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Grieving Soul – Capítulo 1 – Volume 7

 

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Nageki no Bourei wa Intai shitai
Let This Grieving Soul Retire Volume 07

Capítulo 1:
[Uma Nova Honraria]


Gotas de suor escorriam entre a infinidade de pontas. Seus dedos tremiam ao se agarrar a uma das saliências. O material mágico amplificado pelo mana fortalecia as pessoas conforme seus desejos, mas o caminho até a força verdadeira ainda era longo.

Tino Shade tinha um corpo pequeno e ágil, essencial para qualquer Ladino, mas ficar de ponta-cabeça sustentando o próprio corpo apenas com os polegares e indicadores não era tarefa fácil. Se vacilasse por um único instante, perderia o equilíbrio e cairia direto sobre um piso cheio de pontas afiadas. A simples ideia de virar uma peneira já era o bastante pra deixar qualquer um nervoso.

O chão pontiagudo era uma engenhoca de treino criada por seu mestre. Mas embora a ideia fosse dele, quem deu vida à coisa toda foi a Siddy. Os espinhos metálicos já tinham ferido muitos e exalavam um cheiro de sangue impossível de remover. Enquanto Tino se movia de uma ponta a outra, ainda de cabeça para baixo, ouviu algumas vozes resmungando ali perto.

— Você realmente não tem ideia? A gente conhece alguns dos membros, então não dá pra começar por aí?

— A Raposa é uma organização bem peculiar. Até uns anos atrás, ninguém nem sabia que era esse o nome deles.

Lizzy se jogou no chão e resmungou sozinha.

— Como diabos um grupo desses ficou tão grande? Puta merda, isso seria bem mais fácil se o Krai Baby não tivesse se livrado do Telm!

— Bom, já foi feito! Se não fosse pelo Krai, a gente nem teria descoberto que o Telm era uma Raposa em primeiro lugar — respondeu Siddy. Mas Tino ainda conseguiu perceber um tom de lamento na voz dela.

Estavam em um campo de treinamento sombrio, construído no subsolo da sede do clã. No centro do chão havia um tubo grande o bastante para caber uma pessoa com folga. A metade de cima era feita de um vidro denso, selado por cima. A parte de baixo era algum tipo de máquina com uma lâmina em espiral. Próximo à base havia alças metálicas brilhantes. Ela não sabia exatamente para que servia, mas aparentemente Anssy tinha trazido aquilo do Palácio da Noite.

Os Grieving Souls fariam qualquer coisa para ficarem mais fortes. Lizzy, claro, passava por treinos rigorosos, mas os outros membros também criavam ferramentas especiais ou inventavam magias do zero. Tino já tinha visto uma infinidade de coisas que, sem dúvida, serviam para deixar alguém mais poderoso.

E era provavelmente para evitar esses métodos malucos que ninguém mais estava no salão de treino naquele momento. Cada pessoa tinha seu próprio jeito de evoluir, e qualquer um com o mínimo de instinto de sobrevivência evitava os métodos dos Grieving Souls como se fossem praga.

E de que serviria atravessar um chão cheio de pontas? Tino já tinha feito essa mesma pergunta antes, mas logo expulsou esse tipo de pensamento da cabeça. Precisava se concentrar ou ia acabar virando espetinho.

— Talvez seja melhor perguntar pra ele, só pra ter certeza? — continuou Lizzy. — Não gosto nada da ideia de terem nos atacado e ainda estarem vivos pra contar história. A gente tem que ir direto no coração deles.

— Lembre-se, o Krai não se envolve com coisas pequenas. Mesmo uma organização secreta gigante ainda é menos importante do que uma câmara do tesouro que abriga deuses. Mas, pra falar a verdade, acho a organização mais interessante entre as duas.

O mestre da Tino e o grupo dele tinham voltado pra capital imperial há poucos dias. Ela não participou da escolta, então não sabia exatamente o que tinha rolado, mas parecia que tinham enfrentado outro vilão de peso. Pelo que ouviu, tinha o imperador, algumas coisas ruins sobre os cavaleiros que o protegiam e várias informações que provavelmente ela nem deveria saber.

As únicas missões que o mestre da Tino aceitava eram daquelas que alguém do Nível 4, como ela, nem sonharia em tentar. Pelo que sabia, essas missões quase nunca saíam como planejado — o que dizia muito sobre o tipo de trabalho que ele escolhia. Pensar nisso fazia Tino se perguntar se o dia em que realmente se tornaria parte dos Grieving Souls algum dia chegaria. Ela tentava tirar isso da cabeça e focar no treino, mas era difícil quando se é um Ladino e tem que estar sempre atento a tudo ao redor.

Por mais tempo que passasse, Tino nunca conseguia se acostumar com os treinos da Lizzy, e qualquer folga só deixava mais difícil voltar à rotina.

— Mmm, verdade — disse Lizzy, justamente quando Tino pensava em quando seria liberada dali. — Parece que ele pegou outra missão divertida. Será que ele vai deixar a gente cuidar dessa? T, pega.

Uma caixa de tesouro feita às pressas veio voando em sua direção. Ainda de ponta-cabeça, Tino esticou o braço e pegou a caixa. O movimento repentino a fez balançar um pouco, mas apertando os dedos e movendo as pernas, conseguiu manter o equilíbrio.

E-eu peguei!

Se deixasse cair, o castigo certamente seria cruel.

— T, abre essa caixa. Ainda nessa posição — disse Lizzy, sem a menor preocupação com os olhos marejados e a respiração ofegante da pupila. — Agora que você já se acostumou com o chão de espinhos, a gente encerra se você conseguir.

— Assim?! Como?!

Tino olhou para a pequena caixa de tesouro na mão. Tinha um certo peso e provavelmente estava trancada. Abrir fechaduras era uma habilidade essencial pra um Ladino, e normalmente isso seria moleza depois de tudo o que ela já tinha passado. Mas o que fazer com as duas mãos ocupadas? Ela tentou pensar em alguma solução desesperada.

— Como assim “como”?! Você tem as pernas, não tem? Acha que elas servem pra quê?

Com certeza não é pra abrir caixa de tesouro! O olhar congelante da Lizzy cortou qualquer reclamação que Tino pensava em fazer. Ela engoliu o choro, controlou a respiração e, mantendo o equilíbrio, tirou os sapatos e as meias. Seus grampos de arrombamento estavam presos na cintura, então não dava pra alcançá-los sem usar as mãos. Em vez disso, contorceu o corpo e usou os dedos dos pés pra pegar a agulha que escondia no cabelo.

Agora ela só precisava de algum jeito de colocar a agulha na boca e encaixá-la na fechadura. Tentava manter o corpo o mais leve possível, mas seus dedos já estavam começando a doer. Fazia esforço para continuar flexível, mas seu corpo doía enquanto ela tentava se mover. Ignorou a dor e cuidadosamente tentou mudar o centro de gravidade.

— T ficou bem mais resistente — comentou Siddy.

— O que você esperava? Eu e o Krai temos treinado ela. Ela não é como aqueles idiotas que só confiam em material de mana.

Tino não via problema nenhum em confiar um pouco mais em material de mana. Desenvolver habilidades era importante, mas material de mana era a coisa mais importante no mundo da caça a tesouros. Absorver regularmente material de mana dentro das câmaras de tesouro era o que tornava os caçadores tão poderosos. Podia fazer toda a diferença nos atributos básicos de alguém. Embora, tecnicamente, o material de mana não concedesse nada que não se pudesse obter com treinamento rigoroso.

— Você já teve que abrir um baú de tesouro em cima de um piso com estacas?

— Uh, bem, não custa aprender, né? Além disso, o piso com estacas foi ideia do Krai.

Mestre é deus. Mestre é deus, Tino repetia para si mesma enquanto de algum jeito levava a agulha dos dedos do pé até a boca. Ouviu um barulho metálico. Aquele troço de vidro estranho estava se movendo, e Siddy estava agachada ao lado. Ela caminhou até Tino, e bem quando a garota estava prestes a colocar a agulha na fechadura, Siddy estendeu um frasco com um líquido marrom-escuro.

— Aqui, T, quer testar isso? É uma poção experimental de experiência.

— Mmm? Mmmmmmm? — respondeu Tino, confusa com o termo estranho.

— Siddy, a T não é sua cobaia! — esbravejou Lizzy. — Se quer testar essas maluquices, vai procurar criminoso pra isso! E se você quebrar a T?!

— Não fala assim. Deve funcionar. Em teoria. Eu acredito. T, pra simplificar, isso aqui é material de mana líquido extraído dos cadáveres dos fantasmas do Palácio Noturno. No estado gasoso, perde-se um pouco de mana pela evaporação, mas com isso, dá pra absorver diretamente em alta concentração. Eficiente, não acha?

Tino ficou horrorizada. Era bem possível que Siddy estivesse cometendo experimentos envolvendo a manipulação de material de mana — um dos dez crimes capitais de Zebrudia. Noctus Cochlear, o sábio caído que havia conduzido experimentos na Toca do Lobo Branco, teria sido exilado só por escrever uma tese sobre esse tema. Se só escrever sobre isso já rendia exílio, fabricar mana líquida com certeza era motivo de pena de morte. Claro, as ideias da Lizzy sempre beiravam a ilegalidade, mas aquilo era de outro nível.

— Se você absorver mais material de mana, seu senso de equilíbrio e destreza vão melhorar. Você vai ganhar o poder que precisa com facilidade — disse Siddy. — Que tal? Mas já aviso, a concentração pode estar alta demais. Pode ser fatal.

Tino balançou a cabeça rapidamente. Ela nunca sabia quando Siddy estava falando sério ou zoando, o que sempre a deixava aflita.

— Isso foi um “não”? — suspirou Siddy, com um olhar desanimado. — Bom, o Krai tá bem apegado a você. Com sorte, consigo outras cobaias em outro lugar.

A porta se escancarou. Se o timing foi bom ou ruim… era discutível.

— Hã? Só vocês três? Droga, Ark. Aquele almofadinha nunca tá por perto quando eu mais preciso. Tino, o que você tá fazendo?

A concentração de Tino foi destruída. Ela virou a cabeça rapidamente na direção da voz, desequilibrando o centro de gravidade. A agulha caiu da boca, ela largou o baú do tesouro e tentou apoiar a mão no chão—e seus gritos ecoaram por toda a sala.

