Grieving Soul – Capítulo 1 – Volume 5
Nageki no Bourei wa Intai shitai
Let This Grieving Soul Retire Volume 05
Capítulo 1:
[Capricho das Águas Termais]
Não há nada melhor do que férias. Com todos os meus agressores para trás, rolei no chão e apreciei o quão maravilhosa era a tranquilidade. No fundo, eu era tanto um pacifista quanto um preguiçoso que não queria se mover mais do que o necessário, mas frequentemente me encontrava no centro dos problemas.
O sol já havia se posto, e eu continuava viajando nos pensamentos, até que Liz falou.
— Ei, hum, quer ir caçar um dragão das águas termais comigo? Ouvi falar sobre ele enquanto caminhava pela cidade. Aparentemente, há um ninho por perto.
— Hm? Acho que vou ficar por aqui.
E assim, minha paz foi interrompida. Estávamos em uma fonte termal, por que ela precisava sair exterminando monstros? E que tipo de nome sem criatividade era “dragão das águas termais”?
Nossa hospedaria era de alto nível, voltada para mercadores, e isso se refletia em cada detalhe. Nosso quarto era grande, a cama era macia, e a comida era feita com os melhores ingredientes da terra e do mar.
A água da fonte vinha direto da nascente e nunca era reciclada. Havia uma grande piscina e, além disso, cada quarto possuía seu próprio banho ao ar livre. Se quisesse, poderia passar o dia inteiro sem sair do quarto. Por que diabos eu deveria sair para lutar contra um dragão das águas termais logo no primeiro dia?
O colo da Sitri havia restaurado toda a minha energia perdida, mas eu planejava economizá-la para as águas termais! Essa energia não era algo que eu pudesse desperdiçar com qualquer coisa!
— Ah, qual é. Quantas vezes você tem a chance de lutar contra um monstro grande? Por que viemos aqui, afinal?
Sério? Acho que andamos enfrentando monstros grandes demais ultimamente.
Mesmo tendo passado o dia caminhando por Suls, minha pequena amiga de infância ainda estava cheia de energia. Liz fez um biquinho, agarrou meu braço e me sacudiu. Sem Luke e os outros, eu era sua única companhia, mas eu definitivamente não queria esse papel. Se ela queria brincar com alguém, a Tino não estava fazendo nada.
— Deixa eu deixar claro desde já: não pretendo fazer absolutamente nada de produtivo enquanto estiver aqui! Pelas próximas duas semanas, vou comer, tomar banho, dormir e esperar!
— Em outras palavras, você já fez sua jogada? — Sitri perguntou.
— Hã? Ah, é… Aham. Exatamente. Tudo conforme o plano.
Deixo para Sitri a tarefa de me apoiar mesmo depois de eu dizer algo tão patético. Acho que dava para dizer que eu já tinha feito minha jogada. Tivemos alguns percalços no caminho, mas minhas férias estavam indo conforme planejado.
Estávamos em uma fonte termal. Banhos quentes e luxuosos estavam ao alcance da mão. O que poderia ser mais importante do que isso? Eu ia esquecer Arnold, o Encontro da Lâmina Branca, a missão nomeada, tudo. Deixaria tudo para o Krai do futuro resolver.
Em algum momento, Sitri havia trocado suas vestes de Alquimista por um yukata azul com um padrão floral. Não mostrava mais pele do que seu traje habitual, mas havia algo de revigorante e um tanto cativante nele, comparado ao seu equipamento volumoso de sempre. Sua postura era impecável, e o yukata parecia ter sido feito sob medida para ela.
Sem dúvidas, Sitri tinha trabalhado mais do que qualquer um durante nossas férias. Eu esperava que ela ao menos aproveitasse esse último período para descansar.
Havia yukatas masculinos disponíveis, mas eu não podia usar um e manter todas as minhas Relíquias equipadas. Minha prioridade era me manter vivo. Eu até deixava meus anéis enquanto tomava banho.
Matadinho, por outro lado, optou por vestir um yukata e começou a fazer poses. A vestimenta não combinava muito com sua figura musculosa. Será que ele era mais brincalhão do que eu imaginava?
— Siddy, quando foi que você trocou de roupa? E onde está o meu? Não me diga que você acha que pode usar isso como uma chance de seduzir meu Krai Baby?
— A única pessoa aqui que faria isso é você! Além disso, quantas vezes tenho que te lembrar que ele não é seu? Você pode pegar um yukata com os funcionários da pousada, então por que não faz isso?
— Liz, se você vestir um yukata, não vai conseguir sair por aí chutando as coisas — apontei.
Liz parecia hesitante. Deixando de lado a questão de precisar ou não chutar algo em uma fonte termal, ela sempre odiou usar roupas que restringissem seus movimentos. No entanto, sua discípula lançava olhares de ansiedade, como se quisesse experimentar um também.
— Parece que não há muitos hóspedes, então provavelmente teremos o lugar só para nós — Sitri disse.
— Isso é bom de saber.
Eu não me importava de ter outros clientes por perto, mas se estivesse sozinho, poderia nadar pela piscina!
Mas, mais importante, isso significava que Liz tinha menos chances de se meter em confusão. Liz e Sitri pareciam meninas adoráveis, então frequentemente recebiam abordagens em hospedarias. E então Liz espancava os infelizes. Claro, eles mereciam, mas eu preferia evitar essas situações se pudesse.
Foi então que me lembrei de perguntar algo para Sitri.
— O que aconteceu com Preto, Branco e Cinza? Não os vi enquanto comíamos.
— Conforme suas instruções, consegui um quarto para eles e eles devem estar recebendo refeições. Qualquer coisa além disso não é problema meu.
Que resposta seca. Mas, se estamos na mesma hospedaria, provavelmente vou acabar esbarrando neles. Assim, poderei remover seus colares e deixá-los livres.
— Hum, Mestre, como eu estou? — Tino perguntou.
Ela reuniu coragem e girou sobre si mesma. Usava um yukata azul marinho e não tinha seus laços habituais. O tecido escuro contrastava lindamente com sua pele pálida. Ficou muito bom nela; Sitri deve ter ajudado a escolher a roupa.
Tino tinha dez anos quando a conhecemos pouco depois de chegarmos à capital. Anos depois, eu ainda a via como uma criança, mas vê-la assim me fez reconsiderar. Com pequenas exceções, seu corpo estava mais desenvolvido do que o da Liz. Quase me esqueci de que havia apenas quatro ou cinco anos de diferença entre nós.
Diferente de Sitri, Tino não mostrava mais ou menos pele do que de costume, então por que ela parecia tão mais encantadora? A observei com atenção, o que a fez corar.
— Sim, você está linda. Muito fofa — eu disse. — Tanto que é uma pena que só eu possa te ver assim.
Afinal, sou eu quem está sempre te causando tantos problemas.
Meu elogio exagerado fez Tino ficar ainda mais vermelha, desviando o olhar. Seus lábios se apertaram, claramente satisfeita. Liz não era do tipo que elogiava os outros, então talvez eu devesse compensar isso.
— Ah, Mestre…
O vocabulário de Tino parecia ter falhado.
— Krai, Tino pode ser fofa, mas isso não justifica você ficar encarando — Sitri disse, colocando uma mão protetora entre mim e Tino.

Era isso que eu estava fazendo? Eh, talvez Sitri tenha um ponto. Ela é uma garota, está em uma posição melhor para entender como Tino se sente. Ela também é uma caçadora júnior em relação à Sitri, e as duas têm idades próximas. Talvez se vejam como irmãs?
— Ah, Siddy, eu realmente não…
— Você está bem, T? Krai não quer te deixar desconfortável. Mas eu vou te proteger. Além disso, Krai, antes de sair elogiando a T, não tem nada para me dizer?
Vai falar na cara assim mesmo?
Ela estava brincando, mas seu ponto ainda era válido. Só porque éramos amigos não significava que eu podia jogar a cortesia pela janela.
Olhei para Sitri novamente. Fileiras de flores brancas enfeitavam um tecido azul. Era uma boa combinação para alguém serena como ela. Sua aparência era pura e delicada, mas ao mesmo tempo tinha um quê de sedução. Perfeita.
Caçadores de tesouros ficavam mais cativantes à medida que seus níveis aumentavam. O mana material fazia mais do que apenas fortalecer seus corpos e reservas de mana. Ele não alterava diretamente seus rostos, mas algo neles mudava. Existem algumas histórias sobre caçadores que valorizavam a beleza e desenvolveram encantos demoníacos que levaram reinos inteiros à ruína.
O funcionário da pousada estava certo em me olhar estranho. Havia uma grande disparidade entre Sitri e alguém como eu, sem mana material algum. Se eu não tivesse me acostumado com a presença dela ao crescer ao seu lado, talvez tivesse me apaixonado completamente. Não que eu fosse bom o suficiente para ela.
Ainda assim, nosso clã tem um monte de rostos bonitos.
— Desculpa, desculpa. Você está muito bonita, Sitri. Você fica bem na sua túnica de sempre, mas isso também está legal — falei, tentando aproveitar ao máximo meu vocabulário limitado.
Ela era fácil de admirar e tinha uma aura pura ao seu redor. Tenho certeza de que seu irmão mais velho, que tanto a mimava, teria adorado ter uma foto dela assim. A diferença entre nós dois era gritante.
Sitri me lançou um olhar desafiador. Deu um passo à frente até ficar bem na minha frente e, antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, envolveu os braços ao meu redor. Seu corpo ficou pressionado contra o meu.
— Siddy?!
— Essa é a sua opinião sincera? Eu sei quando você está mentindo, Krai.
Senti algo macio contra o meu peito. Achei que podia sentir o coração de Sitri batendo através do tecido de sua túnica. Se eu tivesse os sentidos de um caçador de tesouros, poderia ter certeza, mas, como sou agora, não dava para saber se era o coração dela ou o meu. Algo tinha um cheiro doce, minha cabeça ficou quente e comecei a me sentir tonto. Ela me olhava com olhos cor-de-rosa translúcidos que pareciam me puxar para dentro.
Eu estava acostumado com contato físico por causa da Liz, mas com Sitri era algo estranho e desconcertante. Se isso era uma piada, era uma péssima. No fim das contas, eu era um homem.
Sem saber o que fazer, minhas mãos ficaram penduradas inutilmente. Eu não podia simplesmente empurrá-la.
Tino voltou a si e soltou um grito. Ela agarrou o braço de Sitri e tentou puxá-la para longe de mim. Moveu-se sem hesitação. Acho que é isso que acontece quando você treina para lutar contra pessoas.
Tino conseguiu afastar Sitri com facilidade e olhou para mim com as bochechas infladas, uma expressão incomum para ela.
— Siddy, você não pode fazer esse tipo de coisa! Eu vou contar para a Lizzy o que você fez! E você, Mestre! Logo depois de me elogiar desse jeito!
— E-Eu… aham…
Que vergonha, considerando que eu tinha acabado de te elogiar. Sinto muito mesmo. Vou te levar para comer bolo depois, então me perdoe.
Sitri soltou um suspiro sedutor e assentiu satisfeita.
— Seu coração estava disparado, como deveria estar, então eu te perdoo por ficar encarando a Tino.
— É claro que estava disparado. E eu não estava encarando a Tino.
Qualquer homem faria o mesmo. Bem, acho que o Luke não faria. Mas ele dedicou sua alma ao caminho da espada e abriu mão de seus desejos mundanos, então podemos considerá-lo uma exceção.
Respirei fundo e tentei me acalmar, mas Sitri, sem cerimônia, agarrou meu braço esquerdo.
— Vamos para a fonte termal? — disse ela. — Não sabemos quando poderemos nos ver em outra batalha. E duvido que tenhamos sossego quando Lizzy voltar da busca pelo dragão da fonte termal.
Tino inflou as bochechas com raiva e agarrou meu braço direito.
— Mestre, não caia nas brincadeiras da Sitri! Seja o seu eu habitual e respeitável!
Quando é que eu já fui respeitável?
Tino e Sitri eram tão bonitas que, tendo-as ao meu lado, eu poderia muito bem ficar convencido. Em qualquer outra situação, eu deveria me sentir abençoado em dobro, mas, por alguma razão, só me sentia extremamente desconfortável.
Acho que Ark sempre estava em situações assim. Só Deus sabe como ele conseguia manter um sorriso o tempo todo. Talvez isso também fosse uma questão de personalidade.
Hmm. Essa brincadeira da Sitri foi incomum para ela. Talvez o ambiente da fonte termal esteja fazendo ela relaxar? Acontece. Não é algo ruim. Melhor eu apenas seguir o fluxo e aproveitar.
Sitri estava animada, Tino estava emburrada, e ambas seguravam um dos meus braços. Enquanto caminhávamos até a fonte termal, eu me sentia como um criminoso escoltado por duas guardas.
***
Eles estavam em um quarto de uma pousada luxuosa, o tipo de lugar normalmente inacessível para caçadores comuns. Um homem e uma mulher de aparência dura cochichavam entre si em tom tenso.
— A gente vai mesmo fazer isso? — o homem disse, a voz tremendo.
Esse homem já foi temido como um criminoso, mas agora estava suando frio.
Black imaginava que sua expressão devia estar igual à dele. Mas, apesar do medo, eles não podiam se dar ao luxo de hesitar mais.
— Se não fizermos nada, nossas vidas acabam aqui. Ou a gente age, ou morre! — disse ela para White.
— M-Mas o Mil Truques disse que ia nos deixar ir.
— Não seja idiota! Você realmente acredita nisso? Ele disse que ia nos soltar, mas onde foi que ele nos trouxe?! Para o Palácio Noturno, isso sim. Um cofre de tesouros que até os caçadores mais loucos evitam! Droga.
Mesmo à distância, o Palácio Noturno era mais aterrorizante do que os rumores conseguiam transmitir. Black sentiu como se seu coração tivesse parado só de olhar para ele. Se tivesse sido ordenada a entrar naquele cofre do tesouro, teria preferido pular da carruagem e fugir. Provavelmente teria sido morta por isso, mas valeria o risco. Black, White e Gray eram caçadores razoavelmente competentes, mas não havia nada que pudessem fazer contra um lugar como o Palácio Noturno.
A jornada que foram forçados a fazer havia sido brutal. Tiveram que conduzir a carruagem e vigiar monstros. Nas cidades, não lhes foi permitido descansar e tiveram que vigiar Drink e a carruagem. Na floresta, foram obrigados a enfrentar todo tipo de criatura. Até mesmo um caçador de Nível 7 os perseguiu.
Muitas vezes pensaram que seria melhor morrer do que continuar assim, mas aquele cofre do tesouro era algo completamente diferente. Mesmo depois de viajar com o Mil Truques, não faziam ideia do tipo de poder que ele possuía. Mas Black, White e Gray concordavam em uma coisa: aquele homem era insano.
Aquilo era um “descanso”, mas no sentido de um Nível 8. Não era algo que pudessem acompanhar.
Eles estavam em uma cidade que parecia ser um vilarejo de águas termais, mas o Mil Truques disse que haviam cumprido apenas metade de seus objetivos. Difícil de acreditar, mas muito provável que Black, White e Gray fossem se envolver em algo ainda pior do que tudo o que já haviam passado. Afinal, lá na floresta, um daqueles lunáticos mencionou que eles ainda eram úteis vivos.
Foi então que Gray entrou no quarto. Seu rosto estava completamente sem vida. Ele nunca teve uma aparência saudável para começo de conversa, mas agora parecia quase um cadáver. Seu rosto se contorceu ao ouvir a proposta de Black.
— Eu… estou fora — ele disse.
— O quê?! Se você ficar, é uma morte lenta e certa!
— Eu não acho que consigo enfrentar aqueles caras. Não se preocupem, não direi uma palavra sobre o que vocês estão planejando.
— Desde quando você virou um covarde?!
Gray deu de ombros e saiu do quarto. Isso foi inesperado.
Black, White e Gray eram mais ou menos igualmente habilidosos, mas se fosse para escolher, Gray provavelmente era o mais inteligente dos três. E, ainda assim, o homem que Black e White acabaram de ver não demonstrou um pingo de coragem ou vontade de resistir. Talvez ele nem voltasse à vida de crimes, mesmo que conseguisse voltar para casa vivo.
— O que fazemos? — perguntou White.
— Jogamos com as cartas que temos. Não temos escolha. Talvez eles baixem a guarda se um de nós ficar para trás — respondeu Black.
Eles não precisavam se preocupar com uma traição; seus captores não eram do tipo que recompensaria Gray por isso.
Gray ter desistido foi um contratempo inesperado, mas eles já tinham um plano. Não tinham a intenção de lutar contra o Mil Truques. Mesmo que o pegassem de surpresa, ele poderia aniquilá-los com o dedo mindinho.
A única coisa ainda impedindo sua fuga eram os colares. Destruí-los seria difícil, e eles poderiam ser eletrocutados não importava o quão longe corressem. Era uma verdadeira prisão invisível.
No começo, o Ignóbil tinha a chave, mas agora estava nas mãos do Mil Truques.
— Eles disseram que ficaremos aqui por uma ou duas semanas. Acho que devemos agir cedo. Vamos conseguir. Temos que conseguir. Eles não estão de olho na gente agora. Essa é nossa chance.
— Entendido.
