Grieving Soul – Capítulo 2 – Volume 5
Nageki no Bourei wa Intai shitai
Let This Grieving Soul Retire Volume 05
Capítulo 2:
[Intrusos Aterrorizantes]
Eu não fazia a menor ideia do que estava acontecendo. Sitri, no entanto, não parecia notar e, como se fosse a coisa mais natural do mundo, assumiu o controle da situação e cuidou dos recém-chegados. Ela pegou a carroça destruída e encontrou uma estalagem qualquer para jogá-los dentro.
Estávamos acostumados a situações traiçoeiras. Já enfrentamos perigos em florestas, montanhas, desertos e até no mar. Ao mesmo tempo, encontrávamos com frequência pessoas tão habituadas ao perigo quanto nós. Para falar a verdade, a única nova integrante dos Grieving Souls na época, Eliza Beck, era uma dessas companheiras de desespero—ela quase morreu conosco no deserto.
Pelo fato de não ter nenhum ferimento, parecia que Arnold havia desmaiado por exaustão. Para ser sincero, eu não queria me envolver nisso, mas Sitri se meteu sem esforço algum, então não vi outra escolha senão acompanhá-la.
Temos Liz e Tino aqui, e Matadinho está na estalagem. Tenho certeza de que Arnold não será um problema.
Nos sentamos para conversar com eles no refeitório da estalagem. O contraste entre Sitri, vestindo um yukata, e os caçadores esfarrapados era algo impressionante. A história contada por Rhuda, Gilbertzinho e Chloe era extraordinária.
Aparentemente, eles estavam nos seguindo e foram até o Palácio Noturno. Quando vimos que não havia uma única carroça do lado de fora, demos meia-volta, mas pelo jeito Arnold e seu grupo decidiram entrar. Aquele cofre de tesouros estava além do nível recomendado para os Grieving Souls, um grupo formado por detentores de títulos, mas mesmo assim eles entraram com um time que incluía aventureiros de nível 3 e 4. Eles tinham um desejo de morte ou algo assim?
— …E então conseguimos esperar a horda passar nos escondendo debaixo de montanhas de cadáveres.
— Estávamos à beira da morte. Todos nós teríamos morrido se não fosse pelas ordens de Arnold.
Os amigos de Gilbertzinho assentiram vigorosamente. Algo me dizia que eles não teriam entrado nessas montanhas se Arnold não tivesse ordenado, mas guardei esse pensamento para mim.
Liz ouviu a história deles sem demonstrar muito interesse e começou a piscar.
— Hã. E daí? Fizeram uma fogueira em cima dos nossos restos?
— N-Não fizemos!
— Afinal, em cofres de tesouro de alto nível, o material de mana dos espectros é forte demais e permanece por muito tempo — disse Sitri. — Talvez, no futuro, devêssemos garantir que faremos um serviço adequado de limpeza dos espectros restantes. O que acha, Krai?
Ela parecia estar refletindo, mas tudo o que eu conseguia sentir era o choque ao descobrir que meus amigos fizeram uma fogueira sem mim. Claro, já fizemos fogueiras inúmeras vezes, mas uma dentro de um cofre de tesouro para o qual eles não tinham nível suficiente? Bom, pelo menos eles se divertiram, e isso é o que importa.
Do começo ao fim, eu falhei completamente em compreender a história de Rhuda e dos outros caçadores. Eu entendia as palavras que saíam da boca deles e até acenava de vez em quando com um “aham, entendi”, mas minha mente simplesmente não processava nada.
Depois de conseguirem escapar de uma horda de espectros se escondendo sob pilhas de cadáveres, eles fugiram do Palácio Noturno por um triz e recuaram para uma cidade próxima. Durante a fuga, encontraram inúmeros espectros e sofreram ainda mais ferimentos.
Exaustos, seguiram para Suls, uma cidade famosa por suas águas termais curativas. Aparentemente, o fato de o Condado de Gladis estar no caminho também pesou na decisão deles. Parecia que estavam sob a impressão de que era para lá que eu estava indo.
Podem me dar uma missão nomeada, mas eu não vou aceitá-la. Esses caras claramente não entendem o tipo de pessoa que eu sou.
— Por favor, perdoe-o, Krai. Ele pode ter sido rude com você, mas salvou nossas vidas várias vezes! — disse Rhuda com a voz trêmula.
Ela se inclinou para frente, como se estivesse implorando. O equipamento de um Ladino deveria ser resistente, mas o dela estava rasgado em vários pontos, e sua aparência era péssima. As olheiras profundas sob seus grandes olhos azuis mostravam o quanto estava cansada, embora talvez não tanto quanto Arnold.
— Ela está certa — disse Chloe, quebrando o silêncio. — Pode ser a política da Associação dos Exploradores não se envolver em disputas internas entre caçadores, mas eu sugeriria que enterrasse o machado, Krai. Acredito que Arnold… aprendeu a lição.
Do que vocês estão falando?
Eu não pude evitar de encarar Chloe. Não guardava rancor de Arnold e nem planejava fazer nada contra ele. Para ser sincero, do meu ponto de vista, eu só estava fugindo dele.
Inimizade? Eu não diria isso. Ele torrou um monte dos meus Anéis de Segurança e infernizou a Tino, mas no fim das contas estávamos bem. Aprendi pela experiência que, como caçador, se você se irritasse com cada pequena coisa, só iria se estressar. Era melhor esquecer e seguir em frente. Dissipar o estresse era exatamente o que uma fonte termal fazia de melhor.
Pisquei e exibi um sorriso tranquilizador.
— Hã? Eu não fiz nada com ele e nem pretendo.
Dei minha opinião sincera, o que fez Gilbertzinho dar alguns passos para trás. O sangue sumiu do rosto de Rhuda, e os outros caçadores (cujos nomes eu nem sabia) me olharam como se eu fosse algum tipo de monstro. Até mesmo Chloe pareceu surpresa.
— I-I-Isso significa que tudo o que fizemos até agora…
— Isso é um dos famosos…
— Eu realmente não sei do que vocês estão falando — respondi. — Para mim, isso aqui é só um descanso.
— O caso de Arnold e seu grupo é só um detalhe à parte — Sitri acrescentou, sem necessidade alguma.
Pensei em dizer algo, mas, quando refleti melhor, percebi que a Névoa Caída nem sequer era uma questão secundária. Dizer isso, no entanto, só serviria para jogar mais lenha na fogueira. O vice-líder da Névoa Caída me olhava com uma expressão tensa, mas não fez objeções, então eu tinha certeza de que eles também queriam resolver essa situação confusa.
Sitri ergueu o olhar para mim. Liz não disse nada, o que significava que estava deixando a decisão em minhas mãos. Vários rostos nervosos estavam voltados para mim. Isso não era algum tipo de armadilha para nos fazer baixar a guarda; eles realmente queriam uma resolução pacífica. Sem pensar, abri um sorriso de orelha a orelha e lhes dei minha resposta.
— S-Sim, eu realmente não entendo o que está acontecendo, mas não vejo problema em enterrar o machado. Já que vieram até Suls, por que não aproveitam para descansar bastante? As águas termais daqui não são nada mal.
Eu não fazia ideia de como Sitri havia previsto os movimentos deles, mas também não me importava. Não havia sentido em lutar em uma área de águas termais. O vice-líder colocou ambas as mãos sobre a mesa e abaixou a cabeça.
— Sou grato a você. Fomos arrogantes ao subestimar um nível 8. Perdoe-nos — disse ele.
— É… Aham. Mas eu não fiz nada.
Já tive que pedir desculpas inúmeras vezes, mas ser alvo de um pedido de desculpas sem motivo era algo raro. Sorri e bati palmas.
Agora essa disputa deveria estar resolvida de uma vez por todas.
***
Rhuda não fazia ideia do que aquele homem estava pensando. O sorriso de alívio de Krai fazia parecer que ela estava em uma realidade diferente. Para ela, o Palácio Noturno era uma armadilha mortal. Se estivesse sozinha, nunca teria coragem de se esconder em um daqueles montes grotescos. Talvez tivesse tentado fugir para dentro do castelo, e quem sabe que tipo de destino a aguardaria lá?
Mas nada na postura de Krai sugeria que ele estava levando em consideração a situação deles. Isso deixava claro o quanto ele estava acostumado a aplicar seus Testes. Para Rhuda, parecia extremamente ardiloso que Krai tivesse previsto que Arnold perderia a determinação e decidiria sair do cofre do tesouro. Se era isso que levava alguém a alcançar o nível 8, ela não se via chegando lá jamais. E pensar que ainda existiam níveis além disso…
De qualquer forma, eles haviam superado o Teste. Talvez devessem simplesmente se contentar com isso.
Após escaparem por um triz do Palácio Noturno, viajaram temendo um encontro com Krai. Os membros da Névoa Caída estavam cobertos de ferimentos. Em comparação, Krai e seus companheiros pareciam estar em perfeita saúde. Até mesmo a única preocupação de Rhuda, Tino, estava vestindo um yukata e parecia melhor do que da última vez que se encontraram.
O dever original de Rhuda e do Turbilhão Escaldante era garantir que Chloe chegasse com sucesso até Krai. O plano inicial era se separarem da Névoa Caída em Suls e seguirem para o Condado de Gladis. Poderia-se dizer que encontrar Krai ali foi um azar para o grupo de Arnold, mas uma sorte para Rhuda.
Exausta após sua jornada de vários dias, as águas termais de Suls eram como o paraíso para Rhuda. O sangue e a carne que grudavam nela haviam desaparecido desde que deixaram o Palácio Noturno, mas o cansaço persistia. Ela ouvira dizer que as águas de Suls tinham propriedades curativas, e estava mais do que pronta para colocar isso à prova. Aceitou a sugestão de Krai e deixaram a conversa sobre a missão para outro momento. Rhuda estava ansiosa para aproveitar seu primeiro banho em uma fonte termal em muito tempo.
Tino decidiu acompanhá-la. Rhuda já tinha ouvido falar de um yukata, mas era a primeira vez que via um. Ela sabia que era irracional, mas ainda assim a incomodava ver Tino tão limpa enquanto ela mesma estava tão desgastada.
A pousada havia sido escolhida às pressas, mas os banhos eram bem espaçosos. Apenas a sensação agradável do vapor tocando sua pele já fazia Rhuda sentir sono. Resistiu à vontade de tirar um cochilo enquanto se dedicava a uma merecida limpeza. Sabia que não ter muitas oportunidades para se lavar fazia parte da vida na estrada, mas, como mulher, era algo difícil de aceitar.
— Ahhh, estou tão cansada. Achei que fosse morrer lá atrás. Não sentia isso fazia um tempo.
A Toca do Lobo Branco tinha sido brutal, mas ela não sabia dizer se era pior que o Palácio Noturno. Dessa vez, os fantasmas eram mais fortes, mas a Névoa Caída foi uma presença reconfortante.
— Nunca duvidei do julgamento do Mestre, mas ainda assim estou aliviada por ver que você está bem — disse Tino, em um tom baixo, enquanto se sentava e esfregava suavemente a pele.
— Sinceramente, foi pior do que eu esperava. Acho que é o que acontece quando você entra em um cofre que ninguém visita há anos — suspirou Chloe, soltando seus longos cabelos negros.
Tinha sido uma experiência difícil para Rhuda e os outros caçadores, mas provavelmente pior ainda para uma funcionária da Associação dos Exploradores, mesmo que ela tivesse algum talento com a espada. Talvez chegar até ali sem reclamar fosse apenas algo natural para uma parente do Demônio da Guerra.
Tino já devia ter se banhado algumas vezes, pois sua pele clara estava limpa e brilhante. Mas havia algo nela que parecia um pouco insatisfeito.
— Como você tem passado? — perguntou Rhuda.
Tino fez uma pausa.
— Lutei contra um dragão em uma fonte termal — respondeu.
— Huuuh?
Ouviram a história enquanto relaxavam na água quente. Rhuda nem conseguia se surpreender, apenas suspirou. Parecia que Tino também tinha passado por seus próprios problemas. Ela provavelmente era a única caçadora em todo o mundo que já teve que lutar contra um dragão completamente nua. A falta de ajuda de Krai, Sitri e dos outros caçadores próximos deixava bem claro o quão espartana era a forma como Tino era treinada. Chloe parecia perplexa.
Mesmo sendo outra mulher, Rhuda achava Tino incrivelmente encantadora enquanto ela contava sua história de maneira envergonhada. Se Rhuda estivesse na mesma situação, estaria preocupada demais com o dragão para sentir vergonha. Mesmo que alguém comentasse sobre isso depois da luta, ela achava que o melhor seria manter-se orgulhosa (apesar do embaraço) e dizer que a situação exigia aquilo. A garota à sua frente era uma caçadora experiente, mas ainda tinha um senso de vergonha em momentos inusitados.
Mas então, uma velha lembrança de Rhuda veio à tona.
— Espere. Você não disse algo sobre posições para o Krai uma vez? — ela perguntou para Tino.
— E daí? — Tino respondeu com uma expressão curiosa.
Foi quando ela lutou contra Gilbert no campo de treinamento. Na época, Rhuda simplesmente presumiu que esse era o jeito de Tino, mas essa não era uma frase que se ouvia casualmente de uma garota que ficava envergonhada por um pouco de pele exposta. Rhuda franziu a testa.
— Isso foi só algo que a Lizzy me ensinou — disse Tino. Sua voz tinha um leve frio que não estava presente quando falava com seu “mestre”. — Flexibilidade é importante, às vezes você precisa se encaixar em espaços pequenos. É prática padrão para um Ladino, e eu só estava mostrando minhas habilidades para o Mestre. Qual o problema?
— Não acho que era isso que sua mentora queria dizer…
— Hm? O que você quer dizer?
Aparentemente, Tino apenas imitava sua mentora. Lizzy parecia ser o tipo de pessoa que diria esse tipo de coisa sem hesitação. A maioria das pessoas não descreveria articulações flexíveis com frases como “Você pode me colocar em qualquer posição que quiser.”
— Bem, por enquanto, só não fale assim na frente de muita gente — Rhuda disse, tentando ser sutil. Ela tentou esconder sua expressão afundando na água até o pescoço.
O banho nas águas termais, que já estava mais do que atrasado, foi revigorante. Parecia que toda sua fadiga estava sendo drenada. Ela tinha cumprido sua missão ao entregar Chloe com segurança ao seu destino, mas talvez ficar em Suls um pouco mais não fosse uma má ideia.
— Foi uma boa experiência, eu acho. Mas eu nunca mais quero passar por outro Desafio — disse Rhuda, sonolenta. — Ei, Tino, você acha que poderia dizer isso para o Krai? — brincou.
Tino ficou brevemente em silêncio antes de dizer algo bastante inesperado.
— Acho que esse Desafio ainda não acabou.
— Hã?
***
— Ei! Mil Truques! Isso realmente é um método de treinamento?
— Sim. Cem por cento. Luke fez a mesma coisa e ficou muito forte. É o meu método de treinamento recomendado.
— S-Sério? Parece meio estranho, mas se você recomenda, então deve ser bom! Quem diria que dava para treinar em uma fonte termal? É isso que significa alcançar o Nível 8? Aah, lá vou eu—glub glub.
O pequeno Gilbert ficou corajosamente sob a cachoeira que desaguava na fonte termal. Seus companheiros de equipe observavam do lado com expressões de espanto. Eu reprimi um sorriso e olhei para o outro lado. Parecia que ele tinha a mesma mentalidade fixa de Luke.
Depois de sair do banho, Chloe, também recém-saída da água e vestindo um yukata, se aproximou de mim e me entregou um envelope com o brasão da Associação dos Exploradores. Aparentemente, esse era o motivo de terem vindo até aqui.
Isso mesmo. Gark disse que enviaria um funcionário da Associação. Então Chloe era essa pessoa. Não deve ter sido fácil vir até aqui e tudo mais.
Aceitei o envelope e o passei diretamente para Sitri.
— P-Por que você não vai abrir?! — Chloe disse, arregalando os olhos.
— Porque eu não preciso. Não pretendo aceitar a missão.
— Hã?!
Ela ficou completamente atônita, mas isso era culpa do Gark. Eu deixei bem claro que não sabia se aceitaria ou não. Mesmo que fosse uma missão nomeada emitida por um nobre, um caçador ainda tinha o direito de recusar. Era absurdo que Gark achasse que um covarde semiaposentado como eu aceitaria uma missão dessas.
Com um sorriso, Sitri pegou um abridor de cartas do bolso e quebrou o lacre do envelope. Acho que ela decidiu dar uma olhada de qualquer forma. Assim como eu tinha Eva para me ajudar nas minhas obrigações como mestre de clã, eu tinha Sitri para me ajudar como caçador.
— P-Por acaso preciso te lembrar que essa é uma missão nomeada do Lorde Gladis?! — Chloe disse freneticamente depois de superar sua surpresa. Ela parecia tentar decifrar minhas verdadeiras intenções. — Isso melhoraria sua reputação e seu sucesso poderia tornar o Lorde Gladis mais amigável com outros caçadores!
— É, aham.
Era errado da minha parte apenas dar respostas mornas e dispensá-la, mas essa não era a questão. Eu não podia fazer uma missão nomeada sozinho e, mesmo que fizesse, isso só aumentaria minhas chances de ser arrastado para confusões nobres. Não havia nada a ganhar para um homem que queria se aposentar. Mas Chloe tinha um trabalho a fazer, ela não podia simplesmente aceitar essa desculpa.
Ah, cara. Você não percebe? Eu não sou o caçador que vocês acham que eu sou.
— P-Por que você está nos olhando assim? — Rhuda disse com uma expressão tensa.
Sitri colocou o resumo da missão sobre a mesa e assentiu para mim com um olhar de quem entendeu tudo.
— Agora compreendo. Não precisamos prosseguir com isso — disse ela.
— O quê?
Eu tive a mesma reação que Chloe, mas não disse nada. Um homem durão é um homem de poucas palavras.
— A missão é um esforço conjunto para exterminar o Esquadrão de Bandidos Barrel — explicou Sitri com um sorriso enquanto guardava sua faca. — Eles são um grupo de bandidos problemático. São grandes, poderosos e astutos. Vieram do leste, consistem em cerca de cem membros e são coordenados o suficiente para dar trabalho até para exércitos profissionais.
— Todos os membros deles são capazes, mas a alta cúpula é excepcional. Eles chegaram recentemente a Zebrudia, mas, devido aos saques que fizeram em outros países, a Associação dos Exploradores colocou uma recompensa sobre eles. Acho que estão bem alto na lista.