 

— Boa! Você desconcentrou a T de vez!

— Nunca se sabe o que pode acontecer numa batalha, então adaptabilidade é indispensável!

Enquanto as irmãs Smart sorriam radiantes pra mim, Tino se contorcia de dor depois de cair no piso com estacas. Suas feridas se curaram na hora, graças a uma poção que Sitri jogou nela. Tudo que eu conseguia fazer era ficar ali parado, sorrindo sem jeito.

— É, pois é. Aham…

Não era meu lugar julgar, já que eu não tinha os talentos delas, mas o treinamento da Tino já estava começando a parecer meio suspeito. Ver ela de cabeça pra baixo sobre um piso de estacas podia muito bem me causar um infarto se fosse de noite.

— Que tipo de resultado esse treino supostamente traz, hein? — perguntei.

Depois de ser perfurada e agora ensopada de poção, Tino me olhou com ódio.

— Certo, alguma de vocês sabe onde tá o Ark? — falei, mudando de assunto desesperadamente. — Me pediram pra treinar a princesa imperial, e mais uma vez não acho aquele inútil.

Era igualzinho quando me pediram pra escoltar o imperador. E também igual à investigação na Toca do Lobo Branco. A taxa de sumiço indesejado do Ark estava só aumentando.

— Hã?! A princesa imperial? Tipo, de Zebrudia?! — disse Liz.

— Krai, você vai ser o mentor da princesa imperial?! — disse Sitri.

Me dei conta de que, apesar de já ter comentado com a Lucia, aquilo era novidade pras três.

— Foi o que acabou acontecendo — falei. — Mas também não importa muito. Nem pretendo ensinar nada, mesmo.

O irritante é que não conseguia encontrar o Ark, nem o Sven, nem nenhum grupo decente. Talvez conseguisse entrar em contato com a Starlight, mas confiar a princesa imperial à Nobreza dos Espíritos era arriscado demais. Sem contar que Zebrudia era um país que respeitava mais a espada do que a magia.

— E me deram isso como agradecimento, então não dava pra recusar — puxei o bilhete e Sitri ficou boquiaberta.

— Isso é…

Eu nunca tinha visto um bilhete antes de receber esse, mas parece que gente que conhece do assunto já reconhece logo de cara.

— Isso é um ingresso pro Festival do Guerreiro Supremo?! — gritou Liz, empolgada ao máximo. — Você vai participar?! Que injusto! Eu também quero tentar!

—N-Não, eu não vou participar. Só vou assistir.

Sitri me olhou, confusa. —Não vai? Mas isso é um ingresso de participação.

—O quê?

—Ah, entendi! De fato, assistir de dentro do ringue deve ser melhor do que da arquibancada!

Calma lá. Essa lógica aí foi bem criativa.

Olhei para o meu ingresso de novo. A platina reluzente não tinha nenhuma informação gravada. Nem sequer dizia que era para o Festival do Guerreiro Supremo. A única coisa óbvia era que aquilo era algo especial.

Fechei os olhos e me lembrei da conversa com o imperador. “E quanto ao pagamento?” ele havia dito com aquela voz cheia de dignidade. “Você está treinando Murina, e acredito que sua atuação ao me proteger merece mais do que um Tapete. Não posso deixá-lo sair sem um pagamento à altura. Diga-me o que deseja.”

—Não precisa, majestade —respondi, fingindo ser todo durão. —Minha contribuição no treinamento da princesa imperial é mínima. E acredito que já fui devidamente recompensado por protegê-lo.

Pagamento vem junto com responsabilidade. Um pagamento melhor só aumentaria as expectativas sobre mim. Sem contar que quem fez o trabalho pesado mesmo, na viagem até Toweyezant, foi a Kris.

—Hmm. Você é tão humilde quanto Lorde Gladis dizia. Mas preciso lhe dar algo.

O imperador parecia incomodado, mas Franz teve uma ideia.

—Vou ignorar o que ele disse sobre sua utilidade limitada à Alteza Imperial. Majestade, por que não dá a ele um dos ingressos?

—Ah, para o Festival do Guerreiro Supremo? De fato, ainda temos alguns sobrando, mas não me parece suficiente.

—No entanto, esse ingresso dá a chance de alcançar grandes honras. E como tutor da Princesa Murina, dar um desses ingressos ao Mil Truques também será benéfico, mesmo que indiretamente, para ela.

Franz me lançou um olhar cheio de significado. Só sorri e assenti sem pensar muito. Não fazia ideia do que ele queria dizer exatamente, mas parecia bom o bastante. Meus amigos todos queriam ir ao Festival do Guerreiro Supremo. E mais importante ainda, um pagamento mais leve me dava espaço para inventar desculpas caso algo desse errado.

—Seria maravilhoso —disse eu, tentando convencer o imperador. —Sempre quis ir ao Festival do Guerreiro Supremo. Não poderia pedir nada melhor que isso.

—Muito bem —disse o imperador, embora parecesse claramente pouco convencido. —Sinto que ainda não é o suficiente, mas respeitarei sua decisão. Agora que escolheu, imagino que exibirá atos de bravura?

Hmm. Atos de bravura. Atos. De. Bravura? Nem a pau.

Balancei a cabeça. Nossa jornada juntos deveria ter deixado claro ao imperador o quanto eu evitava combates. Além do mais, dar a alguém o direito de participar de um torneio brutal com lutadores do mais alto nível era uma forma bem esquisita de demonstrar gratidão. Claro, eu devia ter me dado ao trabalho de entender melhor o que estava aceitando, mas ele também não tinha dito nada sobre—

Espera. Era isso que o Franz quis dizer quando falou que isso beneficiaria a princesa?

—É melhor eu correr pra pegar meu ingresso! —disse Liz. —Até mais, Krai Baby!

—L-Lizzy! Pega um pra mim também! —gritou Sitri. —Ahh, já foi…

Tentei manter a calma, decidindo assumir que esse ingresso não era de participação. Mesmo que eu tivesse perdido o juízo, não tinha como ter dado a entender que queria participar do Festival do Guerreiro Supremo. E dar um ingresso de participação pra alguém que evita combate não é um prêmio — é provocação.

—Se não me engano, existem assentos reservados para amigos e parentes dos participantes —continuou Sitri. —Mas eles são separados dos ingressos comuns. O Festival do Guerreiro Supremo é famoso por priorizar os desejos dos seus combatentes.

Infelizmente, a onisciente Sitri jamais confundiria um ingresso de participação com um de espectador. Então, qual o sentido disso tudo? Estamos num império onde a força é exaltada, com uma princesa preocupada com uma sorte que nem é tão ruim assim, e eu fui encarregado de treiná-la. Aí temos as palavras do Franz e do imperador. Só podia chegar a uma conclusão razoável.

Então, se estou certo, eles querem que eu treine a princesa imperial pra lutar no torneio?

—Aquele nosso imperador tem umas ideias absurdas —disse, depois de um longo silêncio.

—Como assim? —perguntou Sitri.

Eu sabia que o império era um lugar que valorizava resultados acima de tudo, mas agora o imperador estava pedindo pra eu preparar a filha dele pro Festival do Guerreiro Supremo? Bom, esse era o mesmo cara que ficou impassível ao ser atacado por um ninho de dragões gélidos. Os rumores sobre sua força e coragem pareciam verdadeiros.

Muitos nobres da época se destacavam nas artes marciais porque vinham de linhagens com talento natural para absorver material de mana. Mas, num evento do porte do Festival do Guerreiro Supremo, só talento não bastava pra vencer. Por isso, a maioria dos nobres evitava participar. Mas ainda havia alguns que tentavam a sorte.

Será que eu me enganei? Isso vai ser bem mais problemático do que pensei?

—Quando é o torneio? —perguntei.

—Hmm, ainda falta um mês —disse Sitri.

Já recuperada, Tino se levantou e perguntou: —Mestre? Aconteceu alguma coisa?

Não era hora de ficar preocupado.

—Talvez dê tempo. Bem no limite —murmurei pra mim mesmo.

—Tempo pra quê?! Mestre?!

Treinar a princesa imperial teria sido fácil; era só deixá-la com algum caçador de confiança. Mas deixá-la em condições de competir no Festival do Guerreiro Supremo era outro nível. Quer dizer… eu tinha quase certeza de que era impossível.

Esse era um torneio que decidia quem era o mais forte do mundo. Sim, a princesa imperial vinha de uma longa linhagem de guerreiros, mas ela ainda era, bem… a princesa imperial. Enquanto isso, os oponentes dela seriam máquinas de matar que viviam para lutar, porque era nisso que encontravam sentido.

Um pouco de treino talvez ajudasse ela a lidar melhor com o azar, mas encarar uma máquina de matar estava fora de cogitação. Lutar simplesmente não era o papel da princesa imperial. Isso era tipo cinco vezes mais intenso do que o tipo de treinamento que eu tinha imaginado no começo. Parecia demais até mesmo pro Ark. Será que o imperador só tinha músculos no lugar do cérebro?

Ainda assim, imaginei que o imperador não esperava que a filha realmente vencesse o torneio. Ele era um cara esperto. Se quisesse que a Princesa Murina ficasse em primeiro lugar, manipular o torneio com influência seria uma estratégia melhor do que fazer ela vencer na raça.

Seja como for, agora eu estava numa corrida contra o tempo. Não sabia se conseguiria atender às expectativas do imperador, mas precisava fazer o meu melhor. Era uma pena que o Ark tivesse sumido do mapa, mas os guerreiros mais fortes nem sempre são os melhores treinadores.

— Treinar a princesa imperial? Até que nível? — perguntou Sitri calmamente. Ela já estava acostumada com meus pedidos absurdos.

— Até um nível alto o suficiente pra vencer o Festival do Guerreiro Supremo, acho — respondi.

— E qual o prazo?

— Hmm, provavelmente cerca de um mês.

— Tão rápido assim?! — exclamou Tino. — Isso parece impossível até pra você, e te chamam de artífice pré-humano!

Concordei com ela. Mesmo que eu fosse capaz de realizar feitos sobre-humanos, esse seria um trabalho complicado.

— Mesmo treinando com a Lizzy por vários anos, o Festival do Guerreiro Supremo talvez ainda seja, hum… demais pra mim. Mas isso poderia mudar se eu usasse aquela máscara.

— É isso! Podemos fazer a princesa imperial usar a Evolve Greed! Ideia genial, Tino!