Eles não sabiam muito sobre o Mil Truques. Sabiam que ele tinha uma aparência inofensiva, raramente trabalhava, dizia coisas patéticas o tempo todo, estava sempre com a guarda baixa e não era minimamente intimidador. E, ainda assim, todos faziam questão de ficar fora do caminho dele. Talvez ele estivesse apenas fingindo, mas havia uma coisa que só Black, White e Gray sabiam.
— O Mil Truques está se tornando complacente. Ele não está de olho na gente e roubar faz parte da nossa vida. Quando se trata dessa chave, é melhor que ele tenha do que a Ignóbil.
Sitri, aquela mulher aterrorizante, sabia perfeitamente a vantagem esmagadora que tinha, mas nunca mostrou a chave para eles. Eles nunca tiveram a menor ideia de onde ela a guardava. Mas isso era o certo a se fazer ao controlar escravos.
Porém, o Mil Truques era diferente. Ele era autoritário, mas também exibia um tipo de “generosidade” que só se pode oferecer quando se está no controle. Ele mostrou a chave bem na frente de Black, White e Gray. Talvez quisesse acabar com qualquer plano de fuga logo no início. Talvez realmente planejasse libertá-los.
De qualquer forma, eles tinham uma boa ideia de onde ele guardava a chave—ele a carregava consigo. Se esse fosse o caso, tinham certeza de que poderiam roubá-la. Afinal, ele não prestava atenção neles, não mais do que alguém prestaria atenção em um inseto no chão.
O Mil Truques era esmagadoramente poderoso. Mesmo que não tivessem os colares, não conseguiriam derrubá-lo. Mas aquele homem ainda era humano, não algum deus infalível. Isso significava que ainda havia esperança para eles. Felizmente, estavam em uma fonte termal. Havia vestiários.
— Verifiquei as trancas dos armários — sussurrou White. — São um pouco complexas. Consigo abri-las, só preciso de um minuto. Eles não se preocupam com roubo de roupas nesses lugares chiques.
— Certo. Vamos fazer isso.
Estavam enfrentando um demônio, mas isso não significava que Black e White simplesmente ficariam parados esperando serem esmagados. Ao se levantarem, os dois tentaram esconder o medo com sorrisos distorcidos.
***
Eu estava completamente sozinho no vestiário da área principal do banho. Parecia que realmente não havia outros hóspedes na pousada. Tudo parecia incrivelmente luxuoso.
Comecei a assobiar uma melodia enquanto caminhava até os armários. Caçadores experientes nunca negligenciavam preparações detalhadas. Eu sabia disso, mesmo não estando entre eles. Eu era fraco, para dizer o mínimo. Sem minhas Relíquias, eu era apenas um cara normal, então raramente as removia, a menos que estivesse no meu próprio quarto. Isso não mudava só porque eu estava de férias.
Não era agradável entrar em uma fonte termal com um monte de Relíquias tilintando, mas eu não tinha escolha. Se Luke e Ansem estivessem por perto, eu poderia reduzir a quantidade de Relíquias ao mínimo, pois eles me protegeriam. Mas, estando sozinho, não podia me dar a esse luxo.
— Pode haver ladinos por aí — murmurei para mim mesmo como justificativa.
Tirei as Relíquias que usava sobre a roupa e, em seguida, me despi. Manter a Corrente Farejadora na cintura seria desconfortável, então a ativei. Ela se posicionou como se estivesse sentada, imitando um cão. Meus dedos tinham espaço limitado, então eu costumava guardar os anéis extras em uma bolsa. Peguei esses anéis e os pendurei na Corrente Farejadora. Relíquias semiautomáticas eram realmente convenientes em momentos como esse.
Pulseiras, colares, pingentes, diademas—todos foram para a Corrente Farejadora nessa ordem. Em seguida, peguei o chaveiro que carregava na cintura. Todas aquelas chaves também eram Relíquias. Relíquias do tipo chave eram bastante populares.
Ao vasculhar meus bolsos, encontrei uma chave dourada. Demorei um instante para lembrar que era para os colares de Black, White e Gray. Pensei em levá-la comigo, mas a chave não era feita de material de mana. Relíquias não enferrujavam e raramente eram afetadas pelo ambiente. Mas uma chave de metal poderia enferrujar, e não vi motivo para carregá-la comigo.
Coloquei a chave no armário, peguei uma toalha e segui para a área de banho com minha Corrente Farejadora. A maioria das fontes termais não permitia animais nos banhos, mas a Corrente Farejadora era mais corrente do que cão, então achei que estaria tudo bem. Por outro lado, eu realmente não tinha certeza se era permitido entrar com uma corrente.
Abri uma porta de vidro fosco e fui envolvido por uma onda de vapor denso e pelo cheiro característico das fontes termais. Dei uma boa olhada ao redor enquanto caminhava pelo chão de mármore. Minha Corrente Farejadora agitava a cauda coberta de Relíquias enquanto me seguia.
A área principal do banho era uma verdadeira obra de arte. Não era excepcionalmente grande, mas dava para ver que cada detalhe, do chão ao teto, havia sido cuidadosamente planejado. A variedade de instalações e sua qualidade eram impecáveis, sem espaço para reclamações, mesmo para um maníaco por fontes termais como eu. Não havia um espaço para lavar sangue, mas essa não era uma pousada para caçadores, então isso era normal.
Mesmo na área de banho, não vi nenhum outro hóspede. Nem nos chuveiros, nem na banheira. Era uma apresentação solo de Krai Andrey. Se ninguém mais, pelo menos Black, White e Gray deveriam estar na pousada. Talvez estivessem apenas descansando no quarto?
Acenei levemente com a mão enquanto caminhava sem rumo pela borda da banheira. Só de me livrar do peso extra sobre os ombros, já me sentia revigorado.
Na banheira, a água quente jorrava da boca de uma estátua em forma de dragão. As paredes eram decoradas com um relevo que era completamente incompreensível para alguém como eu, que não tinha o menor interesse por arte. Infelizmente, a banheira não era grande o suficiente para nadar, mas isso não me incomodava. Eu já tinha idade suficiente para achar infantil nadar só porque não havia mais ninguém por perto.
— Isso é perfeito. Tem até um banho ao ar livre.
Tomei uma decisão. Quando me aposentasse, me mudaria para Suls. Caminhei até uma parede de vidro e, sem muito propósito, lancei um olhar para o banho ao ar livre.
Imerso na banheira esculpida em pedra estava um dragão de um azul-celeste brilhante.

— Hã?
Esfreguei os olhos e olhei de novo, mas o dragão ainda estava lá.
No geral, ele tinha um contorno arredondado e elegante. Olhos grandes e dóceis. Tinha cerca de três metros de altura, o que era pequeno para um dragão. A água quente transbordava da banheira. Grandes gotas espirravam contra a parede de vidro enquanto o dragão sacudia as asas e balançava o rabo de prazer.
Minha Corrente Farejadora corria em círculos selvagens ao meu redor. Provavelmente estaria latindo, se pudesse. Fiquei parado, atordoado por um momento, antes de decidir fingir que não tinha visto nada.
Fui para os chuveiros e tomei meu tempo enxaguando o corpo da cabeça aos pés. Meu coração ainda estava disparado. Era uma sensação diferente daquela que eu sentia quando Sitri se encostava em mim.
Colocar um dragão em um banho. Não dá para entender os gostos dos ricos.
Depois que meu corpo estava completamente limpo, olhei de relance para o banho ao ar livre a uma distância segura. Vi a silhueta vaga de algo azul. É claro que ainda estava lá.
Pensei no que fazer enquanto me afundava lentamente na água. Era bem quente, mas isso era até melhor. Meu corpo começou a relaxar, como se meu cansaço estivesse se dissolvendo na água. Coberta de Relíquias, minha Corrente Farejadora permanecia lealmente ao meu lado.
Mas tudo em que eu conseguia pensar era no dragão. Eu tinha vindo até esse resort para aproveitar as águas termais, e agora nem podia desfrutar direito. Já tinha visto todo tipo de dragão, mas aquele era novidade para mim. Simplesmente não fazia sentido. Ninguém acreditaria se eu contasse. Até eu estava começando a duvidar da minha sanidade.
Continuei de molho na água quente, lançando olhares ocasionais para o banho ao ar livre, mas o dragão não parecia que iria embora. Isso era frustrante. Com ele ali, eu não conseguia relaxar. Talvez eu devesse ter trazido o Matadinho comigo. Mas isso também teria sido desconfortável de outra maneira.
Então um pensamento me ocorreu. Talvez eu pudesse me juntar ao dragão? Pensando bem, não havia como uma criatura perigosa entrar nos banhos de um resort de alto nível. A água quente jorrava da boca de uma estátua de dragão dentro do lugar. Talvez dragões fossem uma espécie de símbolo desse local?
Banho com dragões, é isso? Acho que prefiro banhos normais.
Vi o pescoço do dragão emergindo da água. Parecia bastante confortável. Eu não sabia nada sobre expressões faciais de dragões, mas ele parecia relaxado. O bicho era um pouco grande, mas ainda havia bastante espaço; eu caberia lá facilmente, se quisesse. Já passei por todo tipo de experiência, mas tomar banho com um dragão seria uma novidade. Não que eu já tivesse sentido vontade de fazer isso.
Talvez seja melhor desistir do banho ao ar livre.
Estamos falando de um dragão, e eu não tenho material de mana e não machuco nem uma mosca. Mesmo que ele não tivesse intenção de me ferir, um simples esbarrão poderia me jogar longe.
Depois de um tempo com a água quente até o pescoço, comecei a sentir tontura. Tinha me esquecido completamente dos meus planos de visitar a sauna. Agora não dava mais tempo para isso.
Deveria entrar na água com o dragão ou não? Posso? É seguro? É perigoso? Não. Vamos pensar no lugar dele. Eu sou um dragão. Estou relaxando em uma fonte termal e um humano aparece para tomar banho. O humano é fraco. Diferente daqueles caçadores monstruosos, esse aqui não tem poderes especiais. Eu sou um dragão. A chance de que esse humano possa me machucar é praticamente zero.
Eu realmente me daria ao trabalho de atacar sob essas circunstâncias? Não.
Com a mente resolvida, me levantei. Certamente o dragão fazia parte do resort. Como um mascote. Não havia nada a temer. Mostrar medo só tornaria tudo pior.
Abri a porta do banho ao ar livre e fiquei diante do dragão com os braços cruzados, assumindo uma postura ousada e assertiva. Então, sem motivo algum, o dragão me acertou e me lançou pelos ares. Atravessando a parede de vidro, fui parar na banheira principal. Meus Anéis de Segurança impediram que eu sofresse qualquer dano do impacto ou dos estilhaços de vidro.
O dragão azul-celeste me encarava, seus olhos dóceis brilhando de um jeito que não deveria ser possível. Minha Corrente Farejadora ficou na minha frente, como se tentasse me proteger.
Eu estava confuso, mas ainda assim consegui soltar um grito estridente.
— SITRIII! TEM UM DRAGÃO! TEM UM DRAGÃÃÃO!
Eu estava errado. Parecia tão tranquilo que pensei que fosse um dragão especial, mas era só uma fera selvagem.
***
Ela não pôde se conter. Com os olhos brilhando, deixou escapar um suspiro ao admirar a paisagem à sua frente. Tino Shade tinha saído poucas vezes da capital imperial. Estava sempre ocupada treinando, e a maioria das missões que aceitava não exigia que ela fosse além dos muros da cidade.
Caçadores gastavam mais dinheiro com equipamentos do que com hospedagem, e ela nunca tinha ficado em uma pousada que atendesse alguém além dos caçadores. Também era a primeira vez que via uma fonte termal tão grande. Muita coisa aconteceu desde que saiu da capital, mas ver aquele lugar a fez se sentir feliz por ter vindo nessa viagem.
Até mesmo o vestiário, iluminado de forma aconchegante, a fazia se sentir um pouco desconfortável. Virou-se para Siddy e, hesitante, fez a pergunta que não saía da sua cabeça.
— Hum, Siddy, sobre o preço…
— Ah, não precisa se preocupar com isso, T. Não seja tímida, nós ganhamos muito mais que você. Na verdade, se você se preocupasse com isso, estaria mostrando falta de confiança em nós.
As palavras de Siddy eram despreocupadas, mas carregavam uma confiança que não admitia recusas.
— M-Muito obrigada — disse Tino.
Siddy tinha razão. Tino era uma caçadora intermediária, mas um grupo famoso como os Grieving Souls poderia facilmente ter uma renda centenas de vezes maior que a dela.
Lizzy tinha saído para procurar o dragão da fonte termal, então só restavam Siddy e Tino no vestiário. Tino hesitou. De certa forma, achava Siddy ainda mais assustadora do que Lizzy. Mas Siddy parecia tranquila enquanto desfazia a faixa de seu robe.
— Tenho certeza de que você está bem cansada, T. Certifique-se de descansar bem — disse ela com uma voz gentil. — Nunca se sabe quando algo pode acontecer.
— O-Okaaay — respondeu Tino, lançando um olhar para Siddy.
Ela desfez o robe. Tino já tinha se despido na frente de Lizzy muitas vezes, mas nunca na frente de Siddy. Um pouco envergonhada, tirou a roupa apressadamente, mas Siddy não demonstrou nenhuma hesitação. O que viu fez os olhos de Tino se arregalarem e ela prendeu a respiração.
Siddy era muito bonita.
Tino já tinha visto Lizzy sem roupa antes. Lizzy tinha uma personalidade extravagante, um jeito despreocupado de viver e frequentemente tomava banho em riachos de montanha só de roupa íntima. Seu corpo era impecável, sem um grama de gordura em excesso. Sua pele bronzeada tinha uma beleza selvagem.
Mas Siddy era diferente. Tino não sabia bem o que esperar, já que Siddy sempre usava um robe grosso. Ainda assim, sua silhueta a surpreendeu. Sua pele era branca como a neve e sem uma única imperfeição. Era esguia, mas com curvas femininas bem definidas. Se havia uma coisa na qual Tino superava Lizzy, era no tamanho dos seios, mas Siddy as superava ambas nesse quesito. Era estranho pensar que as duas eram irmãs.
O trabalho de um Ladino exigia talentos diferentes dos de um Alquimista; era natural que seus corpos fossem distintos. Ainda assim, o pequeno sentimento de superioridade que Tino tinha sobre Lizzy foi esmagado pela figura de Siddy.
— O que foi, T?
— N-Nada. Seu equipamento realmente esconde seu corpo, não é?
Siddy conteve uma risadinha e olhou para Tino com um olhar perspicaz. Envergonhada, Tino queria cavar um buraco e se enfiar nele. Ela ainda estava crescendo, mas sentiu que poderia desistir de superar Siddy nesse aspecto. Se ao menos houvesse algo que pudesse fazer a respeito…
Por um breve momento, a imagem de Evolve Greed, a máscara que recebeu de seu mestre, passou por sua mente. Ela afastou o pensamento. Cobrindo-se o máximo possível com uma toalha, fechou seu armário. Mas então percebeu que Siddy estava fazendo algo.
— Hã, isso é para…?
Ela piscou ao ver o que Siddy estava fazendo.
Siddy estava prendendo cintos com frascos de poções em seus braços. Os líquidos coloridos dentro deles eram diferentes dos que Tino usava em cofres de tesouro. Com os olhos arregalados, ela observou as estranhas preparações de Siddy antes do banho.
— Não preciso te lembrar como Lizzy sempre mantém Raízes do Ápice por perto o tempo todo — disse Siddy com um sorriso suave. — Caçadores precisam estar preparados para o combate a qualquer momento.
— Então, hã, algo vai acontecer?
— Talvez. Talvez não. Parte da preparação é aceitar ambas as possibilidades.
— E-Eu entendo…
Sem saber se realmente tinha entendido ou não, Tino forçou-se a aceitar as palavras de Siddy como verdade. Nunca tinha visto alguém se preparar de forma tão minuciosa. Mas Siddy era muito mais inteligente que ela, então certamente não estava enganada. Provavelmente era algo normal entre grupos de elite. Sem mencionar que Siddy era uma Alquimista, e Alquimistas lutavam com itens. Talvez ela simplesmente precisasse estar sempre armada?
Siddy pegou um último item: uma pistola d’água cor-de-rosa.
— Obrigada por esperar — disse ela com um sorriso cativante. — Vamos? Eu gostaria muito de bater um papo com você, T.
Seguindo Siddy, Tino entrou timidamente pela porta. Uma agradável onda de vapor a envolveu. Assim como a hospedaria, os banhos eram diferentes de tudo que já tinha visto. O chão era feito de pedras lisas e era agradável caminhar descalça sobre elas. Gravuras sutis, mas intricadas, adornavam as paredes, e uma banheira grande o suficiente para várias pessoas estava cheia de água cristalina.
Tino e Siddy eram as únicas presentes; o único som no ambiente era o da água fluindo, ecoando pelo teto alto. Isso lhe deu uma estranha sensação de liberdade. Com as palavras de Siddy ainda em mente, ela estreitou os olhos e analisou o banho ao ar livre, mas ele também estava vazio.