Isso parece muito ruim.
Os Caçadores geralmente formavam grupos de seis. Por mais poderosos que fossem, seis Caçadores não eram suficientes para enfrentar quase cem bandidos. Se esses saqueadores conseguiam derrotar até mesmo exércitos profissionais, era seguro presumir que eram formidáveis. Se estavam no topo da lista de recompensas da Associação dos Exploradores, deviam ser bem mais fortes do que o Caçador médio.
Sem necessidade de perseguição. Você acertou em cheio, Sitri. Eliminar esquadrões de bandidos é responsabilidade do Estado. Que se dane essa missão nomeada. O que eles estão fazendo tentando empurrar isso pra cima de mim?
Se era um esforço conjunto, provavelmente envolvia os cavaleiros do Lorde Gladis. Mas eles não gostavam de Caçadores, então por que estavam jogando missões nomeadas para nós agora, do nada? Eu me prometi que teria uma conversa com Gark mais tarde.
Eu pago meus impostos, então podem muito bem recusar esses pedidos assustadores.
— E por que não há necessidade de persegui-los? — Gilbert perguntou com um olhar desconfiado.
— É simples. Eles conseguiram aterrorizar diversos países porque têm mais do que apenas força. São bastante inteligentes e não lutam contra um oponente que não possam vencer — Sitri explicou.
O nome desse esquadrão de bandidos não me dizia nada, mas Sitri reconheceu e até sabia sua história. Os Grieving Souls se concentravam principalmente em saquear cofres de tesouro, mas tinham uma considerável experiência com caçadas de recompensa. Normalmente, vinham atrás de nós, deixando-nos (e por “nós”, quero dizer meus amigos) sem escolha a não ser eliminá-los. Enquanto isso, Sitri acumulava um banco de dados impressionante sobre alvos de recompensa.
— Esses bandidos aterrorizaram muitas regiões. Conseguiram sobreviver até agora porque recuam sempre que uma força mais forte é enviada atrás deles. Não são burros o suficiente para ficarem por perto se um Caçador de Nível 8 foi convocado.
— E-eu entendo — disse Gilbert.
Sitri falava fluentemente; seu tom confiante tornava fácil acreditar em suas palavras.
— Eles sabem como detectar oponentes fortes e devem ter começado a preparar a retirada assim que descobriram quem foi contratado para caçá-los. Não acredito que ainda estejam dentro do domínio do Conde Gladis.
A explicação dela fazia sentido e era fácil de entender. O líder do grupo de Gilbert soltou um gemido. Da mesma forma, parecia que Chloe nunca tinha considerado essa possibilidade.
Soltei um grito silencioso de comemoração. Meu nível inflado estava sendo útil pela primeira vez. Não que eu tivesse planejado aceitar a missão nomeada, mas agora eu não poderia ser culpado se o inimigo já tivesse fugido. Não havia chance de o Lorde Gladis me mandar atrás dos bandidos depois que eles já tivessem deixado suas terras.
Preciso agradecer Sitri por isso mais tarde.
Transbordando confiança, cruzei os braços.
— É isso. Podemos ir atrás deles, mas sinceramente não vejo necessidade. Tenho meu próprio jeito de fazer as coisas — falei para Chloe, fingindo saber do que estava falando.
— Ah, ah, claro.
— Era inevitável que esse tal de Esquadrão de Bandidos qualquer-coisa fugisse quando o Lorde Gladis emitiu a missão nomeada. Acontece. Tenho certeza de que ele ficará satisfeito com isso. Ah, e obrigado pela explicação, Sitri.
— Oh, você me lisonjeia, Krai.
A explicação de Sitri provavelmente continha algumas suposições da parte dela, mas raramente ela estava errada. E, mesmo que estivesse, isso não importava, já que eu não era obrigado a aceitar a missão nomeada.
Agora eu podia deixar as preocupações de lado e matar o tempo até o fim do Encontro da Lâmina Branca. Poderia tomar banho nas fontes termais, provar o famoso manju de dragão das termas e os ovos de dragão das termas, e explorar as lojas de souvenirs.
Eu tive uma ideia! Posso visitar as lojas de doces com a Tino! Ela pode me proteger, e nem eu conheço muito bem as confeitarias daqui. Comecei a sorrir.
— Mestre — Tino disse em um tom apressado. — O Teste realmente acabou?
— Sim, com certeza.
— Mestre…
Havia algo melancólico na voz dela.
Nada de Testes ou qualquer outra coisa. Só restava o paraíso.
Tentei esconder com a mão, mas não consegui conter um sorriso. Enquanto abafava minha risada, Gilbert e seu grupo me encaravam como se eu estivesse fazendo algo esquisito.
***
Droga. Que espetáculo miserável para um Nível 7.
Arnold estava imerso no desespero. Ele já não sabia mais o que fazer. Seu corpo estava pesado como chumbo, mas o que mais sofria era seu espírito. Ao recobrar a consciência, foi tomado por uma profunda sensação de decepção ao perceber que tinha desmaiado só de ver o rosto do Mil Truques. E essa decepção era dirigida apenas a si mesmo.
Talvez fosse o rosto de um Nível 8, alguém que lhe causara todo tipo de sofrimento, mas desmaiar apenas por vê-lo era imperdoável. Um mês atrás, só de ouvir falar disso, Arnold teria caído na gargalhada.
O que mais o chocou foi o que ouviu de Eigh.
— Você está um pouco exausto, Arnold. Passou por muita coisa, e tudo isso enquanto a gente só te atrapalhava. Acho que o peso foi demais pra você. Tire um tempo para descansar nas fontes termais daqui.
Ele demonstrou consideração por Arnold. Isso não era exatamente extraordinário. Arnold era o líder do grupo, e seus companheiros já haviam mostrado preocupação por ele muitas vezes antes. Mas nunca o haviam tratado com palavras carregadas de simpatia ou tentado proteger seus sentimentos. Para ele, isso sempre fora a prova de que era um líder forte.
Desmaiar só porque viu o rosto do seu inimigo mortal. Era uma cena lamentável, mas nenhum dos membros do grupo mostrou qualquer intenção de abandoná-lo. Até mesmo Jaster, um caçador que conseguiu se juntar a Arnold apesar de ser o mais jovem do grupo, não demonstrou um pingo de desaprovação. Sem dúvida, isso era fruto da confiança que Arnold havia cultivado em seus companheiros. Ele entendia isso, mas ainda assim não conseguia se perdoar por ser fraco o suficiente para desmaiar ao ver seu inimigo.
Seus atributos não deveriam ter mudado. Estava extremamente fatigado, mas seus poderes continuavam intactos e sua espada estava em perfeitas condições. Na verdade, sua reserva de mana até aumentou depois de visitar o Palácio Noturno. E, mesmo assim, Arnold agora se sentia fraco.
A confiança total era um dos pilares necessários da força. Se esse pilar tremesse, mesmo alguém de fortaleza inabalável poderia perder sua força. Arnold precisava recuperar sua confiança, mas não sabia como.
Lembrando-se do que Eigh havia dito, ele foi sozinho ao banho principal para tentar se revigorar e refletir. Mas quando viu o enorme banho, quente e fumegante, não sentiu absolutamente nada.
Isso é uma ferida, pensou Arnold. Uma ferida fatal para um homem de força suprema. Uma rachadura havia se formado em seu espírito de caçador. Se não recuperasse sua confiança, uma aposentadoria precoce o aguardava.
Repetidamente, ele se dizia que deveria usar essa humilhação como uma oportunidade para voltar mais forte do que nunca, mas simplesmente não conseguia reunir seu espírito. Sentia como se tivesse se tornado outra pessoa no instante em que desmaiou.
Não entendia como um dia foi capaz de lutar ou sentir raiva. Entendia os princípios, mas seu coração não estava mais nisso. Estalou a língua, como costumava fazer. Caminhou com o peito estufado, como costumava fazer. Mas era apenas uma encenação vazia. Ainda conseguia parecer forte, mas, como uma armadura de metal descascando, Arnold acabaria se tornando um fraco.
Não havia mais ninguém no banho principal. Arnold percebeu que fazia tempo que não andava sozinho. Desde que formou seu grupo, quase sempre havia um companheiro por perto. Algo nisso era solitário. Isso também era outro sentimento que seu eu anterior jamais teria sentido.
Tudo o que fazia parecia fora de seu caráter. Tudo parecia desconexo. Tinha medo de empunhar sua espada novamente. Tinha medo de que a preocupação de seu grupo se transformasse em decepção. Mas, acima de tudo, tinha medo de encontrar o Mil Truques de novo, porque não sabia como reagiria. Quando esse pensamento cruzou sua mente, percebeu o quão longe havia caído.
Eigh havia pedido desculpas ao Mil Truques enquanto Arnold estava inconsciente. Arnold agradeceu a Eigh por fazer isso, mas o Relâmpago Cortante realmente era do tipo que aprovava esse tipo de comportamento? Não. A resposta era um sonoro não.
Arnold sempre levava as palavras de Eigh em consideração, mas a decisão final sempre era dele. Arnold era quem carregava a responsabilidade pelo grupo. Mesmo que Eigh já tivesse pedido desculpas, Arnold ainda teria ido fazer isso pessoalmente. Era assim que ele imaginava um líder poderoso. Esse era o homem que era o Relâmpago Cortante. Então, o que significava ter demorado tanto para perceber algo tão simples?
Outra onda de desespero assolou Arnold. Apesar dessa realização, seu corpo não se movia, o que só aumentava seu desprezo por si mesmo. Ele soltou um suspiro, um suspiro que parecia sugar toda sua força junto com ele.
Ele não conseguia. Nem valia a pena considerar. No estado atual, Arnold não estava apto a ser responsável pela vida de seus companheiros. A Névoa Caída não tinha outra opção senão se desfazer. Ele precisaria conversar com Eigh assim que saísse do banho. Tinha uma obrigação com aqueles que um dia seguiram o Relâmpago Cortante.
Arrastando seu corpo cansado, ele se dirigiu até a banheira em um ritmo lento, quase como se estivesse tentando ganhar tempo. Então, quando estava prestes a se abaixar na imensa banheira, algo estranho surgiu em seu campo de visão. Sua mente ficou em branco. Ele esfregou os olhos lentamente e olhou com atenção. Ao contrário do que esperava, não sentiu medo. Não desmaiou nem tremeu.
O Mil Truques—ele estava nadando peito na fonte termal. Com movimentos graciosos, cortava a água quente sem fazer praticamente nenhum som enquanto deslizava pela superfície. O choque da cena dissipou completamente sua angústia anterior, e ele conseguiu falar com a voz tensa.
— O-O-O que você está fazendo?!
Isso não era uma alucinação. O Mil Truques tentou se levantar às pressas, mas tropeçou de maneira espetacular. A água espirrou alto no ar, e um rosto atordoado olhou para Arnold.
***
Eu estava me divertindo, nadando de peito graciosamente no banho principal, que estava vazio, quando Arnold apareceu de repente. Eu estava tão relaxado que nem notei sua entrada. Por um segundo, pensei que estava tendo um pesadelo.
O banho ao ar livre do meu quarto era pequeno demais, e o banho principal da pousada onde eu estava hospedado estava em reparos, então fiz o esforço de ir aos banhos de outra pousada. E, ainda assim, me deparei com Arnold, de todas as pessoas. Inacreditável. Um azar sem igual. Será que ele estava me perseguindo?
Depois de tropeçar na banheira, olhei rapidamente para cima e vi Arnold me encarando com um olhar tenso. Entrando em pânico, tentei mostrar que não significava nenhuma ameaça sorrindo e acenando com a mão.
Sob a iluminação adequada, pude ver que o corpo de Arnold era temperado para o combate. O tipo de poder que um caçador desejava influenciava na forma como sua matéria de mana alterava seu corpo. Simplificando, se você desejasse força muscular, seus músculos se desenvolveriam; se desejasse velocidade, seu corpo se tornaria mais ágil.
No caso de Liz, muitas caçadoras desenvolviam seus músculos sem que isso ficasse visível. Acreditava-se que isso acontecia porque elas desejavam tanto força quanto beleza.
Eu não era muito bom em notar essas coisas, mas até eu conseguia perceber que o Relâmpago Colidente tinha um corpo muito mais forte que o meu em todos os sentidos. Seus membros deviam ser pelo menos duas vezes mais grossos que os meus. Seus músculos, que pareciam uma armadura, provavelmente nem se moveriam se levassem um golpe de alguém como eu. Dizem que os humanos geralmente têm corpos mais fracos do que os monstros, mas era difícil acreditar nisso ao olhar para o homem à minha frente.
Meus dedos instintivamente tocaram meus Anéis de Segurança. Como era injusto que Arnold ainda estivesse em tanta vantagem, mesmo eu sendo o único dos dois usando equipamento. O azar habitual já tinha me acostumado a esse tipo de contratempo. Sem mencionar que eu não achava que ele me atacaria depois que nossa disputa já tinha sido mais ou menos resolvida ao conversarmos com o vice-líder da Névoa Caída.
Achei que demonstrar medo aqui poderia acabar provocando Arnold. Por algum motivo que eu desconhecia, ele estava ali tremendo.
— Heh. Que coincidência — disse eu, tentando parecer durão.
— Ca-Ca-Ca…
— Cocoricó?
Ops. Falar sem querer o que estava pensando era um péssimo hábito meu.
— CHAMA ISSO DE COINCIDÊNCIA?! O que você está tramando, desgraçado?!
Arnold ficou vermelho de raiva e pisou no chão com força. Só isso já foi suficiente para rachar o piso de pedra e fazer fragmentos caírem do teto. Ele começou a se coçar furiosamente na cabeça. As gotas d’água em sua pele esquentaram e subiram como vapor. Eu já tinha visto Liz fazer isso também, não era um fenômeno raro com os poderes sobre-humanos dos caçadores.
— Calma, Arnold. Eu cheguei primeiro, você que apareceu depois de mim! — gritei com a postura resoluta de um caçador de nível 8.
— Hah?! Chama isso de coincidência?! Eu entrei numa fonte termal e, por coincidência, tinha um caçador de nível 8 nadando?!
Arnold estava quebrado. Sempre achei que ele fosse um cara durão, mas parecia que sua experiência no Palácio Noturno o tinha mudado bastante. Mas, pensando bem, era estranho. O que era mais chocante: isso ou encontrar um dragão em um banho ao ar livre? A ideia me fez estremecer.
— O quê, veio aqui para rir de mim?! — Arnold rugiu. — Para me menosprezar?! Para me humilhar?!
— Calma! Respira fundo! Certo? Eu não teria começado a nadar se soubesse que mais alguém viria. Sei que é falta de etiqueta nadar numa fonte termal, mas me certifiquei de que não tinha ninguém por perto e não estou sujando a água! Só estava aproveitando um bom mergulho!
— Um nível 8 não nada numa fonte termal!
Os gritos de Arnold ecoaram pelos banhos. E ele tinha razão. Com certeza levaria uma bronca da Eva se ela soubesse disso.
A vida não é fácil. Estamos pagando por isso, não dá para pegar leve comigo?
— Arnold, isso tudo é um mal-entendido! Eu não estava só nadando!
Me inclinei levemente para frente e comecei a recuar devagar, tentando acalmar Arnold. Ele parecia que ia me atacar se eu dissesse a coisa errada.
— Huh?! Se tem um motivo, quero ouvir!
— Eu estava, uh… treinando?
— Ah. Aah. AAAH!
Ele soltou um rugido ensurdecedor e bateu a cabeça contra uma estátua de dragão de onde saía água. Os chifres se dobraram, rachaduras apareceram e a água quente começou a jorrar. Aparentemente, a cabeça de um caçador de nível 7 era mais resistente que pedra. Que aterrorizante. Falando em instabilidade emocional…
Mas isso não era novidade para mim, então recuperei a compostura rapidamente. Arnold devia ter cortado a cabeça, porque um líquido vermelho começou a escorrer para a água. Mesmo assim, ele não parou de se bater contra a estátua.
— Eu entendo, eu entendo de verdade! Você só perdeu a paciência um pouco. Tenho certeza de que está exausto. Faz sentido, considerando que você foi ao Palácio Noturno com a Chloe e um grupo abaixo do nível. Se tem algo te incomodando, estou aqui para ouvir.
Ouvindo minhas palavras gentis, Arnold parou de bater a cabeça e, com ambas as mãos, arrancou a estátua do chão.
— Aah! Não temos nada para conversar!
Meus olhos se arregalaram. Ouvi algo se quebrando e um jato de água quente subiu. Fui pego de surpresa e recuei instintivamente. Era uma cena absurda. De pé, segurando uma estátua de pedra acima da cabeça, Arnold parecia uma criatura saída de um pesadelo. Mas eu já tinha visto tanta coisa bizarra que minha sanidade se manteve intacta.
Talvez eu devesse começar a carregar uma câmera comigo. Eu poderia fazer álbuns de fotos com todas as maluquices que já vi e vender para pagar parte da minha dívida.
— Hah, hah. Eu não vou aceitar isso. Eu não posso aceitar isso! Mil Truques! Eu não perdi e não vou suportar a vergonha de uma aposentadoria precoce!
— Huh. É… uh-huh.
— Eu vou tentar de novo! Pode contar com isso! Tentarei quantas vezes forem necessárias! Até quando você vai ficar acomodado? Vou fazer você se arrepender de nos menosprezar!
Por que ele está falando como se eu tivesse feito pouco caso dele?
Eu não tinha interesse em Arnold e seu grupo, e eles não pareciam ser do tipo que se quer como inimigo. Tentei sorrir para Arnold, mostrar que eu não queria brigar com ele, mas mesmo eu só consegui forçar um sorriso tenso naquela situação.
— E-Ei, escuta. Eu não estava zombando de vocês. Não entenda errado. Eu vejo muito potencial em vocês! Sou um aliado!
Como resposta, não recebi palavras, mas sim uma estátua de pedra. Voando em uma velocidade absurda, a estátua ricocheteou na barreira criada por um dos meus Anéis de Segurança e afundou na água. O impacto fez a água respingar no meu rosto, e minhas franjas grudaram na pele, o que não era nada agradável.
Se ele escolhesse jogar outra coisa, talvez eu tivesse conseguido escapar. No entanto, quando minha visão clareou, vi que Arnold estava de costas para mim, saindo das termas a passos pesados. Foi assustador. Eu já estava acostumado com esse tipo de coisa, mas não ficava menos assustador com o tempo. Era por isso que eu sempre carregava Relíquias comigo.