— Hã?! M-Mestre é deus. Mestre é deus.

Mas isso levantava novos problemas. Aquela máscara não tinha efeito nenhum em mim, e o mesmo podia acontecer com a princesa imperial. Também havia a possibilidade remota dela sair do controle, igual a Éclair.

Sitri olhou de relance para a poção na mão, depois para a Tino murmurando no chão, e por fim para mim.

— Muito bem. Posso cuidar disso? Tenho uma ideia — disse ela.

— Tem certeza que vai funcionar? — perguntei.

— Não. Mas tem algo que quero tentar. — Ela deu o sorriso de sempre e bateu palmas. — E quero ajudar, já que não pude fazer muita coisa durante o incidente da Raposa.

Algo que você quer tentar? Bom, não é como se eu tivesse outra opção!

Eu não tinha nenhuma ideia genial e confiar na Sitri era cem vezes melhor do que achar algum caçador qualquer.

— Hm, Mestre. Pode não ser da minha conta, mas a Siddy— — Sitri lançou um olhar gélido pra Tino. — Eep! D-Deixa pra lá!

Eu tinha certeza de que tudo daria certo. Se algo não fosse viável, a Sitri me avisaria. E eu também achava que o imperador entendia o quão absurda era sua exigência. E como foram meus companheiros de grupo que me levaram ao Nível 8, era natural contar com os Grieving Souls. Se isso causasse algum dano à minha reputação, ótimo — pelo menos na minha cabeça.

Justificativas: estabelecidas!

Mais uma vez, eu estava pegando fogo.

— Então vou deixar isso com você. Ah, não que eu precise lembrar, mas… só garante que ela não morra.

— Vai ficar tudo bem. Trabalhar com a T me tornou especialista nisso! Ah, a chance de estudar o sangue da família imperial. Que maravilha!

Será mesmo que vai ficar tudo bem? Estou confiando em você, Sitri.

—B-Bom, estou meio ocupado agora, então vou indo — falei. — Comece os preparativos. Te chamo quando a princesa imperial chegar.

— Certamente! Deixe tudo comigo, sua querida Sitri! Ah, T, por que não vem com a gente? Vocês duas podem competir e se motivar mutuamente. Dois coelhos com uma cajadada só. E já que estamos nisso, vamos arrastar a Lucy também.

—M-Mestre?!

Vai ficar tudo bem. Tudo bem. Eu acredito na Sitri, a Prodigiosa.

Enquanto Sitri murmurava como se estivesse em transe e Tino me olhava como um filhote molhado na chuva, deixei a sala de treinamento.

 

Eu estava no meu escritório, polindo minhas Relíquias, quando a porta se escancarou e entrou nosso maníaco das espadas residente.

— Krai, é verdade que você vai participar do Festival do Guerreiro Supremo?

— Hã? Onde você ouviu isso?

— Da Sitri. Ela me chamou pra ajudar num treinamento ou sei lá. Mas como você pôde fazer isso?! Por que não me contou?!

O Luke gostava de Espadachins mais do que qualquer outra coisa no mundo. Ele gostava tanto que, se visse um que parecesse forte, começava a atacar na hora. Mas isso não significava que o gosto dele se limitava a Espadachins. Luke Sykol era um cara que admirava qualquer um capaz de oferecer uma boa luta. Como Espadachim, ele tinha uma afinidade especial com outros usuários de espada, mas tentaria cortar qualquer pessoa forte — fosse um Ladino, um Magus ou outra coisa.

Em outras palavras, ele era um maníaco sedento por sangue. É claro que ia se interessar pelo Festival do Guerreiro Supremo.

Pelo visto, a Sitri estava mesmo levando a sério esse lance de treinar a princesa imperial, já que chamou o Luke pra ajudar. E ele não parecia do tipo que pegaria leve, nem mesmo com a filha da maior autoridade do país. Isso só aumentava ainda mais a minha ansiedade. E eu jurava que tinha dito que não ia participar, então por que ele achava o contrário?

— Não, eu não vou lutar — falei. — Só vou assistir. Ganhei um ingresso do imperador. Você queria ver, não queria? Tá livre?

Não vi problema em tirar uma folga das lutas e só assistir do lado de fora de vez em quando.

Luke fez uma careta de contemplação antes de finalmente tomar uma decisão. — Agradeço a consideração, Krai. Mas prefiro entrar na briga do que só assistir!

—V-Você prefere?

—Ainda tenho um longo caminho pela frente. — Chamas ardiam no fundo de seus olhos carmesins. — Nem consigo cortar dimensões ainda. Mas tenho certeza de que tem algo a se ganhar enfrentando oponentes fortes até a morte. Tenho certeza!

Sim, isso é bem a cara dele mesmo.

Ele e a Liz sempre foram movidos por impulsos homicidas. Embora eu tivesse quase certeza de que as lutas do torneio não fossem, de fato, combates até a morte.

—Mas não faço ideia de como você entraria — falei para ele.

Os ingressos para espectadores estavam à venda para o público, mas o direito de participar não era comercializado. Será que isso significava que a Liz também não conseguiria entrar? Eu mesmo não estava muito animado com isso, mas o Luke aparentemente estava.

—Eu sei como — ele disse. — Convites são enviados para guerreiros famosos e para quem se classifica bem nos torneios regionais.

—Então não tem nada que você possa fazer.

O Festival do Guerreiro Supremo já estava próximo, então eu tinha quase certeza disso.

Luke assentiu para si mesmo. —Então basicamente, só preciso derrubar alguém que tenha um convite, e ele vai deixar cair o dele.

—O quê?!

Isso… isso funciona? Não. Não consigo imaginar como isso poderia funcionar.

Não sabia dizer se essa mentalidade de “matar e pegar o que quiser” fazia parte do Cérebro de Caçador ou não.

Como é que ele tinha ficado tão maluco se nós dois fomos criados no mesmo lugar? Eu queria reclamar com o mestre do Luke, mas aquele cara tinha muito mais razão pra reclamar comigo do que eu com ele. Ele podia muito bem me dizer que eu é que precisava fazer algo com meu amigo de infância — e ele estaria completamente certo.

Eu estava tentando pensar em como acalmar o Luke, quando ele gritou: —Preciso me mexer. Já tenho uma ideia de onde posso começar a cortar!

Quando eu disse “Ah”, ele já tinha sumido. Ser péssimo em ouvir era uma das falhas do Luke. Ele era ainda pior do que a Liz nesse sentido, já que ela ao menos sabia usar a cabeça — mesmo que não fosse de uma forma muito sensata.

Disse a mim mesmo que ficaria tudo bem. A espada do Luke era de madeira, e ele era bem conhecido pelas pessoas certas. Só me restava acreditar que quem quer que ele atacasse fosse capaz de se defender.

Então me ocorreu que, do jeito que as coisas estavam indo, talvez eu fosse a única pessoa a não participar do torneio. A Lucia podia ser surpreendentemente competitiva, e se todos os outros fossem, o Ansem com certeza seguiria.

—Hmm. Parece que isso já saiu do meu controle.

Não, não pense de forma negativa. Encare pelo outro lado.

Será que eu precisava mesmo de controle? O comportamento deles podia melhorar, mas a força deles era real. Eu não era digno do meu próprio nível, mas os níveis deles também não combinavam com eles. Eu não achava que algum deles fosse vencer o Festival do Guerreiro Supremo, mas acreditava que se sairiam bem.

Planejava assistir ao torneio com eles, mas torcer por eles parecia bom também. Se ganhassem alguma coisa, seria ótimo para o futuro deles, e nada me deixaria mais feliz como amigo deles. Não era o que eu esperava, mas ainda estava empolgado demais para ficar sentado.

—Vou levar o clã inteiro pra torcer por eles! — disse, cerrando o punho.

—Com licença, Krai. O dragão carmesim montado está pronto. — Eva olhou para mim. —Aconteceu alguma coisa?

—N-Não, não é nada — falei, voltando rápido pro meu assento, envergonhado de ter sido visto daquele jeito pela Eva.

 

Como a Princesa Murina tinha ouvido, a sede do clã Primeiros Passos era um prédio bem moderno, que não mostrava nenhuma da vulgaridade normalmente associada a caçadores. Diziam que o mestre do clã, o Mil Truques, mandou construí-lo para resistir a qualquer calamidade. E de fato, o prédio já tinha sido atacado por bandidos várias vezes e ainda não mostrava nenhum sinal de ceder.

Depois de sobreviver a tantos ataques e ser ocupado com frequência por jovens caçadores promissores como Ark Rodin, o Trovão Prateado, esse lugar provavelmente era um dos mais seguros da capital imperial. E no último andar ficava o Mil Truques — um homem que tinha se saído melhor do que agentes da Raposa das Nove Caudas. Era possível até que esse prédio fosse mais seguro que o próprio Castelo Imperial.

Vestida de forma discreta, a Princesa Murina olhava para o prédio por baixo do capuz.

— Alteza Imperial, ainda dá tempo de desistir — disse Karen, uma das duas guardas que acompanhavam a princesa imperial. — Tenho certeza de que Sua Majestade Imperial respeitaria sua decisão.

—Vamos fazer tudo que pudermos para protegê-la, mas ainda estamos lidando com caçadores bárbaros — disse Cindy, a outra guarda. —Tudo pode acontecer.

Murina refletiu um pouco. As lições com o Mil Truques eram altamente secretas. Ela não podia trazer muitos guardas, e Franz não podia estar lá para protegê-la como de costume. As guardas que estavam com ela eram capazes, mas ainda eram só duas.

O clã tinha sido batizado de “Primeiros Passos” com a esperança de que fosse o início de algo grandioso para seus membros. Mesmo depois de se tornar um clã de primeira linha, o nome continuava a atrair filas de novos caçadores com esperança de se juntar.

Com certeza, aquele plano era o primeiro passo rumo a algo melhor para a Princesa Murina. Diziam que os Mil Desafios eram feitos pensando no crescimento dos participantes — criados de forma que fossem possíveis, ainda que por pouco. Talvez superar um desses desafios lhe desse poder suficiente para vencer sua má sorte.

Karen abriu a porta com cuidado — e a Princesa Murina se deparou com algo que a fez gritar, mesmo contra sua vontade. Suas guardas imediatamente se colocaram na frente dela. Como se fosse a coisa mais natural do mundo, uma cabeça de dragão com olhos esbugalhados decorava a entrada.