A higiene era um problema constante para caçadores em movimento. Geralmente, as opções se limitavam a se limpar com uma toalha úmida ou a se banhar em uma fonte natural, se houvesse uma disponível. O mana material impedia que os caçadores ficassem muito sujos, mas não evitava o acúmulo de estresse. Para alguém que ainda estava tensa depois de atravessar uma cadeia de montanhas recentemente, aquela fonte termal era como um pedaço do paraíso.
Então é assim que o luxo se parece, pensou Tino. Mas não posso me acostumar a ser mimada pelo Mestre.
Ela foi até os chuveiros, onde encontrou uma grande variedade de sabonetes perfumados. Provavelmente eram normais para garotas nobres e filhas de mercadores ricos. Com um pouco de expectativa, pegou alguns e os cheirou. Seu sabonete habitual era do tipo que mascarava o cheiro do corpo, algo essencial para um Ladino. Mas não havia mal nenhum em experimentar algo perfumado de vez em quando.
Ela se sentou, mas, quando estava prestes a ensaboar-se, ouviu uma voz atrás dela. Um braço esguio surgiu bem diante de seus olhos. Entre os dedos finos e prateados como pequenos peixes, havia um frasco de vidro contendo um líquido roxo-claro.
— Aqui, T, este sabonete será muito mais… atraente para Krai do que qualquer variedade comum.
— Hã?
Tino se virou. Siddy sorria enquanto olhava para ela.
Era óbvio que Siddy se importava profundamente com Krai. Talvez não como uma amante, mas os dois definitivamente compartilhavam um laço profundo. O que a motivaria a estender a mão para uma mera discípula?
— Quer experimentar? Estou sempre sintetizando mais. Mas se não estiver interessada, acho que tudo bem também.
Que tentação maldosa. Tino não sabia por que Siddy criaria algo assim, mas sabia que ela não mentia sem motivo. E suas poções eram de qualidade tão alta que qualquer um da Primeiros Passos poderia confirmar. Mas, se ela estava sempre sintetizando mais… isso significava que ela sempre usava aquilo?
As bochechas de Tino coraram, e ela se encolheu um pouco. No fundo, ela queria. Queria experimentar o sabonete. Queria mais do que tudo receber o elogio de seu mestre. Ele talvez não pensasse muito nela, mas agora, bem diante de seus olhos, havia um meio de chamar sua atenção.
Mas as palavras não saíam de sua boca. Com uma sensação ardente de agitação, ela abaixou o olhar. Siddy sorriu e se sentou atrás de Tino. Não era como se estivesse expondo as costas para um inimigo, mas mesmo assim, um arrepio estranho percorreu sua espinha.
— Isso mesmo. Você está cansada, não está? Aqui, eu lavo você — disse Siddy com uma voz gentil e reconfortante. — Apenas relaxe e deixe suas preocupações sumirem. Fique tranquila, sou muito boa com massagens. Só não tire sua atenção de mim.
Isso era ruim. Muito ruim. Sinos de alerta soavam na cabeça de Tino. Ela não conseguiu conter um pequeno grito quando as pontas dos dedos de Siddy roçaram em seu ombro. Seu coração batia como um tambor. Ela precisava fugir, mas suas pernas não obedeciam. E mesmo que corresse, de que adiantaria?
Esse era um perigo diferente de qualquer outro que já havia enfrentado. Ela percebeu que tinha tomado a decisão errada ao vir ali. No espelho à sua frente, Tino podia ver um sorriso nos lábios de Siddy, mas seus olhos eram frios como os de um cirurgião.
Ela deveria ter recusado. Deveria ter dito que não precisava de sabonete (um sabonete que Siddy, sem dúvida, fizera para seus próprios propósitos) e ter negado de forma categórica, olhando para ela como se fosse louca.
As manobras astutas de Siddy eram muito mais assustadoras do que os acessos de violência de Lizzy. Tino tentou se levantar, mas uma mão a pressionou para baixo, mantendo-a no lugar. Com apenas a mão direita, Siddy removeu a tampa de um pequeno frasco de vidro. Um líquido roxo espesso oscilava dentro dele. Siddy despejou um pouco na mão e estendeu-a em direção às costas trêmulas de Tino. Assim que seus dedos estavam prestes a tocar a pele dela, ouviram um grito.
— SITRIII! TEM UM DRAGÃO! TEM UM DRAGÃAAO!
— Um dra…gão?
Diante de um perigo iminente, a ansiedade de Tino atingiu níveis extremos ao ouvir aquelas palavras que soavam como um resgate. Elas não faziam sentido para ela, mas as mãos de Siddy pararam, seu sorriso desapareceu e ela soltou um breve suspiro. Rapidamente, lavou as mãos.
— Ora, o que será que está acontecendo lá? — disse para uma Tino muito aliviada. — Esse é o banho masculino, mas nos chamaram, e isso significa que devemos ir. Pelo que me lembro, o caminho mais rápido é pelas termas ao ar livre.
— Hã? Ah, tá. Huuuh?
Como poderia haver um dragão ali? Eram considerados as mais poderosas criaturas míticas que existiam. Sua força variava, mas até mesmo os mais fracos podiam trucidar um humano com facilidade. Deveria haver um pânico generalizado no momento em que um dragão sequer se aproximasse da cidade.
Tino ainda estava confusa, mas qualquer coisa parecia melhor do que deixar Siddy lavá-la, então se levantou e seguiu a Alquimista. As termas ao ar livre ficavam na mesma direção dos banhos masculinos, separadas por um muro alto e resistente.
Foi então que algo ocorreu a Tino.
— Siddy! Estamos nuas!
— E o que tem isso? Isso atrapalha seus golpes?
— Isso—
Tino parou diante daquela objeção inesperada, mas perfeitamente lógica. Siddy não perdeu tempo, pegou uma poção presa ao cinto de seu braço e a arremessou contra a parede.
***
Isso não fazia o menor sentido. Ser atacado por um dragão em uma fonte termal definitivamente estava entre as dez experiências mais bizarras da minha vida. E ainda por cima dentro de uma cidade movimentada. O que a segurança da pousada estava fazendo para um dragão conseguir entrar?
Não fiquei exatamente surpreso ao ver que ele não estava satisfeito em apenas me arremessar para longe. O dragão emergiu do banho e veio em minha direção, abrindo as asas de forma ameaçadora. Mesmo sendo pequeno, um dragão ainda era um dragão. A visão de suas asas abertas era bem intimidadora.
Pensando bem, foi tolice minha imaginar que uma fonte termal adotaria um dragão. Eu deveria ter percebido isso antes de tentar entrar no banho ao ar livre. Acho que a tentação do banho quente me venceu.
Andando sobre duas patas, o dragão pisou nos cacos de vidro espalhados pelo chão e entrou na área interna do banho. Devia ser um dragão muito extravagante para querer comer e tomar banho ao mesmo tempo. Decidi que, se o pessoal da pousada me perguntasse sobre minha estadia, eu diria que precisavam de vidraças mais resistentes na área dos banhos. Isso, claro, se eu saísse vivo dali.
Com esforço, me levantei e consegui manter uma certa distância entre mim e o dragão. Meus Anéis de Segurança ainda estavam por perto, mas eram inúteis a menos que alguém viesse lutar contra o monstro. Minha Corrente Perseguidora bravamente se colocou à minha frente, mas, infelizmente, tinha quase nenhum poder de ataque.
A parte racional do meu cérebro me dizia para correr para dentro da pousada o mais rápido possível. Mas, se eu fizesse isso, o dragão me seguiria. Não queria ver um prédio tão bonito ser destruído e, como caçador (ainda que no sentido mais básico da palavra), queria evitar que civis fossem feridos. Além disso, um dragão não era algo do qual se podia simplesmente fugir.
Eu tinha chamado por Sitri e tinha certeza de que ela viria correndo. Enquanto o dragão se aproximava lentamente, estendi as palmas das mãos. Me acalmei e tentei ganhar tempo.
— Relaxa, dá uma olhada! Veja todas essas Relíquias que estou usando! Se você me comer, elas vão ficar entaladas na sua garganta, e você não quer isso.
Que tentativa de negociação patética. Certamente entrou para o meu “Top Dez das Negociações Mais Vergonhosas da Minha Carreira.” Enquanto eu começava a perder a noção da realidade, o dragão abriu a mandíbula como se fosse soltar um “rugido.” Sua boca estava repleta de presas afiadas como adagas. Esse monstro estava aproveitando um banho relaxante, mas ainda tinha todas as características típicas de um dragão. Que piada cruel.
Olhei ao redor. Estávamos em uma fonte termal, então, é claro que não havia nada que pudesse ser usado como arma. E mesmo que houvesse, eu não teria como fazer muita coisa com isso. Tudo o que eu via eram banhos quentes que eu nem sequer tinha conseguido aproveitar ainda.
Sem opções melhores, entrei na água. O dragão inclinou a cabeça, como se estivesse observando algo muito confuso. O gesto estranhamente humano me fez rir alto.
Eu estava completamente desesperado. O dragão entrou lentamente no banho e começou a me encurralar. Não deu a menor atenção à minha Corrente Perseguidora, que se enrolou em uma de suas asas. Centenas de pessoas ganhavam a vida como caçadores, mas eu tinha quase certeza de que era o único que já havia tomado banho com um dragão. Eu definitivamente iria me gabar disso quando voltasse para a capital.
Então, meu devaneio bobo foi interrompido por um clarão repentino do lado de fora. Por um momento, tudo o que vi foi uma luz branca. Os cacos de vidro restantes foram arremessados para longe, e um estrondo sacudiu meu corpo. Uma onda se formou no banho e desabou sobre minha cabeça.
Esfreguei a água do rosto e abri os olhos. O dragão estremeceu e se virou. A fonte termal ao ar livre estava irreconhecível. Por cima de uma parede destruída, pisavam Sitri e Tino, ambas enroladas em toalhas. Sitri me avistou e me lançou seu sorriso de sempre. Assenti de volta como se tudo isso fosse perfeitamente normal.
Ah, qual é. Que tipo de férias são essas?
***
Após invadir o banho masculino com Siddy, Tino não conseguiu compreender o que via diante dela. Seu mestre estava tomando banho com um dragão azul-celeste. Ela esqueceu que deveria estar alerta e simplesmente esfregou os olhos, tomando cuidado para não deixar a toalha cair. Não, não era alucinação.
Mergulhado até a metade na água quente, seu mestre parecia completamente tranquilo. Ele tinha o sorriso de alguém satisfeito com a vida. O dragão desconhecido rosnou ao ver Siddy e Tino.
Ele nos chamou, mas não porque queria ser resgatado? O que ele está fazendo? Tino se perguntou.
Pensando bem, não fazia sentido que os fortes pedissem ajuda aos fracos. Ela também se lembrou das palavras do mestre; ele gritou, mas não mencionou nada sobre resgate. Ela presumiu que gritar sobre a presença de um dragão fosse um pedido de ajuda, mas o Mil Truques era um Matador de Dragões.
Deixando de lado sua timidez, ela deu um passo para trás, preparando-se para um possível ataque. Tino estava quase completamente sem roupas, com apenas uma pequena toalha enrolada no corpo. Ela não tinha suas facas habituais e nem usava sapatos. Uma fonte termal definitivamente não era o lugar onde se esperava encontrar um dragão.
Apesar de estar praticamente indefesa, Tino manteve a calma. Isso porque Siddy estava ao seu lado. No começo, Tino não entendia por que Siddy trouxe poções para a fonte termal, mas não deveria ter duvidado de uma caçadora experiente.
A poção usada para destruir a parede era muito mais letal do que uma mistura comum. Alquimistas geralmente não eram adequados para combate, mas aparentemente, isso não se aplicava aos melhores. Porém, nem mesmo uma caçadora tão experiente poderia ter previsto essa situação. Siddy piscou e fez exatamente a pergunta que estava na mente de Tino.
— O que você está fazendo?
— Não é óbvio? — Krai disse.
Não, Mestre, não é, Tino pensou.
Dragões geralmente tinham força proporcional ao seu tamanho. O dragão azul-celeste era pequeno para sua espécie, o que significava que não era um dos mais poderosos. Talvez fosse um daqueles dragões de fonte termal que Lizzy tinha ido procurar.
Mas ainda era um dragão. Um dragão fraco ainda era um dragão, um monstro entre monstros, o rei das bestas míticas. Em todas as terras e eras, o título de Matador de Dragões era um sinal de poder. Mas, em todo o mundo, o mestre de Tino provavelmente era o único que tomava banho casualmente com um dragão. Como alguém sequer se mete em uma situação dessas?
O dragão parecia reconhecer Tino e Siddy como ameaças em potencial. Ele abriu as asas enquanto se erguia na água. Gotas escaldantes espirraram no chão, suas asas azuis cintilaram, e suas escamas brilharam. A Corrente Perseguidora enrolada em seu corpo parecia ter desistido de lutar.
Após um breve momento de reflexão, Siddy bateu palmas.
— Entendi — disse ela. — Bom, então, com você agora, T.
— Hã?!
O dragão avançou pesadamente sobre duas pernas. Siddy agarrou os ombros de Tino e se escondeu atrás da Ladina, que entrou em pânico. Num instante, o dragão girou e balançou sua longa e esguia cauda como um chicote.
— Um dragão desse tamanho não deve ser problema para você, né, T? — Siddy sussurrou no ouvido de Tino.
— Hã? Hã?!
Tino instintivamente recuou alguns passos. Siddy deveria estar usando ela como escudo, mas as duas não colidiram. Ela deve ter previsto os movimentos de Tino e desviado para o lado. Pelo canto do olho, Tino conseguiu ver Siddy. A Alquimista aproveitou a brecha deixada pelo ataque do dragão para passar correndo pela criatura e pular na água.
— Siddy?! — Tino gritou, indignada.
— Boa sorte, T! Tô torcendo por você!
Parece que os protestos de Tino foram ignorados. Siddy se agarrou ao braço do mestre de Tino e sorriu. Tino havia sido traída, mas já era tarde para fazer algo a respeito.
O dragão conseguia balançar a cauda com uma rapidez assustadora. Tino não sabia se ele podia voar, mas ele tinha todas as características comuns de um dragão: asas, presas e garras. Seu movimento era lento, mas lutar com uma toalha prestes a cair não seria nada fácil. Chutar estava fora de questão, mas talvez essa não fosse uma boa forma de atacar um dragão, de qualquer forma.
Talvez ela conseguisse derrotá-lo se tivesse todo o seu equipamento e estivesse em plena forma. Mas a falta de armamento era uma desvantagem séria, e essa era a primeira vez que ela enfrentava um dragão.
— Mestre, isso não era para ser um descanso?! — ela gritou enquanto procurava uma brecha no dragão.
— Como assim, T? Você não tomou banho na fonte termal? — Sitri perguntou.
— Não! Ainda não!
Enquanto Tino era tomada por tensão, confusão e um pouco de vergonha, o dragão ergueu a cabeça — um sinal de que estava prestes a atacar com seu sopro. Tino rolou rapidamente para fora do alcance.
Então, ela viu o ataque: o dragão disparou água quente de sua boca. Com uma força imensa, o jato de água explodiu e atingiu o lugar onde Tino estava um instante antes. Gotas se espalharam por todos os lados, e o impacto deixou uma pequena rachadura no chão. Aproveitando o embalo da rolagem, Tino se colocou de pé novamente.
— O que é essa coisa?! — gritou, sem conseguir se conter. — Isso é algum tipo de piada?!
— Talvez você devesse parar de gritar e se apressar? É só um dragão de fonte termal!
Tino ficou chocada com a crueldade de Siddy, mas não podia se dar ao luxo de hesitar.
O dragão cômico inflou o peito como se quisesse exibir sua majestade. Mesmo que isso lhe rendesse o título de Matadora de Dragões, ela teria vergonha de usá-lo.
Sua única esperança era seu mestre, mas ele permanecia imóvel como uma pedra, com a expressão serena de um Buda. Ela aceitou a realidade: isso era uma Provação, exatamente como Siddy dissera. Provavelmente. Muito provavelmente. Seu mestre estava fazendo isso por ela.
Isso é demais, Mestre.
Engolindo o choro, Tino deu um passo desesperado em direção ao dragão cômico.
***
O dragão azul-celeste deslizou pelo chão e caiu de costas. Perto dali, Tino estava ajoelhada, cobrindo-se com as mãos.
— Eu não acredito em você, Mestre — gemeu entre respirações irregulares.
Uooooh, Tino, você sempre foi tão forte assim?
Ela não estava usando a máscara como durante sua luta contra Arnold, mas seus movimentos foram impecáveis. Ver alguém pequena como Tino chutando um dragão atarracado parecia algo saído de uma comédia pastelão.
A toalha rasgada de Tino estava jogada por perto. Não podia culpá-la por decidir que não valia a pena tentar se cobrir. Não sabia se isso tinha relação com o fato de que seus movimentos ficaram rápidos como um raio depois disso.
Eu pretendia intervir se a situação ficasse séria, mas a batalha terminou sem que fosse necessário. Não se preocupe, eu me certifiquei de desviar o olhar. Eu era um profissional em não ver coisas.
Sitri, a criminosa de guerra da vez, voltou do vestiário com uma toalha. Tino me culpava pelo que aconteceu, mas eu presumi que Sitri faria alguma coisa. Não tive culpa. Bom, talvez eu compartilhasse um pouco da responsabilidade.