Eu o irritei. Essa é minha última chance. Alguma coisa. Eu preciso dizer alguma coisa.
— Arnold! Você não quer entrar nas termas?!
Nenhuma resposta.
— Afinal, é uma viagem de descanso! Aproveita para relaxar um pouco!
No fim, não consegui dizer nada de útil.
Ah, não adianta.
Sem falar nada, Arnold fechou a porta com um estrondo ensurdecedor.
O silêncio voltou. Sentado na banheira meio destruída, abracei meus joelhos e suspirei.
***
A cabeça de Arnold parecia estar pegando fogo. Ele se esforçava para manter a calma, mas aquilo era demais até para ele.
Ele era tão forte que isso atrapalhava até suas atividades diárias. Sempre tentava controlar sua força, mas hoje simplesmente não conseguiu. Seus passos pesados faziam o chão estremecer quando Eigh espiou para fora do quarto. Seus olhos se arregalaram ao ver a expressão de seu líder. Provavelmente porque era bem diferente da que ele tinha antes de sair.
— Eigh! Vamos nos reconstruir! — ele rosnou, cerrando os dentes com tanta força que pareciam prestes a rachar. — Não podemos deixar aquele palhaço continuar nos superando! Vamos mostrar a ele o que é um verdadeiro caçador de alto nível. “Treinamento”, ele disse! “Cocoricó”, ele disse! Ele ousa me tratar como uma galinha?!
— Hã. R-Recebido! Fomos pegos de surpresa no Palácio Noturno, mas você lutou bem. Se passarmos pelos cofres do tesouro necessários e todo mundo ficar mais forte, tenho certeza de que conseguiremos limpar o Palácio Noturno — Eigh respondeu apressado.
Os outros membros da equipe, que estavam relaxando no quarto, pareciam assustados, mas ao mesmo tempo levemente animados.
Arnold bateu o punho contra a parede, esquecendo completamente suas ideias anteriores sobre desistir da caça.
— Claro que conseguimos! — ele gritou. — Não podemos deixar um homem como aquele ficar acima de nós! Ele diz que é nosso aliado! Essa raiva não vai passar até que o superemos! Não podemos descansar em um lugar como esse! Partimos amanhã, se preparem!
— Amanhã? Outro descanso breve, entendi — disse Eigh, atordoado.
Seguindo Eigh, os outros caçadores começaram a se queixar.
— É, eu já imaginava que não ficaríamos muito tempo, mas só um dia?
— Cara, eu nem entrei na terma ainda.
***
— Aaah, não tem nada melhor do que uma fonte termal. Talvez eu passe o resto da vida aqui.
— Ooo quê? Lugares assim são bons de vez em quando, mas eu morreria de tédio se morasse aqui! Eu ficaria mole — Liz resmungou.
Ela e Luke eram do tipo que não ficavam felizes se não estivessem sempre se movimentando. Eu gostava de passar o tempo sem fazer nada, mas ela tinha um ponto: viver num lugar assim realmente faria qualquer um ficar preguiçoso. Não que eu me importasse em virar um preguiçoso.
— Esse lugar é ótimo. Eu gosto daqui — falei. — Tem tudo o que eu procuro.
— Hm? Tudo o que você procura? — perguntou Tino.
Eu podia desfrutar dos sabores da terra e do mar, relaxar em uma fonte termal… A aparição do Arnold foi inesperada, mas esse lugar tinha a serenidade que eu sempre sonhei.
Havia algo em Suls que fazia o ambiente parecer aconchegante, mesmo ao ar livre. Até um eremita como eu não conseguia evitar dar uma volta de vez em quando. As ruas eram repletas de barracas vendendo comidas deliciosas. Era tão bom que decidi comprar algumas lembranças. As melhores eram os ovos de dragão da terma (na verdade, um ovo de galinha) e o manju de dragão da terma.
Ver Liz, Sitri e Tino com roupas diferentes do normal dava a elas um charme sedutor.
— Seria legal se tivesse mais hóspedes além de nós — comentei, rolando pelo tatami.
— Parece que normalmente tem bem mais gente — respondeu Sitri.
Bom, dadas as circunstâncias…
Estar perto do Esquadrão de Ladinos Barril ou seja lá quem fosse era assustador para qualquer um que não soubesse lutar. Eu que o diga. Se não tivesse amigos fortes ao meu lado, nem sei o que estaria fazendo agora.
Deitado de lado, olhei para a terma ao ar livre.
— Rawr.
— Miau.
— Matar matar?
Os não humanos do nosso grupo, Matadinho, Drink e o dragão da terma, estavam tendo um encontro interespécies. Como era o recém-chegado do grupo, o dragão da terma parecia um pouco retraído, mas se deram bem melhor do que eu esperava.
É um mistério o motivo de ainda não termos sido parados pelas autoridades. E peraí, por que eles estão fazendo isso no meu quarto?!
O sol se pôs e a noite chegou. Todo mundo saiu do meu quarto a contragosto, e o silêncio reinou. Normalmente, compartilharíamos o quarto, mas como Tino estava conosco, Sitri gentilmente providenciou quartos separados. Por mais próximos que fôssemos, um tempo sozinho era sempre importante.
A luz prateada filtrava-se pela grande janela de vidro. Uma linda lua cheia brilhava no céu. Saí da terma — já tinha perdido a conta de quantas vezes entrei ali naquele dia — e me joguei em um futon macio. A maioria dos quartos em Zebrudia era mobiliada com camas, então era raro dormir diretamente no chão. Eu gostava dos dois jeitos.
A fonte termal me deixou completamente relaxado. Claro, eu ainda usava várias Relíquias, mas isso era inevitável; a ideia de dormir sozinho em uma estalagem numa região cheia de ladrões era insuportável.
Uma sonolência agradável me dominou enquanto eu me enfiava debaixo das cobertas e pensava no que fazer amanhã. Segurei o sono por um momento, aproveitando aquele instante de puro prazer. De repente, ouvi o som da porta se abrindo. Algo rapidamente levantou os cobertores e se enfiou debaixo deles.
— Com licença!
Soltei um gemido meio idiota. A voz baixa pertencia a Liz. Eu não conseguia enxergar direito no escuro, mas os braços e pernas pressionados contra mim tinham o mesmo calor de sempre.
Por que a Liz está aqui?
— Agora não, Liz. Vão ficar bravos com a gente — murmurei, ainda tomado pelo sono e pela confusão.
Eu não tinha trancado a porta?!
Para a maioria dos caçadores que viviam na estrada, dormir perto de homens e mulheres não era nada incomum, mas dividir a mesma cama era outra história. Não éramos um bando de crianças em uma festa do pijama. E quando Liz aprontava esse tipo de coisa, era sempre eu quem levava bronca. Mantendo minha posição, forcei meu corpo cansado a se mexer e rolei para o lado.
— Qual é, somos só nós dois. Qual o problema? Vamos brincar!
— Já tá muito tarde.
Você tem ideia de que horas são?
Não era exatamente o meio da noite, mas eu estava completamente esgotado. Tentei mostrar minha recusa virando de costas para ela, mas então senti algo quente e macio pressionando contra mim. Uma pele lisa e quente roçou nas minhas costas. Ouvi uma voz eletrizante e doce bem abaixo do meu ouvido.
— Tudo bem, então. Você pode ficar assim. Eu só vou fazer o que eu quiser.
O comportamento selvagem de Liz era muito característico dela. Pelo jeito, estava no humor para ser mimada. Ela sempre seguia o próprio ritmo, fazendo coisas como sair à caça de dragões. Me perguntava como ela tinha acabado assim, sendo que o irmão mais velho e a irmã mais nova eram tão bem comportados.
Enquanto eu pensava nisso, dois braços se estenderam e me envolveram por trás. O calor do corpo dela fez com que eu começasse a me sentir abafado. Suas mãos roçavam contra o meu peito e tremiam conforme ela soltava um gritinho agudo. Era gostoso sentir sua pele quente apenas com um toque. Meus dedos seguiram sonolentos ao longo de seus braços até roçarem em seus ombros delicados.
Ela não está usando pijama?
— Ah! Que safado!
Não, tudo bem. Ela tá de roupa de baixo. Espera, nada nisso tá bem!
Seus dedos entrelaçaram os meus, deslizando pelo meu corpo. Sua bochecha esfregava suavemente a parte de trás do meu pescoço, e eu conseguia sentir distintamente as batidas do coração dela contra minhas costas. Os dedos dela desceram pela gola do yukata em que eu dormia. Era quase inimaginável que essas mesmas mãos fossem capazes de atravessar uma armadura.
Para com isso. Isso faz cócegas. E peraí. Nossas posições não estão meio erradas?
Eu me sentia como se estivesse tendo um sonho estranho. Se fosse a Tino atrás de mim, talvez fosse só isso, mas com Liz, era certo que isso estava realmente acontecendo.
No meu estado sonolento, tentei segurar sua mão, mas ela riu e deu tapinhas no meu peito. Assim como com os braços, começou a entrelaçar as pernas e se esfregar contra mim. Ela estava agindo como se fôssemos um casal de verdade ou algo assim. Lucia, com sua tendência à temperança, provavelmente teria um surto se visse isso.
Não podia deixar as coisas continuarem assim. No começo, achei que conseguiria simplesmente dormir, mas ela estava passando dos limites.
— Ei, Krai Baby, me toca mais.
Eu não tô te tocando! Você que tá me tocando!
Me virei para afastar Liz e seus sussurros maliciosos, mas então a porta se escancarou. A luz foi ligada sem piedade e as cobertas foram arrancadas de cima de nós. Era Sitri. Ela apontava sua pistola d’água rosa e olhava para nós com uma expressão tensa, algo raro de se ver no rosto dela nos últimos tempos. Atrás dela, prontos para o combate, estavam Matadinho e uma Tino completamente vermelha.
— Liiizzy! Você nunca, nunca, nunca tem um pingo de autocontrole! Você disse que tinha esquecido alguma coisa e eu acreditei! — Sitri disse.
— Hã?! Eu faço o que eu quiser! Agora para de interromper, as coisas estavam ficando boas!
— I-Isso é tão indecente — Tino acrescentou. Seus lábios tremiam enquanto ela olhava, incrédula, para o estado de Liz. No fim, Liz realmente tinha se enfiado no meu futon só de roupa de baixo. Nem estava usando sua Relíquia de sempre.
Tanto faz pra mim. Dá pra todo mundo sair e me deixar dormir?
— T! Siddy! Ele é meu. Sumam daqui!
Liz pegou um travesseiro e o lançou em alta velocidade. Ele acertou Tino em cheio no estômago, fazendo-a soltar um som engraçado ao ser jogada para trás. Eu lembrava das nossas guerras de travesseiros quando éramos crianças, mas algo nisso parecia diferente.
— Oh, como você pôde fazer isso com a T?! — Sitri exclamou em um tom exagerado, levando a mão à boca. — Krai, você viu isso? Lizzy! Ela assassinou a adorável querida T!
Sitri nem ao menos olhou na direção de Tino ao dizer isso.
Matadinho retirou um punhado de travesseiros de algum lugar e os entregou para Sitri. Ela socou um deles de leve e lentamente ergueu-o sobre a cabeça.
Vocês parecem estar se divertindo bastante.
— Hoje será o dia em que eu te farei entender, sua irmã indiscreta, imoral e imbecil!
— Você tá me chamando de imoral?! Quem foi que usou o dragão como desculpa para o banho misto?! Eu sei muito bem o que você fez! T me contou!
Era o sujo falando do mal lavado, e eu não sabia nem o que dizer. Meus preciosos amigos de infância estavam destruindo minha preciosa tranquilidade.
Tá bom, tá bom, eu também gosto de guerra de travesseiros. Mas dá pra vocês não fazerem isso no meu quarto?
— Observe, Krai, eu vou expulsar minha irmã desse quarto e depois te faço uma massagem.
— Me espera, Krai Baby. Só preciso de um minuto pra mandar essa daí pro espaço!
Eu ansiava por Ansem e Lucia, os pacificadores habituais dessas situações. Luke não servia pra isso; ele só se tornaria mais um participante. Eliza, por outro lado, vivia no próprio ritmo e geralmente ficava sentada quietinha, como parte da mobília.
Depois de ser arremessada para uma distância impossível por um simples travesseiro, Tino cambaleou de volta para os pés.
— E-Eu vou proteger você, Mestre— Agh!
Um travesseiro acertou em cheio o rosto dela. Eu nem consegui ver quem jogou—e assim começaram as hostilidades.
— Droga! Por que você sempre tem que atrapalhar?! Não posso nem sair para um encontro!
— Pressione a mão contra seu peito achatado e tenho certeza de que a resposta vai ficar bem clara! Além disso, Krai tem uma dívida financeira comigo!
— Mata, mata!
As duas irmãs pareciam crianças enquanto gritavam e atiravam travesseiros uma na outra. Eu imaginei que essa fosse a verdadeira natureza delas. Seria uma cena adorável, se os travesseiros não estivessem voando em uma velocidade tão alta. Guerras de travesseiros não deveriam soar como tiroteios.
Em termos de força física, Liz levava vantagem, mas Sitri tinha a seu lado a monstruosidade chamada Matadinho. Eu não conseguia prever quem venceria. E o que minha dívida tinha a ver com isso?
Nem eu conseguia dormir em uma situação dessas. Me levantei, bocejei bem alto e coloquei as Relíquias que eu mantinha perto do travesseiro. Pensei em sair e esperar que elas se acalmassem. Desviei dos travesseiros voadores engatinhando pelo chão. Não era minha primeira vez atravessando esse tipo de campo minado.
— Vou para os banhos, cuidem-se, pessoal — disse em voz baixa.
As irmãs Smart continuaram tentando se exterminar enquanto eu escapava do quarto. Diante de mim, vi o dragão das fontes termais encolhido dentro do banho ao ar livre.
Que tipo de garotas conseguem assustar um dragão?
O vento noturno soprou contra mim quando saí. Eu estava apenas de yukata, mas tinha minhas Relíquias, e essa era uma cidade de fontes termais, além do fato de que a segurança havia sido reforçada após o incidente com o dragão das fontes termais. Achei que provavelmente ficaria bem.
Olhei para o céu e encarei a lua cheia, uma esfera perfeita, enquanto caminhava meio cambaleante. Talvez por causa da energia geotérmica, até o vento era relativamente quente e agradável contra minha pele. Parecia um sonho. Meu Nível 10 de Sonolência havia diminuído durante a guerra de travesseiros, mas agora estava voltando com tudo.
Qual fonte termal eu deveria escolher? Já é noite, então talvez o mesmo lugar onde fui mais cedo? Arnold está hospedado lá, mas duvido que ele me ataque. Não depois da nossa conversa de banho.
Bocejei enquanto caminhava pela rua iluminada pela lua. Nem era meia-noite ainda, mas havia pouquíssimas pessoas por perto. A solidão era boa, mas parecia um desperdício para uma cidade tão bonita. Enquanto andava sem pressa, cheguei ao canteiro de obras que tínhamos visto mais cedo.
Iluminado pelo luar, havia algo de sobrenatural naquele buraco no chão. Não tinha reparado antes, mas uma névoa branca subia dali. Disseram que a construção estava suspensa, mas talvez eles já tivessem encontrado água quente?
Então, de repente, no meio dos meus devaneios, algo começou a se erguer do buraco. Fiquei paralisado. Esfreguei os olhos. Parecia uma corda cinza. Sob o luar, brilhava com um lustro estranho. Não conseguia dizer o quão longa era.
O que poderia ser?
Talvez por causa do sono, aquilo nem parecia real. Observei, apático, enquanto algo silenciosamente agarrou a borda do buraco e se puxou para fora. Graças à iluminação da lua, consegui ver claramente.
Franzi a testa. Meu cérebro não conseguia acompanhar a situação. A coisa que saiu do buraco… era humana. Ou, pelo menos, se ainda podíamos chamar de humano alguém de pele cinza, cabelos longos e acinzentados com pontas negras que se retorciam como tentáculos. Mas a silhueta era bastante humana. Até estavam vestindo roupas, embora fossem apenas trapos.
Seria um daqueles golems que Sitri estava tentando vender? Foi modelado com base no Matadinho? A cor da pele era a mesma.
A criatura misteriosa saiu completamente do buraco e olhou brevemente para a lua cheia antes de virar bruscamente na minha direção. Seus olhos bem definidos se arregalaram. Mas eu estava tão surpreso quanto ela.
A pessoa cinza se aproximou lentamente. Passou sob o arame farpado e parou a poucos centímetros de mim. Eram consideravelmente menores do que eu. A pele era lisa como porcelana, e seus traços eram belos, mas não completamente humanos. A inexplicável criatura caminhou até mim e me encarou com olhos semelhantes a vidro.
Havia um padrão parecido com uma tiara desenhado em sua testa, mas nada era tão marcante quanto seus cabelos ondulantes. Nunca tinha visto algo assim antes, mas eu estava acostumado a lidar com seres não humanos. Apenas pensei que pareciam muito menos assustadores que Drink, o dragão das fontes termais, ou Matadinho.
Isso mesmo. Sitri mencionou uma lenda sobre uma espécie Sapien nesta região. Supostamente, não havia avistamentos recentes, mas talvez esse fosse um deles? Que droga. Por que meu timing é sempre tão ruim?
Piscando, a criatura hesitante estendeu a mão e deu um tapinha no meu braço. Não parecia hostil. Parecia inteligente. Me permiti relaxar um pouco.
Ultimamente, tenho encontrado muitos não humanos. Pena que não me interesso por eles.
Com uma expressão estranha no rosto, o humanoide abriu a boca e falou com uma voz melodiosa.
— Ryu-ryu-ryuu-ryuu?
— Ah, desculpa, estou indo para uma fonte termal.
Se isso não for um dos golems da Sitri, então isso significa que Suls está cercada por criaturas estranhas demais?
Tentei me virar, mas a criatura soltou um grito bizarro.
— Ryaa!
— Hã?!
Seus cabelos semelhantes a tentáculos se espalharam e se enrolaram ao redor do meu corpo. Eu estava usando Anéis de Segurança, mas eles nem sempre eram eficazes contra ataques de imobilização.

— E-Espere aí?! O quê?!
— Nós não somos amigos?!
— Uryuu!