Murina ficou paralisada por alguns segundos antes de perceber que não havia corpo preso à cabeça. —Isso é… empalhado?

—Eles decoraram esse lugar com a cabeça de um dragão. Isso é, hã… extravagante — comentou Karen.

—Nunca se vê algo assim à venda. Algo tão raro quanto um dragão costuma ser desmontado para virar material — disse Cindy.

A cabeça montada parecia que ia começar a se mexer a qualquer momento. Definitivamente não era falsa. Nem o Castelo Imperial era decorado com um dragão empalhado (e provavelmente ninguém jamais pensou nisso). Talvez isso fosse prova de que aquelas pessoas realmente estavam entre os caçadores de tesouro mais fortes da capital imperial.

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Cindy assentiu e disse — Imagino que isso seja uma forma de exibir o poder da Primeiros Passos. Um clã desse porte provavelmente recebe muitos pedidos diretos. Uma decoração assim mostra o tipo de coisa que eles conseguem realizar. Usar a cabeça de um dragão de verdade me parece um pouco exagerado, mas, ainda assim, acho justo dizer que esses caçadores são tão habilidosos quanto sua reputação sugere.

Durante seus encontros com o Mil Truques, Murina nunca teve a impressão de que aquele homem era particularmente impressionante. Era a aura dele, por assim dizer. Ou a falta dela. Seu pai, Ark, todos os mentores de primeira linha com quem ela havia treinado, todos tinham uma certa aura.

Murina não era a melhor lutadora, mas havia desenvolvido um bom olho para avaliar ameaças. No Encontro da Lâmina Branca, nenhum dos convidados carecia mais de aura do que o Mil Truques. E isso fazia Murina ter ainda mais medo dele.

Enquanto o trio observava a cabeça do dragão, o Mil Truques veio descendo as escadas aos pulos. Atrás dele vinha o vice-mestre do clã, que Murina reconheceu do Encontro. Olhando para o relógio, ele estava exatamente na hora. No entanto, membros da família imperial estavam acostumados a serem recebidos por alguém já à espera quando chegavam. Dependendo das circunstâncias, esse comportamento podia ser considerado desrespeitoso.

O Mil Truques ficou visivelmente nervoso ao ver as expressões de desagrado dos guardas de Murina. — Desculpa por não ter alguém esperando para recebê-los — disse. — Estamos um pouco sobrecarregados por aqui.

— Agradecemos por aceitar este pedido. Sou Karen, da Ordem Zero. Esta é Cindy. Durante o treinamento de Sua Alteza Imperial, nós cuidaremos dela e garantiremos sua segurança.

Assim como nos encontros anteriores, Murina não conseguia sentir nenhuma aura daquele homem. Mesmo sabendo do status dele, ainda tinha a impressão de que ele era mais fraco que Karen e Cindy. E Murina tinha certeza de que suas habilidades não haviam enferrujado nem nada do tipo.

As sobrancelhas do Mil Truques se contraíram, então um sorriso enorme surgiu em seu rosto. — Ah, o prazer é todo meu. Estamos prontos para começar. Sinceramente, não estou nada confiante, mas faremos tudo o que pudermos. Pensei em quem seria o melhor para treinar Sua Alteza Imperial, mas havia candidatos demais animados. Então pensei: por que não usar todos eles?

— O quê?! — exclamou Karen.

O jovem se encolheu, mas então disse — Ah, não vou reclamar. Sua Majestade Imperial disse que confiaria nos meus métodos. Além disso, não sou particularmente bom em orientar as pessoas. Mas não se preocupem, tenho certeza de que conseguiremos preparar Sua Alteza Imperial para participar do Festival do Guerreiro Supremo. Só não posso garantir que ela vá ganhar o primeiro lugar.

Murina ficou completamente desnorteada. Do que esse homem estava falando?! Ele era conhecido por suas artimanhas sobre-humanas e suas provações infames. Como assim ele não era bom em orientar?

Mas mais do que isso, por que ele estava falando sobre o Festival do Guerreiro Supremo? Aquilo era um torneio para os melhores dos melhores. Pelo que Murina se lembrava, era preciso estar pelo menos no Nível 6 para participar. Ela sabia que passaria por um treinamento intenso, mas isso parecia absurdo. Na verdade, parecia impossível.

Sem conseguir manter as expressões firmes, Karen e Cindy ficaram ambas com caras de confusas. O Mil Truques parecia tão insignificante, mas suas palavras eram ousadas demais.

— A propósito — disse o Mil Truques, olhando para a cabeça do dragão —, que dragão é esse? Quem colocou isso aqui? Tá no caminho.

— Hm?! Senhor, conversamos sobre isso ontem — disse o vice-mestre do clã.

Krai bateu palmas como se tudo estivesse voltando à memória. — Aah. Então foi aqui que colocaram? Hmm. Eu sei que pedi pra vocês cuidarem disso, mas é meio incômodo num lugar assim. Eu vejo muitos dragões, mas ainda assim é meio deprê ver um toda vez que entro na sede do clã.

— Muito bem. Cuidarei disso.

Tendo acabado de tirar suas próprias conclusões sobre o dragão, Cindy ficou sem palavras. Certamente ninguém com habilidades medianas seria tão indiferente quanto a mover uma cabeça de dragão. Parecia que Sir Franz estava certo sobre sua natureza enganadora. Ele realmente era uma das figuras mais formidáveis da capital.

Tendo esquecido completamente da postura serena que pretendia manter, o corpo inteiro de Murina tremia. O Mil Truques parecia quase enxergar seu coração, e um sorriso vagamente sarcástico surgiu em seus lábios.

— Bem, então, Sua Alteza Imperial, vamos começar logo o tour.

 

— O quê? Todo mundo vai ajudar?! — eu soltei.

— De fato — disse Sitri com um aceno casual. — Conversamos e achamos que essa seria a melhor abordagem. Afinal, não sabemos nada sobre as aptidões da Princesa Murina.

Eu não estava em posição de reclamar, mas não achei que meu grupo tivesse tanta gente interessada em ser mentor. De onde tinha vindo todo esse entusiasmo?

— A linhagem imperial está cheia de Espadachins, mas também há muitos grandes Magos. Neste momento, é difícil dizer o que se adequa melhor a ela — explicou Sitri.

Vivendo numa era que valorizava tanto a força, vários lugares pesquisavam formas de aprimorar habilidades da maneira mais eficiente. Sabia-se que a genética determinava a aptidão de um caçador, por isso tantos nobres se casavam com caçadores renomados. A família imperial de Zebrudia aceitava apenas o melhor sangue.

Mas ainda assim, eu não via necessidade de envolver todo mundo do grupo.

— Não temos muito tempo. Não seria melhor focar em uma especialidade? — perguntei.

— Ah, lá vai você de novo, Krai. Se fizermos isso, ela nunca vai estar pronta para o Festival do Guerreiro Supremo nesse prazo curto.

— É. Aham?

Hã? Sério?

Eu sabia que estávamos trabalhando rumo a um objetivo difícil, mas não via futuro algum para Zebrudia se a princesa imperial sofresse uma derrota humilhante no torneio.

— Todos os participantes do Festival do Guerreiro Supremo têm uma especialidade — continuou Sitri. — Mesmo que ela enfrente alguém com a mesma especialidade, a Princesa Murina não teria chance alguma de vitória. Isso nos deixa com apenas uma opção: treiná-la em várias áreas e combinar essas habilidades.

— Ah, entendi.

Eu me sentia mais como um espectador enquanto Sitri falava animadamente sobre suas teorias.

— Alguém pode ser tanto um Ladino quanto um Espadachim se se esforçar, mas dominar magia e rituais sagrados ao mesmo tempo é impossível para uma pessoa comum. Ark é forte do jeito que é porque é um Espadachim Mago, mas nem ele consegue usar rituais sagrados. Se conseguirmos elevar a Princesa Murina a alguém com esse tipo de conjunto variado de habilidades, ela poderá enfrentar praticamente qualquer oponente. Não, não se conseguirmos. Nós vamos elevá-la. Sua querida Sitri vai!

Ela estava realmente pegando fogo de tanta empolgação. Talvez ela sentisse alguma empatia pela princesa imperial? Há muito tempo, Sitri se preocupava por achar que não tinha talento, algo parecido com a situação da Princesa Murina agora. Não que Sitri realmente não tivesse talento, e eu também não achava que a princesa estivesse preocupada, mas as duas se pareciam nesse ponto.

— E então, quando terminarmos o treinamento dela, colocaremos os frutos da minha pesquisa em ação! Estou muito agradecida, Krai. Nunca imaginei dar de cara com sangue imperial! Tem várias coisas que quero testar…

Sitri parecia extasiada, com um olhar intenso.

Hã? Testar? Os maus hábitos dela estavam voltando?

Tudo bem ela se empolgar, mas eu esperava que ela não esquecesse que estávamos lidando com a princesa imperial.

— Os frutos da sua pesquisa? — perguntei.

— Seria, é claro, esta poção! Tcharaaam! — fazendo seu próprio efeito sonoro, Sitri me mostrou um frasco com um líquido acinzentado. — Acho que “poção de subir de nível” seria um nome adequado. Ao beber essa belezinha, você pode absorver material de mana diretamente pro seu corpo!

Você sempre foi do tipo que se empolga assim? Bom. Talvez sempre tenha sido.

Um método de ganhar material de mana só bebendo uma poção. As misteriosas habilidades alquímicas da Sitri eram incríveis. Nada está mais relacionado à força do que o material de mana, então entendi por que ela estava tão confiante, caso realmente tivesse criado algo tão milagroso. Ainda que parecesse meio injusto, continuei assentindo.

— Entendi. Isso é incrível — disse com um sorriso. — Com material de mana suficiente, até mesmo a princesa imperial poderia ganhar força rapidamente. Eu sabia que podia contar com minha querida Sitri.

Mesmo eu elogiando, Sitri se contraiu. Ela me lançou um olhar curioso. Levou um dedo aos lábios e ficou um momento em silêncio.

— Entendi — disse ela. — As poções estão fora de questão desta vez. Vou prosseguir sem elas.

— Hã?!

Eu não tinha sugerido nada disso.

Sitri fechou os punhos e declarou:

— De fato, ainda não realizei testes suficientes em humanos. Existe uma pequena possibilidade de que a princesa imperial não consiga suportar o material de mana e acabe explodindo. Fique tranquilo, vou pensar em outra coisa!