— Oh, você lutou muito bem, Tino. Bom trabalho, bom trabalho — disse, tentando consolá-la.
— Hm?! Maldito seja, Mestre — Tino resmungou com um fungado.
Ela se abraçou, mas sem muito efeito. Sitri colocou a toalha sobre ela.
— Aprendeu a importância da preparação? — Sitri perguntou.
Com lágrimas nos olhos, Tino não disse nada e apenas assentiu vigorosamente. Sitri acariciou seu cabelo, mas será que ela realmente tinha moral para isso?
Olhei para a área de banho destruída e o dragão ainda se contorcendo no chão antes de soltar um suspiro.
— Mas a maioria das pessoas não espera encontrar um dragão em uma fonte termal — comentei.
Tino me lançou um olhar incrédulo. Não precisava disso. Eu adorava fontes termais, mas até eu não entraria em uma se achasse que poderia ser atacado por um dragão.
Parece que minha única opção agora é o banho ao ar livre no nosso quarto.
***
— Vamos começar — disse Arnold.
Seu grupo rugiu em resposta. Apenas vestígios de medo podiam ser encontrados em suas expressões decididas. Chloe os observava com incerteza. Após descansar em uma vila próxima, Arnold tomou sua decisão: eles avançariam.
Isso já não era mais apenas uma questão de vingança. Os caçadores da Névoa Caída tinham um brilho intenso nos olhos. Ao lado deles, Rhuda e os caçadores do Redemoinho Escaldante exibiam expressões rígidas. Aquilo era caçadores fazendo o que nasceram para fazer.
Eles sabiam que havia maneiras mais inteligentes de lidar com a situação. No entanto, o orgulho e a confiança mútua entre os membros da Névoa Caída simplesmente não os permitiriam recuar diante de um cofre do tesouro que o Mil Truques conseguiu invadir. Pelo mesmo motivo, os caçadores de nível muito mais baixo do Redemoinho Escaldante escolheram acompanhá-los.
Tudo o que restava era testar sua força e determinação. E, se essa era a decisão deles, Chloe não podia voltar atrás. Não havia mais nenhum vestígio de rancor nos olhos de Arnold. O Palácio Noturno não era um desafio que poderia ser enfrentado por alguém com a mente obscurecida por emoções negativas.
O castelo imponente à frente deles estava exatamente como dias atrás. As nuvens de tempestade giravam furiosamente, e a calma inquietante no olho do furacão permanecia inalterada. Isso significava que esse estado sombrio era normal para um cofre do tesouro de Nível 8.
Arnold engoliu em seco e disse apenas:
— Isso vai definir tudo.
Chloe entendeu perfeitamente o significado dessas palavras. Aqueles caçadores haviam aceitado a dificuldade do desafio diante deles. Eles estavam prestes a experimentar em primeira mão um cofre do tesouro que o Mil Truques provavelmente explorou apenas com um pequeno grupo de aliados. Ao fazer isso, não apenas recuperariam o respeito pelo caçador, como também se libertariam da disputa com ele.
Eigh, de repente, franziu a testa, assumindo uma expressão duvidosa.
— Não vejo nenhuma carruagem — disse. — Será que eles estão mesmo aí dentro?
Todos olharam ao redor. Tinham uma visão desimpedida das planícies ao redor e não viam nenhum monstro, muito menos uma carruagem.
— Eles devem estar lá — disse Arnold. — Não houve indícios de que estavam blefando. Mas, no fim das contas, isso não importa mais.
Eigh forçou um sorriso nos lábios e riu.
— Não precisa me dizer. Vamos seguir você para onde quer que vá.
Os portões maciços se abriram, quase como se estivessem dando as boas-vindas a Arnold. Uma brisa fria varreu os caçadores.
E assim, o Crashing Lightning e a Névoa Caída começaram sua empreitada.
***
Rhuda suportou a pressão que pesava sobre ela e avaliou desesperadamente os arredores. Naturalmente, ouviu atentamente, mas utilizou todos os cinco sentidos.
O Palácio Noturno era uma câmara do tesouro de Nível 8. O nível de uma câmara era geralmente proporcional à sua acumulação de material de mana. Maiores reservas desse material também significavam espectros mais fortes e em maior número. Um Nível 8 provavelmente teria muitas vezes mais espectros do que a Toca do Lobo Branco, uma câmara que ela havia atravessado recentemente.
Mas Rhuda não conseguia detectar nenhum sinal de vida. A Névoa Caída estava na frente da formação e incluía Eigh Lalia, um Ladino de nível mais alto que Rhuda. Mas ele parecia tão apreensivo quanto ela.
Não havia armadilhas nem inimigos. Rhuda nunca havia entrado em uma câmara do tesouro em forma de castelo porque eram raras e geralmente tinham níveis elevados. Ouviu dizer que os espectros nesses lugares podiam ser extremamente bem coordenados. Mas não encontrar nenhum espectro era quase inacreditável.
Talvez tivesse cometido um erro ao vir aqui. No momento em que viu a câmara do tesouro, seus instintos a instaram fortemente a dar meia-volta. Parte dela queria ter escutado esses instintos, mas sabia que agora era tarde demais para arrependimentos.
Desde o começo, teve a sensação de que os objetivos da Névoa Caída não estavam completamente alinhados com os de todos os outros. Mas ela e o Redemoinho Escaldante foram contratados para escoltar Chloe e sentiram que deveriam tentar impedir que o Crashing Lightning e os Mil Truques entrassem em conflito.
Rhuda não conseguia imaginar o que poderia acontecer se um caçador de Nível 7 e um de Nível 8 se enfrentassem. Sentia mais poder bruto no primeiro, mas sabia das táticas ardilosas que o segundo poderia ter em mente.
Não, seja honesta, disse a si mesma. Não sabia como seria uma luta individual, mas acreditava que os Grieving Souls venceriam a Névoa Caída. Não tinha certeza do quão poderoso Krai realmente era, mas podia ver quem tinha os aliados mais fortes. Os caçadores da Névoa Caída certamente não eram fracos, mas nenhum deles se comparava ao que Rhuda viu quando encontrou a Sombra Partida pela primeira vez.
Recentemente, dois membros dos Grieving Souls conseguiram deter a Névoa Caída à beira do lago. Se o grupo inteiro se reunisse, a Névoa Caída não teria chance. No fim, o trabalho de Rhuda provavelmente seria intervir depois que a Névoa Caída perdesse.
A Névoa Caída era um grupo barulhento e se comportava como os civis imaginavam que todos os caçadores fossem, mas eles não eram más pessoas. Durante a jornada, nunca deixaram Rhuda e o Redemoinho Escaldante para trás, não importava quão grave fosse a situação. Ela sentia que devia retribuir o favor.
Krai também tinha Tino ao seu lado. Rhuda sozinha talvez não fosse suficiente, mas se ela e Tino implorassem, os Mil Truques poderiam ao menos poupar a vida da Névoa Caída. Esse era seu pensamento original. Agora, achava essa ideia ingênua demais.
Tinha confiança de que Krai atenderia seus pedidos de misericórdia. Nem mesmo a Sombra Sufocada o desafiaria. Mas primeiro, eles precisavam de fato confrontar Krai… e poderiam morrer antes que isso acontecesse.
O Palácio Noturno era ainda mais assustador do que ela imaginava. Ainda não havia encontrado nenhum espectro, mas mesmo assim podia dizer que a Toca do Lobo Branco era um paraíso comparado a este lugar.
Pálida como um fantasma, Rhuda tentou desesperadamente se concentrar. Atrás dela, os membros do Redemoinho Escaldante pareciam ainda piores. O grupo era muito maior do que estavam acostumados, mas isso não os fazia se sentir melhor. Para pessoas como Rhuda e Gilbert, os espectros deste lugar infernal estavam além do que eles poderiam sequer sonhar em ferir.
A única esperança deles eram os Mil Truques. Aquele homem dócil, porém manipulador, certamente sabia que Rhuda e os outros o seguiriam. Depois de terem vindo tão longe, torciam para que ele soubesse disso.
Depois de olhar ao redor, Eigh disse que não planejava morrer em um lugar como aquele. A densidade do material de mana era maior do que Rhuda já havia sentido antes. Aos poucos, sentia-se ficando mais forte. Era uma boa experiência. Se ao menos pudesse pensar nisso e nada mais.
Ao entrar na câmara do tesouro, percebeu que o Palácio Noturno tinha uma aura majestosa inesperada. As paredes externas e o portão pareciam novos e eram construídos de pedra de um modo que se harmonizava com a paisagem ao redor.
As portas, que se abriram automaticamente para eles, pareciam feitas de metal e tinham uma textura bizarra. Tomaram isso como prova de que cada parte do castelo era construída a partir de material de mana. As portas e o portão pareciam inimaginavelmente duráveis, mas talvez não invencíveis.
Sob a chuva torrencial, Eigh examinou cuidadosamente os arredores. Um salão que normalmente estaria repleto de soldados estava vazio. As cadeiras e a mesa intocadas, a lâmpada ainda acesa—era incrivelmente inquietante. Depois de espiar para dentro da sala, Eigh fez uma pergunta a Chloe.
— Senhorita, você sabe algo sobre este lugar?
— Receio que haja poucos registros sobre expedições ao Palácio Noturno. A Associação de Exploradores estava ansiosa por qualquer informação que os Grieving Souls pudessem trazer de volta.
Isso fez Arnold franzir o cenho. Caçadores preferiam evitar câmaras do tesouro ainda pouco compreendidas. A falta de informações sólidas provavelmente contribuiu para o pequeno número de expedições ao Palácio Noturno. Qualquer um que entrasse calmamente em um lugar assim era ou um campeão… ou um idiota.
Além dos portões, estendiam-se vários caminhos pavimentados com pedras lisas. Trilhas estreitas se ramificavam para a esquerda e para a direita, enquanto um caminho mais largo seguia reto. Havia algo inquietante nas árvores bem cuidadas e espaçadas de maneira uniforme ao redor deles, e apenas raros feixes de luz conseguiam atravessar as densas nuvens. Arnold apertou o punho ao redor de sua espada, pronto para ser atacado a qualquer momento.
— Não há sinais de batalha — disse ele.
— É possível que tenham sido apagados — respondeu Eigh.
A chuva podia até lavar pegadas, mas vestígios de combate não desapareciam tão facilmente.
Eles haviam acabado de passar pelo portão da frente. Era estranho ainda não terem encontrado inimigos, mas fazia sentido que a verdadeira ação começasse assim que entrassem no castelo. Arnold exibia uma expressão sombria, mas seu ritmo não vacilava. Ele olhou para cima e viu as torres negras envoltas por nuvens tempestuosas.
— Até onde ele foi? — Rhuda se perguntou em voz alta.
Eles esperavam que ele não tivesse entrado no castelo, mas nunca se sabia o que o Mil Truques poderia fazer. Krai, as duas irmãs, a quimera e aquele monstro estranho provavelmente estavam bem, mas ela se preocupava com Tino, que devia estar sendo arrastada contra a própria vontade.
Tino era forte, e Rhuda havia ficado impressionada quando ela lutou contra Arnold em um confronto um contra um, mas a pequena Ladina claramente não estava preparada para um cofre de tesouros de Nível 8. Talvez, naquele exato momento, estivesse chorando e passando por uma provação terrível. Rhuda deveria estar mais preocupada consigo mesma, mas achava que perderia o controle se não mantivesse a mente ocupada.
Se fossem encontrar fantasmas, esperava que fosse o mais próximo possível do portão. Preferencialmente, fora do castelo. E se aparecessem um de cada vez, melhor ainda. O melhor cenário seria encontrar Krai antes de dar de cara com qualquer fantasma, mas, de alguma forma, ela não conseguia ver isso acontecendo.
— Ei — chamou Eigh. — Vocês estão bem?
— S-Sim, só um pouco cansados — respondeu Carmine, líder do Furacão Escaldante.
— No fim das contas, ainda nem vimos nenhum fantasma — disse Gilbert.
Eles diziam isso, mas pareciam completamente exaustos. Eigh se perguntou se ele mesmo estava com a mesma aparência.
— Você está bem, senhorita?
— Sim. Mas eu gostaria de sair daqui o mais rápido possível — respondeu Chloe.
Rhuda faria o que fosse necessário para voltar para casa viva. Ela percebeu que essa missão não passava de um recado e, quem queria morrer por causa de um recado? Enquanto tentava se recompor e respirava fundo, o líder do grupo, Arnold, parou abruptamente. De repente, um som estranho ecoou. Os membros da Névoa Caída rapidamente se espalharam e entraram em formação.
Sombras se contorciam à frente deles, a uns dez metros de distância. Chloe puxou sua espada. O ruído se intensificou. As manchas escuras se juntaram, adquirindo forma e cor. Atrás da Névoa Caída, os olhos de Carmine se arregalaram e ele deu um passo para trás.
— Os fantasmas estão se formando?! — gritou ele. — Achei que isso não deveria acontecer bem na nossa frente!
— Heh, acho que a concentração de mana aqui é forte demais — disse Eigh. Ele começou a suar frio, mas ainda assim forçou um sorriso tenso.
Acreditava-se, de modo geral, que os fantasmas surgiam quando certa quantidade de mana material se acumulava. Se caçadores entrassem em um cofre de tesouros, absorveriam a mana material, impedindo a formação de fantasmas nas proximidades. Não era impossível que um fantasma surgisse bem diante de um caçador, mas isso era um fenômeno extremamente raro, exclusivo de cofres de alto nível.
O mago da Névoa Caída começou a murmurar um encantamento, e o mago do Furacão Escaldante rapidamente o acompanhou. Ao ver seus aliados se preparando para o combate, Rhuda conseguiu acalmar seus nervos.
Era inesperado, mas, pensando bem, um fantasma se formar bem diante deles era, na verdade, uma sorte. Assim, poderiam atacar antes que o inimigo estivesse pronto. Talvez até pudessem derrotá-lo antes que conseguisse revidar.
A escuridão convergiu e então surgiu um cavaleiro. Tinha mais ou menos a mesma altura que Arnold. Um elmo negro cobria sua cabeça, sua armadura ocultava cada centímetro de seu corpo e uma espada negra pendia de sua cintura. E então Rhuda percebeu que não era apenas um—eram dois cavaleiros negros.
Isso não era bom. Arnold era o único do grupo que podia ser considerado forte o suficiente para o Palácio Noturno. Todos os outros, incluindo os membros da Névoa Caída, estavam bem abaixo desse nível. Eles não sabiam o quão poderosos os fantasmas eram, mas topar com dois logo no primeiro encontro era um grande azar.
Mas talvez dois fantasmas fosse algo administrável. Arnold enfrentaria um, e o restante lidaria com o outro. Era matar ou morrer, e todos entendiam isso. Não era a primeira vez que esses caçadores arriscavam suas vidas.
— Ataquem! — gritou Eigh no instante em que os fantasmas terminaram de tomar forma.
Duas equipes. No calor do momento, os dois magos escolheram feitiços de fogo. No instante em que os cavaleiros negros começaram a se mover, foram atingidos por lâminas de chamas azuladas e uma tempestade de projéteis feitos de fogo comprimido. Os cavaleiros negros nem sequer tentaram desviar. Um longo estrondo ressoou e uma luz ofuscante iluminou o local.
— Isso matou eles?! — gritou Gilbert.
— Nem em um milhão de anos! — respondeu Eigh.
Sem esperar para ver o resultado do ataque, Arnold avançou. Ele era um homem imenso com uma espada colossal, mas sua velocidade ainda assim era impressionante. Com faíscas crepitando ao seu redor, parecia a personificação de um deus do trovão.
A luz se dissipou. Com um rugido, Arnold desferiu um golpe com sua grande espada. O cavaleiro negro bloqueou o ataque com sua própria lâmina, e um som agudo reverberou no impacto. Não havia tempo para ficar parado em choque. Eigh deslizou para trás do outro cavaleiro e deu um chute na parte de trás de seu joelho.
Os golpes diretos dos feitiços nem sequer fizeram os cavaleiros negros vacilarem. Suas armaduras não tinham qualquer marca de queimadura, muito menos danos visíveis. Para Rhuda, aqueles feitiços pareciam poderosos o bastante. Se fosse atingida por um deles, pelo menos ficaria gravemente ferida—se não morresse na hora. Que tipo de armadura impenetrável era aquela? Ela havia aprendido na Toca do Lobo Branco que fantasmas tinham armaduras resistentes, mas isso era outro nível.
— Não fiquem parados!
O cavaleiro negro desferiu um golpe com sua espada. Era tão rápido que os olhos de Rhuda mal conseguiam acompanhar. Arnold inclinou sua espada, bloqueando o ataque em alta velocidade com um mínimo de movimento. O som resultante se sobrepôs em um único estrondo. O rosto de Arnold estava vermelho e tenso, mas o cavaleiro negro não vacilou nem um pouco.
No entanto, o verdadeiro problema era o cavaleiro negro que Eigh havia atacado. A luta era completamente unilateral. O cavaleiro negro atacava, e Eigh apenas se esquivava. A armadura que cobria todo o corpo do inimigo desviava qualquer golpe de Eigh. Até mesmo seu primeiro ataque surpresa havia surtido quase nenhum efeito.