Com apenas o cabelo, a criatura me ergueu e me balançou triunfantemente. O sono foi arrancado de mim na hora. O cabelo me envolvia com uma força incrível, mas não parecia que a criatura estava tentando me esmagar até a morte. Tentei mexer os braços, mas resistir era inútil.
Ainda me segurando, a criatura começou a correr. Foi nesse momento que me arrependi de ter saído sozinho à noite. Meu captor pulou facilmente por cima do arame farpado. Sabendo o que havia do outro lado, comecei a gritar.
— Ei, espera! Banheiro! Eu preciso ir ao banheiro!
— Ryuu!
Sem hesitar, aquela criatura bizarra pulou direto no buraco, levando-me junto.
Mas que diabos…
***
— Lizzy, o Mestre ainda não voltou — choramingou Tino.
Lizzy estava encolhida, dormindo no chão de tatami coberto de travesseiros. Aquela guerra de travesseiros foi algo que Tino jamais tinha visto. Sendo caçadoras de alto nível, até uma simples briga entre irmãs se transformava em uma batalha caótica.
Voando como cometas, os travesseiros tinham força suficiente para mandar Tino pelos ares se a acertassem em cheio. Quando a manhã chegou, o quarto estava uma completa bagunça. Ela achava errado Lizzy ter invadido o futon do Mestre, mas não esperava que Siddy perdesse a calma e ficasse tão agressiva.
Ao ouvir a voz de Tino, Lizzy se sentou e esfregou os olhos.
— Mm, hã? Já é de manhã?
— Esquece isso! O Mestre disse que ia para uma fonte termal, mas ainda não voltou!
— E daí? — disse Siddy, bocejando. Seu bocejo era incrivelmente parecido com o de Lizzy.
Tino ficou pasma com tanta indiferença.
— Hm? T, será que você está preocupada porque algo pode ter acontecido com o Krai só porque ele não voltou ainda?
— Hã?
Era exatamente isso. Ela estava preocupada. Mas, pensando bem, não era seu lugar ficar se preocupando com alguém tão poderoso quanto seu Mestre.
— Ah, eu tinha a noite toda pela frente, e a Siddy estragou tudo. Acho que vou dar um pulo numa fonte termal — Lizzy resmungou, soltando outro bocejo.
— V-Você também, Lizzy?! Não está nem um pouco preocupada com o Mestre?!
Isso era impensável vindo de alguém que estava sempre grudada no Krai. No entanto, Lizzy soltou um suspiro leve.
— Eu confio no Krai Baby. Se ele ainda não voltou, deve ter um bom motivo. Você é uma fraca, T. Se tem tempo pra se preocupar, se preocupe com você mesma.
No alojamento vazio, Tino caminhava ao lado de Lizzy e Siddy. Diferente dos prédios da capital imperial, este era feito de madeira e tinha um ar exótico. Havia até um pátio interno com uma cachoeira alimentada por uma fonte termal. Mas onde o Mestre tinha ido? Tino se pegava olhando ao redor, procurando por ele, sem sucesso.
Ela estava tonta depois de levar um travesseiro na cara, mas tinha certeza de que ele disse que ia para uma fonte termal. Na hora, achou que ele estava saindo porque não gostou da guerra de travesseiros, mas será que havia outra razão? O Mil Truques era um caçador que calculava cada ação e ocultava seus verdadeiros propósitos.
De repente, Lizzy parou. Olhou ao redor e piscou algumas vezes.
— Hmmm, que estranho… — murmurou.
— O que foi? — perguntou Tino, apreensiva.
Não deveria haver nada de incomum acontecendo. Mas então, Siddy fez uma expressão peculiar, um misto de preocupação e irritação.
— Meu Deus, Krai é sempre tão imprevisível — disse. — E eu tinha deixado bem claro que ainda não estava nem perto de terminar os preparativos.
Do que essas duas estavam falando? Vendo a seriedade nos rostos delas, Tino não pôde evitar ficar alerta. Então, uma das funcionárias da pousada se aproximou. Era uma mulher usando um quimono cinza, como todas as outras empregadas do local. Ela tinha maquiagem pesada e cabelos curtos. Tino ficou surpresa; não reconhecia essa funcionária.
A mulher sorriu ao vê-las, moveu-se para o lado e fez uma reverência suave.
Levou um minuto para Tino notar, mas algo parecia estranho. A pousada — estava estranhamente silenciosa. Ainda era cedo, mas deveria haver movimento. Parecia improvável que os funcionários de uma pousada de luxo para comerciantes e nobres estivessem ausentes em um horário em que muitos hóspedes costumavam partir.
Será que algo está acontecendo?
Enquanto tentava entender o motivo daquele silêncio, Lizzy se aproximou da funcionária sem hesitar. A funcionária manteve o sorriso e inclinou a cabeça de leve, curiosa. Lizzy sorriu de volta — e então, sem aviso, desferiu um soco direto no plexo solar da mulher. Foi um golpe impiedoso. O impacto ressoou como o estrondo de um canhão, deixando Tino em choque.
Havia uma regra entre os Grieving Souls (na verdade, valia para todos os membros dos Primeiros Passos) que proibia ferir civis. As regras estabelecidas por Krai eram uma das poucas coisas que conseguiam conter a impulsividade de Lizzy.
Mas o que chocou Tino não foi o ataque repentino de Lizzy. Foi o fato de a suposta funcionária — uma civil — ter bloqueado o golpe. Seu rosto mostrou uma breve expressão de dor, mas nenhum civil deveria ser capaz de resistir a um ataque forte o suficiente para perfurar armaduras.
Lizzy seguiu com um chute. Era tão rápido que até mesmo Tino teve dificuldade em acompanhar, mas a mulher desviou com a leveza de uma folha ao vento. E não só isso — conseguiu contra-atacar. Num instante, uma chuva de bastões metálicos voou em direção a Liz de vários ângulos. Eles eram rápidos como balas, mas Lizzy os rebateu todos no ar.
Com a perna ainda erguida, ela sorriu.
— Agora entendi. Você é uma shinobi, né? Daqueles batedores do leste?
No chão, havia pequenas estacas de metal. Não possuíam nenhuma característica distintiva além das pontas afiadas. Devia ter sido necessário um treinamento intenso para aprender a utilizá-las com facilidade e atingir um alvo num piscar de olhos.
A mulher deu de ombros.
— Onde está o Mil Truques? — perguntou, ignorando a pergunta de Lizzy.
Lizzy sorriu. Retribuiu o favor e não respondeu.
— E como eu posso saber que você é uma shinobi?
O ar ao redor de Lizzy começou a se distorcer, a energia do seu corpo sendo convertida em calor. Ela desapareceu. No mesmo instante, a mulher misteriosa saltou para o ar.
— Sabe, eu sempre quis lutar contra uma shinobi!
— Hm?!
Rachaduras se formaram no piso de madeira. Mesmo vestindo um yukata, que não era nada prático para se movimentar, cada soco e chute de Lizzy deixavam claro por que ela tinha o título de “Sombra Sufocada”. A mulher de quimono estava completamente na defensiva. Num instante, sacou uma lâmina curta enquanto evitava por pouco os ataques de Lizzy.
Lizzy era claramente mais forte, mas apenas uma adversária formidável conseguiria sequer desviar de seus golpes. No mínimo, a mulher devia absorver mana regularmente para conseguir algo assim. Com técnicas especializadas, ela se movia silenciosamente, com a leveza de uma folha caindo. Lizzy tentava, mas não conseguia acertá-la.
Então, sem fazer nenhum som, várias silhuetas surgiram atrás da mulher.
— O quê?!
Tino não pôde evitar engolir em seco. As silhuetas pareciam civis; nenhum deles carregava algo que parecesse uma arma, e seus rostos tinham expressões serenas, sem traços de familiaridade com a violência. Mas aquilo era um disfarce. Nenhum humano normal ficaria tão calmo ao assistir Lizzy lutar.
Os recém-chegados sacaram armas. Eram kodachi negras — a mesma arma da mulher de quimono. Seus movimentos eram sincronizados a um nível inquietante. De todas as direções, bastões negros cortaram o ar. Ao mesmo tempo, alguns dos novos invasores atacaram Lizzy e Siddy.
Tino se lançou na batalha sem hesitação. Ela não estava armada, mas não podia simplesmente ficar assistindo. A mulher de quimono tinha demonstrado um talento extraordinário, mas os outros não eram tão fortes. Entretanto, nem mesmo Lizzy conseguiria lidar facilmente com múltiplos inimigos ao mesmo tempo. Tino desviou de uma lâmina e encurtou a distância. Lutar contra inimigos armados significava que precisava se aproximar.
Mais e mais silhuetas surgiam correndo. Eles não eram aliados de Tino, eram reforços dos invasores. Quantos eram? Enquanto pensava nisso, um dos agressores de Siddy e três dos de Lizzy caíram ao chão como fios cortados.
— Ora, pensar que só acertei quatro. Há bastante talento nesse grupo — disse Siddy, um pouco surpresa. Em algum momento, ela havia sacado sua pistola d’água rosa. Aquela era uma Relíquia sua. Uma arma aterrorizante capaz de carregar automaticamente qualquer poção que estivesse com ela. Pelo visto, ela conseguiu contra-atacar enquanto evitava seus inimigos.
— Está enferrujada?! — Lizzy exclamou, lutando como se não estivesse em desvantagem. — Isso é porque você fica brincando demais!
— E o que você quer que eu faça? Nossos últimos cofres de tesouro estavam cheios de inimigos imunes a poções…
— Derrubem a Ignóbil primeiro! — ordenou a mulher de quimono.
Alguns dos reforços avançaram sobre Siddy, mas ela sequer demonstrou preocupação.
— Que pena. Vocês chegaram um pouquinho tarde demais.
Houve um som de gotas caindo. O olhar de Tino foi instintivamente atraído para a origem do som, e o que viu fez seus olhos se arregalarem.
A serena cachoeira no pátio estava assumindo a forma de um humano. Dentro de seu corpo translúcido, havia um objeto esférico. Uma fina névoa subia da figura robusta conforme ela se aproximava dos invasores.
— Este é o meu novo golem! — anunciou Sitri. — É fácil de transportar e pode ser ativado em segundos, basta ter água! Você só precisa jogá-lo dentro!
Aparentemente, em algum momento ela havia jogado núcleos de golem na cachoeira. Ela só planejava visitar os banhos, mas ainda assim carregava núcleos de golem consigo. Siddy estava sempre preparada para tudo.
Logo após o primeiro, mais golems começaram a surgir. Os shinobi, antes calmos e coletivos, começaram a recuar. Os recém-formados golems de água termal avançaram sobre eles de uma vez.
***
— Já vai embora, velho? Você veio até uma cidade termal, por que não fica e aproveita um pouco mais? — disse Gilbert, mantendo sua falta de etiqueta até o fim.
— Cala a boca! Arnold está ocupado — Eigh interrompeu, como sempre fazia. — Chegamos em Zebrudia faz pouco tempo, não temos tempo para ficar brincando.
Depois de uma noite de descanso, os membros da Névoa Caída estavam completamente revigorados. Prontos para partir, reuniram-se no único portão de Suls. No posto de controle próximo ao portão, que era praticamente indefensável, um grupo de pessoas que pareciam caçadores estava sendo processado. Talvez fossem turistas?
A aparência da Névoa Caída havia mudado drasticamente durante a viagem. Seu equipamento e sua carruagem foram substituídos várias vezes após batalhas árduas. Pareciam desgastados, nada que lembrasse um grupo liderado por um Caçador de Nível 7. No entanto, seus rostos não estavam sombrios.
Enquanto Arnold continuasse de pé, a Névoa Caída jamais morreria. O fato de ninguém ter deixado o grupo, mesmo depois de testemunhar o poder do Mil Truques, era prova disso. Chloe olhou com admiração para o Relâmpago Estrondoso agora que ele estava de volta.
Caçar tesouros era um trabalho árduo. Passar por batalha após batalha desgastava a alma. Muitos caçadores sem ferimentos físicos nunca mais pegavam em uma espada por conta de feridas no espírito. Não era raro que caçadores se aposentassem depois de testemunharem o brilho ofuscante de um gênio e perderem a confiança em si mesmos.
Chloe não trabalhava na Associação dos Exploradores há tanto tempo, mas já tinha visto muitos casos assim. Quando Arnold desmaiou ao ver o rosto de Krai, ela tinha quase certeza de que ele iria se aposentar.
Ao notar os olhares de Rhuda e dos outros, Arnold franziu a testa. Seus olhos dourados e semicerrados brilhavam intensamente.
— Fiz um papel lamentável ali atrás — disse ele. — Mas agora eu entendo como aquele homem opera.
— Então você não vai desistir? — perguntou Chloe, sua voz carregada de admiração.
Ele estava sendo teimoso? Não, talvez isso fosse simplesmente o que um verdadeiro caçador deveria ser.
Eigh respondeu no lugar de Arnold.
— É claro que não vamos desistir — disse ele com um sorriso debochado. — Arnold não vai aceitar a derrota tão facilmente. Afinal, nosso objetivo é ser os melhores caçadores que existem, e eu acho que podemos conseguir. O Mil Truques poupou Arnold Hail sem motivo nenhum, e ele vai se arrepender disso!
Havia convicção na voz de Eigh. Chloe achava que começava a entender, ainda que apenas um pouco. O Mil Truques era elogiado por sua genialidade, mas tinha um defeito evidente até mesmo para uma amadora: complacência.
Durante toda a viagem, ele nunca abandonou essa atitude relaxada. Deixou rastros óbvios para Arnold seguir e depois esperou pela Névoa Caída em Suls, como se estivesse zombando deles. Antes dessa jornada, Chloe nem sequer havia percebido essa falha em Krai.
Krai olhava Arnold de cima para baixo. Ele podia ter uma vantagem esmagadora agora, mas qualquer brecha em sua defesa seria uma oportunidade para Arnold alcançá-lo. O Relâmpago Estrondoso ainda tinha muitos cofres para explorar em Zebrudia; havia muito espaço para crescer. Sem exceção, as Mil Provações tornavam as pessoas mais fortes. A menos que esse novo vigor e determinação de Arnold também fizessem parte dos cálculos de Krai?
— Vamos ter que pensar em uma boa provocação, certo, Arnold? — disse um dos membros da Névoa Caída com um sorriso.
— Idiota! — Arnold gritou. — Eu não sou como aquele homem.
— M-Mal aí!
Pelo jeito, o Mil Truques tinha dito algo que realmente mexeu com Arnold. O autocontrole era praticamente obrigatório para caçadores de alto nível, e, como resultado, não era fácil irritar um deles.
Eigh olhou para Rhuda e depois para todos os caçadores do Furacão Escaldante. Eles haviam criado um laço durante suas viagens juntos e agora estavam ali para se despedir da Névoa Caída. Eigh apertou a mão de cada um deles e deixou algumas palavras de despedida.
— Bom, nos vemos na capital imperial — disse ele. — Se planejam ficar por aqui por um tempo, fiquem de olho naquele cara.
— Tá tranquilo, até mesmo o Krai não… — um dos caçadores começou a falar, mas parou no meio da frase. — Tá sugerindo que ele pode aprontar alguma coisa por aqui?
— Sei lá — respondeu Eigh com uma risada. — Mas não custa ser cauteloso. Não é mesmo, senhorita?
— Sim, suponho que sim — disse Chloe.
Nem mesmo ela podia afirmar com certeza que nada aconteceria. Até agora, Krai havia feito tudo como bem entendia, quase como se estivesse apenas se divertindo. Ela já tinha observado muitos caçadores, mas depois de ver o Mil Truques em ação, o achava completamente indecifrável. Só de pensar no que diria a Gark em seu relatório, já sentia uma dor de cabeça.
Com o céu completamente limpo, era um momento ideal para pegar a estrada. Eigh bocejou e se virou para o portão. Indo de carruagem, levaria alguns dias até a capital imperial. Agora que estavam livres das maquinações do Mil Truques, certamente teriam uma viagem tranquila.
Com Arnold na liderança, a Névoa Caída começou a caminhar em direção ao portão. Sendo um destino turístico, o portão não parecia muito resistente. Apenas alguns guardas estavam por perto, e eles não chegavam nem perto do nível dos cavaleiros que protegiam a capital imperial. Tinham ouvido que o número de visitantes havia caído por conta dos bandoleiros, mas como avistaram alguns turistas, talvez a situação tivesse mudado.
Essa jornada teve um impacto profundo não apenas em Arnold, mas em todos da Névoa Caída. Eles trocaram todos os seus equipamentos e suprimentos. Tiveram o privilégio de experimentar uma relíquia de alto nível.
Seus cofres estavam quase completamente vazios (em parte por causa das multas pelo banho termal que Arnold destruiu), o que significava que provavelmente não teriam muito tempo para descansar num futuro próximo. Mas, uma vez que superassem esse revés, Arnold Hail e a Névoa Caída estariam melhores do que nunca.
Ainda havia traços de fadiga nos movimentos de Arnold, mas ele parecia tranquilo, o oposto exato de como estava quando chegou a Suls. Da mesma forma, seus companheiros exibiam expressões de determinação. Eigh tinha seu sorriso debochado, e Arnold respondia com firmeza, como sempre faziam. Chloe os observou partir com um sorriso.
Então, um grupo de caçadores, cinco ao todo, homens e mulheres, apareceu do outro lado do portão. Estavam vestidos de forma muito leve, como se tivessem vindo apenas para relaxar nos banhos termais. Estavam todos a pé também. Pelo menos tinham espadas na cintura, mas nada de armadura. Usavam sobretudos, o que impedia Chloe de fazer um julgamento definitivo, mas pareciam formidáveis o suficiente, tornando ainda mais misterioso o fato de não terem uma carruagem.
Com uma reverência, o homem descontraído à frente do grupo abriu caminho para Arnold. Eigh agradeceu e sua carruagem de qualidade quase inferior seguiu caminho.
Então, quando Arnold estava mais ou menos na metade do trajeto, aconteceu. Diante dos olhos de Chloe, o homem girou em um movimento fluido e gracioso. Os olhos de Eigh se arregalaram. Gilbert e Rhuda ficaram sem palavras. O homem, porém, manteve um sorriso relaxado, assim como quando deu passagem para Arnold.
Sua mão emergiu de dentro do sobretudo, empunhando uma espada. A lâmina desenhou um arco no ar. Tudo o que Chloe conseguiu fazer foi prender a respiração. A lâmina reluzente estava indo direto para o pescoço de Arnold.
***
Uma das especialidades entre os Alquimistas era a criação de golens. Os golens de banho termal de Sitri eram uma arma sem precedentes.