Não importava quantas vezes eu repassasse aquela conversa na minha cabeça, não conseguia ficar tranquilo. Será que isso era mesmo uma boa ideia? Enquanto mostrava as instalações para a princesa imperial, adotei um ar frio e impassível para esconder qualquer sinal das dúvidas que me assombravam. Tudo o que podia fazer era confiar nos meus amigos.



— O Festival do Guerreiro Supremo é um torneio de feras que dedicaram suas vidas à luta — disse. — Não importa os talentos naturais que você tenha, não acho que um simples treinamento seja o suficiente pra te preparar pra algo assim em tão pouco tempo. Além disso, esse nem é o tipo de força que você precisa. Então pensamos em um plano que seria perfeito pra você. Vamos te dar uma força multifacetada.

— Força… multifacetada? — repetiu a Princesa Murina em voz baixa. — E o que era isso sobre se preparar pro Festival do Guerreiro Supremo?

Ela era mesmo uma pessoa dócil. Eu tinha ouvido dizer que era amiga da Éclair, mas suas personalidades não tinham nada a ver.

— Claro que faremos tudo o que estiver ao nosso alcance, mas a sorte sempre pode influenciar em uma luta — disse, tentando me isentar de qualquer responsabilidade. Reduzir riscos fazia parte do meu trabalho. — O Festival do Guerreiro Supremo é um evento para os melhores dos melhores. Não posso garantir sua vitória.

— Do que é que você está falando? — perguntou a cavaleira que havia se apresentado como Karen. — Pediram a vocês que treinassem Sua Alteza Imperial. No entanto, não há necessidade de ela se tornar tão poderosa assim, já que tem a nós, a Ordem Zero. Tudo que ela precisa é ser capaz de se proteger, caso necessário.

— Hã? Você não recebeu o memorando?

— O quê?!

Karen me lançou um olhar fulminante. Ela era como o Franz, se ele fosse mulher. Talvez essa fosse a personalidade ideal para cavaleiros? Eu não queria ofender o orgulho de uma cavaleira, mas parecia que havia um mal-entendido ali.

Será que o imperador estava escondendo o fato de querer que a filha participasse do Festival do Guerreiro Supremo? Parecia plausível. Esse era o homem que escolheu a mim — o cara que causou um escarcéu no Encontro da Lâmina Branca — para protegê-lo (muito provavelmente ignorando protestos de seus conselheiros). Ele também não demonstrou o menor sinal de hesitação quando acabamos na Pousada Peregrina. Isso podia dar a impressão de que era carismático e mente aberta, mas eu tinha certeza de que ele só tinha uns parafusos a menos.

Eu não fazia ideia do que dizer pra conquistar os dois guardas da princesa imperial, então virei as costas pra eles e me dirigi à princesa silenciosa:

— Alteza Imperial, é preciso ter determinação pra ficar mais forte. Você nunca vai alcançar a vitória se estiver satisfeita com o mínimo.

E é por isso que eu nunca melhorava. Eu desistia fácil demais.

A Princesa Murina não respondeu ao meu comentário pretensioso, mas parecia imersa em pensamentos.

Espero que o imperador não ouça falar disso. Melhor só evitar causar confusão e torcer pra ela não levar muito a sério o que eu disse.

Provavelmente essa missão tava sendo mantida em segredo. Muita gente queria ver alguém como a princesa imperial morta. E além disso, com certeza tinha um monte de nobre que não ia gostar nem um pouco de saber que um caçador jovem como eu foi chamado pra ser mentor dela. E eu me perguntava se ela mesma aprovava esse arranjo. Alguém com o status dela tinha responsabilidades que faziam as minhas parecerem brincadeira. Ela nasceu no poder, mas isso também trazia seus próprios problemas.

Estávamos parados diante da porta da instalação de treinamento mais profunda do subsolo.

— Seu treinamento foi dividido entre os meus aliados de confiança — falei, me dirigindo àquela que muitos considerariam uma princesa lamentável. — Mas, se mudar de ideia quanto a isso, por favor, diga. Vamos fazer tudo que pudermos, mas seus guardas têm razão. A princesa imperial não precisa ser tão forte assim.

Então, por favor, não me culpe se isso não der certo.

— Já vou avisando: mesmo que desagrade seus guardas, ninguém vai pegar leve. — Meus amigos. — Enquanto o treinamento estiver rolando, status não vai importar. — Meus amigos.

— Estou preparada pra isso — respondeu a princesa imperial.

Certo. Tenho a palavra dela. Agora posso cobrar.

Em momentos assim, eu geralmente torcia pra nada acontecer. Mas nesse caso, se a Princesa Murina recebesse um treinamento meia-boca, isso também seria ruim. Só me restava rezar pra que meus amigos fizessem um bom trabalho.

Fiz o mínimo esperado e forcei um sorriso ao abrir a porta. Lá dentro estavam meus companheiros, parados em silêncio solene. Meus amigos de infância — todos membros dos Grieving Souls — eram dedicados à busca por força. Eles não tinham sido aceitos por grandes mentores por causa de talento nato, mas sim porque provaram seu valor.

Eu costumava esquecer disso, mas a Liz com seus sorrisos constantes, a Lucia na fase rebelde, o Luke com sua mania de dizer absurdos com a maior cara séria… todos estavam trilhando um caminho difícil. Força era algo com que eles não faziam concessões.

O clima no quarto gelado era de pura tensão, como num campo de batalha. Pra essa ocasião, usei meus privilégios como mestre do clã e reservei a sala inteira. Ela costumava ficar vazia, mas agora estava cheia de aparelhos estranhos que eu nem reconhecia.

— Estávamos ansiosos por sua chegada, Krai, Alteza Imperial.

Sitri tomou a frente como sempre. Ela se aproximou com um sorriso, mas isso não tornava a sala mais acolhedora. Ouvi a Princesa Murina engolir seco. Os dois guardas dela claramente estavam em choque.

Liz, como sempre alheia ao clima, sorriu com ferocidade e fechou o punho.

— É só isso? É isso que a gente vai moldar? Pode deixar, vamos ser bem minuciosos.

Ela estava mais animada do que eu esperava. Eu tinha planejado ficar e observar por um tempo, mas agora estava repensando essa ideia. Me convenci de que, com Lucia e Ansem presentes, as coisas provavelmente não sairiam do controle.

— Então tá — falei. — Tenho umas coisas pra resolver, então deixo com vocês. Luke, Liz, só não matem ela.

— O quê?! — gritou a Princesa Murina.

— Perdão?! — disse um dos cavaleiros. Os dois me lançavam olhares fulminantes.

Me senti muito, muito mal por fazer isso, mas eu ia morrer se ficasse mais tempo naquela sala.

— Entendido! Essa é minha segunda pupila, pode deixar comigo! — disse Liz num tom animado.

— Pode ficar tranquilo, Krai. Temos o Ansem aqui, então tá tudo certo — falou Luke com um sorriso.

Incrível. Não me sinto nem um pouco mais tranquilo. Nem o Ansem pode ressuscitar os mortos.

Eu ainda tinha minhas dúvidas sobre sair assim, mas calei a voz da consciência e fui embora acenando, antes que Karen ou Cindy falassem qualquer coisa.

Corri escada acima até meu escritório, onde a princesa imperial e seus guardas não podiam me alcançar. Me esperando estava minha mente — Eva — que parecia de mau humor. Sendo a mais sensata do nosso clã, ela me apoiava tanto oficialmente quanto pessoalmente.

— Krai, você tem certeza disso? — ela perguntou no instante em que me sentei no meu lugar de sempre. — Alguns dos seus amigos, bom, até outros caçadores já reclamaram deles. E agora você deixou alguém da família imperial com eles. O imperador e os parentes dele até podem ser conhecidos por sua magnanimidade, mas ainda têm o orgulho da nobreza.

Ela tinha razão. Eles eram famosos por serem uma linhagem de guerreiros, mas isso não mudava o fato de serem nobres. Eles podiam usar isso contra mim a qualquer momento. Igual àquela vez em que a Éclair tentou roubar minha máscara no leilão usando o status dela.

Por mais superficial que fosse, eu ainda era o mestre do clã Primeiros Passos, o que significava que minhas decisões afetavam a administração do grupo. Era natural que a Eva se preocupasse com o fato de eu ter delegado essa missão a um grupo conhecido por ser violento.

— É isso — falei. Tive uma ideia. — Se der ruim, eu assumo a responsabilidade e renuncio como caçador de tesouros.

— Hã?

O cargo de mestre do clã foi jogado nas minhas costas porque a ideia de criar esse clã tinha sido minha. Mas ele já tinha se transformado em algo grande demais pra eu conseguir lidar.

Fui eu quem aceitou o pedido do imperador. Fui eu quem confiou aos meus amigos a tarefa de orientar a princesa imperial. Qualquer coisa que desse errado era responsabilidade minha. Por isso, se alguma coisa saísse dos trilhos, eu poderia assumir a culpa e me demitir. Depois de tanto tempo querendo largar tudo, mas sem ter permissão pra isso, eu teria algo a ganhar independentemente de tudo dar certo ou errado.

— Tá brincando, né? — disse Eva.

— Não seja tão pessimista. Se eu morrer, você vira a mestre do clã.

— Eu não quero isso. Se acontecer, eu também vou sair. Você acha que todo esse esforço foi por quem, hein…

A Eva parecia séria. Faz sentido. Afinal, fui eu quem implorou para—digo, recrutei ela.

— Você se importa mesmo comigo — comentei.

— P-Porque eu…

Hm. Acho que virei dependente da Eva.

Decidi adiar minha aposentadoria por enquanto. Me recostei na cadeira e resolvi matar tempo com a Relíquia que ganhei da Irmãzinha Raposa—meu Smartphone.

 

No centro da capital ficava o Castelo Imperial. Os reparos dos estragos causados pelo Inferno Abissal estavam progredindo bem, e a segurança estava sendo reforçada.

Franz Argman estava diante do atual Imperador de Zebrudia, Rodrick Atolm Zebrudia. Os dois se conheciam desde antes de Rodrick subir ao trono. Havia uma diferença clara de status entre a família imperial e a Casa Argman, mas a linhagem real tinha um histórico de escolher seus braços direitos com base na lealdade e na habilidade de falar o que era necessário. Franz foi escolhido por ser direto e não medir palavras.