Ainda assim, podia-se argumentar que os esforços de Eigh estavam sendo bem-sucedidos. O Ladino não recuava, pois até mesmo Arnold teria dificuldades para enfrentar os dois cavaleiros negros ao mesmo tempo. Um dos cavaleiros estava concentrado em perseguir Eigh e não fazia qualquer esforço para apoiar o outro.
O cavaleiro negro era capaz de brandir sua lâmina tão rápido que ela parecia um mero borrão, mas seu corpo pesado permitia que Eigh escapasse de alguma forma. Sempre que ele conseguia se posicionar atrás do cavaleiro, o fantasma precisava girar para encará-lo. Se ele recuava, o inimigo era forçado a avançar atrás dele.
Diferente da Sombra Sufocada, a maioria dos Ladinos confiava primariamente em um posicionamento habilidoso e nunca enfrentava um inimigo de frente. Três Espadachins da Névoa Caída apoiavam Eigh, aproveitando as brechas que ele criava. Cercado por três guerreiros corpulentos, o cavaleiro negro hesitou por um momento, como se estivesse analisando a situação.
Os movimentos da Névoa Caída eram fluidos e acompanhados de uma comunicação explícita. Os caçadores da Tufão Escaldante, incluindo Gilbert, não conseguiam acompanhar.
— Droga. Esse desgraçado é um dos mais fracos? — disse um dos Espadachins entre respirações pesadas, enquanto desferia um golpe contra o cavaleiro negro.
Eigh sorriu. Seu rosto estava coberto de suor, mas sua resposta foi cheia de espírito.
— Sim, eles são mesmo impressionantes. Mas podemos derrotá-lo como qualquer outro fantasma!
O Espadachim soltou um grito retumbante de aprovação.
Enquanto Eigh e os outros estavam travados em um impasse contra seu cavaleiro negro, a luta de Arnold se tornava cada vez mais intensa. Com ataques ofuscantes e uma armadura resistente à magia, o cavaleiro negro tinha a vantagem.
Uma espada grande era uma arma que enfatizava a força de cada golpe individual. Limitado a balanços amplos, que ainda podiam ser mitigados, Rhuda e Gilbert pensavam que Arnold parecia estar em uma luta brutal. Eles não esperavam que o combate se desenrolasse dessa maneira.
Agora que Eigh havia recebido reforços, o Magus precisava de uma nova tarefa para se concentrar, então apontou seu cajado para Arnold.
— Aqui vai, Arnold! — gritou. — Aceleração Maior!
Um feixe de luz branca atravessou Arnold. Esse era um feitiço que aprimorava as capacidades físicas. Feitiços desse tipo eram uma faca de dois gumes. A mudança súbita nos sentidos, especialmente entre feitiços que afetavam músculos e reflexos, os tornava indesejáveis para a maioria dos caçadores. A própria Rhuda já havia testado esse tipo de aprimoramento e achou a experiência bastante desconcertante. Ela imaginava que o corpo de Arnold deveria parecer incrivelmente leve — tão leve que ele teria dificuldades para controlar sua espada.
Ela prendeu a respiração. Não viu nenhuma mudança na postura de Arnold. Com o mínimo movimento possível, ele bloqueou um golpe relâmpago. A princípio, Rhuda pensou que o Magus havia falhado na conjuração. Então, percebeu que estava enganada.
Arnold estava acostumado àquilo. Ele já havia se habituado a mudanças abruptas nos sentidos. Acostumar-se a tal desconforto exigia um esforço extenuante. Ele provavelmente havia treinado incontáveis vezes. Repetidamente, deixando-se ser aprimorado por magia para conseguir gerenciar a mudança quando realmente precisasse.
Após o aprimoramento de velocidade, ele recebeu feitiços de força, resistência e defesa. Arnold parecia alguém contendo uma fúria ardente enquanto simultaneamente bloqueava um ataque e recebia aprimoramentos mágicos.
O cavaleiro negro, mantido à distância por Eigh e companhia, pareceu perceber o que estava acontecendo e mudou seu comportamento. Ele partiu para um ataque puramente ofensivo e golpeou com tanta velocidade que o Espadachim atingido não teve a menor chance de bloquear. A formação dos caçadores se desfez, mas o Relâmpago Retumbante não recuou.
Gilbert se moveu para se colocar entre o cavaleiro negro e Arnold, mas Eigh o deteve imediatamente.
— Não chegue mais perto! — ele gritou. — Fiquem para trás e só venham se precisarmos de vocês! Ainda temos isso sob controle!
Gilbert parou e mordeu o lábio com frustração, batendo o pé no chão. Rhuda podia entender; não era um bom sentimento perceber que sua força não era suficiente. Carmine e os outros provavelmente sentiam o mesmo.
Os movimentos da Névoa Caída eram bem treinados. Eigh estava certo; era evidente que intrusos não fariam nada além de criar mais brechas.
— Droga, não há nada que possamos fazer? — Gilbert resmungou. — O que Arnold está fazendo? Ele já recebeu todos aqueles aprimoramentos.
— Espera, isso não é…?
O cavaleiro negro enfrentando Arnold parou por um breve momento. Arnold aproveitou a brecha e avançou, empurrando-o para trás. Fantasmas geralmente tinham muito mais resistência que humanos, então não era possível que o cavaleiro negro estivesse cansado.
Rhuda pensou que poderia estar imaginando coisas, mas percebeu que não era o caso. Os movimentos do cavaleiro negro estavam gradualmente se tornando menos precisos. Ele hesitou, seu centro de gravidade ficou instável e seus joelhos pareciam vacilar.
A vantagem havia mudado para Arnold. Os ataques do cavaleiro negro estavam perdendo força. Os golpes de Arnold não haviam mudado, mas agora ele conseguia manter uma postura firme, bloqueando qualquer investida inimiga.
— Ah, então é a espada dele? —
Gilbert olhou para a espada grande eletrificada de Arnold. Rhuda também conseguiu juntar as peças.
Era a eletricidade. Ela passava da espada grande para a lâmina do cavaleiro negro, causando dano ao fantasma no processo. O cavaleiro estava completamente coberto por uma armadura, mas nem isso era suficiente para protegê-lo contra choques elétricos. Esse era um dos méritos comuns da magia do trovão.
Arnold devia estar esperando por isso. Ele estava ganhando tempo enquanto o dano elétrico se acumulava, até que o cavaleiro negro finalmente cometesse um erro fatal. Era uma estratégia esperta. Um método quase desonesto, algo completamente inesperado para um homem de seu porte e escolha de arma. Mas, para Rhuda, aquilo era a demonstração da força pragmática de um caçador experiente.
Esse era um Nível 7. Essas eram habilidades adquiridas através de experiência e refinamento.
Por fim, o cavaleiro negro vacilou e caiu de joelhos. Com a abertura que tanto esperava, Arnold soltou um rugido. O ar tremeu. O outro cavaleiro negro hesitou. Arnold ergueu sua espada, que brilhou e faiscou com uma luz dourada. A proximidade fez seu corpo ficar dormente.
Aquilo era trovão. Mas não um trovão comum, era dourado, como o que alguns dragões cuspiam de suas bocas. Ele nem sequer usou isso contra Tino. Esse devia ser seu trunfo.
— Relâmpago Retumbante.

Era como assistir a um relâmpago cortante. O cavaleiro negro tentou erguer sua espada, mas foi envolvido por uma luz dourada. A lâmina não apenas atravessou sua armadura, mas também demoliu alguns metros do chão de pedra conforme sua energia se dissipava.
O cavaleiro negro explodiu. A vitória de Arnold era inegável. Depois de ficar completamente fixado na visão do Raio Impactante, Gilbert inalou como se tivesse esquecido de respirar.
— I-Incrível!
— Então é isso que um Nível 7 consegue fazer!
Até então, eles só tinham visto Arnold sendo manipulado pelo Mil Truques, mas apenas um verdadeiro campeão era capaz do que ele acabara de fazer. Raios ainda crepitavam ao seu redor, emitindo um brilho amarelado. Ele não se deleitava na vitória, seus olhos dourados e estreitos apenas buscavam sua próxima presa.
Eigh e seus aliados começaram a se afastar do cavaleiro negro. Então, o campeão trovejante disparou contra o fantasma. A luta terminou em questão de segundos. Arnold golpeou com uma velocidade e força muito superiores às suas investidas anteriores e partiu o cavaleiro negro ao meio.
O restante do grupo quase não podia acreditar que instantes antes estavam lutando por suas vidas. Arnold finalmente abaixou a espada quando teve certeza de que nenhum dos fantasmas voltaria a se mover. Eigh soltou um suspiro de alívio depois de verificar o Espadachim que havia sido arremessado.
— Sem ferimentos graves por aqui. Conseguimos, não é, Arnold? Eu já esperava que um cofre como esse não fosse fácil, mas…
— Mm. Mas não foi para isso que viemos.
O brilho ao redor de Arnold desapareceu. Ele não demonstrava nem um traço de alegria. Rhuda podia entender o motivo. Qualquer coisa que aparecesse em uma arena tão desolada provavelmente não era o chefe. A constante vigilância de Arnold era um sinal de vasta experiência. Mas eles acabavam de derrotar fantasmas em um cofre de tesouros Nível 8, não havia nada de errado em comemorar um pouco.
Então, algo lhe ocorreu.
— Muito bom, velhote! Como você fez aquele golpe? Acha que eu conseguiria aprender? — disse Gilbert, completamente sério.
— Agora não é hora para idiotices — respondeu Arnold, exasperado.
Com atenção, Eigh observou os restos dos fantasmas. Eles não baixavam a guarda, mas também apresentavam aquela tensão aliviada típica de soldados após uma batalha.
Rhuda sentiu um choque tão intenso quanto o ataque de Arnold. Seus olhos se arregalaram. Era um déjà vu. Ela já estivera nessa situação antes. Escapar da morte certa, curar ferimentos, tomar um fôlego e…
Ela olhou para Gilbert, que também estivera lá. O jovem ruivo retribuiu o olhar com uma expressão vazia.
— Gilbert, você se lembra da Toca do Lobo Branco? — ela perguntou.
— Hm? Do que você está falando… Espera. Espera aí?!
A cor sumiu instantaneamente do rosto de Gilbert. Ele deve ter percebido do que Rhuda estava falando. A experiência deixou uma marca distinta. A força dos fantasmas, os eventos anteriores à batalha, tudo era diferente, mas a situação ainda assim era estranhamente semelhante. E isso incluía o fato de terem chegado até ali depois de se envolverem com Krai Andrey.
Aquilo era um dos Desafios dele.
— Estamos encrencados, velhote! Mais deles vão aparecer! Foi assim da última vez! — gritou Gilbert freneticamente.
— Do que diabos você está falando? Perdeu o juízo? — retrucou Arnold.
O raciocínio de Gilbert provavelmente não ia além de seu balbuciar, mas Rhuda ainda assim apreciava sua energia em momentos como aquele. Ele estava certo, mais iriam aparecer. Foi assim da última vez.
Depois de mal conseguirem superar um inimigo poderoso, quatro novos atacantes, todos com armas diferentes, apareceram. Se Krai não tivesse vindo ao resgate, eles teriam morrido naquele cofre de tesouros. E com um Nível 7 ao lado, não havia garantia de que qualquer ajuda viria desta vez.
Talvez fosse apenas imaginação. Talvez estivessem apenas preocupados à toa. Mas o risco era grande demais para ser ignorado. Eigh ficou surpreso com o pânico repentino de Gilbert, então Rhuda também ofereceu uma sugestão.
— Eigh, Gilbert está certo, precisamos nos mover — disse ela. — Da última vez que estivemos nessa situação, reforços apareceram.
— Hmmm. O que você acha, Arnold? — Eigh perguntou.
Arnold olhou para seus companheiros e rosnou.
— Então podemos recuar ou seguir em frente, huh?
Arnold era um campeão inegável. Um homem orgulhoso e inflexível em certos aspectos, mas sabia tomar a decisão certa quando importava.
Eles haviam enfrentado fantasmas, sobrevivido e avaliado a força de seus oponentes. Desta vez, tinham encontrado apenas alguns, mas se continuassem, era quase certo que alguém sofreria um ferimento crítico. Era inconcebível que Arnold ainda não tivesse percebido isso; ele era muito mais inteligente do que aparentava.
Rhuda deu um passo à frente e olhou diretamente nos olhos de Arnold. Estava seguindo seus instintos e não tinha provas concretas do que ia dizer. Mas achava que sabia uma ou duas coisas sobre o Mil Truques, mesmo que fosse tudo conhecimento de segunda mão passado por Tino.
— Acho que devemos seguir em frente — disse ela.
— O quê?
Os olhos de Arnold se arregalaram. Eigh, Gilbert, Carmine, todos a encararam com descrença. Mas ela sabia que os Mil Desafios não eram algo de que se podia fugir, não importava o quanto tentassem. Era certo que o Mil Truques entendia muito bem que tipo de pessoa Arnold era.
Isso tudo levou Rhuda a fazer a escolha incomum. Era baseado apenas em sua intuição, mas, às vezes, era preciso seguir isso em vez da razão. Se o Mil Truques estivesse envolvido, certamente haveria inimigos esperando no caminho de volta.
— Minha intuição diz que há inimigos poderosos atrás de nós e devemos avançar. Se formos recuar, acho que deveríamos primeiro seguir um pouco adiante e depois dar uma longa volta. Por favor, confiem em mim!
***
— É absurdo, mas esse tipo de intuição já salvou grupos antes.
Mantendo-se atentos ao redor, o grupo avançou como se algo estivesse em seus calcanhares. Arnold sentiu que havia verdade nas palavras de Rhuda e escolheu acreditar nela.
Se era possível que fantasmas surgissem fora do caminho, então também era possível que atacassem o grupo enquanto recuavam. Rhuda havia sido uma caçadora solitária, e caçadores solitários tinham sentidos aguçados para detectar perigo. Eles não podiam simplesmente evitar todos os riscos, mas também não podiam correr de cabeça para o perigo sem pensar.
Arnold viu valor suficiente nas palavras de Rhuda para apostar suas vidas na veracidade delas.
— Isso aí! Nada veio! Fizemos a escolha certa! — disse Gilbert, soltando um suspiro de alívio. Ele havia ficado o tempo todo olhando para trás, checando se estavam sendo seguidos. O quão traumática a Toca do Lobo Branco havia sido para que ele compartilhasse a mesma preocupação de Rhuda?
Seguiram pelo caminho reto até o castelo. Quanto mais se aproximavam da estrutura negra como breu, mais inquietos ficavam. Nem mesmo Arnold tinha ideia do que poderia estar ali dentro.
As portas do castelo surgiram diante deles, e a paisagem ao redor começou a mudar à medida que as árvores ao longo do caminho se tornavam mais espaçadas. Rhuda soltou um pequeno grito ao ver o novo cenário. Gilbert ficou pálido, e Arnold não conseguiu evitar engolir seco.
Eles estavam em um pátio circular, pavimentado com pedras. Com quase nada obstruindo a vista, podiam ver muito ao redor. Um pouco mais adiante ficava o castelo. Mas o que realmente os chocou foram as montanhas negras empilhadas nas bordas do pátio.
Gilbert se aproximou cautelosamente de uma das pilhas e começou a tremer após examiná-la de perto.
— O que… aconteceu aqui? — disse ele.
As pilhas eram compostas por corpos mortos das mais variadas formas. O que chocou Gilbert foi que a maioria esmagadora das pilhas era formada por armaduras e armas negras. Mesmo com uma rápida olhada, era evidente que não havia uma causa de morte em comum. Alguns corpos foram queimados, outros esmagados. Alguns haviam sido congelados ou rasgados junto com suas armaduras.
Pela forma dos restos mortais, conseguiram discernir que pertenciam a seres humanoides. Mas não era só isso. As armaduras eram as mesmas dos fantasmas que haviam acabado de enfrentar.
— M-Mas que diabos aconteceu aqui? — disse Eigh, fazendo uma careta enquanto analisava as montanhas de corpos. Ele retirou uma cabeça de forma octopóide empalada em uma espada. Era negra e coberta de muco, com dois olhos verdes sem vida.
Os cavaleiros que haviam enfrentado antes foram incinerados por Arnold, então não tiveram a chance de verificar o que havia dentro das armaduras. Aparentemente, os cavaleiros não eram humanos. Rhuda inspecionou cautelosamente uma pilha de cadáveres e percebeu que nenhum deles possuía um rosto ou corpo completamente humano.
A cor sumiu do rosto de Chloe, mas ela manteve a compostura.
— Parece que havia um exército inteiro desses soldados aberrantes — disse ela.
Observando a montanha de corpos, Gilbert murmurou:
— Foi o Mil Truques que fez tudo isso?
O pátio era enorme. Devia haver pelo menos umas centenas de pilhas ao redor. Fantasmas desapareciam imediatamente após sua morte, e a força de seu mana influenciava o tempo que levavam para sumir completamente. Se tantos haviam sido mortos, fazia sentido que tivessem encontrado apenas dois até agora.
Parecia impossível que um humano tivesse matado tantos fantasmas, considerando o quanto Arnold teve que se esforçar para derrotar apenas dois. Era inacreditável, mas que outra explicação havia? Quem mais poderia ter causado tal cena? O apelido “Mil Truques” fazia muito mais sentido ao olhar para as inúmeras formas como os fantasmas haviam encontrado seu fim.