Obedecendo suas ordens, atacaram os shinobi. Os agressores eram fortes o suficiente para enfrentar Liz de igual para igual. A mulher que deu o primeiro golpe era a melhor deles, mas isso não significava que os outros fossem inimigos fáceis. Seja em técnica, força ou experiência, os golens eram inferiores em todos os aspectos.
Seu diferencial era a conveniência de precisarem apenas de água para tomar forma e sua capacidade de permanecer ativos enquanto seu núcleo estivesse intacto. Sitri vendia os golens de banho termal como guardas, mas na verdade não passavam de barreiras. No entanto, isso mudava quando estavam reunidos em grande número.
Os golens disparavam projéteis formados pela água quente que compunha seus corpos. Cada disparo individualmente não era particularmente poderoso, mas um dilúvio deles era o suficiente para restringir os movimentos de um alvo. Não havia muita chance de Liz ser atingida e, se fosse, poderiam lidar com isso depois.
O número de agressores continuava a crescer, mas ainda estava dentro da capacidade de Liz e Sitri. A Sombra Sufocada era especialista em atravessar multidões. Se ela conseguisse eliminar aquele líder escorregadio, Sitri e seus golens poderiam cuidar do resto.
Observando os arredores, Sitri levou os dedos à boca e soltou um assobio. Enquanto fazia isso, tentava identificar seus atacantes. Tinha poucas pistas, mas obteve um indício ao ver como conseguiam manter a Sombra Sufocada ocupada. Pareciam ter altos níveis de mana material, mas não eram caçadores. Shinobi, ou Ninjas, como essa classe era chamada, eram extremamente raros nessa parte do mundo. E se tinham tantos reunidos sob uma mesma bandeira…
O enxame crescente de atacantes começou a ignorar Tino e focou-se em Sitri. Os golens formaram uma parede protetora à sua frente, balançando seus enormes e poderosos braços. Mas os oponentes conheciam a contramedida adequada: apontaram suas kodachi negras diretamente para os núcleos dos golens. Deveria haver alguma resistência, mas os shinobi perfuraram os núcleos com facilidade, dissipando os golens. Parecia que ainda havia espaço para melhorias.
— Entendi. Vocês são de Barrel, não são? — disse Sitri com um sorriso radiante e uma palma estalada.
A mulher que atacava Liz manteve sua fachada inabalável, mas os atacantes diante de Sitri se retesaram brevemente. Ela tomou isso como um sinal de que sua suposição estava correta. Sitri aprendera, ao longo dos anos, que as ações de seu líder de equipe podiam gerar os mais diversos resultados. Se havia uma missão nomeada para a exterminação do Esquadrão de Bandidos Barrel, então era inevitável que eles aparecessem.
— Sua reputação os precede — disse Sitri. — Agora entendo como deram tanto trabalho para os cavaleiros do Lorde Gladis.
— Cale-se!
Já haviam derrubado vários agressores, mas mais e mais continuavam vindo como um incansável incêndio florestal. O informe da missão havia estimado um alto número de combatentes; as perdas até aquele momento provavelmente ainda estavam dentro do aceitável. Isso não era surpresa, afinal, eram conhecidos por serem um grupo numeroso.
Tino lutava com todas as suas forças. Liz tinha um brilho ameaçador nos olhos. Alguns atacantes atravessaram a barreira de golens de Sitri e investiram contra ela. Um ergueu sua lâmina—mas foi esmagado por um brutamontes cinzento.
— Matar, matar, matar.
— Miau.
Os peões de Sitri responderam ao seu assobio e agora estavam ao seu redor, protegendo-a. Ao contrário dos ainda em desenvolvimento golens de banho termal, esses eram suas verdadeiras obras-primas.
— Minhas desculpas, sou bem fraca — disse ela. — Vocês se importam se eu me apoiar nesses queridinhos?
— O que diabos são essas coisas?!
Matadinho rugiu e os olhos de Drink se arregalaram. Os Ninjas começaram a recuar cautelosamente. Eles eram especialistas em lutar contra humanos, mas não eram tão fortes contra monstros resistentes.
Chutando para o lado o ninja que havia esmagado sob seus pés, Matadinho seguiu as ordens de Sitri e atacou os outros inimigos. Com sua afiada cauda tripla, Drink manteve as kodachi deles afastadas.
Enquanto isso, a líder ainda estava travada em combate com Liz. Ela inflou levemente as bochechas, abriu os lábios e uma coluna de fogo disparou. As chamas envolveram Liz instantaneamente. Os subordinados recuaram.
Katon. Um véu de fogo. Os ninjas eram exploradores que utilizavam feitiços especializados. Katon era principalmente uma técnica usada para fuga, mas parecia que também podia ser usada para ataque. Lutando contra dois inimigos, o rosto de Tino se contorceu ao ver o que estava acontecendo com sua mentora.
A líder dos ninjas voltou seu olhar para Sitri. Mas então uma perna envolta em chamas veio direto em sua direção. O som pesado do impacto foi diferente de qualquer um até então. A mulher foi derrubada, voou pelo ar e rolou pelo chão até parar. Os outros ninjas começaram a vacilar.
Uma silhueta sombria envolta em chamas apenas sacudiu o corpo e as chamas se apagaram. Sua veste havia sido queimada, mas sua pele e cabelo nem sequer foram chamuscados.
— Hã? Usando uma técnica de fuga para atacar? Você me acha alguma idiota?! Finalmente tenho a chance de mexer o corpo e fico entediada pra caramba!
As sobrancelhas bem desenhadas da Sombra Sufocada se contraíram enquanto ela dava um passo à frente.
— O inferno vai congelar antes que alguém me pegue com um truque barato desses! — ela gritou, mostrando os dentes.
— Vocês realmente estão tentando lutar contra as Grieving Souls só com isso? — Sitri perguntou de forma zombeteira. Em suas mãos estava uma pistola d’água rosa, um item que havia ganhado há muito tempo.
Eles vieram de um grupo que não tinha escassez de poder duramente conquistado. As chamas criadas pelos ninjas eram truques de festa comparadas aos feitiços ofensivos usados pelo Avatar da Criação.
Sitri se perguntou qual era a situação do restante da cidade. Felizmente, ela já havia distribuído um conjunto de núcleos de golem. Se fossem bem utilizados, a cidade deveria aguentar por um tempo. A segurança da cidade era frouxa, mas havia sido reforçada após o incidente com o dragão das termas. Com sorte, Arnold e seu grupo ainda estariam por perto.
Mas havia algo que a intrigava: por que o famoso e prudente Esquadrão de Bandidos Barrel estava desafiando as Grieving Souls? Enquanto pensava nisso, mais reforços chegaram. Liz interrompeu sua investida implacável.
Os recém-chegados eram mais shinobi, vestidos como os outros, mas estes estavam segurando um rosto familiar. Era um dos funcionários da estalagem, com uma lâmina pressionada contra a garganta. Pálido e suando, seus olhos imploravam por ajuda a Sitri.
— Sombra Sufocada. Ignobil. Não se movam. Todos os funcionários que capturamos ainda estão ilesos, mas isso pode mudar. Se resistirem, vamos matá-los um por um.
***
O corpo de Arnold se moveu por conta própria. Felizmente, sua desconfiança em relação ao Mil Truques o mantinha alerta. Mas ele sabia que foi apenas por coincidência que conseguiu evitar um golpe fatal. Uma dor lancinante explodiu nos músculos do seu pescoço.
O homem sorriu. Parecia impressionado com o fato de Arnold ter conseguido contorcer o corpo rapidamente e evitar um ataque vindo do ponto cego.
— Ah, qual é. Você conseguiu desviar mesmo nessa posição? — ele disse. — Foi um ataque surpresa perfeito, mas suponho que estou lidando com um caçador, um monstro, afinal. Ainda bem que mirei no mais forte primeiro.
— Urgh. Quem é você?
O homem tinha altura e porte medianos. Não carregava muita coisa e não parecia um caçador, mas sua postura não era a de alguém comum. Arnold era um Nível 7 e fortalecido com uma grande quantidade de mana material, mas sua presença esmagadora não parecia surtir efeito no homem.
Os camaradas do homem imediatamente se espalharam e cercaram a carruagem. Seus rostos exibiam sorrisos forçados, mas seus movimentos eram refinados. Sacaram suas espadas e ficaram prontos, sem se deixar distrair por nada.
Foi pura sorte que permitiu que Arnold desviasse daquele ataque. Mas, graças a essa sorte, ele saiu apenas com um ferimento superficial. Mesmo sem cuidados médicos, o corte se curaria com o tempo. Naturalmente, isso não era o suficiente para prejudicar sua capacidade de luta.
O homem era claramente ágil, mas não estava no mesmo patamar de um caçador Nível 7. Eigh e os outros caçadores já haviam sacado suas armas e estavam prontos para lutar, mas o homem continuava tranquilo. Arnold não sabia quem ele era. Não se lembrava de ter provocado a ira de alguém em Zebrudia.
— Você não é o Mil Truques, é? Ouvi dizer que ele era um homem poderoso… ah, que droga. Nunca esperei encontrar outros caçadores de alto nível por aqui. Odeio dizer isso, mas é nossa política não deixar ninguém escapar quando atacamos cidades.
O Mil Truques?! Seria mais uma de suas artimanhas? A dor surda que Arnold sentia foi abafada pela raiva. Mas mesmo no meio de sua fúria, ele ainda tinha uma forte sensação de que algo estava errado.
Era estranho. Não apenas era estranho que estivessem atacando em plena luz do dia, mas também era insano atacarem Arnold e seu grupo em primeiro lugar. O homem e seus capangas pareciam formidáveis o suficiente, mas ainda inferiores ao Trovão Colidente. Sem mencionar que Rhuda e o Redemoinho Escaldante também estavam presentes; mesmo inexperientes, ainda podiam lutar. Esses atacantes não eram meros bandidos, certamente sabiam contra quem estavam se metendo…
O fluxo de pensamento de Arnold foi interrompido por uma sensação de tremor. Por um momento, ele pensou que poderia ser um terremoto, mas aquilo era diferente. Ele inclinou sua espada para baixo e a cravou no chão, estabilizando-se. Os tremores indefiníveis atingiam cada parte de seu corpo, drenando sua força.
— Arnold?!
— Puxa, demorou tudo isso para fazer efeito? Você é resistente. Isso foi coisa forte, o tipo feito para feras míticas.
Veneno. Um veneno forte o suficiente para funcionar em um Caçador de Nível 7. Com material de mana, tornava-se mais fácil para os caçadores melhorarem sua força e velocidade, mas, ao mesmo tempo, tendiam a negligenciar suas resistências. Ainda assim, Arnold conseguia resistir à maioria dos venenos comuns, mas o que o afligia não era uma mistura qualquer.
O calor abandonou seu corpo. Ele não sentia dor, mas essa ausência era desconfortável por si só.
O que poderia ser? Será que aquele homem estava tão seguro de si apenas esperando o veneno fazer efeito? Arnold se perguntou.
Ele rangeu os dentes e reuniu forças para levantar o olhar. O homem o observava como se estivesse diante de uma criatura rara. Os outros turistas próximos haviam se reunido em torno da carruagem da Névoa Caída em algum momento. Eram mais de uma dúzia, a maioria sem portar armas notáveis, alguns até vestidos como mercadores. Todos olhavam para Arnold e seu grupo com um interesse profundo. Por um momento, Arnold se perguntou por que ninguém dizia nada, mas logo compreendeu.
Eles não tinham motivo para falar nada. Eles eram todos—
Rhuda e Redemoinho Escaldante perceberam que algo estava errado e sacaram suas armas, formando uma formação circular. O homem retorceu os lábios em um sorriso inquietante.
— Permitam-me fazer as apresentações, embora não vá fazer muita diferença. Nós vivemos nas sombras, mas, de vez em quando, sinto vontade de espalhar nosso nome, assim como vocês, caçadores, fazem.
Todos na multidão sacaram armas que estavam escondidas sob suas roupas. Não havia sinal dos guardas da cidade vindo para ajudar.
— Somos o Barrel. Deslizamos pelas sombras. Pessoas, objetos, pegamos tudo com a avareza de um incêndio. Somos o bando de ladrões mais forte que existe, e estamos aqui para capturar a maior presa. Lembre-se disso, não que vá lhe servir de muita coisa — disse o homem com um sorriso arrogante.
***
Tino sentiu como se o tempo tivesse parado. A declaração feita pelos Ninjas recém-chegados fez um calafrio percorrer sua espinha. As irmãs Smart pareciam indiferentes, mas pararam e encararam o homem com olhos ferozes. Elas estavam analisando-o.
Isso não é bom.
Tino não estava preocupada com o que os atacantes poderiam fazer, mas sim com Lizzy e Siddy. — Bando de Ladrões Barrel — Siddy havia dito. Se ela estivesse certa, então à sua frente estavam membros de uma grande organização de bandidos com recompensas sobre suas cabeças em vários países. Eles eram calculistas, prudentes e bárbaros. Com cerca de cem membros, eram mais um exército do que um simples bando de ladrões. E agora estavam causando problemas até mesmo para os renomados cavaleiros de Lord Gladis.
Considerando a força de cada indivíduo, era claro que não eram um grupo qualquer. Era verdade que Tino nunca havia lutado contra um Ninja antes, mas até os membros mais fracos deles não ficavam muito atrás dela. Isso não era como os outros bandos de ladrões que ela já havia derrotado.
Se tinham tantos membros com forças comparáveis a um Caçador de Nível 4, atacar uma cidade inteira não parecia algo impossível para eles. E se alguns deles fossem páreo para Lizzy, então os guardas desleixados da pousada nem os teriam atrasado.
No geral, eles não pareciam do tipo que faz ameaças vazias. No entanto, o problema era que as irmãs Smart não eram do tipo que cedia a ameaças. Os Grieving Souls eram um grupo temido. Eles não eram justiceiros.
Essas táticas poderiam funcionar com Krai ou Ansem, mas levar um refém não era o suficiente para conter Lizzy e Siddy. Siddy simplesmente os consideraria um sacrifício trágico, e Lizzy diria que a culpa era deles por não serem fortes o bastante. Como esperado, elas pareciam completamente impassíveis.
A pequena kodachi negra estava pressionada contra a garganta do refém, fazendo-o soltar um grito curto. Lizzy era rápida como um raio, mas não estavam lidando com amadores; resolver isso sem derramamento de sangue não seria fácil. Pelo que sabiam, poderia haver ainda mais reféns.
Tino se esforçou ao máximo para encontrar uma forma de resolver a situação sem que ninguém morresse. Não conseguiu pensar em nada. Os atacantes não estavam prestando muita atenção nela, mas mesmo com a máscara de seu mestre, ela não via uma forma de virar o jogo.
Lizzy fez seu movimento. Ela largou o Ninja que estava segurando precariamente no ar.
— Eu me rendo.
— Huuuh?!
Tino não esperava por isso. Os atacantes pareciam igualmente surpresos. Siddy ignorou o grito atônito de Tino e soltou um pequeno suspiro enquanto colocava Perfect Frolic no chão.
— Se eles têm reféns, então é isso — disse Lizzy. — Não quero irritar o Krai Baby.
— Que nobre da sua parte — disse um dos Ninjas. — Certifiquem-se de amarrá-los bem.
Tino jamais teria esperado que aquelas duas fizessem algo tão sensato. Ela sentiu como se tivesse acabado de testemunhar algo inacreditável. Os agressores imobilizaram Lizzy e Siddy, depois colocaram algemas em Tino. Ela não esperava que isso acontecesse, mas também não iria continuar lutando se sua mentora estava se rendendo.
Ao sentir a superfície das algemas, ela se perguntou se aquilo poderia ser algum tipo de treinamento. Ela supôs que eram feitas de aço. Lizzy talvez fosse capaz de quebrar algemas como aquelas, mas para Tino, isso seria impossível.
A situação era desesperadora. Ela se irritava por não estar vestindo algo mais fácil de se mover. Fez o possível para entender o que estava acontecendo e procurar oportunidades, mas até mesmo ela, o elo mais fraco, tinha vários guardas de olho nela.
— Não se preocupe. Não vamos matar você imediatamente. Você será útil quando as negociações começarem — disse o membro mais durão dos reforços. Seus braços estavam cruzados e ele se portava com absoluta confiança. Restringir caçadores de alto nível apenas com algemas era o auge da negligência. O que dava tanta confiança para esse homem?
Apesar das restrições, Lizzy e Siddy pareciam completamente despreocupadas. Com os olhos semicerrados, Siddy observava enquanto Drink e Matadinho eram completamente presos com correntes e coleiras.
Então o homem disse algo inacreditável.
— Logo vocês estarão com seus amigos. Já pegamos dois do seu grupo. Mesmo entre os bandoleiros, os Grieving Souls causaram impacto. Mas o fim de vocês está chegando.
Tino ficou surpresa. Até mesmo as irmãs Smart pareciam surpresas. O homem sorriu cruelmente ao ver suas reações.
Dois do grupo deles. Era quase difícil de acreditar. Tino conhecia todos nos Grieving Souls. Lizzy e Siddy eram caçadoras de relíquias poderosas, e o resto do grupo era igualmente capaz. Nenhum deles parecia do tipo que um grupo de bandidos conseguiria capturar. E, se fossem capturados, seria apenas após uma batalha árdua. Não fazia sentido esse homem ter um sorriso tão autoconfiante.
— Quando cercamos seus aliados, antes mesmo de capturá-los, eles começaram a implorar por suas vidas — disse o homem, soltando uma risada.
— Eles imploraram? — perguntou Sitri. Ela piscou algumas vezes, claramente confusa. Havia coisas que nem ela conseguia compreender.
Tino pensava da mesma forma. Não havia nenhum Griever que se deixaria capturar sem lutar, e com certeza não havia nenhum que imploraria por sua vida.
Um grande grupo surgiu de dentro da pousada. Eles não usavam quimonos, mas sim roupas pretas que pareciam fáceis de se mover. Os bandidos deviam ter se dividido em duas unidades: uma para distração, disfarçada como a equipe da pousada, e outra para o ataque.
— Encontramos resistência feroz, mas conseguimos capturar o Mil Truques, exatamente como planejado — disse o homem na frente do grupo.
— Hã?! — Lizzy exclamou. Até ela não conseguiu evitar reagir a essa frase.