— Sua Alteza Imperial está acompanhada de guardas capazes, mas confiar ela àquele homem ainda é perigoso demais — disse Franz.

No corpo imponente, Franz usava um conjunto de armadura Relíquia que absorvia todo o dano destinado a uma pessoa específica, não importando a distância. Era um dos bens mais valiosos da Ordem Zero, passado de um capitão para o outro.

— Você ainda não confia nele, Franz? — perguntou o imperador com uma careta. — Aquele homem já nos salvou uma vez.

— Mas a gente só precisou ser salvo por causa dos planos dele. Tudo o que ele fez foi apagar o fogo que ele mesmo começou. No mínimo, ele não devia ter te exposto a uma situação tão perigosa. Aquele homem só liga pra si mesmo.

Ele recebeu a chance de proteger o imperador — a maior honra que um caçador poderia ter — e ainda apareceu com aquela camisa ridícula. Teve a ousadia de trazer agentes da Raposa para perto de Sua Majestade. Tudo que ele faz e fala desafia a lógica.

Franz já tinha lidado com todo tipo de pessoa — mercadores, nobres, você escolhe. E ainda tinha recebido alertas prévios do Lorde Gladis sobre a natureza do Mil Truques. Mesmo assim, ao considerar que irritá-lo foi uma jogada calculada do Mil Truques, Franz passou a odiar ainda mais a ideia de conviver com aquele caçador. No mínimo, ele queria que aquele homem não fosse tão maldito irreverente!

— É exatamente por isso que eu acho certo confiar a Murina a ele — disse o imperador. — Esse tipo de espírito livre é necessário pra orientar alguém da família imperial com eficácia. Pensando bem, os mentores anteriores sempre passaram a mão na cabeça dela. Não dizem que as Mil Provações testam até os melhores caçadores?

Esse era um velho hábito dele. O Imperador Rodrick sempre teve a tendência de dar mais valor às habilidades marciais do que à liderança. Isso levou a um relacionamento amigável entre o império e os caçadores, o que trouxe prosperidade ao país, mas havia um limite até onde isso podia ir.

— Ridículo. Sua Alteza Imperial não é uma guerreira.

— Ainda assim, ela é fraca. Falta força pra traçar o próprio destino. O próprio Olho de Deus do Divinário Astral confirmou que a Murina atrai desastres naturalmente, mas o Mil Truques simplesmente tratou isso como imaginação. Eu espero grandes coisas dele.

O Divinário Astral de Zebrudia era uma divisão especial que cuidava de assuntos místicos ainda não totalmente compreendidos. Como o nome já indicava, eles se especializavam em astrologia para prever o futuro e já tinham antecipado vários desastres. Não conseguiam detectar todos os perigos possíveis, mas quando detectavam, raramente erravam.

“Olho de Deus” era um título especial dado a astrólogos com uma precisão excepcional. Foi por causa da palavra deles que Franz e o imperador acreditaram na má sorte natural de Murina — e também por isso que mantiveram essa informação em segredo.

A princesa imperial naturalmente atraía desgraças, mas se suas interações sociais fossem reduzidas ao mínimo e ela fosse mantida longe dos olhos do público, o impacto dessas desgraças podia ser contido. E era assim que Murina vivia.

Ela nunca reclamou, mesmo com a existência quase ignorada que levava. Não podia haver castigo maior pra alguém do sangue imperial do que ser jogada nas sombras. Mas isso foi considerado uma medida necessária. Zebrudia era uma monarquia absoluta, e por isso mesmo o imperador precisava colocar a nação acima de tudo.

— Estou de acordo, mesmo que haja apenas uma mínima centelha de esperança pra Murina — disse o imperador com pesar. — Do jeito que as coisas estão, ela não pode cumprir nenhuma das funções dela.

— Como desejar — respondeu Franz entre dentes cerrados, enquanto abaixava a cabeça.

Não era um assunto fácil para eles. Talvez fosse diferente para plebeus ou nobres comuns, mas para a família imperial, a incapacidade era um pecado. Se alguém não pudesse ser útil ao império, então devia ser eliminado antes que causasse algum mal. Mas nem mesmo um imperador conseguia permanecer indiferente diante do próprio filho.

Franz achava humilhante ter que depender de um homem que havia colocado o imperador em perigo, mas estava de mãos atadas diante da situação de Murina. A princesa imperial não tinha perfil para combate — ela era gentil demais.

A expressão de Rodrick passou de pesar para severidade.

— Está avançando na investigação da Raposa Sombria de Nove Caudas?

— Estamos. Começamos investigando aqueles dois agentes — o Contrafluxo e Kechachakka. Dado o perfil do nosso inimigo, mantive a equipe o menor possível pra reduzir as chances de vazamento de informação.

Raposa Sombria de Nove Caudas era uma organização absurdamente sigilosa. As identidades de seus membros e sua estrutura de comando estavam envoltas em mistério. O único motivo pelo qual seu nome era conhecido era porque eles próprios o anunciaram, depois de já terem se tornado uma força considerável. Se não fosse por isso, Zebrudia talvez ainda nem soubesse que existiam. Descobrir dois dos seus operativos durante a viagem a Toweyezant tinha sido um golpe de sorte para o império.

Raposas eram mestres em encobrir rastros. Mas se havia algo de que Franz tinha certeza, era que alguém com os talentos e o prestígio de Telm Apoclys não era um recurso descartável sem um bom motivo. Infelizmente para Franz, o Contrafluxo não havia sido capturado, mas ele tinha certeza de que a Fox não esperava que as identidades de seus membros fossem comprometidas. Era um avanço enorme comparado ao estado anterior de completa escuridão.

Quanto a Kechachakka, de acordo com a Associação de Exploradores, ele havia mostrado aos Mil Truques uma lista de caçadores confiáveis que poderiam ser bons candidatos para escoltar o imperador. Aparentemente, ficaram bastante surpresos quando ele escolheu Kechachakka. Em outras palavras, alguém dentro da Associação tinha inserido o nome de Kechachakka nessa lista. Eles já estavam virando cada pedra possível pra encontrar o traidor.

Depois de muito tempo sem progresso, as coisas finalmente estavam começando a se mover. Apenas um grupo seleto tinha sido informado de que o Contrafluxo e Kechachakka eram, na verdade, traidores. Eles precisavam agir antes que a Fox percebesse que dois dos seus tinham sido descobertos.

— E já terminamos de restringir nossa lista de suspeitos — disse Franz.

— Capturem-nos. Embora, suponho, nem seja preciso te dizer isso. Deve haver um motivo para uma organização que passou tanto tempo nas sombras ter feito uma provocação tão escancarada.

Em silêncio, uma chama de determinação ardia dentro de Rodrick Atolm Zebrudia. Usando métodos nada ortodoxos que cavaleiros como Franz jamais empregariam, o Mil Truques tinha encurralado Telm e Kechachakka. Mas o império tinha sua própria forma de fazer as coisas, assim como seus nobres. Eles não podiam simplesmente depender daquele caçador.

Franz fez uma reverência profunda antes de se retirar.

 

Nada pode ser conquistado sem pagamento. A dor é a companheira constante do crescimento.

Todo tipo de pessoa se reunia em Zebrudia, uma das maiores nações do mundo. Independentemente da ordem de sucessão, todos os membros da família imperial recebiam aulas com os melhores mentores disponíveis. Murina seguiu essa tradição e teve vários instrutores diferentes ao longo dos anos. Mas, ao contrário de seus irmãos, ela nunca demonstrou nenhum talento em especial. Não era incompetente, mas também não se destacava em nada. Em especial, faltava-lhe a postura de alguém da família imperial.

Essa era a avaliação sobre Murina Atolm Zebrudia, e ela sabia que era verdade. Todos os seus três irmãos tinham talentos condizentes com o sangue imperial. Já estavam colocando suas habilidades a serviço do império. Seria vergonhoso para Murina continuar enclausurada no Castelo Imperial por causa de sua má sorte inata.

E por isso ela fortaleceu sua determinação, dizendo a si mesma que, dessa vez, se tornaria alguém melhor. No entanto, antes mesmo que o treinamento começasse, sentiu essa determinação começar a ruir.

— Achou que podia trazer suas malditas babás? Esqueceu por que caralhos tá aqui? — gritou a Sombra Sufocada, como se fosse algum tipo de marginal.

— Proteger Sua Alteza Imperial é nosso dever. Pode ter certeza de que não temos intenção de interferir, contanto que ela não seja colocada em risco — respondeu Karen, com a voz tensa.

A Sombra Sufocada estava batendo de frente com os guardas de Murina. Karen até parecia estar mantendo a calma, mas a princesa imperial conseguia ver o quanto ela estava irritada. Karen nunca foi muito paciente pra começo de conversa, e agora estava ainda mais nervosa por não ter sido escolhida pra participar da conferência.

— É, e aposto que ela vai ficar bem forte sem passar por nenhum perigo, né?! O Krai me pediu pra fazer isso e eu não vou decepcionar ele!

— Isso depende do nível de perigo. Tenho plena consciência de que “treinamento seguro” é um paradoxo! Mas preciso dizer que não gosto do tom que você está usando com Sua Alteza Imperial!

A tensão no ar ficou ainda mais pesada. Parecia que qualquer uma das duas poderia explodir a qualquer momento. As palavras nem eram direcionadas a ela, mas Murina conseguia sentir o coração disparar.

—Ela não vai chegar a lugar nenhum com meia dúzia de esforços! E o que você sabe sobre força? Tá perdendo tempo se não estiver colocando a própria vida em risco!

—Você está passando dos limites!

—Diferente de você, a gente tem o que fazer! Não me importa se ela é uma princesa ou se não quer estar aqui! Eu já sou ocupada o suficiente, então se não tem nada de útil pra me mostrar, pelo menos sai da porra do meu caminho!

Karen deu um passo à frente e Cindy se preparou para a briga, mas Liz Smart não recuou nem um centímetro. Murina não sabia o que fazer. Ter que escolher entre uma de suas novas mentoras ou suas guarda-costas a deixou entre a cruz e a espada. E o que Liz quis dizer com “não importa se ela não quer estar aqui”?