— A-Arnold, olhe, no centro — disse Eigh. — São restos de uma fogueira. Que tipo de lunático faria isso aqui…?
O coração de Arnold disparou, e um calafrio percorreu sua espinha. Ele reconheceu o sentimento, mas escondeu a surpresa em seu rosto. Essa emoção que ele não sentia há tanto tempo… Era terror. Terror absoluto diante do impensável, diante do poder absoluto.
— Estou com medo de desafiá-lo — pensou Arnold.
Ele havia considerado a derrota como uma possibilidade, mas apenas em uma batalha entre grupos. Tinha confiança de que poderia vencer um combate um contra um contra o Mil Truques. Arnold sempre acreditou em sua própria supremacia, mesmo após a Sombra Sufocada tê-lo emboscado e mesmo quando o Mil Truques o obrigou a se ajoelhar.
Por razões desconhecidas, o Mil Truques nunca deu a menor impressão de possuir alguma força. Mas esse era um display direto de poder. Isso deixou claro que Arnold havia subestimado completamente aquele homem.
— Droga. Droga. Droga.
Ele cerrou os dentes e apertou o cabo de sua espada. Era inútil. Ele estava em desvantagem. No estado atual, ele era fraco demais. Nem sequer sabia o que estava lhe faltando.
Eigh olhou para Arnold com preocupação. Um líder precisava estar na linha de frente e demonstrar força. Chloe também voltou seu olhar para Arnold. Um líder precisava ser capaz de superar adversidades com pura determinação, mantendo uma fachada inabalável.
Eigh afastou a expressão de inquietação de seu rosto. Arnold não o enganava. Muito provavelmente, Eigh conseguia perceber como seu líder se sentia e sabia que ele estava tentando ao máximo esconder isso. Então, ele se forçou a relaxar um pouco e a continuar sendo o mesmo vice-líder de sempre.
Isso não era hora de se distrair com sua discórdia com o Mil Truques. O que precisavam focar era em uma maneira de garantir que todos saíssem daquele maldito cofre do tesouro inteiros. Mesmo que estivesse perdendo sua vontade de lutar, Arnold tinha o dever de liderar o grupo, não importavam as circunstâncias. Somente a morte poderia livrá-lo dessa responsabilidade.
Ele decidiria esperar pelo Mil Truques e abaixar a cabeça ou tentaria dar a volta e procurar a saída?
Então, Eigh arregalou os olhos. Ele ficou alarmado, mas conseguiu inspirar fundo e falar em voz baixa, para que apenas Arnold o ouvisse.
— Notícias ruins. Eles estão vindo. Um maldito enxame deles. É muito para nós!
— O quê?
Eigh olhava na direção de onde tinham vindo. Algo negro se contorcia no horizonte. Ainda estava distante, mas vinha em direção a eles como uma onda crescente.
Não, não era “algo”. Eram cavaleiros, uma legião daquelas criaturas grotescas com armaduras negras. Arnold e Eigh não conseguiam dizer exatamente quantos eram, mas era inegável que eram mais do que poderiam lidar. Eram tantos quanto a matilha de orcs que haviam enfrentado recentemente, mas orcs não eram nada comparados aos fantasmas. Arnold provavelmente não conseguiria abater nem metade deles, mesmo lutando até seu último suspiro.
Os olhos de Rhuda se arregalaram ao notar a enxurrada que se aproximava.
— Mil Desafios — ela sussurrou em um tom que parecia tanto de riso quanto de choro.
Isso era uma Prova?!
— Que loucura — murmurou Arnold.
Ele olhou ao redor do pátio. Era tarde demais para fugir, mas ficar e lutar significava derrota certa. Naquele espaço aberto, seriam cercados e esmagados. Todos começaram a perder a esperança, mas jamais se deve desistir. Arnold se acalmou e procurou uma forma de sair daquela situação perigosa. Se ficassem no pátio, nenhum deles sairia vivo.
De repente, ele olhou para o castelo de obsidiana que jazia além do pátio. Era dali que o cofre do tesouro tirava seu nome. Provavelmente seria muito mais perigoso que as seções externas. Mas talvez fosse melhor do que serem engolidos por uma onda de fantasmas.
O exército grotesco se aproximava. Não havia tempo a perder. O grupo havia se recuperado do choque e aguardava as ordens de Arnold.
Então, ele tomou sua decisão.
***
— Por favor, aceite nossas mais sinceras desculpas!
— Ha ha, está tudo bem. Coisas assim acontecem comigo o tempo todo.
Não era apenas comigo, os funcionários da estalagem também nunca tinham ouvido falar de um dragão invadindo uma água termal. Quando saí do banho para relatar a situação, encontrei todos os empregados da estalagem curvados diante de mim.
Acontece que o dragão azul-celeste era um daqueles dragões termais de que Liz tanto falava. Eles eram nativos das montanhas próximas a Suls e seu nome vinha de sua afinidade com águas termais, mas geralmente ficavam escondidos nas montanhas e raramente se aproximavam de assentamentos humanos. Claro que não. Você não pode administrar uma estalagem se dragões aparecerem para dar um mergulho ocasional.
Os funcionários conheciam os dragões, mas a maioria nunca tinha visto um. Todos olhavam para o dragão inconsciente com apreensão.
— Esse dragão termal ainda é jovem — disse uma mulher de quarenta e poucos anos. Ela era a funcionária mais antiga e a proprietária da estalagem. — Os jovens são muito curiosos. Talvez tenha notado que não havia visitantes por causa dos bandidos e sua curiosidade tenha falado mais alto.
— Entendo. Bem, acontece de vez em quando.
Acidentes eram normais para caçadores. Encontros com dragões errantes, ogros errantes, ciclopes errantes e cofres do tesouro errantes me deixaram preparado para qualquer imprevisto. Minha sorte era péssima assim. Às vezes, ficava delirante ao ponto de pensar que eles eram atraídos por mim ou algo assim.
Poderia ter sido pior, poderia ter sido um dragão adulto. Se houvesse não-caçadores por perto, alguém poderia ter morrido. Mas não houve vítimas fatais, então a estalagem apenas precisava garantir que algo assim não acontecesse de novo.
O que me preocupava era a saúde mental de Tino. Mesmo depois de se vestir, ela ainda tinha aquele olhar exausto. Tentei falar com ela repetidas vezes, mas ela não respondia com seu sorriso habitual.
A batalha aconteceu de forma espontânea, então achei inevitável que ela tivesse que lutar contra o dragão enquanto estava nua. Sem contar que fiz meu melhor para desviar o olhar. Mas suponho que ainda tenha sido uma experiência chocante para uma garota da idade dela. Parecia que meus sentidos haviam se tornado insensíveis por causa da indiferença de Liz.
— Ah, é verdade — disse Sitri com um estalo animado de dedos. — Vamos comer dragão cozido hoje!
Isso tirou Tino de seu silêncio melancólico.
— Hã? Você vai comer?! — ela exclamou.
Dragão não era um prato comum. Eram criaturas raras e seu sangue, carne e ossos eram vendidos a preços altos. Mas nosso grupo não se preocupava muito com lucro. Se capturávamos um dragão, comê-lo era normal. Não me lembrava do que havia iniciado esse hábito, mas nossas crianças selvagens — Luke e Liz — comiam qualquer coisa, incluindo centopeias e aranhas, então dragões não eram exceção.
— Você gosta de dragão também, não é, Krai? Esse é o primeiro dragão que Tino abateu! — Sitri disse para mim com um sorriso animado.
— Y-Você me lisonjeia — disse Tino em voz baixa.
Ela olhava para o chão, parecendo tanto envergonhada quanto satisfeita. Parecia que com um pouco mais de elogios, ela concordaria, e Sitri me apoiou sem esforço.
— Você lutou contra aquele dragão sem armas ou armadura. T, você foi adorável.
— É, aham… hã?
Tino finalmente tinha se recuperado, mas agora tremia de novo. Vermelha até as orelhas, abaixou a cabeça e se afastou de nós.
Não, eu não olhei. Nem um pouco. Eu juro.
Como eu poderia relaxar e apreciar a paisagem quando um dragão estava fazendo um estrago? Eu não fiz nada nem deixei transparecer no rosto, mas estava bem desesperado naquela hora.
Sitri piscou para mim como se tivéssemos acabado de realizar um grande feito. Eu queria chamá-la atenção, mas Tino estava bem ali, então apenas suspirei.
— Hã? Um dragão de águas termais apareceu aqui?
Depois de voltar da sua busca por um dragão de águas termais, Liz ouviu nossa história com choque. Ela tinha ido até as montanhas, mas não encontrou nada, enquanto nós esbarramos em um sem nem tentar. A vida era engraçada assim.
Com as pernas dobradas debaixo do corpo, Tino estava sentada no tatami. Ela se encolheu e olhou para sua mentora com os olhos voltados para cima. Parecia pensar que Liz ficaria brava porque sua presa tinha sido capturada por outra pessoa. Mas Liz não faria isso.
Liz tinha uma expressão séria enquanto eu contava sobre o dragão. Mas quando ouviu que Tino lutou contra ele pelada e saiu vitoriosa, abriu um sorriso e pulou em cima da sua aprendiz. Tino soltou um gritinho enquanto Liz a abraçava e esfregava sua cabeça.
— Uhuu! Parabéns pelo seu primeiro dragão, T! Agora você também é uma Matadora de Dragões.
— Hã? O quê?
— Temos que comer o dragão e comemorar! Né, Krai Baby?
— É, aham.
— Huuuh? Será? — Tino disse.
Ela parecia totalmente surpresa com a reação da mentora e olhou para mim. Esse papo de “primeiro dragão” era novidade para mim, mas se Liz dizia que era motivo para comemoração, então provavelmente era. Ela estava mais feliz do que eu a tinha visto há muito tempo. Devia estar realmente orgulhosa de ver sua aprendiz crescer. Também era um sinal de que estava amadurecendo como mentora.
— Mas se você ia matar um dragão, queria que tivesse feito isso enquanto eu estava por perto — Liz disse, dando tapinhas nas costas de Tino. — É uma ocasião tão importante—
— Lizzy, se você estivesse lá, teria matado o dragão você mesma, não teria? — Sitri interveio. — Já matamos tantos que mais um nem faz diferença.
Bom, alguém tinha que derrotar o dragão se quiséssemos voltar para casa vivos.
Tino estava surpresa ao vê-las falando como se a aprendiz tivesse sido agraciada com a chance de lutar contra um dragão. Sitri provavelmente não estava falando sério sobre já ter matado tantos assim. Ela era organizada e sempre preparada, mas isso não significava que gostava de entrar em combate direto. Normalmente, fazia questão de deixar Luke, Liz ou Ansem na linha de frente enquanto ela ficava na retaguarda.
— Aaaah, vamos voltar para as termas, Krai Baby? Eu quero lutar contra um dragããão!
— Nem pensar.
Disseram que iriam reforçar a segurança da cidade e eu duvidava que aparecesse um segundo dragão. O banho principal nem estava funcionando por causa dos estragos, então teríamos que nos contentar com a fonte termal do nosso quarto. Se um dragão aparecesse naquela banheira pequena, eu simplesmente desistiria.
Ninguém nunca tinha dito que queria lutar contra um dragão, e eu nunca disse para irem em frente e fazer isso, mas Liz ainda me olhou de cara fechada.
— Hã? Tino seeempre recebe um tratamento especial. Você tá favorecendo ela?
— De fato! Seja claro: quem é mais importante pra você, eu ou a T?!
Liz só conseguia pensar no dragão, Sitri estava tirando proveito da situação, e Tino estava completamente perdida. Aposto que estava pensando algo como “Hã, estou sendo favorecida?”. Uma vez que você caía na linha de pensamento das irmãs Smart, não tinha mais volta, mas felizmente, elas pararam antes que isso acontecesse com Tino.
Liz de repente começou a olhar para sua aprendiz com suspeita.
— T, desde quando você ficou forte o bastante pra lutar contra um dragão de mãos nuas? Você tem pegado leve comigo nos treinos?
— N-Não, Lizzy! Foi, ahm…
Eu também estava me perguntando isso. Tino era talentosa e tinha sobrevivido aos regimes de treinamento infernais da Liz, mas ainda era uma Aventureira de Nível 4 e esse era seu primeiro dragão. “Matadora de Dragões” era um título dado porque todos os dragões ultrapassavam um certo nível de poder. Mesmo que aquele das águas termais fosse fraco para os padrões de um dragão, ainda assim não devia ser algo que você poderia derrotar sem roupas.
Os lábios de Tino tremeram por um instante antes que ela olhasse para mim e falasse em uma voz baixa.
— Ahm, então… Mestre, depois de usar aquela máscara sua, meu corpo tem se sentido mais leve. Ou talvez seja melhor dizer que aprendi a controlá-lo melhor.
Sério? Eu sei que aquela máscara desperta poderes latentes, mas ela também tem efeitos duradouros?
A Super Tino tinha sido um espetáculo à parte. Ela ficou mais alta e forte o suficiente para ser páreo para Arnold, um Nível 7. Ela estava consciente quando usou a máscara, então não era estranho que lembrasse dos movimentos mesmo depois de tirá-la. Talvez esse fosse o verdadeiro propósito do Evolve Greed?
Que droga. Não pode ser sério, desperta meus poderes latentes também!
— Hmmm, então tem efeitos duradouros — Liz disse, apertando os lábios. — Isso é meio injusto.
Ela tinha experimentado a máscara lá na capital, mas aparentemente, foi rejeitada por “motivos de segurança”. Sitri ficou quieta e sorriu. Não sei o que a máscara disse para ela, mas ela também foi recusada quando tentou usar o Evolve Greed.
— Pelo jeito, há restrições nos poderes latentes que o Evolve Greed pode despertar — eu disse.
Ainda assim, era uma Relíquia excelente. Sua compatibilidade variava… Só queria que fosse compatível comigo.
— I-Isso mesmo, Mestre, não funcionou com você — Tino disse.
— Acho que é exclusivo da Tino.
Meu caso era um pouco diferente. Ao contrário de Liz e Sitri, eu não conseguia usar a máscara porque minhas habilidades latentes eram muito baixas. E eu não achava que ela necessariamente despertava todos os poderes latentes de uma pessoa. Liz havia reconhecido o talento de Tino; eu não achava que poderia haver tanta diferença entre os poderes que cada uma possuía.
Sitri então bateu palmas como se quisesse mudar de assunto.
— Por ora, vamos deixar a questão da máscara de lado e focar na comemoração — disse ela com um grande sorriso. — Hoje vamos nos banquetear com dragão cozido. Dragão cozido feito com um dragão de águas termais!
Aquelas não eram palavras que eu estava acostumado a ouvir. Quase parecia que a carne seria cozida dentro de uma fonte termal. Mas eu não ia reclamar, transformar infortúnio em diversão era o jeito dos caçadores.
Levamos Liz até o pátio para que ela pudesse ver o dragão, e sua reação foi algo impressionante.
— HA HA HA HA, MAS QUE DIABOS É ISSO?!
— Lizzy, não ria tanto.
— Hã? Você vai se tornar uma Matadora de Dragões depois de derrotar isso? Caramba!
Liz estava certa. Parecia assustador quando estava enfurecido, mas agora que estava desacordado e deitado de lado, seu corpo arredondado e suas cores vibrantes o faziam parecer um bicho de pelúcia.
— Sim, é um dragão anômalo, mas ainda assim é um dragão — Sitri disse enquanto Liz batia palmas.
Era um dragão mais resistente do que sua aparência fazia parecer. Afinal, destruiu o cobiçado banho principal da pousada. Seu sopro de água quente não parecia grande coisa, mas poderia ter me matado instantaneamente se eu não estivesse usando os Anéis de Segurança.
Depois de se divertir, Liz enxugou as lágrimas dos olhos.
— Heh, heh. Mas eu ouvi dizer que dragões de águas termais são muito mais ferozes do que essa coisa.
Não, Liz, ele não parece grande coisa porque está inconsciente. Ele é bem feroz.
— Ainda assim, segundo a proprietária, esses dragões raramente se aproximam de áreas habitadas por humanos, mesmo quando situadas próximas a fontes termais — Sitri disse enquanto pegava uma grande foice emprestada de algum lugar. A lâmina, com um brilho opaco, era simples, mas intimidadora. — Hmmm, espero que essa lâmina consiga cortar. Pena que não posso chamar o Luke.
Alguns monstros e seres míticos tinham a pele mais dura que metal. Sitri ergueu a foice com facilidade e a golpeou contra o pescoço do dragão. No mesmo instante, o dragão azul-celeste abriu os olhos.
Ele soltou um guincho estridente.
— Ah, ele desviou.
O dragão evitou a lâmina que vinha em sua direção com uma velocidade inacreditável. A lâmina brilhante afundou na terra. Tino soltou um grito breve e estava prestes a se esconder atrás de mim, mas parou ao perceber que Liz estava observando.
O dragão de águas termais se ergueu sobre patas vacilantes. Ele viu Sitri com um leve sorriso, Liz exibindo um grande sorriso, Tino se preparando freneticamente para outra luta, Matadinho de braços cruzados e eu parado feito um pedaço de madeira. Ele soltou algo parecido com um grito.