Impossível. Krai era um nível 8. Pelo que Tino sabia, ele superava seus companheiros de grupo tanto em nível quanto em talento. Talvez não fosse o melhor apenas em combate, mas, no quesito talento geral, ele certamente estava entre os cinco melhores caçadores, mesmo na terra sagrada da caça às relíquias. Mas ele tinha ido tomar banho nas águas termais e não havia voltado. Como poderiam tê-lo encontrado na pousada?
As inúmeras possibilidades rodando em sua mente desapareceram num instante. Enquanto Tino permanecia parada, sem reação, um homem amordaçado foi trazido até ela. Seus olhos se arregalaram ao vê-lo.
O homem estava muito mais bem preso do que Tino ou as irmãs Smart. Suas mãos estavam amarradas atrás das costas com fechaduras de metal que brilhavam de maneira estranha. Seu corpo inteiro estava enrolado em correntes. Ele estava vendado e amordaçado. Suor frio escorria de suas faces pálidas. Os bandidos ao redor o empurravam com leves chutes conforme ele tropeçava pelo caminho.
Os shinobi que emboscaram Tino e as irmãs Smart o olharam atentamente.
— Isso não demorou muito. O alvo é nível 8. Vocês têm certeza de que pegaram o cara certo?
— Não se deixem enganar. Ele pode parecer magricela, mas é poderoso. Além disso, não havia mais ninguém na pousada. Lembrem-se do que o segundo no comando disse? Todos os rumores sobre o Mil Truques falam sobre seus esquemas engenhosos, mas nada sobre sua força. Ele pode ser mais do que apenas uma mente brilhante. Vamos verificar isso depois.
Atordoada, Tino tentava desesperadamente entender a situação. Ele estava amordaçado, vendado e preso em correntes, mas não havia como errar. A pessoa trazida até ela era alguém com quem vinha trabalhando recentemente — o homem chamado Gray.
Parece que o grupo de bandidos não conhecia o rosto do Mil Truques. Isso não era tão absurdo. O símbolo dos Grieving Souls era uma máscara, e Krai fazia de tudo para evitar mostrar o rosto. Nem mesmo em revistas e jornais saíam fotos dele.
Mas, mesmo que ele fosse um pouco forte, como esse homem poderia ser confundido com o Mil Truques? Tino estava 50% desanimada e 50% irritada, mas isso não significava que poderia simplesmente contar a verdade para os bandidos, por mais frustrada que estivesse.
Enquanto isso, os olhos cor-de-rosa de Siddy começaram a se encher de lágrimas.
— Oh, como isso pôde acontecer?! Líder, por favor, nos salve! — ela gritou para Gray. — Eu disse que você não parecia bem, mas nunca imaginei que poderia ser capturado por um bando desses!
— Mmm?! Mmf, mmmf!
Siddy. Ela não só está calma, mas pretende entrar na onda disso?
Até Lizzy parecia surpresa, olhando para Siddy como se ela tivesse enlouquecido.
— Com certeza isso é um plano para resgatar os reféns enquanto estamos sendo capturados! Mas que adianta se VOCÊ foi capturado?! Seu idiota! Burro! Imbecil! Mulherengo!
Siddy estava discursando, mas sua atuação era impecável. Uma atrás da outra, ela dizia coisas que jamais diria para Krai. Os dois líderes dos bandidos trocaram olhares.
— Quem você vai escolher?! — Siddy gritou, contorcendo o corpo. — Não fuja da pergunta, sou eu ou uma daquelas outras duas?! Eu já te fiz várias massagens e te emprestei tanto dinheiro! Você entrou nas águas termais comigo e nem sequer encostou em mim! Que atrevimento! Você disse que íamos nos casar! Quantos anos mais vai me fazer esperar?!
— Hã?! Siddy, isso foi há quinze anos! Você prometeu que não traria isso à tona porque não valia!
Os rostos dos bandidos se contorceram ao ouvirem os gritos incrivelmente convincentes de Siddy e Lizzy.
— Uma briga de casal? Não tem nada de engenhoso em irritar uma mulher assustadora como essa.
— Então foi por isso que o outro grupo estava desesperado para fugir? Vamos levá-los logo ao segundo no comando.
A apreensão em seus rostos desapareceu.
Siddy, essa foi uma atuação incrível, pensou Tino. Eu jamais conseguiria fazer algo assim… Isso foi mesmo atuação, né?
Tino ficou com uma ponta de dúvida enquanto observava Siddy bater os pés no chão de maneira teatral.
***
Até pouco tempo atrás, Suls era uma cidade termal vibrante e animada. Agora, estava envolta em uma atmosfera estranha. O silêncio tomava conta do lugar, como se toda a cidade estivesse prendendo a respiração. O barulho das pessoas era escasso. O único som vinha dos pássaros, das vozes ocasionais e da água quente nos canais.
Havia apenas um ponto de atividade. Um grande acampamento estava montado pouco além dos portões rudimentares da cidade. Um enorme barril fora colocado em frente aos portões, quase como se bloqueasse a passagem. Sentado no topo desse barril estava um homem grande e corpulento. Sua armadura era de couro feito de um monstro de alto nível. Ele tinha olhos negros afiados e uma cicatriz profunda atravessava sua bochecha.
Esse homem era o fundador do Esquadrão de Bandidos Barrel. Geffroy Barrel. Um homem que havia causado caos em vários países e acumulado diversas recompensas por sua captura. Ele sorriu satisfeito ao ver que suas forças estavam prontas para agir.

Os subordinados que ele enviara para se infiltrar na cidade retornaram com seu relatório. Sendo ninjas altamente treinados, não disseram mais do que o necessário.
— Kardon, garantimos e isolamos Suls — relataram ao homem ao lado de Geffroy.
Kardon Barrel. Ele era um dos fundadores do Esquadrão de Bandidos Barrel. Com Kardon como o cérebro e Geffroy como a força bruta, eles eram os pilares que sustentavam o crescimento do grupo. Tecnicamente, Geffroy estava mais alto na cadeia de comando, mas isso não tornava Kardon menos essencial.
O que começou como apenas duas pessoas se tornou um esquadrão de bandidos capaz de desafiar até grandes nações. Sua força vinha de feitos como absorver uma organização oriental que empregava vários ninjas e estabelecer contato com um sindicato de magia para encomendar venenos eficazes até contra caçadores de alto nível. Uma liderança forte impedia que a ganância saísse do controle, e eles haviam desenvolvido um nível de orgulho e coordenação que superava qualquer exército profissional.
Não demorou para que o nome Barrel, adotado a partir do primeiro item que roubaram, ressoasse por toda a terra. Eles haviam se tornado algo que nem mesmo os mais fortes do império podiam deter.
— Hmm. Houve resistência? — Kardon perguntou com uma voz fria. Ele tinha um rosto anguloso e cabelos loiros.
— Havia quatro caçadores de alto nível, incluindo membros dos Grieving Souls, um grupo de nível inferior do topo e um grupo intermediário. Um caçador de alto nível foi capturado após ser envenenado, dois se renderam por causa dos reféns e capturamos o homem que parece ser o Mil Truques.
Um resultado ideal. Um único caçador de alto nível com material de mana suficiente poderia derrotar um exército inteiro. Os subordinados treinados como shinobi eram fortes, mas a maioria claramente não era páreo para os melhores dos melhores. Por outro lado, isso significava que, desde que isolassem os caçadores de alto nível, poderiam até massacrar toda a cidade.
— Parece que você estava certo, Kardon. O Mil Truques é um homem que depende da inteligência — continuou o subordinado. Diferente da maioria dos bandidos, seus olhos não transbordavam ganância. — Ele não era tão forte quanto os rumores sugeriam, então, só para garantir, vim pedir que você verifique sua identidade.
— Rumores costumam ganhar vida própria. Vou confirmar mais tarde. Não baixem a guarda, de forma alguma.
Tudo estava indo conforme o planejado, mas o rosto de Kardon não mostrava um pingo de complacência. O Esquadrão de Bandidos Barrel estava fazendo a aposta de suas vidas; olhos frios e calculistas eram um sinal reconfortante.
— Já terminaram de interrogar os aliados do Mil Truques? — Geffroy interrompeu.
— Não, tudo o que dizem é incompreensível. Não conseguimos nada dos aliados mais próximos dele, mas isso é realmente necessário neste ponto? Como ordenado, amarramos o Mil Truques com a Seladora de Almas.
A Seladora de Almas era uma corrente Relíquia que prendia a alma de alguém. Mesmo um caçador de Nível 8 não poderia se libertar dela.
— Continuem o interrogatório. Não podemos falhar aqui — disse Geffroy.
Quase todos do Esquadrão de Bandidos Barrel haviam sido mobilizados para o ataque a Suls. Para conduzir um ataque silencioso, mas brutal, estavam usando todos os recursos à disposição, incluindo venenos adquiridos de sindicatos de magia e bestas míticas voadoras.
Até então, tudo tinha ocorrido bem, mas, se falhassem, o esquadrão que passaram os últimos vinte anos construindo ruiria por completo.
No início, Geffroy não estava interessado na garganta do Mil Truques. Quando os bandidos infiltrados entre os cavaleiros do Lorde Gladis informaram que uma missão nomeada havia sido emitida para o Mil Truques, o líder dos bandidos planejou recuar e seguir para outro país.
Um Nível 8 era um monstro. Geffroy não carecia de confiança, e seus subordinados não negligenciavam o treinamento, mas um Nível 8 possuía a força de mil homens. Ele não achava que suas forças perderiam, mas também não precisava consultar Kardon para saber que um confronto direto não era a forma como operavam.
Foi durante a retirada do Condado de Gladis que seus planos começaram a mudar. Enquanto cruzavam as montanhas e tentavam ser discretos, encontraram dois viajantes. Geffroy viu isso como um golpe de sorte e capturou facilmente a dupla, que então afirmou ser parte dos Grieving Souls.
Ele considerou a possibilidade de estarem blefando, mas isso parecia improvável. Afinal, Geffroy havia decidido recuar quando soube da missão nomeada. O timing era conveniente demais para um blefe, e não havia razão para mentirem sobre isso. Poucas pessoas sabiam que o Mil Truques estava indo para o Condado de Gladis.
Os dois viajantes eram relativamente fortes, um pouco mais do que um caçador intermediário, mas nada que Geffroy não pudesse lidar sozinho. E foi isso que fez a ambição brotar em Geffroy e Kardon — eles iriam reivindicar a cabeça do Mil Truques.
Eles tinham suas dúvidas. O Mil Truques era realizado e conhecido por sua perspicácia, mas quase nada se sabia sobre sua habilidade em combate. Para Geffroy, que havia viajado por muitas terras e aprendido sobre muitos caçadores, essa ambiguidade era o cúmulo da inquietação. Não havia como silenciar todas as pessoas, e a força não era algo que pudesse ser completamente ocultado, por mais que tentasse.
Após capturar os dois Grievers, as suspeitas de Geffroy se transformaram em certeza. O Mil Truques provavelmente era um caçador cuja força residia em sua preparação meticulosa. E, se ele havia perdido parte de seu grupo, então agora era a hora de atacar.
— Seja prudente, mas às vezes ousado. Conquistas eram necessárias para espalhar o próprio nome, e todos os caçadores de alto nível tinham inimigos. Se ele tomasse a cabeça de um nível 8, o grupo de saqueadores se expandiria ainda mais. Geffroy até conseguia se ver tomando um país e se tornando rei. Era realmente uma sorte terem conseguido capturar os caçadores de alto nível.
Se as forças de Geffroy não haviam sofrido grandes perdas até agora, devia ser porque seus alvos foram pegos desprevenidos. Apenas a cabeça do Mil Truques já seria um grande prêmio, mas tê-lo vivo era ainda melhor. O nome do Grupo de Saqueadores Barrel iria carregar ainda mais peso.
Eles cercaram a cidade e a ocuparam sem alarde. O Mil Truques havia caído em suas mãos, tinham vários reféns e ninguém para enfrentá-los. Sem dúvida, os cavaleiros do Lorde Gladis perderiam a coragem ao saber que seus reforços haviam sido eliminados antes mesmo de chegarem.
Mas o subordinado tinha mais a relatar.
— Além disso, uma mulher conseguiu escapar. Estamos atualmente em sua perseguição — disse ele.
— O quê?! — Geffroy exclamou.
— Parece que ela estava sendo escoltada pelo caçador de alto nível que seguia em direção ao portão. Ela não parece ser uma caçadora, mas estamos perseguindo-a mesmo assim.
Kardon estreitou os olhos. Isso era inesperado, mas erros eram inevitáveis, por mais cuidadoso que fosse. Será que o caçador estava determinado a proteger sua cliente, mesmo ao custo da própria vida?
Provavelmente não seria um problema. Eles estavam acampados nos únicos portões de entrada e saída de Suls. Se a fugitiva não fosse uma caçadora, então não teria chance de escapar. No entanto, as muralhas ao redor de Suls eram relativamente baixas.
Geffroy estalou a língua.
— Não há muito que possamos fazer. Ativem a barricada — disse com amargura.
— Não temos muitas utilizações restantes — o subordinado disse, hesitante.
— Não importa — Kardon respondeu por Geffroy. — Geffroy ordenou. Ativem a barricada imediatamente.
Eles não planejavam permanecer em Suls por muito tempo, mas as coisas poderiam se complicar se alguém conseguisse chamar ajuda.
Um grupo de Magos avançou. Eles carregavam bastões de giz prateado e os pressionaram contra o chão enquanto corriam. Uma grande parede surgiu onde o giz passou, crescendo instantaneamente e se tornando muito mais alta e resistente do que as muralhas originais de Suls.
O Grupo de Saqueadores Barrel era sempre meticuloso. Gizes eram Relíquias valiosas e esses já estavam pela metade. Restariam apenas tocos quando a cidade estivesse completamente cercada, mas valeria a pena se o plano fosse bem-sucedido. Mesmo que reforços chegassem, eles teriam a cidade inteira como refém.
Geffroy se levantou e segurou o enorme machado de batalha que lhe foi trazido.
— Vamos entrar. Usem seus disfarces habituais e não deixem ninguém entrar na cidade! Se algo acontecer, relatem imediatamente para mim ou para Kardon! — ordenou. — Glória ao Grupo de Saqueadores Barrel!
Silenciosamente, uma chama de determinação ardente se acendeu entre seus camaradas. Nenhum imprevisto de grande escala havia ocorrido. O inimigo não receberia reforços. E, na remota possibilidade de receber, teria que ser algo mais poderoso que um exército profissional para ter qualquer chance contra o Grupo de Saqueadores Barrel. Mas, se tudo corresse bem, Geffroy e seus companheiros estariam comemorando com bebidas em outro país antes mesmo que os reforços pudessem chegar.
***
O que diabos…?
Confusa e ofegante, Chloe corria desesperadamente por uma rua estreita. Era uma corredora habilidosa, mas estava nervosa demais para manter a respiração estável. Movendo-se silenciosamente e tentando se manter discreta, escolheu um pequeno beco e atravessou-o correndo.
A cidade havia mudado, ainda que sutilmente. Deveria haver pessoas nas ruas e nos prédios, mas o lugar estava quase deserto. Qualquer um que avistava era um membro armado do Grupo de Saqueadores Barrel.
Os saqueadores haviam trancado Suls por completo. Chloe ficou impressionada com a velocidade e a discrição do trabalho deles. Não eram como nenhum grupo de bandidos que já ouvira falar; a essa altura, estavam mais próximos de uma força militar disciplinada do que de meros criminosos. Felizmente, não sentia cheiro de sangue nem via sinais de destruição.
Os moradores não estavam sendo mortos. Provavelmente, estavam sendo reunidos em um único local para servirem de reféns. Mas, mesmo que descobrisse onde estavam, não havia muito que pudesse fazer para ajudá-los. Ainda tinha sua espada, mas estava fora de prática e enfrentaria inimigos em um número muito maior do que o indicado na missão emitida pelo Lorde Gladis.
Arnold havia sido imobilizado por um veneno e cercado pelos saqueadores. Chloe só conseguiu escapar porque Névoa Caída, Arnold incluso, e o Redemoinho Escaldante estavam dispostos a arriscar a própria vida para protegê-la.
Chloe tentava desesperadamente encontrar uma forma de reverter a situação. No início, pensou em buscar ajuda da guarda da cidade, mas não havia muito que pudessem fazer. Para piorar, a vanguarda do Grupo de Saqueadores Barrel patrulhava as ruas em busca dela. Felizmente, pareciam não estar familiarizados com o layout de Suls, mas essa não era uma cidade grande. Era apenas uma questão de tempo até que a encontrassem. Pelo menos, ela ainda estava livre; Arnold e os outros haviam sido capturados. Não havia tempo a perder.
Ela olhou para o céu. Apertando os olhos, conseguiu distinguir no alto criaturas aladas míticas como nunca havia visto antes. O grupo Barrel estava vigiando dos céus.
— Eu nunca esperei que esses saqueadores fossem tão perigosos.
Mesmo em todo o Império Zebrudiano, pouquíssimas pessoas eram capazes de montar feras voadoras. Para começar, elas eram raras, mas ainda mais difícil do que encontrá-las era conquistá-las.
O Esquadrão de Ladinos Barrel havia se movido com propósito. Eles entraram na cidade disfarçados de turistas e outros civis, trancaram a cidade silenciosamente sem permitir qualquer oposição e derrubaram Arnold com um único golpe, mesmo que fosse um ataque surpresa. Sua força era aterrorizante, e ela podia ver isso até na postura dos ladinos andando pelas ruas.
Era necessário um imenso poder e carisma para liderar um esquadrão de ladinos como aquele. Os nomes dos dois homens no topo eram Geffroy Barrel e Kardon Barrel. Apenas um número ínfimo de pessoas já havia se deparado com eles e voltado vivo, mas Chloe sabia um pouco sobre eles.
Kardon criava os planos, e Geffroy esmagava tudo pelo caminho. Sem dúvida, sua força estava no mesmo nível de caçadores de alto escalão. Muitos caçadores de tesouros foram enviados para eliminá-los, e todos falharam.
Geffroy, em particular, parecia possuir uma força descomunal. Se alguém ali pudesse derrotá-lo, provavelmente seria apenas Arnold, Liz ou o Mil Truques. Os líderes do Esquadrão de Ladinos Barrel já eram extremamente poderosos, mas se até mesmo os membros de patente inferior eram tão formidáveis, então eles provavelmente estavam no mesmo nível dos cavaleiros de Lorde Gladis.
