina-espectro passou por ele, ignorando também meus companheiros perplexos, e parou bem na minha frente. Ela me entregou o item, e eu o aceitei.
O item em questão era um cajado que tinha aproximadamente a minha altura. Enquanto o cajado de Kris era de madeira, este era de metal. No topo, a estrutura se retorcia em espiral, envolvendo uma grande gema redonda. O brilho do cajado poderia sugerir que era feito de ouro, mas o material era bem diferente. Este cajado era uma Relíquia.
Mesmo para a Ladina-espectro, a capital imperial era uma longa jornada. Mas ela havia chegado bem a tempo. Abracei a espectro que tremeu e dei um tapinha de gratidão em suas costas. Por um momento, ela se apoiou em mim e depois partiu em silêncio, como um espectro deve fazer. Eu podia contar com ela quando precisava.
A porta se fechou. Eu tinha tudo o que precisava. O Tapete me aplaudiu.
— Isso é tudo — disse, assumindo um tom durão. — Vamos?
— Você acha que eu não vou dizer nada?! — Franz parecia prestes a explodir. — O que foi isso?!
— Um elemental de lençol sob meu comando.
— Você acha que eu vou acreditar nisso?!
Kris me olhou com superioridade.
Mas eu não ia ceder na minha história. Nem um centímetro. Aquilo era um elemental de lençol. Nada mais, nada menos. E ela não estava atrapalhando o trabalho, então qual era o problema?! Segurei firme o pesado cajado que minha amiga fez questão de recuperar para mim. Sorri para Franz, deixando claro que não tinha mais nada a acrescentar.
Finalmente. Agora eu posso falar com Kechachakka!
***
Como o nome “Estrela Negra” sugeria, o dirigível de última geração de Zebrudia era uma imensa nave negra como o céu noturno. A primeira coisa que chamou minha atenção foi seu casco superior, parecido com um balão, mas a seção de passageiros também era enorme.
Lucia já tinha me levado para passear em sua vassoura, e eu já havia me segurado em um dragão enquanto ele cortava os céus, mas nunca havia viajado em um veículo como este. A Estrela Negra era maior do que qualquer dragão e certamente tinha sido concebida como uma demonstração do poderio do império.
— Que tempo horrível — comentei.
— Isso não é nada para atrapalhar a Estrela Negra. Ela já enfrentou situações piores — Franz me garantiu. — Nosso dirigível não vai cair. Eu garanto.
O imperador franziu a testa e embarcou na aeronave.
— Não é disso que eu estou preocupado.
Assim que o imperador embarcou, Franz se aproximou de mim.
— Esta nave tem um limite de peso — ele disse, me encarando. — Por causa da sua carga, tivemos que reduzir nossa equipe. Para o seu próprio bem, é melhor que esses suprimentos se mostrem útis.
— O quê? São apenas suprimentos de emergência. Que nave frágil. Parece um balão.
— Sua preocupação é desnecessária. Mesmo que o casco seja danificado, temos Magos cuja única função é reparar a nave. O design é baseado em uma Relíquia. Supostamente, o objeto autêntico poderia voar sem a ajuda de um Mago, mas isso não passa de um boato.
Interessante. Frequentemente se ouvia falar de itens criados por meio de tentativa e erro para replicar uma Relíquia. Mas eu ainda não estava totalmente convencido. E reduzir a equipe era mesmo uma boa ideia? Talvez eu devesse ter sido mais preciso ao dar ordens para Sitri.
— Não acho que duraríamos um segundo se um dragão viesse até nós — murmurei.
— Guarde suas preocupações para você. Lidar com atacantes será seu trabalho. Com três Magos, isso não será problema.
— Aham, sei.
Minha resposta imediata fez Franz me olhar com desconfiança.
Escolher três Magos acabou sendo a decisão certa no fim das contas. Mas, para ser honesto, eu não os escolhi, apenas acabei com eles. Isso não mudava o fato de que eu estava bastante certo de que Telm poderia matar um dragão sem sequer sair do interior da aeronave.
***
Então é isso. Uma bela nave, sem dúvida.
Olhando para a Estrela Negra, Telm Apoclys soltou um grunhido de apreciação. Uma nave de ponta como essa normalmente não aceitava caçadores e plebeus como passageiros. Esta era uma aeronave exclusiva para a nobreza.
Telm já havia voado antes, mas nunca em algo remotamente parecido com esse dirigível. Ele não era um especialista, então não estava familiarizado com os princípios por trás do funcionamento, mas conseguia perceber que as inscrições mágicas entalhadas no casco haviam sido feitas por um mestre. Algum especialista havia passado um longo tempo e levado suas habilidades ao limite para criar esses mecanismos arcanos.
Telm respirou fundo e embarcou na Estrela Negra.
Tradução: Carpeado Para estas e outras obras, visite Canal no Discord do Carpeado – Clicando Aqui
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