Vale mencionar que Tino não terminou de matar o dragão antes porque Sitri disse que o dragão tem um sabor melhor quando é abatido logo antes do preparo.
Lágrimas começaram a brotar nos olhos arredondados do dragão enquanto ele olhava para Liz.
— Olha, Krai Baby! Nosso jantar está chorando! Até mesmo alguns dragões choram.
— Não precisa chorar agora. Vou acabar com isso em um golpe, só vai doer por um instante — Sitri murmurou.
— E-Eu não vou deixar vocês machucarem o Mestre!
— Matar, matar.
— Rawr… — o dragão choramingou miseravelmente.
O dragão era forte, mas tínhamos total vantagem com Tino sendo apoiada por Liz, Sitri e até Matadinho. Seu destino estava selado. Parecia entender a enrascada em que estava e olhou ao redor desesperadamente. Infelizmente, não havia para onde fugir. Mas então seu olhar caiu sobre mim.
É, aham. Tem um elo fraco no nosso grupo. Mas eu tenho meus Anéis de Segurança. No momento em que você atacar, Liz vai te socar e vai acabar tudo. Não vai te ajudar em nada, então nem tente.
O dragão se lançou contra mim. Até eu poderia desviar disso se tentasse, mas isso só causaria mais problemas, mesmo que eu conseguisse evitar o ataque. Sem opções melhores, apenas decidi deixar que me acertasse. Resignado ao meu destino, abri os braços, mas o dragão rolou para o lado.
— O quê?!
O dragão de águas termais emitiu um som fofinho enquanto rolava de costas e me mostrava a barriga. Ele me olhou com olhos marejados. Eu fiquei sem palavras. Tino olhou para mim como se eu fosse algo além de humano.
— M-Mestre, o dragão está te mostrando a barriga. Então ele está se rendendo?! V-Você nunca falha!
Não, tinha algo claramente errado com esse dragão. Além disso, eu tinha certeza de que ele estava tentando apelar para minha fraqueza, e não se submeter à minha força. Mesmo assim, de barriga para cima, o dragão se contorcia em minha direção. Não demonstrava um pingo do orgulho característico de um predador supremo. Então ele soltou um som parecido com um miado.
Não tem como isso ser um som normal de dragão.
Pouco tempo atrás, ele estava tentando me matar, mas agora eu o tinha na palma da mão. Coloquei meu pé sobre sua barriga como um teste, mas ele não reagiu. Parecia achar que isso era melhor do que ser comido. De repente, senti uma forte afinidade com o dragão.
— Krai, o que devemos fazer? — Sitri perguntou.
— Hmmm, boa pergunta.
Parecia que Liz e Tino também estavam prontas para seguir meu comando. Mesmo agindo de forma dócil, um dragão ainda era um dragão. Talvez fosse melhor simplesmente matá-lo? Não havia sentido em esperar até que causasse algum problema.
Eu endureci meu coração e toquei a superfície do dragão. Era lisa e quente, como uma fonte termal. Era uma sensação realmente agradável.
— B-Bem, não vejo problema em perdoá-lo. Ninguém morreu nem nada.
Eu tinha certeza de que dormiria bem se usasse esse cara como travesseiro.
O dragão soltou um grito animado.
Esse bicho com certeza entende o que estamos dizendo.
***
Mesmo enquanto olhava para trás, ele lutava para entender onde tinha errado. Trabalho era trabalho. Ele sabia que o que fazia era perigoso. Achava que sabia que era perigoso. Sentado sozinho e distraído em um canto de um quarto luxuoso, Gray se sentia um tolo.
Quando recusou a chance de participar do plano de fuga de Black e White, eles o olharam com desprezo, mas ele não se importou.
Ele era uma pessoa ruim. Depois de ser rebelde demais até para a caça ao tesouro, tornou-se um criminoso e cometeu uma série de atos hediondos. Viu de tudo no submundo da capital imperial. O aterrorizante, o grotesco, o patético e aquilo que nenhum humano deveria testemunhar. Cruzou com pessoas que não tinham o menor respeito pela vida.
Mas o Mil Truques… ele era algo completamente diferente. Ele não era um simples caçador. Algo incomodou Gray quando viu o Mil Truques pela primeira vez. Mesmo no mundo do crime, Gray era excepcionalmente perceptivo. Era assim que havia sobrevivido por tanto tempo, apesar da falta de outras habilidades notáveis.
Aquele homem não tinha a postura distinta de quem superou provações. Não carregava a sombra de quem testemunhou a escuridão. E, acima de tudo, ao contrário da Sombra Sufocada e da Ignóbil, ele não tinha o rastro de sangue.
Mesmo que não fossem sedentos por sangue como a Sombra Sufocada, todos os caçadores de tesouros acumulavam o cheiro da morte em algum grau. Esse “rastro”, como Gray o chamava, não era algo que se pudesse lavar, não importava o quão forte tentasse.
Até encontrar aquele homem, Gray nunca tinha conhecido um caçador sem esse rastro. Isso fez com que ele interpretasse a situação de maneira errada e demonstrasse a atitude errada. Olhando para trás, foi um erro estúpido.
Era impensável que um homem pudesse alcançar o Nível 8, liderando um grupo de carniceiros, sem jamais se envolver em derramamento de sangue. Esse lado completamente incompreensível daquele jovem preguiçoso era exatamente o que fazia dele alguém com quem Gray não queria mexer.
Durante a viagem, Gray viu vários exemplos do comportamento estranho daquele homem. Ele nunca fazia nada de notável, e era exatamente isso que o tornava tão estranho. Gray sabia que não podia baixar a guarda.
Antes de partirem, Krai não demonstrou o menor traço de malícia ao ordenar que Black, White e Gray fossem eliminados. Isso significava que ele via suas vidas como algo tão insignificante quanto pedras na beira da estrada.
Foi a Sombra Sufocada quem os capturou, mas provavelmente apenas porque essa tarefa era indigna do Mil Truques. Black e White tinham suas suspeitas, mas para Gray, parecia que seriam soltos, desde que não fizessem nada.
Gray se encolheu e ficou em silêncio, esperando a tempestade passar. Manteve a boca fechada como uma ostra e fingiu ser uma pedra. Essa era sua melhor chance de sobreviver. Eles não haviam feito nada contra aquele homem… nada que ele considerasse errado. Não haviam feito nada que merecesse sua intervenção ou interesse.
Gray se concentrou, mas não ouviu os gritos de Black e White. É claro que não. Mesmo que algo tivesse acontecido, eles estariam mortos antes que pudessem gritar.
Então, no momento perfeito, veio uma batida na porta.
— Black, White, estão aí?
— Hã?!
O coração de Gray quase saltou do peito. Por um instante, pensou que fosse uma alucinação induzida pelo desespero, mas os sons e vozes continuaram. Ele se levantou freneticamente. Seus joelhos quase cederam, mas ele conseguiu se segurar e destrancar a porta. As trancas de uma pousada como aquela não significavam nada para um Nível 8, e não abrir a porta nem era uma opção.
Black e White tinham ido roubar a chave do colar do Mil Truques. Gray não sabia como a tentativa havia terminado, mas não achava coincidência o fato de o Mil Truques estar chamando seus nomes. E, se ele estava chamando apenas por Black e White, isso significava que, na verdade, estava chamando por Gray.
A porta se abriu. O jovem olhou para Gray com uma expressão peculiar. Sua postura continuava tão indefesa quanto sempre, seu corpo parecia incapaz de violência. Atrás dele estava seu completo oposto: Sitri Smart, uma mulher que exalava uma aura selvagem. Ela olhava para Gray com seu sorriso arrepiante de sempre.
Mas o que mais incomodava Gray era o que estava agarrado aos pés do jovem — um dragão azul-claro. Era pequeno, e sua cor vibrante parecia uma piada, mas algo nitidamente dracônico esfregava a cabeça nos pés do homem como se tentasse ganhar sua simpatia. Gray ficou paralisado.
— Não se preocupe com isso — disse o Mil Truques, suspirando. — Ele foi domesticado. Acho que realmente não quer ser comido.
Gray mal podia acreditar naquela afirmação casual. Era inimaginável que uma besta mítica se submetesse a um humano. O Mil Truques apenas deu de ombros, resignado.
— A propósito, só você está aqui, Gray? Onde estão Black e White?
Gray voltou a si e instintivamente pressionou os lábios juntos.
O Mil Truques podia ver através dele. Nada em sua voz ou expressão parecia incomum, mas isso não enganaria Gray. Normalmente, ele começaria a gritar, mas tudo o que saiu de seus lábios foi uma voz trêmula e fraca. Seu coração batia como um tambor. Ele tinha certeza de que o Mil Truques não tinha interesse nele, mas era natural temer coisas assustadoras. A única opção para os fracos era obedecer.
Gray não fazia ideia do que aquele homem poderia dizer ou fazer, e era isso que o tornava tão aterrorizante.
— E-Eu disse para eles não fazerem isso. Black e White, eles foram roubar a c-chave…
Ele havia dito que ficaria quieto, mas não se importava mais. Quanto mais pensava nisso, mais falhas via no plano deles. Preto e Branco haviam sido excessivamente otimistas e estavam contando com a sorte. Em circunstâncias normais, era um plano ridículo, nem valia a pena considerar. Apenas impulsos ruins poderiam tê-los levado a executá-lo. Não, provavelmente seus nervos haviam se rompido pelo medo que os dominava.
Ouvindo o que Gray disse, o jovem de cabelos negros fez uma expressão estranha e piscou algumas vezes antes de levantar casualmente a corrente em seu quadril. Dezenas de peças de joias estavam presas à corrente, incluindo duas coleiras idênticas à que estava no pescoço de Gray.
Krai Andrey bateu palmas como se algo tivesse acabado de lhe ocorrer. Era comicamente óbvio, mas, surpreendentemente, nada naquilo parecia encenação. Se Gray não soubesse nada sobre ele, poderia ter julgado imediatamente aquele homem como um completo idiota.
Com um sorriso forçado, o Mil Truques se virou. Diferente dele, Sitri tinha um olhar frio nos olhos.
— Sitri, parece que eles fugiram. Isso vai ser um problema?
— Não, particularmente. Não imagino que tenham ido muito longe ainda. Se precisarem ser detidos, posso colocar Lizzy para—
— Não, está tudo bem. Não era isso que eu queria dizer. Isso não vale o incômodo de chamar a Lizzy enquanto ela está de férias. Sim, só vamos fazer uma pequena mudança nos planos. A propósito, só por curiosidade…
Krai coçou a bochecha, franziu a testa e olhou para Gray. Gray podia ver seu próprio rosto abatido refletido naqueles olhos completamente negros. A expressão incompreensível do homem fez um calafrio percorrer sua espinha. Aquele era um homem imbatível que havia derrotado um dragão, feito pessoas enfrentarem monstros ferozes e não demonstrava a menor preocupação com vidas humanas.
— Por que você não fugiu? — ele perguntou a Gray.
***
Eu cometi um erro.
Fui completamente pego de surpresa com a notícia de que aqueles dois fugiram. Parecia inimaginável, considerando que eu já havia dito que daria a chave e os libertaria. Claro, foi burrice minha não perceber que tinham fugido mesmo depois de encontrar suas coleiras no armário, mas acho que minha estupidez já está bem estabelecida neste ponto. Foi tudo por causa daquele dragão da fonte termal.
Mas esse não foi um erro fatal, a libertação deles só foi adiantada um pouco. Sitri também não achou que fosse um problema, então realmente não havia necessidade de ir atrás deles. Se tivessem roubado uma Relíquia, talvez eu tivesse mandado Liz atrás deles, mas felizmente levei todas as minhas Relíquias para a fonte termal comigo. Só rezei para que roubar aquela chave fosse o último crime que cometeriam.
Mas eu ainda não entendia por que Gray ficou para trás. Quando soltei essa pergunta sem pensar, ele me olhou surpreso. Talvez por estar de vigia o tempo todo durante a viagem, seus olhos e bochechas pareciam fundas. Desde o início, ele não parecia uma pessoa vigorosa, mas agora parecia uma árvore seca.
Quando fiz minha pergunta, ele tropeçou e caiu sentado. Era apenas uma dúvida simples, mas por alguma razão, ele ficou pálido e começou a bater os dentes. Talvez eu não devesse ter perguntado. Eu não pensei muito sobre isso quando falei, mas, pensando bem, roubar e fugir não são exatamente boas ações. Qualquer um ficaria desconfortável se questionado sobre por que não o fez.
Gray olhou para mim com os olhos arregalados, seus lábios tremendo.
— E-e-eu…
— Ah, desculpa, você não precisa responder. Só fiquei um pouco curioso — eu disse em um tom tranquilizador.
Eu não me importava de qualquer maneira. Isso era apenas férias para mim. Joguei a chave bem na frente de Gray e soltei um grande bocejo. Era só uma tarefa a menos para eu me preocupar, então considerei isso um golpe de sorte.
— Aqui está a chave. Você pode ir quando quiser, mas já que estamos aqui, por que não fica um pouco e descansa? Sitri está pagando tudo, afinal.
— De fato, e está me custando apenas uma quantia irrisória — disse Sitri com um sorriso contraído.
Mesmo que fossem criminosos, trabalhar alguém até a morte ainda era um crime. Sob a lei de Zebrudia, você poderia matar um criminoso ao tentar capturá-lo, mas uma vez preso, não podia simplesmente eliminá-lo por capricho.
Enquanto dava tapinhas conciliadores no ombro da insatisfeita Sitri, senti que precisava dar um aviso a Gray.
— Ah, certo. Não vá cometer mais crimes, ok?
***
A sorte devia estar de ótimo humor, pois o plano de Preto e Branco saiu sem nenhum problema. Eles conseguiram remover suas coleiras, saíram da pousada sem serem vistos pelos funcionários e até deixaram a cidade com os itens que haviam escondido. Estavam livres para ir para o exterior ou voltar à capital e se esconder. Mas ainda não podiam respirar aliviados.
Levar a carruagem junto teria sido um exagero. Seria ousado demais e daria aos seus captores mais um motivo para ir atrás deles. Eles estavam correndo fora da estrada por um tempo. Assim que a cidade desapareceu de vista, Preto e Branco pararam.
A fuga tinha sido perfeita, mas suas expressões ainda eram sombrias. Respirando pesadamente, tomaram goles de seus cantis e olharam na direção da cidade. Ambos se lembravam das últimas palavras que o Mil Truques dissera a eles.
— Por quê? O que levou aquele homem a nos deixar ir? — disse Branco.
— Hmph. Não me pergunte. Como eu deveria saber o que se passa na cabeça de um Nível 8? — respondeu Preto.
— Pode haver ladinos — ele havia dito no banho principal. Aquilo foi claramente direcionado a Preto e Branco. Preto não sabia dizer se aquilo tinha sido uma tentativa de desencorajá-los de roubar a chave ou se era para avisá-los de que ele sabia o que estavam tramando. Se tinham chegado tão longe, isso significava que ele estava permitindo que fugissem?
— Para onde vamos? — Branco perguntou, seu rosto sem cor. — Devemos deixar o país? Deveríamos voltar para a capital?
Eles eram ambos nativos da capital imperial. Ainda tinham esconderijos com itens por lá e poderiam facilmente manter um perfil discreto. Mas a capital também era a base dos Mil Truques. Quem sabia o que poderia acontecer se voltassem? Ele poderia tê-los deixado ir, mas a Ignóbil e a Sombra Sufocada talvez não fossem tão indulgentes.
— Vamos para o exterior — declarou Black. — Zebrudia é perigosa demais enquanto tivermos a ira deles.
— Ah, sim, eu estava pensando o mesmo — respondeu White, seus olhos vasculhando os arredores.
Se deixassem o império, mesmo a Sombra Sufocada provavelmente não os seguiria. Não havia motivo para ela estar tão obcecada com eles. White pegou um mapa do império de sua bolsa e o desdobrou. Era um mapa simples, mas pelo menos servia para descobrir a rota mais curta para fora do império.
Black e White eram ambos caçadores habilidosos. Olhando para trás, para aquela expedição brutal, sentiam que agora poderiam superar qualquer provação que surgisse. Os olhos de White brilhavam com vitalidade; ele parecia pronto para fazer o que fosse necessário para aproveitar essa chance de escapar com vida. Black sentia o mesmo.
— Para onde? — perguntou White.
Suls era cercada por montanhas em três lados. A melhor opção era sair pela estrada por onde vieram, mas essa também era a escolha mais óbvia. Enquanto refletia sobre a rota mais viável, Black de repente se lembrou de uma conversa que os Mil Truques e seus comparsas tiveram na carruagem.
Ela conferiu o mapa. Olhou atentamente para uma região extensa próxima a Suls, a apenas um passo dali. Era perto da fronteira e pertencia a uma lâmina do império que afastava monstros, fantasmas e invasores. Era o lar de uma ordem de cavaleiros de elite, praticamente isenta de corrupção, um péssimo lugar para qualquer um com más intenções. Também era um local que os Mil Truques haviam decidido evitar a todo custo.
— O Condado de Gladis. Vamos passar por aqui. Vamos atravessar as montanhas — declarou Black em um tom seco.