O homem que atacou Arnold disse que estava atrás da “maior presa”. Sem dúvida, ele se referia ao Mil Truques. Krai Andrey era o caçador mais forte da filial de Zebrudia da Associação dos Exploradores. Seu poder de combate era desconhecido, mas ele já havia completado diversas missões desafiadoras. Chloe não achava que ele seria facilmente derrotado, mas ficou preocupada ao ver do que o Esquadrão de Ladinos Barrel era capaz.
Normalmente, ladinos seguiam um padrão típico ao atacar uma cidade: saquear e destruir. Mas isso não estava acontecendo desta vez. Nenhum dos ladinos estava cedendo à ganância e saindo da formação.
Agh. Nada feito. Eles têm olhos em toda parte.
Os ladinos estavam preparados para tudo. A estalagem onde Krai deveria estar hospedado estava sendo vigiada de todos os ângulos. Mesmo olhando de longe, Chloe percebeu que não havia nada que ela pudesse fazer sozinha. Os guardas estavam em grupos de pelo menos três, o que significava que ela não poderia emboscá-los nem passar despercebida.
Ela respirou fundo para tentar acalmar o coração acelerado. Agora que a situação havia chegado a esse ponto, sua única opção era buscar ajuda externa. Mesmo em Zebrudia, havia um número limitado de caçadores poderosos. Ela não imaginava que houvesse algum caçador nas proximidades que pudesse resolver a situação, mas era melhor do que tentar criar uma distração.
Se Chloe fosse uma caçadora, talvez ela arriscasse enfrentá-los. Mas ela não era uma caçadora—era uma funcionária da Associação dos Exploradores. A situação era crítica, e isso era ainda mais motivo para agir com cautela, por mais que fosse difícil admitir.
Mantendo-se nas sombras das barracas e edifícios, ela avançou. O Esquadrão de Ladinos Barrel era bem treinado, mas parecia que eles não tinham pessoal suficiente para vigiar cada canto da cidade.
Gotas de suor escorriam por seu rosto. Ela estava nervosa, sua boca estava seca. Mantendo um perfil discreto, ela conseguiu chegar até um ponto de onde podia ver as muralhas da cidade. O que viu a fez engolir em seco.
Logo além da muralha de um metro e meio que cercava Suls, havia outra muralha, uma que se erguia imponente acima da primeira. A nova muralha devia ter quase quatro metros de altura e envolvia toda a cidade.
Chloe fez alguns cálculos. Para um caçador de alto nível, aquilo poderia ser fácil, mas para ela, escalar aquela muralha seria bem difícil. Se falhasse, seria capturada pelos ladinos.
Aquela muralha fora feita para impedir fugas. O Esquadrão de Ladinos Barrel não queria que uma única pessoa escapasse. E, se ela tivesse sido erguida em tão pouco tempo, os ladinos certamente contavam com Magos excepcionais entre seus aliados.
A desesperança da situação fez a cabeça de Chloe girar. Parecia impossível, mas se isso fosse mais um dos Mil Desafios dele, ela nunca mais olharia para Krai da mesma forma.
De repente, ouviu passos atrás de si. Instintivamente, virou-se. Um membro do Barrel estava correndo em sua direção. Não havia tempo para hesitar, ela precisava agir. Partiu em disparada.
— Achei ela! Aqui! Não deixem ela escapar!
Chloe tinha certeza de que suas pernas nunca haviam se movido tão rápido em toda a sua vida. Outros ladinos patrulhando começaram a se aproximar dela pelos lados. Um bastão de metal negro, um bo shuriken, foi lançado contra ela, mas, milagrosamente, ela conseguiu desviar. Bem em frente à muralha original de Suls, ela saltou com toda a sua força.
Chloe sempre sonhou em se tornar uma Espadachim; ela não conseguia se mover como um Ladino. Mesmo assim, saltou com tudo e voou pelo ar. Passou pela primeira muralha com facilidade, mas então uma parede lisa, sem nenhum ponto de apoio, preencheu sua visão. Cada segundo pareceu dez, até mesmo um minuto inteiro. Ela sentiu a gravidade puxá-la. Bem à sua frente, havia uma muralha.
Não vai dar. Eu não vou conseguir.
Chloe estendeu o braço direito o máximo que pôde. Seus dedos alcançaram a borda da muralha. Ela arfou de surpresa. Provavelmente, estava mais chocada do que os próprios ladinos que a perseguiam. Mas assim que colocou a outra mão na muralha, sua fuga se tornou apenas um pequeno salto a mais.
Ela se puxou para cima e passou para o outro lado. Sentiu um bo shuriken passar rente à sua cabeça, mas pousou ilesa. Do outro lado da muralha, não havia guardas. Ela estava certa—eles estavam com falta de pessoal.
Ela podia não se mover como um Ladino, mas tinha confiança em sua força física. Chloe estabilizou sua respiração e disparou antes que seus perseguidores pudessem alcançá-la.
***
Uma machadinha de batalha com um brilho incomum foi cravada no chão, e um rugido alto rompeu o silêncio. Uma atmosfera tensa permeava a praça próxima aos portões da cidade. O homem não era temido apenas pelos reféns, mas também por seus próprios companheiros.
— Hã? O que nisso aqui se parece com o Mil Truques? — Geffroy disse em voz baixa enquanto olhava para o homem caído à sua frente. — Esse sujeito não tem nada de especial. Eu mando vocês capturarem o Mil Truques e vocês pegam o cara errado? Me expliquem como isso aconteceu. Isso é pior do que simplesmente terem perdido para ele.
O homem diante de Geffroy não se parecia em nada com a imagem que ele tinha do Mil Truques. Havia olheiras profundas sob seus olhos e seu rosto tinha um ar cansado. Sem falar no corpo magro e fraco. Mas, acima de tudo, ele era insignificante. Ele possuía material de mana, mas o brilho estava completamente errado. Geffroy deixava a maior parte da administração organizacional nas mãos de Kardon, mas ainda assim acreditava que tinha olho para avaliar pessoas.
— Isso aqui não passa de um peão! A Serpente não teria caído para um homem como esse!
Geffroy conhecia os feitos do Mil Truques. O caçador havia esmagado organizações criminosas inteiras e agora era tanto temido quanto odiado por vários criminosos. A Serpente já foi uma das maiores organizações criminosas, rivalizando até mesmo com a Raposa.
Eles chegaram a ter mais de trezentos membros, um número gigantesco, até mesmo comparado ao Esquadrão de Ladrões Barril. E, mesmo assim, foram derrotados. O chefe e os principais comandantes foram derrubados, e toda a organização ruiu com eles. Ainda existia um grupo usando o mesmo nome, mas sua influência era apenas uma sombra do que um dia fora.
— Acalme-se, Geffroy. A disciplina pode esperar — disse Kardon. Sua voz era baixa, mas seus olhos transbordavam a mesma fúria assassina que os de Geffroy. Isso era um choque enorme, já que tudo havia ocorrido tão bem até então.
— D-Desculpe, chefe, Sr. Kardon. Mas ele era o único na—
Kardon estreitou os olhos, seu rosto irradiando uma intensidade ardente. Será que seus planos haviam sido descobertos antecipadamente? Impossível. Se tivessem sido descobertos, eles não teriam conseguido tomar o controle de Suls tão facilmente. Já haviam reunido todos os reféns em um único local. Kardon queria evitar desperdiçar tanto pessoas quanto recursos valiosos, mas estava disposto a destruir tudo se Geffroy desse a ordem.
O Mil Truques era um aliado da justiça. Se ele ignorasse os reféns e resistisse, Geffroy e seus aliados poderiam simplesmente massacrar todos os cativos e escapar. Isso, por si só, destruiria a reputação do Mil Truques. Geffroy tentou imaginar como poderiam ser forçados a perder sua posição vantajosa, mas não via isso acontecendo. O olhar confiante no rosto de Kardon indicava que ele havia chegado à mesma conclusão.
— A Sombra Sufocada e a Ignóbil são genuínos — disse Kardon. — Isso ainda não acabou.
Ele estava certo. O erro deles não era fatal. Poderiam atrair o Mil Truques mantendo seus companheiros de equipe como reféns. Por mais engenhoso que ele fosse, o Esquadrão de Ladrões Barril tinha mais de trezentos indivíduos mais fortes que caçadores intermediários.
— Voltem e façam outra busca — ordenou Kardon no lugar de Geffroy. Sua voz era surpreendentemente calma. — Levem quem precisarem, não podemos ficar aqui por muito tempo. Como ele ainda não deu as caras, acho que está claro que o Mil Truques não é tão poderoso quanto os boatos dizem. Derrubar o Mil Truques será um grande trunfo para nós. Aumentem a segurança dos reféns, mas também se preparem para abandonar a cidade, caso seja necessário.
Após receberem as ordens, os subordinados rapidamente se dispersaram. Geffroy observava atentamente seus movimentos coordenados.
— Estamos lidando com um nível 8. Talvez você precise se envolver pessoalmente — disse Kardon ao seu velho parceiro.
Sua voz carregava traços de medo. Algo que quase nunca acontecia desde que o esquadrão de ladrões havia crescido para um tamanho considerável. Geffroy bufou. Lutar era o seu trabalho, e ele nunca havia negligenciado seu treinamento.
— Não importa o nível dele, eu não vou perder. Ninguém é mais forte que o Esquadrão de Ladrões Barril.
***
Quando voltei a mim, estava deitado no chão, cercado por completa escuridão. A primeira coisa que senti foi calor e umidade, como se estivesse em uma selva que explorei certa vez. Sentei-me e bocejei. Depois de esfregar os olhos, comecei a sentir que havia voltado à realidade.
— Ah, é. Fui capturado. Dá um tempo, o que diabos está acontecendo?
A situação era bem ruim, mas tudo o que aconteceu foi tão estranho que eu não conseguia sentir um verdadeiro senso de perigo. Pelo visto, minhas Relíquias não tinham sido confiscadas. Ativei o anel no meu dedo, Olho da Coruja, e a sala começou a surgir diante de mim. Estava em uma cela. As paredes e o chão eram de terra, exceto pela grade de metal bem na minha frente.
Pensei no dia anterior. Uma criatura estranha havia aparecido do nada, me capturado e me arrastado pelo buraco no canteiro de obras. A sensação de queda durou uma eternidade. Depois de um tempo caindo, algo apareceu diante dos meus olhos — uma cidade subterrânea gigantesca.
— Por que diabos algo assim tá embaixo de Suls?
Eu quase vomitei. Não dava pra ver muito bem, mas as formas de vida vivendo naquela caverna imensa claramente não eram humanas. Mas também não eram só monstros; elas haviam desenvolvido uma forma de civilização. Afinal, tinham construído uma prisão.
— Gente das cavernas?
Não, não. Isso é absurdo. Eu vim pra Suls de férias, não pra ser sequestrado por gente das cavernas.
Suspirei pesadamente enquanto sacudia as grades de metal. Elas chacoalharam um pouco e não pareciam muito resistentes. Liz talvez conseguisse quebrá-las, mas eu com certeza não conseguiria.
Será que a Liz vai vir me salvar?
Eu tinha dito que estava indo para uma fonte termal. Ela sabia o quão fraco eu era, então com certeza viria me procurar assim que percebesse que eu não tinha voltado. Ela era uma Ladina, o que significava que poderia me encontrar desde que houvesse o menor vestígio. Sem falar que Sitri estava com ela.
Eu nem sabia há quanto tempo estava desacordado. Talvez já estivessem me procurando.
Esse fio de esperança começou a me revigorar. Pensei no que poderia fazer dadas as minhas circunstâncias. Eu poderia me manter vivo. Usaria todos os meios possíveis para ganhar tempo.
Verifiquei minhas Relíquias. Como eu tinha saído só para um mergulho, não estava carregando muita coisa além dos meus Anéis de Segurança. Eu não tinha nenhuma arma. Tinha alguns Anéis de Disparo e minha Relíquia de visão noturna, Olho da Coruja. Também tinha Alerta Vermelho, que me informava sobre perigos, e Forma de Miragem, a pulseira que criava ilusões.
Por último, eu tinha os dois Manifestos da Aspiração. Um era o pingente que Kris havia recarregado com um feitiço depois que eu tinha usado o feitiço da Lucia. O outro era o anel misterioso que Sitri me deu como lembrança. O primeiro parecia a opção mais confiável dos dois, mas Kris era nível 3. Espíritos Nobres tinham dificuldade em subir de nível devido às suas personalidades. De qualquer forma, ela não era grande coisa comparada a Lucia. Não que eu estivesse sequer considerando lutar para sair dessa.
De repente, ouvi uma voz estranha.
— Ryuu…
Soava muito como a voz da Pessoa das Cavernas (se é que esse é o termo certo) que me capturou, mas era bem mais profunda. E então ouvi mais vozes. Isso era um péssimo sinal. Eu não fazia ideia do que estava enfrentando, mas aquele primeiro tinha saltado sobre mim no momento em que ficamos cara a cara.
Eu precisava fazer algo. Mas não podia destruir as barras de ferro. Se eu liberasse o feitiço de Kris, poderia derrubar algumas Pessoas das Cavernas, mas essa era uma opção única.
Calma, Krai Andrey. Olhe pelo outro lado: eles te prenderam, mas não te mataram e nem levaram seu equipamento. É possível que, na cultura das Pessoas das Cavernas, isso não seja uma prisão, mas uma forma de dar boas-vindas a um convidado.
Me acalmei enquanto esticava o pescoço entre as barras de metal e olhava na direção das vozes. Vinha em minha direção um grupo de Pessoas das Cavernas grandes. Em alguns aspectos, pareciam com a que me capturou, de um jeito até meio carismático, mas em outros eram totalmente diferentes. Assim como a que conheci em Suls, tinham pelos grossos. A diferença entre ela e eles era como a diferença entre Liz e Gark.
Garras enormes saíam de suas mãos. Eu tinha certeza de que iam me matar. Meu peito doía. Será que eu fiz algo horrível em uma vida passada para merecer isso? Eu tinha um mau pressentimento. Olhei desesperadamente ao redor do cômodo, tentando não pensar na situação. Procurava uma maneira de resolver aquilo sem precisar lutar.
Tem que ter algo—Já sei!
Tive uma revelação. Sem nem precisar pensar, ativei uma das minhas Relíquias.
***
O sol brilhava forte sobre a terra abaixo. Talvez por conta das fontes termais espalhadas pela cidade, cada pedaço de Suls era quente e aconchegante. Mas agora, o conforto desse calor estava ausente.
Presos com correntes e forçados a caminhar, Rhuda e os outros caçadores foram levados até uma grande pousada situada no centro de Suls. Os edifícios elegantes agora tinham uma atmosfera muito mais ameaçadora, já que estavam ocupados por bandidos armados.
Arnold estava chegando ao seu limite. Névoa Caída, Redemoinho Escaldante e, claro, a própria Rhuda, haviam lutado bravamente, mas estavam em menor número. Haviam sido completamente cercados. Era um milagre que Chloe tivesse conseguido escapar.
Rhuda estava bem, mas alguns dos outros caçadores estavam feridos. No entanto, o fato de ninguém ter sido morto era um bom indicativo da força de seus captores. Eram fortes o bastante para justificar a emissão de uma missão nomeada para um caçador de tesouros de nível 8. Não era surpresa que fossem problemáticos, mas isso era mais do que Rhuda ou qualquer outro esperava. Será que Krai realmente poderia fazer algo a respeito?
Se Rhuda e os outros caçadores ainda estavam vivos, isso significava que os bandidos tinham algum uso para eles. Talvez planejassem mantê-los como reféns para negociar com a Associação dos Exploradores? Ou talvez o alvo da negociação fosse Krai? Ou quem sabe os bandidos apenas quisessem transformá-los em brinquedos para exibir sua força? Nada de bom aguardava caçadores capturados por bandidos. Rhuda só esperava que Chloe ao menos tivesse conseguido escapar com vida.
O Esquadrão de Bandidos Barrel era realmente algo a ser temido. Como cativos, não tinham esperança de reverter a batalha. Suas únicas linhas de esperança eram Chloe e os Mil Truques.
O motivo pelo qual Rhuda e os caçadores ainda estavam calmos era porque Krai estava lá fora. A habilidade que ele mostrou no Covil do Lobo Branco e a visão estratégica com que manipulou Arnold faziam dele alguém assustador, só que de um jeito diferente do Esquadrão de Bandidos Barrel. Sua previsão era tão precisa que Rhuda não conseguia evitar se perguntar se até mesmo isso já fazia parte do plano dele.
Pelo que parecia, os moradores da cidade haviam sido reunidos em outro local. Esse era um espaço apenas para aqueles que sabiam lutar. Provavelmente, fizeram isso para evitar qualquer tipo de levante. Esses bandidos realmente não estavam dando margem para erros. Os poucos guardas da cidade de Suls estavam vendados, amarrados e jogados de lado. Mesmo que estivessem armados, qualquer dos bandidos mais fortes poderia facilmente acabar com eles. Ainda assim, os bandidos decidiram ser o mais meticulosos possível.
Foi então que Rhuda notou alguém no centro da sala. Alguém que não deveria estar ali.
— Hã?! O-o que você tá fazendo aqui…? — disse ela, espantada.
— O quê? Pegaram vocês também? Isso é o que acontece quando não treinam o bastante.
— Hã. Hããã?!
Era a Sombra Sufocada. Com um olhar de espanto nos olhos, ela estava sentada, toda amarrada. Sentada silenciosamente ao lado dela estava outra integrante dos Grieving Souls, Sitri. Atrás delas, uma quimera familiar e aquela monstruosidade cinzenta, ambas presas por correntes.
Rhuda quase não podia acreditar no que via. A Sombra Sufocada não era do tipo que simplesmente ficava quieta, mesmo que tivesse sido derrotada. Gilbert, que a havia encontrado no Covil do Lobo Branco e agora estava surrado e machucado, e Eigh, que ela tinha causado todo tipo de problema, olhavam para a Sombra Sufocada com admiração. A expressão complicada de Tino era especialmente notável.
— Apenas fiquem quietos e nem pensem em tentar escapar. Temos reféns — disse um dos captores.
Eles foram forçados violentamente ao chão. Já inconsciente, Arnold desabou, e Eigh correu para o lado dele.
Vários guardas observavam Rhuda e os outros caçadores. Parecia natural que estivessem cautelosos com a Sombra Sufocada, mas parecia que Barrel não planejava mexer com Rhuda ou seus companheiros.