Batendo palmas, Sitri entrou no meio do fogo cruzado e disse:

—Agora, agora, vamos nos acalmar. Não temos intenção de ferir Sua Alteza Imperial. No entanto, Liz tem razão em dizer que estamos com o tempo apertado. Com o prazo que temos, fazê-la chegar a um nível onde possa competir no Festival do Guerreiro Supremo simplesmente não é viável com métodos convencionais.

—Lá vem de novo! Que papo é esse de competir no Festival do Guerreiro Supremo?! A gente nunca ouviu nada sobre isso!

—De fato. Ainda assim, fomos contratados pelo Krai para levar Sua Alteza Imperial até esse nível, e eu montei um plano para isso. Em outras palavras, vamos ter que tomar certas liberdades com as quais nosso cliente talvez não esteja totalmente confortável.

O sorriso dominador e a voz tranquila de Sitri acalmaram Karen, enquanto Cindy desviava o olhar de Liz para a Alquimista.

—Sim, mas—

Antes que Karen pudesse continuar, houve um estrondo. No instante seguinte, Murina percebeu que a cavaleira estava no chão. Liz levantou a perna e, sem nenhuma piedade, a deixou cair com tudo na nuca de Karen. A cabeça dela afundou no chão e seu corpo começou a tremer. Cindy estava prestes a gritar, com o sangue sumindo de seu rosto, quando Luke, a Espada Proteana, a agarrou num mata-leão.

—O-o que você—

—Irmão, poderia reviver a Karen antes que ela morra? —disse Sitri. —Não se preocupe, Sua Alteza Imperial, estamos com o tempo contado, então só estamos removendo obstáculos. Se tivermos que lidar com reclamações o tempo todo, nunca vamos sair do lugar. Isso é uma decisão do Krai, então por favor confie que tudo vai acabar bem.

—Ahhh, lá vem você com a violência de novo —suspirou a Maga de cabelos negros. Essa era Lucia, o Avatar da Criação.

Murina viu um homem tão grande que teve que esticar o pescoço pra enxergá-lo direito. Era Ansem, o Imutável. Ele soltou um grunhido severo, mas parecia que Liz não ia parar.

Enquanto Murina tentava acompanhar a situação, Luke rapidamente amordaçou Cindy e a prendeu com correntes. Ansem tirou Karen do chão e lançou um feitiço de cura em sua cabeça ensanguentada. Algo na maneira como ele fazia isso sugeria que já estava acostumado.

As pernas de Murina cederam e ela escorregou até o chão. Toda sua determinação anterior tinha sumido.

—Muito bem, Sua Alteza Imperial —disse Sitri, a Ignóbil, com um largo sorriso. —Agora que estamos livres de empecilhos, não podemos desperdiçar um segundo sequer até o Festival do Guerreiro Supremo. Então, sem mais delongas, vamos começar os testes.

Agora que o treinamento ia começar, a primeira coisa que disseram a Murina foi para sair da sala de treino. Murina não chamava muito a atenção e raramente tinha aparecido em público. Com um capuz, era quase impossível alguém reconhecê-la.

O membro mais chamativo do grupo era o gigante Ansem. Seus passos ecoavam como trovões enquanto ele caminhava carregando um saco onde tinham enfiado Karen e Cindy. Se o Imutável não fosse conhecido por sua bondade, todo mundo provavelmente sairia correndo de medo.

—E-ei, Lizzy, o que a gente tá fazendo? E quem é—?

—Hm? Não precisa se preocupar com isso —respondeu Liz para a caçadora de cabelos negros com quem se encontraram no caminho. —Treinar dois não é tão diferente de treinar um, então vou levar você junto também.

Murina tinha ouvido que a Sombra Sufocada tinha uma aprendiz, e aparentemente era essa garota tímida e patética. A garota chamada Tino olhou para Murina e pareceu perceber algo.

—Com isso, você quer dizer que ela é a—?

—T? —interrompeu Sitri. —Não precisa dizer. E se isso atrai curiosos desnecessários?

—S-sim, Siddy.

A voz de Sitri era perfeitamente calma, mas ainda assim causava medo em Tino. Mesmo assim, Tino continuava lançando olhares na direção de Murina. Por algum motivo, Murina sentia uma estranha afinidade com a caçadora. Parecia que não era por ser uma forasteira que a Grieving Souls estava pegando pesado com ela.

Depois que saíram do prédio, entraram em uma carruagem que tinham preparado. Mas, depois que Murina subiu, não ouviu ninguém a seguindo. Olhou para fora e viu o grupo se preparando para correr. Diziam que caçadores treinavam todos os dias. Murina ainda não tinha certeza sobre o comportamento violento da Grieving Souls no campo de treinamento, mas era óbvio que estavam comprometidos em ficar mais fortes. Isso, de certo modo, a tranquilizou.

—Eu não deveria correr também? —perguntou ela para Sitri, a única outra pessoa dentro da carruagem. Murina sabia que melhorar os atributos era mais importante do que aprender técnicas.

No entanto, Sitri pareceu surpresa com a pergunta.

—Ah, não. Nesse ponto, um pouco de músculo não vai fazer tanta diferença. Se você se cansar agora, talvez não aguente o que está por vir. Então, fique quietinha por enquanto.

—E-eu entendo…

Karen e Cindy se remexiam dentro do saco enquanto a carruagem começava a andar lentamente.

— Muito bem — disse Sitri, batendo palmas. Ela olhava Murina diretamente nos olhos. — Permita-me tomar um momento para contar nossos planos. Ou melhor, os planos que criamos para atender ao pedido do Krai. Agora, não vai fazer diferença prática a gente contar ou não…

— T-Tudo bem…

Parecia que Sitri era uma espécie de coordenadora do grupo. Talvez Lucia estivesse conduzindo a carruagem enquanto o resto do pessoal esperava do lado de fora, para que Sitri e Murina pudessem conversar em paz. Mas a princesa imperial estava cheia de dúvidas. O que Sitri quis dizer com “não vai fazer diferença prática”? Murina não estava ali para ter aulas? Ela nem sabia por onde começar.

— Alteza Imperial — disse Sitri —, o mais importante para um caçador de tesouros se tornar forte é aumentar seus atributos. Mas não se trata de musculação. Veja bem, músculos atrapalham a circulação de mana. Para um mago, um corpo musculoso não é apenas desnecessário — é um empecilho. Esse é só um exemplo, mas espero que já tenha entendido que esforço sem propósito não é esforço de verdade.

Seus olhos estavam sérios, e ela falava com convicção.

Esforço sem propósito. Murina já tinha recebido todo tipo de aula de vários mentores diferentes, tudo em nome de se tornar mais forte e descobrir seus talentos. Ela não achava que essas experiências tinham sido inúteis, mas talvez essa pessoa diante dela as considerasse um desperdício.

Apesar de tudo, Murina ainda era da família imperial. Ela tinha fácil acesso a instrutores renomados, que estariam fora do alcance até mesmo de certos nobres. A falta de resultados imediatos nunca tinha sido motivo para desistir. E agora surgia uma ideia completamente nova — ficar forte rapidamente.

Endireitando a postura, Murina prestou atenção para não perder uma única palavra.

— O que precisamos fazer não é te mostrar técnicas de espada ou te ensinar magia — continuou Sitri, em voz baixa. — Uma coisa simples já basta. Alteza Imperial, você precisa absorver material de mana e então usá-lo de forma eficiente.

Para Murina, isso soava óbvio demais.

— Material de mana? Por que não disse logo—

— Você não entendeu. — Os olhos de Sitri brilhavam. — Alteza Imperial, só absorver não basta. O material de mana fortalece a pessoa conforme seus desejos. Alguém que quer velocidade vai se mover como um raio, alguém que quer se destacar em magia vai ter um fluxo de mana excelente, e quem jurou proteger vai ganhar uma resistência avassaladora. Dá até pra aumentar o busto. Mas o poder só vem para quem tem uma vontade forte. É isso que separa um campeão do resto!

Vontade forte. De fato, talvez fosse exatamente isso que Murina não tinha.

Era incentivado entre os nobres do império que entrassem em cofres de tesouro para colher os benefícios do material de mana. A maioria fazia isso, e Murina não era exceção. Mas ela sabia que os efeitos sempre tinham sido limitados. A única vez em que sentiu uma mudança de verdade foi depois do encontro com a Peregrine Lodge.

Mas isso trazia a pergunta: como se fortalece algo tão intangível quanto a vontade? Ainda assim, Murina estufou o peito, mais esperançosa do que estivera há pouco tempo.

— E é aqui que entra a ideia sem precedentes do Krai! — disse Sitri. — Nossa vontade atinge o auge quando nosso instinto de sobrevivência é ativado! Ou seja, você pode tirar o máximo do material de mana entrando em cofres de tesouro acima do seu nível! A lógica é simples, mas ninguém tentou isso até hoje, mesmo depois de tantos anos lidando com o material de mana. Princesa Murina, você será a prova viva da proposta do Krai! Não precisa se preocupar com nada. Vamos fazer um teste com a T primeiro!

— O quê?! Hã?!

Um cofre de tesouro?! Como assim?!

Murina tinha quase certeza de que isso nunca tinha sido feito não porque ninguém pensou nisso, mas porque era uma ideia absurda. As aparições cruéis de cofres de alto nível podiam despedaçar até mesmo um caçador experiente com um único golpe. Esse tipo de treinamento até podia ser seguro em um cofre de baixo nível, mas nesses o material de mana não era tão denso.

Então, como se estivesse ditando uma sentença de morte, a Ignóbil disse:

— Você não precisa fazer nada, apenas segure firme com toda sua força. Caso contrário, pode acabar morrendo.

Algumas horas depois, a carruagem parou. Murina desceu e ficou boquiaberta com o que viu. Uma cortina densa de pétalas brancas caía ao redor, flores de todos os tamanhos cobriam o chão. Como se fosse contida por uma parede invisível, a vegetação parava de forma precisa num determinado ponto. Parecia um cenário de outro mundo.

— Uma barreira mantém isso contido — explicou Sitri. — É perigoso demais deixar essa influência se espalhar. Ainda assim, esse cofre é bem grande.

O sangue sumiu do rosto da Tino e ela ficou em silêncio. Diante delas estava um cofre de tesouro de alto nível, conhecido por suas verdadeiras tempestades de pétalas. Ele surgiu alguns anos atrás e virou obsessão por um tempo em todo o império. Desde então, já tinha sido conquistado várias vezes, mas ainda era reconhecido como um dos cofres mais perigosos de Zebrudia. Mesmo alguém sem muita familiaridade com o assunto, como Murina, conhecia esse lugar.