***
Não há nada melhor do que estar de férias. Meu tempo em Suls passou voando. A comida era deliciosa e a fonte termal era incrível. Acho que foi por causa do incidente com o dragão da fonte termal, mas os funcionários da pousada pareciam me reverenciar. Mas ganhei algumas coisas de graça e apenas ignorei os olhares idolatrantes deles.
No final de cada dia, eu olhava para trás e lamentava todo o tempo que desperdicei, e até isso era agradável. O banho principal havia sido destruído, restando apenas o nosso banho ao ar livre no quarto. Mas eu podia aproveitá-lo sem me preocupar com outros hóspedes, então não era tão ruim. Se eu realmente quisesse ir a um banho maior, poderia visitar as fontes termais externas. Fiquei um pouco apreensivo, mas não houve mais avistamentos de dragões depois do primeiro dia.
A única desvantagem era que Luke e os outros não estavam lá para se juntar a nós. Fazia muito tempo que não viajávamos como um grupo, e normalmente fazíamos esse tipo de passeio juntos. Talvez reclamassem quando voltássemos para a capital.
Mas podemos simplesmente vir juntos outra vez. Quando os encontrar, vou me gabar o quanto quiser.
Ouvi de Sitri que essas águas termais tinham propriedades curativas, e parecia que ela estava certa. Não que eu tivesse ferimentos antigos, mas ainda assim sentia que poderia ficar ali para sempre. A água estava um pouco quente, mas resolvi esse problema com uma Relíquia que aumentava a resistência ao calor.
Eu estava matando tempo mais um dia, com a parte inferior do corpo submersa na água morna, e, como de costume, podia ouvir Liz e Tino discutindo. Liz não tinha noção de limites. Uma vez, quando todo o nosso grupo encontrou uma fonte termal no meio das montanhas, ela tentou entrar comigo sem a menor vergonha, mesmo depois de eu dizer que não. Ela me via menos como um homem e mais como um amigo de infância.
Dizem que, entre caçadores, as barreiras entre homens e mulheres são bem baixas. Equipamentos sendo destruídos e situações parecidas significavam que não dava para se incomodar muito com nudez. Mas achei que havia algo errado em não sentir nenhuma vergonha.
Eu sou um homem, afinal, e, diferente de Luke, não sou indiferente a tudo que não envolva espadas, então não dava para simplesmente ignorar. Mesmo estando acostumado com o jeito pegajoso da Liz, ver toda aquela pele ainda me deixava desconfortável, e pior ainda quando ela se agarrava a mim. Normalmente, Lucia lançava alguma magia para manter Liz afastada, mas com sua rival ausente, Liz estava cheia de energia. Mesmo sabendo que isso podia acontecer se viéssemos, não consegui resistir ao chamado da fonte termal.
Ouvi um grito de Tino e, no momento seguinte, a porta se abriu com um estrondo.
— Maaaestre, corra! E você não já ficou tempo demais aí dentro?! Quantas vezes entrou no banho hoje?!
— Krai Baby, trouxe um pouco de bebida! Vamos beber juntos? — disse Liz, animada.
— Ah, tudo bem, vá em frente, Liz — falei, abafando um enorme bocejo. — Só se certifique de se lavar antes de entrar.
Acompanhado por Liz e Tino, ambas de yukatas, caminhei pela cidade me sentindo um homem duplamente abençoado. Parece que a aparição do dragão da fonte termal causou um grande choque nos moradores, e eles nos tratavam como celebridades por tê-lo derrotado.
Já chamávamos atenção naturalmente, pois éramos praticamente os únicos turistas na cidade. O dragão da fonte termal parecia ser de uma variedade mais fraca, mas ainda assim era um dragão, o que significava que era uma besta mítica que nenhum cidadão comum conseguiria enfrentar. Vendo-o relaxando no nosso banho ao ar livre, era fácil esquecer que aquela coisa era perigosa.
Era natural que nos elogiassem por tê-lo vencido (mesmo que não o tivéssemos matado no final), mas Tino não parecia acostumada com tanta atenção e mantinha uma expressão muito rígida.
— Você deveria sorrir em momentos assim, tenha orgulho. Essa fama passageira logo vai sumir — disse a ela.
— S-Sim, Mestre.
Enquanto passeava, mastigava um manju de dragão de nascente termal de cortesia. Sendo uma cidade de fontes termais, Suls tinha uma atmosfera bem relaxante, o que me agradava. Nossa estalagem não era o único lugar com banhos, havia diversas outras fontes menores espalhadas pela cidade. Provavelmente a qualidade não variava muito, mas ainda assim pensei que poderia ser divertido experimentar alguns dos outros banhos.
Também havia algo refrescante em ver Tino e Liz com roupas diferentes. Os yukatas mostravam menos pele do que seus trajes usuais, mas combinavam muito bem com suas figuras esbeltas. Talvez por causa do vapor das termas, suas peles estavam mais avermelhadas do que o normal, dando a elas um ar vagamente erótico.
Isso me lembrou de algo que Sitri uma vez me disse. Ela disse que os yukatas são dobrados com o lado esquerdo por cima para que a mão direita possa entrar e apalpar o peito. Que mentira descarada. Não há como alguém ter feito uma roupa tão descaradamente lasciva!
Perto dos limites da cidade, Sitri conversava sobre negócios com um grupo de homens vestidos com roupas finas.
— Entre cenário e segurança, a segurança deve ter prioridade. Uma barreira pode afastar monstros, mas não os mais fortes deles, nem os humanos, aliás. Com isso em mente, por que não adquirir um golem de última geração?
Sorrindo e vestindo um yukata, ela falava enquanto apontava para a muralha externa, que mal chegava à altura do seu pescoço.
— Eles podem ter um preço elevado, mas servem não apenas para combate, como também para trabalho manual. Sem dúvida, são uma pechincha comparados aos trabalhadores humanos. A Fortuna não colocará um Caçador de Nível 8 nos seus banhos uma segunda vez.
Ela sempre escondia sob a roupa, mas, comparada a Liz, Sitri tinha uma bela silhueta. Era um pouco mais alta, mas seu busto não deixava espaço para competição.
— Krai gostou desta cidade, e esses golems ainda estão em fase de testes, então se comprarem agora, eu corto o preço pela metade. Com armas incluídas, um conjunto de trinta golems sai por um bilhão de gild, mais impostos!
Os anciões, que pareciam ser os responsáveis pela cidade, discutiam entre si enquanto provavelmente eram cativados pela figura exuberante de Sitri. Um bilhão de gild parecia uma soma bem pesada para uma cidade deste tamanho. Golems conseguiriam vencer um dragão? Por que Sitri estava conduzindo negócios enquanto estávamos de férias? Nada disso fazia sentido para mim.
— Siddy… nunca perde o ritmo — comentou Tino.
— Ninguém é melhor que ela em encontrar pontos fracos — disse Liz.
Com exasperação, ambas observavam Siddy, que simplesmente fazia o que queria. Elas estavam certas, mas, por outro lado, Liz era a garota que saiu caçando um dragão no nosso primeiro dia aqui.
Sitri me viu e veio correndo até mim, mesmo estando no meio das negociações. Não pude evitar notar que seu yukata estava dobrado com o lado esquerdo por cima.
— Você está trabalhando duro — comentei.
— Seria um desperdício se outro dragão aparecesse, e eu pudesse testar o poder das minhas novas armas. Vejo isso como matar dois coelhos com uma cajadada só — ela respondeu.
Ela é uma mercadora da morte?
Mas Sitri tinha um ponto, as defesas desta cidade realmente pareciam insuficientes. Para eles, talvez só importasse enquanto aquele grupo de bandidos estivesse por perto, mas para um visitante temporário como eu, isso fazia muita diferença.
Ainda assim, um bilhão de gild era muito dinheiro. Não era um preço que se aceitava sem alguma consideração. Quanto custava produzir esses golems? Os figurões da cidade pareciam estar desistindo da ideia. Quase ninguém aceitaria comprar golems sem sequer tê-los visto em ação.
— Sitri, por que não reduz um pouco o preço? — sugeri após uma breve hesitação.
— Hã? — Sitri me olhou de olhos arregalados. — Quanto deveria cobrar, então?
Quanto? Isso é novo. Você realmente vai vender pelo preço que eu disser?
Eu não era um Alquimista e não conhecia o valor de golems. Isso nem era algo em que eu normalmente meteria o nariz.
— Isso é para a segurança da cidade. Que tal não cobrar em dinheiro, mas deixá-los pagar com mercadorias ou algo assim?
— Uma troca de mercadorias, é? Mas o único produto notável nesta cidade são suas fontes termais… Ah, já sei! Que tal a soberania deles?!
— A-Ah, também acho que, se você quer que comprem algo, deveria deixar que vejam primeiro.
— Hm, isso faz sentido — ela disse, pensativa.
O que ela queria dizer com soberania?
Eu não ia sugerir “Dê os golems de graça”, e ela não faria isso mesmo se eu dissesse. Ela valorizava muito minha opinião, mas não faria simplesmente tudo o que eu dissesse. Era um laço de amizade que existia entre nós.
Sitri pareceu ter chegado a uma conclusão quando bateu as mãos e sorriu. Ela voltou aos cidadãos, que ainda discutiam seriamente.
— Tomei uma decisão — disse Sitri com uma voz animada. — Se estão indecisos, então eu emprestarei todos os golems gratuitamente durante a nossa estadia. Considerem isso um presente de Krai. Se outro dragão aparecer durante nossas férias, será um grande incômodo. Lembrem-se, podem esperar até verem os golems em ação, e não será tarde demais para decidir pela compra.
Depois do que parecia uma campanha de vendas voluntária, reuni Sitri e nós quatro passeamos pela cidade. Ela não havia trazido golems consigo, mas parecia que podia fabricá-los por aqui. Que trabalhadora incansável.
— Você está bem com isso? — perguntei pela enésima vez naquela hora.
— Sim. Faço isso por você — ela disse com um sorriso alegre.
Eu era um amador quando se tratava de comércio, mas parecia que Sitri estava levando a pior nesse acordo. Já havíamos encontrado um dragão da fonte termal. Duvidava que surgissem outras ameaças durante nossa estadia, e aqueles golens não venderiam se não tivessem a chance de mostrar seu poder.
E isso não era pelo bem dos moradores da cidade, e sim pelo meu?
Sitri não respondeu à minha pergunta, apenas deu meio passo à frente, diminuindo a distância entre nós. Um leve aroma adocicado flutuou de seu cabelo. Provavelmente seu xampu? Não comentei sobre isso, mas senti vontade de aproximar meu rosto. Comecei a me sentir tonto.
— Krai Baby, não caia nos truques descarados dela para ganhar pontos com você! — disse Liz, se enfiando entre nós. — Ela tá te enfeitiçando pra te deixar em dívida com ela!
— Eu não estou fazendo nada disso. Lizzy, você tá completamente paranoica! Não é mesmo, Krai?
— É, uh-huh.
Ela vai tentar aquela velha armadilha, aquela de “Ah, lembra que te emprestei dinheiro um tempo atrás? Que tal dar uma passada na minha casa um dia desses?”. Bem, só tenho a mim mesmo para culpar, e provavelmente vou acabar me virando sem precisar pagar de volta.
Aproveitei a tranquilidade enquanto as irmãs Smart discutiam. Tino parecia ter recuperado um pouco da animação. Tudo que eu precisava fazer era ganhar tempo até o fim do Encontro da Lâmina Branca. Nossa viagem teve seus problemas, mas tudo acaba bem quando termina bem.
Pensei em levar Liz e Sitri para algum lugar para que Tino pudesse ficar um tempo livre sem ser pega no fogo cruzado delas. Mas, de repente, avistei uma placa sem enfeites que destoava do cenário de uma cidade termal. Li o que estava escrito e franzi a testa.
— Construção?
— Parece que estavam escavando uma fonte, mas o projeto foi interrompido por causa dos rumores sobre os bandidos — acrescentou Sitri.
Um grande terreno estava cercado por arame farpado, com um enorme buraco cavado no centro. Eu não entendia os detalhes de escavação de fontes, mas aparentemente, até isso havia sido afetado pelos bandidos.
— Muito provavelmente, estavam usando um Magus para esse projeto — continuou Sitri. — E, por precaução, esse Magus foi evacuado.
— Espero que essa situação com os bandidos se resolva logo.
O canteiro de obras era enorme; provavelmente estavam planejando construir uma pousada bem grande. Equipamentos de construção estavam empilhados ao redor do buraco.
Bem, mesmo sem a interrupção, provavelmente não teriam terminado antes da nossa chegada. Mas, se isso continuar assim, talvez nem esteja pronto quando voltarmos com o resto do grupo.
— Isso me lembra — disse Sitri com um sorriso e uma batida de palmas —, ouvi falar que existem lendas sobre mais do que apenas dragões nesta região!
— Lendas?
Lendas. Nada disso parece bom.
Achei que minha expressão deixava claro que eu não queria ouvir mais nada, mas Sitri continuou.
— Dizem que às vezes aparecem por perto.
— Ah, vamos falar de outra coisa.
Não era algo que eu me orgulhasse de admitir, mas eu não lidava bem com fantasmas. Já fui perseguido por todos os tipos deles, sabe.
— Não! Eles não são fantasmas, as lendas falam de um estranho Sapien—
— Ah, vamos falar de outra coisa.
Não era algo que eu me orgulhasse de admitir, mas eu não lidava bem com Sapiens. Já fui perseguido por todos os tipos deles, sabe.
Sitri suspirou e sorriu levemente ao ver minha total falta de entusiasmo.
— Bem, é só uma lenda, e parece que não há relatos recentes.
Isso mesmo. Perfeitamente certo. Já tivemos encrenca o suficiente. Se aparecer mais alguma coisa, podemos declarar minha sorte oficialmente morta.
Por enquanto, nossa preocupação eram os bandidos.
— Será que tem algum caçador por perto que possa dar conta dos bandidos? — murmurei.
Liz arregalou os olhos e sorriu enquanto acenava com as mãos. Claro, eu quis dizer algum caçador que não fosse ela. Se ela fosse lutar, Tino e eu seríamos arrastados junto, e eu queria evitar isso.
Então, um barulho alto ecoou de repente. No portão da cidade, que mal podia ser chamado de portão, uma grande carroça surrada era puxada por cavalos magros. Os poucos vendedores nas ruas olhavam curiosos para a cena incomum.
Novos visitantes?
Observei distraidamente enquanto a porta da carroça se abria e um homem pálido como a morte desembarcava. Não consegui conter minha surpresa. Arnold saiu da carroça. Ele havia mudado tanto que, a princípio, não o reconheci, mas não havia dúvidas.
Arnold Hail. Um caçador de nível 7 com o título de Relâmpago Estrondoso. E também um homem que, por algum motivo, queria minha cabeça. Ele estava coberto de bandagens, o cabelo uma bagunça, as bochechas encovadas, mas ainda assim era inconfundível. Logo atrás dele estavam seus companheiros de equipe e até Gilbert.
Havia algo diferente neles. Alguns estavam usando equipamentos diferentes. Não pareciam gravemente feridos, mas seus passos eram hesitantes, e seus corpos cobertos de cortes e arranhões. A única que parecia um pouco melhor era Chloe, que saiu por último.
Eles deviam estar realmente exaustos, pois não notaram minha presença, mesmo eu já tendo notado a deles. Normalmente, seria impensável que eu os avistasse primeiro.
Será que estavam me perseguindo?
Mas, se fosse esse o caso, não teriam aparecido diante de mim nesse estado deplorável. Pareciam ter acabado de escapar por um triz da morte.
Eu já estive à beira da morte no deserto, então sabia exatamente como isso parecia.
Que situação terrível. E logo enquanto estamos de férias. Deus deve ter alguma bronca comigo.
Os olhos de Tino estavam arregalados. Um sorriso se formou no rosto de Liz ao avistar Arnold. Os olhos de Sitri se arregalaram, mas logo ela juntou as mãos, como se tudo fizesse sentido para ela agora.
Não gostei nada desse desdobramento.
— Precisamos dar o fora antes que nos notem. Arnold e companhia não pareciam estar prestando atenção ao redor.
Segurei a mão da Liz e a puxei para trás, mas Sitri avançou como se estivesse tomando o lugar dela. Não consegui impedi-la antes que ela começasse a bater palmas para Arnold em um gesto de boas-vindas. Ela não parecia surpresa. Exibia um sorriso largo, como se já esperasse por tudo isso.
— Ora, ora, ora. Sejam bem-vindos à cidade de Suls. Devo dizer que demoraram demais? Ou será que chegaram no momento perfeito, como sempre? Cansei de esperar. Vocês demoraram tanto que eu tive que lutar contra o dragão.
— Hm?!
Sitri, você já sabia que isso ia acontecer?!
Não fazia ideia de como ela poderia ter previsto tudo isso, mas se sabia, bem que poderia ter me contado. Assim, teríamos ido para outra fonte termal.
Arnold olhou para Sitri, depois para mim, e seus olhos se arregalaram o máximo possível. Seu corpo enorme vacilou e, sem dizer uma palavra, ele desmaiou ali mesmo.
Tradução: Carpeado Para estas e outras obras, visite Canal no Discord do Carpeado – Clicando Aqui
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