No entanto, Liz e Sitri pareciam as mesmas de sempre. Diferente de Redemoinho Escaldante e Névoa Caída, elas não pareciam nem um pouco nervosas, apesar do perigo iminente.
— Veneno? E conseguiu derrubar um nível 7? — Sitri disse, piscando algumas vezes ao olhar para Arnold.
Normalmente, caçadores de alto nível eram resistentes a venenos e ataques de paralisia. Rhuda tinha uma resistência razoável, mas alguém do nível de Arnold deveria ter uma resiliência muito superior à dela e, portanto, ser imune à maioria dos venenos.
— Me deem o antídoto! Arnold vai morrer desse jeito! — Eigh gritou.
Provavelmente, o grande porte de Arnold era o que o havia mantido vivo até ali. Um dos guardas zombou dos apelos de Eigh.
— Não há antídoto. Esse é o mais novo produto da Torre Akáshica.
Dentre as inúmeras organizações criminosas de magia, a Torre Akáshica era a mais proeminente. Recentemente, haviam causado um alvoroço quando se descobriu que o homem antes aclamado como Mestre dos Magos estava conduzindo experimentos no Covil do Lobo Branco. Fazia sentido que um veneno capaz de incapacitar o Relâmpago Despedaçante fosse criado por uma organização que buscava até mesmo conhecimento proibido.
Com as mãos e os pés ainda amarrados, Sitri conseguiu se arrastar até Arnold e um Eigh muito pálido. Ela pressionou as mãos contra o chão, empurrou o corpo para cima e girou, acertando os pés na cintura de Arnold.
— Yah!
O corpo de Arnold fez um som surdo que nenhum corpo humano deveria fazer, e ele foi brevemente lançado no ar. Ainda inconsciente, ele soltou um gemido e cuspiu uma quantidade profusa de sangue. Sitri habilmente evitou o líquido vermelho.
— Que diabos você está fazendo?! — Eigh gritou para ela, recuperando um pouco da cor no rosto.
— Usei acupressão para estimular o sistema imunológico dele. Infelizmente, não posso curá-lo nessas circunstâncias, mas isso deve ganhar um pouco de tempo.
Os olhos de Eigh se arregalaram diante dessa resposta inesperada. O que Sitri havia feito parecia um pouco violento demais para ser chamado de acupressão, mas Arnold estava se contraindo, o que já era uma melhora em comparação ao estado anterior.
— Você pode curá-lo?!
— Mmm, tenho certeza de que posso dar um jeito. Antídotos são a minha especialidade.
Sitri tinha um sorriso forçado, mas sua voz carregava uma confiança palpável. O guarda de antes a olhava com olhos arregalados. A aparentemente tranquila Alquimista devia ser mais uma maluca se tinha tanta certeza de que poderia curar um veneno desconhecido feito para matar caçadores de alto nível.
— No entanto, não posso fazer nada enquanto civis estiverem sendo mantidos como reféns. Não posso permitir nem uma única baixa civil — Sitri disse.
— Krai Baby não ficaria muito feliz se isso acontecesse — Liz acrescentou.
— Imagino que hesitaram em usar os golens, mesmo que eu os tenha emprestado de graça. Pessoalmente, não tenho nenhum problema em deixá-los à própria sorte.
A expressão amarga de Sitri dizia muito.
Entendi. Então foi assim que foram pegos, Rhuda pensou.
Eles se deixaram capturar não pelos reféns, mas porque não queriam irritar Krai. A Sombra Sufocada estava desarrumada e algemada, mas a Relíquia em suas pernas havia sido deixada intacta. Rhuda se perguntava por que ela não havia sido desarmada, quando Tino sussurrou para ela:
— Quando um dos guardas tentou tocá-la, Lizzy o chutou para longe. O yukata dela pegou fogo, mas ela simplesmente o arrancou…
— E ela supostamente é uma refém?
Rhuda sentiu que agora tinha o quadro completo. Sob as circunstâncias certas, a Sombra Sufocada estava disposta a resistir, mesmo que isso significasse a morte dos reféns. E era por isso que Barrel tinha dedicado tanta mão de obra para vigiar os caçadores. Nada era mais assustador do que alguém de alto nível sem qualquer consideração pela vida humana.
— A propósito, onde está Krai? — Rhuda perguntou.
— Não sei — Tino respondeu.
— Isso é mais um dos Mil desafios dele?
Tino desviou o olhar e não disse nada. Rhuda achava que tudo isso era um exagero para ser apenas um desafio, mas se Tino desviava o olhar assim, então ainda devia estar dentro do possível.
— Aaah, faz tanto tempo que não sou capturada, mas já estou entediada. Ei, você aí, faça algo engraçado — Liz ordenou a um dos guardas.
— Lizzy, se controle — Sitri a repreendeu.
Os guardas estavam com as mãos cheias. Nem dava para dizer quem eram os verdadeiros bandidos. E Liz tinha dito “faz tanto tempo”. Isso já tinha acontecido antes?
— É um dragão! — uma voz de repente gritou. — Tem um dragão! Na fonte termal! Por quê?!
— Rawr?!
— É um elemento incerto! Não deixem ele escapar!
Cambaleando sobre as patas traseiras, um dragão azul-claro tropeçava por um corredor. Um grupo de bandidos corria atrás dele. Um silêncio estranho tomou conta do ambiente.
Ah. Então esse era o dragão do qual Tino estava falando, Rhuda pensou.
Sitri e Liz trocaram olhares de espanto.
— É um dragão e, mesmo assim, não consegue nos ajudar. Depois de o Krai Baby poupar a vida dele, tudo que faz é gritar e correr por aí. Não pode se esforçar um pouco mais?
— Parece que a sorte não está do nosso lado desta vez.
Os guardas sorriram cruelmente, satisfeitos por nem mesmo um dragão enfurecido tê-los distraído.
— Desista, não há nada que possa fazer — disse um deles. — Relaxa, quando tivermos a cabeça do Mil Truques, não precisaremos mais de vocês. O chefe é um homem misericordioso. Tenho certeza de que vai deixar todos os reféns irem.
Uma mentira óbvia. Não havia nada de misericordioso em um bando de ladrões selvagens que já havia saqueado várias cidades. Eles jamais fariam algo tão generoso. Ainda assim, Rhuda não estava em posição de protestar.
Será que realmente havia alguma forma de reverter essa situação? Os atacantes eram numerosos e estavam espalhados. Muito provavelmente, havia muitos guardas vigiando o outro grupo de reféns. Mesmo que Chloe conseguisse chamar ajuda rapidamente, Barrel sem dúvida pegaria os reféns e fugiria.
Rhuda não tinha como virar o jogo, mesmo que fosse dez vezes mais forte do que era agora. Mesmo se de alguma forma conseguisse derrotar Barrel, isso custaria a vida de muitos inocentes.
Diziam que havia um grande abismo entre o Nível 7 e o Nível 8. Ninguém sabia exatamente como cruzá-lo, mas se Krai conseguisse encontrar uma saída para essa situação, certamente isso mostraria a diferença entre os dois níveis.
— Krai Baby, anda logo! Já chega! Vou para a fonte termal. Me chamem quando ele chegar!
Hã? Huuuh?
Os guardas ficaram inquietos. Liz se levantou e gemeu antes de casualmente quebrar as correntes que uniam suas algemas. Rhuda não conseguia acreditar que ela e Liz eram da mesma classe.
— Lizzy?! — gritou Tino.
— Lizzy, se acalma! — disse Sitri.
— Tá tudo bem. Tenho certeza de que Krai Baby vai me perdoar, ele sabe como eu sou. E não sou eu que estou matando os reféns. Esses caras do Barrel é que são os errados aqui. Talvez eu nem esteja quebrando nossa regra de não machucar civis — disse Liz, oferecendo uma justificativa bastante forçada.
Todos os guardas sacaram suas lâminas ao mesmo tempo e apontaram para ela. Um deles correu para alertar alguém sobre a situação.
— Isso é burrice. Reféns vão morrer por sua causa.
— Hã? Vocês não estão ouvindo? Quem está matando são vocês, não eu.
— Não tem problema, estamos com a cidade inteira como refém. Podemos matar um ou dois e ainda teremos vários sobrando.
A situação não parecia nada boa. Uma expressão de insatisfação tomou conta do rosto da Sombra Sufocada, e suas mãos se cerraram em punhos. Sua irmã mais nova pressionava as têmporas como se estivesse lidando com uma forte dor de cabeça.
Os guardas avançaram contra Liz, mas, exatamente naquele momento, um grito ecoou da entrada da estalagem. Houve um estrondo, e o guarda que havia fugido antes foi lançado pelo corredor. Sem nem ter conseguido erguer os braços para se proteger do impacto, ele ficou completamente imóvel ao parar no chão.
O que havia acontecido? Os rostos dos guardas se contorceram, e eles deram alguns passos para trás no corredor. Foi então que Rhuda viu. Primeiro, uma longa vinha cinza. Ela se contorcia como uma criatura viva, e então o chão tremeu quando o corpo principal apareceu. Não foi só Rhuda e os outros reféns que congelaram ao vê-lo, mas também todos os guardas.
Não era Krai. Nem mesmo era humano.
— Um monstro? — Rhuda murmurou.
Aquelas coisas que pareciam vinhas eram algo totalmente diferente. Não eram braços, mas sim cabelo. Um cabelo tentaculoso que se estendia da cabeça de um corpo rochoso gigante. Não era um golem, pois estes tinham uma aparência muito mais inorgânica. Aquele ser parecia ser feito de pedra, mas estava claramente vivo.
Seu rosto era estranhamente humano, seus olhos dourados tinham um brilho inteligente e ele estava coberto por uma pele esfarrapada. O monstro abriu os braços e rugiu.
— Ryu-ryu, RYUUH!
Com um grunhido profundo, o gigante misterioso atacou um guarda próximo. O bandido ergueu a lâmina rapidamente para bloquear o ataque, mas o cabelo do gigante desviou sua espada com facilidade.
— O-O que é essa coisa?! É aliado de vocês? — um dos bandidos gritou.
Como aquilo poderia ser aliado dos caçadores? O monstro estava atacando tanto os caçadores quanto os bandidos com seu longo cabelo. Um dos tentáculos avançou direto para Arnold, mas Eigh usou o próprio corpo para desviá-lo. Ele balançou novamente, mas desta vez a Sombra Sufocada bloqueou com um chute. O tentáculo se contorceu violentamente no ar.
— O que é isso? Siddy, explica — ela murmurou, soando confusa.
— Parece um Troglodita, uma espécie Sapien que vive nas profundezas subterrâneas. Mas por que ele está aqui?
Pelo visto, os Grieving Souls não eram a causa dessa confusão, mas saber disso não ajudava em nada a melhorar a situação. O gigante, ou melhor, o Troglodita, parou de atacar e olhou ao redor, como se estivesse avaliando sua presa. Mas mesmo parado, os estrondos de passos não cessaram.
— Não é só um! Se preparem, tem mais vindo! — gritou um dos membros do Barrel. Eles estavam em pânico, um completo contraste com sua atitude anterior.
***
Ele apareceu sem aviso. A primeira pessoa a notar foi um subordinado que se destacava mesmo dentro do Bando de Ladrões Barrel. Ele estava patrulhando dos céus montado em uma das quimeras obtidas de um sindicato de magia.
Mesmo sendo um guerreiro experiente, com inúmeras batalhas no currículo e muitos feitos pelo Bando de Ladrões Barrel, ele ainda reagiu devagar diante do desconhecido. Não que uma reação mais rápida fizesse muita diferença.
Os próximos a notar foram os shinobis que patrulhavam o solo. Ao verem aquela cena estranha, imediatamente dispararam para relatar a Geffroy. Assim como aconteceu com as patrulhas aéreas, sua reação à situação fez pouca diferença.
Nem mesmo os cálculos rápidos de Kardon, sentado na torre de comando, importavam no final. O que estava acontecendo não fazia parte de nenhum esquema. Diferente dos movimentos planejados feitos pelo Esquadrão Ladino Barrel enquanto invadiam Suls, isso era uma simples invasão.
— O que são essas coisas? — Kardon murmurou, arregalando os olhos.
— Ryuuu!
Monstros humanoides cinzentos haviam surgido, uma horda inteira deles. Um monstro aproximadamente do tamanho de Geffroy deixou claro o quão poderoso era ao avançar contra um ladino. Seus cabelos contorcidos se chocaram contra o chão, deixando rachaduras em seu rastro. O ataque era poderoso, mas lento o suficiente para um shinobi desviar com facilidade. Havia apenas um problema: havia monstros demais.
Os ladrões logo se viram cercados por uma multidão de criaturas cinzentas. Eles encaravam Geffroy e seus aliados com olhos dourados. Aquilo desafiava a lógica. Havia apenas um portão, o que ficava perto do acampamento de Barrel. Um número tão grande de monstros não poderia ter passado despercebido pelas patrulhas aéreas.
— Como pode haver tantos?! De onde eles vieram?!
— Ryu-ryu-ryuu!
As criaturas vinham em duas variedades: as pequenas e rápidas, parecidas com humanos, e as poderosas, do tamanho de Geffroy. O principal traço em comum entre elas era o cabelo semelhante a tentáculos. Sem hesitação, avançaram contra os ladinos.
— Tentem acertar vários de uma vez! Vamos, chefe! — Kardon gritou.
— Maldição. O que diabos são essas coisas? — Geffroy rosnou enquanto balançava seu machado de batalha.
Por um momento, imaginaram se aquilo fazia parte de algum plano dos Mil Truques, mas as criaturas pareciam atacar indiscriminadamente. Seus olhos dourados profundos eram como os de um inseto, desprovidos de emoção e mostrando apenas pura intenção assassina. Se houvesse reféns por perto, provavelmente não hesitariam em atacá-los também.
Algumas delas pareciam espertas o suficiente para perceber que Geffroy era o líder. Avançaram contra ele, mas ele as aniquilou com um único golpe de seu machado. Bisseccionadas pelo golpe pesado, desabaram no chão e permaneceram imóveis. Mas as outras criaturas não se intimidaram nem um pouco.
Seu processo de pensamento devia ser completamente diferente do de um humano. Mais delas investiram contra Geffroy, quase como se não temessem a morte. Os cadáveres se acumulavam, provando que não eram fantasmas. Mas esse fato pouco confortava.
Além dos cabelos que se moviam, as criaturas tinham dois braços. Não pareciam muito ágeis, mas se moviam de maneiras incomuns para qualquer humano. Se você esquivasse ou aparasse um golpe, imediatamente um novo ataque vinha em seguida, sem pausa.
Para Geffroy, elas não eram grande coisa. Nem mesmo sua pele pedregosa era páreo para seu machado, uma Relíquia que amplificava seu impacto. Mas seus subordinados não estavam tendo tanta sorte. Lutavam para se defender de um inimigo que combatia com pura força bruta e números avassaladores.
Mesmo que sua pele rochosa fosse perfurada, as criaturas não desaceleravam a menos que fosse um ferimento grave. Talvez por não serem humanas, o veneno nas lâminas dos ladrões não fazia efeito. Se algo, ficavam ainda mais ferozes quando envenenadas.
Geffroy bloqueou um golpe do cabelo de uma das criaturas e, em seguida, outro. Ele e seus ladrões estavam conseguindo resistir, mas estavam em grande desvantagem numérica. Geffroy balançou seu machado e cortou um grupo de criaturas, mas parecia uma gota no oceano.
— Geffroy, vamos recuar! Reúna o máximo da nossa equipe que conseguir e bata em retirada!
— Urk. Maldição!
Estavam tão perto do sucesso. Não haviam cometido nenhum erro. Só um pouco mais e teriam tomado a cabeça dos Mil Truques. Como se estivesse tentando extravasar sua raiva, Geffroy cravou seu machado no chão. A lâmina pesada perfurou a terra, lançando fragmentos em todas as direções.
— É hora de recuar, chefe! Lembre-se, podemos recomeçar! Ninguém é mais forte que Barrel! — Kardon gritou.
— Ah, eu não esqueci! — Geffroy gritou de volta.
Seus rugidos já haviam abalado cavaleiros, caçadores e guarda-costas, mas não tiveram efeito nas criaturas.
— Estamos recuando! Reúnam quem puderem e caiam fora! Fiquem perto de mim, eu abrirei caminho! — Geffroy berrou. Sua voz era cortante para ajudar seus subordinados a manterem a compostura.
O Esquadrão Ladino Barrel tinha cofres cheios. Armas podiam ser substituídas, mas subordinados bem treinados não eram tão fáceis de recuperar. A decisão de reunir os ladrões dispersos foi tomada não por compaixão, mas por praticidade.
Mas então, as criaturas pararam de atacar simultaneamente. Todas congelaram, até mesmo aquelas no meio de um golpe, bloqueando um ataque ou prestes a serem abatidas pelo machado de Geffroy.
— O-O que elas estão fazendo?!
Todas as criaturas voltaram seu olhar para a mesma direção. O massacre cessou e foi substituído por um silêncio perturbador. Houve um momento de pausa e então todas abriram a boca.
— Ryuuu!
Diferente dos rugidos de antes, suas vozes agora eram melódicas, quase como se estivessem cantando. Movendo-se como dançarinos, começaram a girar, como se estivessem realizando um ritual. Não demonstravam hesitação, apesar dos inimigos bem diante delas.
— Chefe! Ali! — um dos shinobis gritou.
Seguindo seu olhar, Geffroy se viu olhando para uma das maiores estalagens de Suls. No topo de um telhado de azulejos estava uma criatura, um gigante ainda mais impressionante do que seus semelhantes. Mas isso não foi o que chamou a atenção dos ladrões. Geffroy estreitou os olhos. Em pé sobre a cabeça da criatura havia uma única silhueta humana.
Tinha o contorno de um humano e era mais esbelto que as criaturas grandes, mas mais alto que as pequenas. Vestia um yukata semelhante aos de seus subordinados. Sua pele era cinza como a das criaturas, mas fora isso parecia humano. Seus cabelos faziam um esforço débil para se contorcer, mas eram visivelmente mais curtos e fracos que os das criaturas cinzentas.

A pessoa usava uma coroa na cabeça e parecia benevolente e hesitante ao abrir a boca. Os demônios pararam e pareciam aguardar o que quer que essa pessoa tivesse a dizer. Então, a pessoa gritou, sua voz soando bastante parecida com a de um humano.
— Ryun-ryun-ryuu-ryu-ryu!
Tradução: Carpeado Para estas e outras obras, visite Canal no Discord do Carpeado – Clicando Aqui
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