— Esse é o Jardim Prisma — murmurou ela. — De onde vêm as Flores Firmamentais.

— Vamos aproveitar a oportunidade pra treinar nossa resistência juntas — disse Sitri. — Não existe lugar melhor. Sua visão é limitada, então você precisa usar todos os seus sentidos. As aparições são fortes, então você vai ter que lutar com tudo que tem. E ainda tem o pólen, que pode te atrapalhar temporariamente. Esse é um lugar fácil de morrer. Veja, Alteza Imperial, seu tremor é a prova do medo instintivo!

— O quê?

Murina não tinha percebido que estava tremendo. Ela nem tinha entrado no cofre do tesouro ainda, mas sua cabeça latejava, o coração disparava, a garganta estava seca e o corpo parecia fraco. No entanto, ali perto, Tino parecia estar no mesmo estado. Ao que tudo indicava, nem uma caçadora intermediária estava melhor preparada para lidar com aquele cofre do que Murina. De certo modo, pensar nisso era reconfortante para ela.

— Bom, que tal começarmos com umas habilidades de Ladino? — disse Liz com um bocejo. — Se você não melhorar seus sentidos, vai acabar morrendo, essas coisas. Ah, é. Seu crescimento pode ficar todo torto se tiver coisa desnecessária, então vou confiscar suas armas.

E assim começou a semana mais longa da vida de Murina.

 

— Atchim!

Será que estão falando de mim?

— Acho que vai dar tudo certo — falei enquanto esfregava o nariz.

Sem mais nada pra fazer, abri uma revista. Senti como se um peso tivesse sido tirado das minhas costas. Não que eu estivesse totalmente livre dos meus fardos, mas já tinha feito tudo que estava ao meu alcance.

— Krai, você tem certeza disso? — perguntou Eva. Eu nem estava fazendo nada, mas mesmo assim ela me olhava com preocupação. Isso nem dizia respeito diretamente a ela, mas ela ainda parecia mais inquieta do que eu. Suas preocupações eram compreensíveis. Eu era o mestre do clã, e isso significava que qualquer mancha na minha reputação afetaria todo o Primeiros Passos. Mas não havia nada que nós dois pudéssemos fazer além de seguir o fluxo.

— Relaxa, eu confio nos meus amigos — respondi. — Eles vão fazer um trabalho bem melhor do que eu faria.

Eu não sabia exatamente quais eram os planos deles, mas sabia que eram dedicados. Talvez recebêssemos algumas reclamações por terem pegado pesado demais com a princesa imperial, mas se não queriam isso, não deviam ter pedido aulas com caçadores de alto nível. Mais uma vez, minha fortaleza lógica estava impecável. Embora talvez não fosse algo pra se orgulhar.

Ela me olhou e disse:

— Não é isso que me preocupa. Eu sei como você é criterioso com essas coisas, e sei que não vai deixar o status do cliente te impedir de fazer o que acha certo. O que me preocupa é o Festival do Guerreiro Supremo. É um torneio renomado, mas resultados ruins podem afetar negativamente o nosso clã.

Entendo, entendo. Entendo mesmo?

No fim das contas, entender ou não não mudava minha resposta.

— Ha ha ha, Eva, você se preocupa demais.

— Só pra confirmar, Krai, você está mesmo confiante com isso, né? Todo ano, esse torneio atrai os melhores dos melhores.

— Hã? Nem um pouco.

Como eu poderia estar? Estamos falando da Princesa Murina, afinal. Não dá pra fazer milagres em tão pouco tempo. Desde a nossa conversa inicial, não tive mais notícias dela, mas parecia que havia uma chance da Liz acabar participando do torneio também. Mas eu tinha quase certeza de que o imperador não esperava que a filha ganhasse o campeonato ou algo assim.

— Fica tranquila, se tudo der errado, eu me humilho. Já fiz tudo que podia, então não me arrependo de nada.

Eva me olhou, incrédula.

— Tudo?

Ei, não olha assim pra mim.

Achei que depois de tanto tempo ela já teria se acostumado com minhas respostas vagas, mas suponho que isso não seria a Eva que eu conheço.

— Quer que eu investigue os outros possíveis participantes? — perguntou ela, meio hesitante.

No Festival do Guerreiro Supremo, todas as lutas eram um contra um. Os participantes podiam usar qualquer arma e estilo que quisessem, o que fazia com que muitas batalhas fossem decididas pela compatibilidade entre os métodos. Os nomes dos competidores ainda não haviam sido anunciados oficialmente, mas talvez Eva tivesse algum contato.

— Mmm. Não precisa. Não tô tão interessado assim em quem vai estar lá, e é mais divertido quando é surpresa.

— Hã?!

Eu ficaria com peso na consciência de fazer Eva gastar energia com isso, e mesmo que soubéssemos quem a Murina enfrentaria, não acho que daria tempo de bolar contraestratégias. Provavelmente os confrontos ainda nem foram definidos.

— Além do mais, isso não seria justo. E o império adora essa coisa de cavalheirismo.

Burlar as regras só faria o Franz gostar ainda menos de mim. Não valia a pena arriscar. Mas Eva ainda não parecia convencida.

— Pelo que sei, investigar possíveis oponentes é um procedimento padrão — disse ela.

Chamei-a com a mão e mostrei a revista que estava lendo. Era um guia turístico de Kreat, a cidade onde acontecia o Festival do Guerreiro Supremo.

— O que me preocupa mesmo é que é a primeira vez que vou pra Kreat. Acho que vou aproveitar a oportunidade pra fazer um pouco de turismo. Você conhece algum lugar legal?

Eva suspirou. Foi um suspiro tão longo que acho que até a alma dela foi junto.

— Krai, por que você é assim?

Eu não via motivo pra ela não tirar uma folguinha de vez em quando. Mas ela não precisava se preocupar tanto. Se algo desse errado, eu assumiria a responsabilidade. Era o mínimo que eu podia fazer.

Então, a Relíquia que ganhei da Pequena Irmã Raposa — meu Smartphone — começou a vibrar. Entreguei a revista pra Eva e tirei o aparelho o mais rápido que consegui.

— Desculpa, Eva. Recebi uma mensagem. Preciso responder rapidinho.

— Perdão?

Tenho certeza de que era assim mesmo que as pessoas da Era das Armas Físicas usavam essas coisas. “Mandar mensagem” era um meio de comunicação prático e amplamente usado. Já meio acostumado, toquei no ícone e vi que tinha recebido uma porção de mensagens.

A maioria era de remetentes desconhecidos e muita coisa não fazia sentido nenhum. Entre os pesquisadores de Smartphone, essas eram conhecidas como “mensagens de spam”. Abrir uma dessas sem cuidado podia fazer seu aparelho explodir, então era bom ter cautela.

A mensagem mais recente era da Raposinha, que devia estar servindo como uma deusa em Toweyezant. Na verdade, ela e o Raposão eram as únicas pessoas nos meus contatos. Dizia apenas “Cresceu”, mas vinha com uma imagem anexa de uma árvore gigantesca. Não fazia muitos dias desde que saímos de Toweyezant, mas se ela ainda estava naquela cidade, provavelmente já estava cercada por árvores agora.

— Olha. Ela fez todas essas árvores crescerem.

— Oh.

— Tenho que responder rápido. Mensagens precisam ser respondidas em até cinco minutos. Se não der, tem que dizer que a bateria acabou. Essas são as regras.

Respondi com um rápido “Que legal.” Eu estava mexendo nesse negócio desde que peguei ele, então fazer algo simples assim já era fácil pra mim. No momento em que enviei a mensagem, uma melodia estranha tocou no meu Smartphone.

— Ah, dessa vez é do irmão mais velho. Não é fácil ser popular.

— Tenho algo para verificar, então peço licença.

— O que é isso? “Esses dois estão bem animados. Você podia aprender com eles, Sr. Cautela. Eles são humanos!” Ora, é claro que Telm e Kecha são animados! Agora preciso responder. “Mais Relíquias, por favor.”

Ainda tinha muita coisa que eu não entendia sobre esse aparelho, mas o Smartphone era algo maravilhoso. Dava pra sonhar com as possibilidades. Se eu conseguisse um pra cada membro do grupo, nunca mais teríamos problema pra nos encontrar. Queria ter nascido numa era tão conveniente assim.

Comecei a imaginar como seriam essas eras antigas quando, de repente, lembrei que estava conversando com a Eva. Olhei ao redor, mas ela tinha desaparecido em algum momento. Olhei para a pequena Relíquia nas minhas mãos e franzi a testa.

— Entendi. É assim que as civilizações caem. Conveniência tem hora e lugar.

Coletar informações era parte indispensável da caça. Cofres de tesouros eram dungeons vivas e às vezes se tornavam drasticamente mais ou menos hostis em pouco tempo. Caçadores de tesouros sempre mantinham os ouvidos atentos, tanto por lucro quanto pela própria curiosidade — o que os definia. Foi assim, por exemplo, que a notícia de que eu estava de olho naquela máscara no leilão de Zebrudia se espalhou rápido.

Quando entrei no lounge, vi que um dos nossos melhores grupos, a Obsidian Cross, estava ocupando uma mesa. Sven Anger se levantou e acenou com os braços enquanto vinha até mim.

— Krai, ouvi dizer que você vai participar do Festival do Guerreiro Supremo. É verdade?!

— Quem te disse isso?

— Quem? Ah, a Liz. Ela estava correndo por aí gritando isso.

— Liz…

Que bola de energia incontrolável. E ainda por cima com informações erradas.

— Não, não vou participar. Só vou assistir. Até eu quero ver o que os melhores têm a oferecer.

— É mesmo? Bom, isso também é surpreendente de certa forma.

Pra maioria dos Nível 8, não era nada estranho querer participar de um grande torneio de combate. Esses boatos falsos nem teriam força se não fosse assim. Mas eu não era um Nível 8 comum. Na situação certa, até um Nível 1 podia me derrotar.

— Isso é só entre nós — disse em voz baixa —, mas não sou eu quem vai participar.

Sven me olhou como se não tivesse entendido direito.

— Ah, é… a Liz comentou que ela e alguns dos seus amigos talvez aparecessem.

Não era bem isso que eu queria dizer, mas também não podia simplesmente contar que a princesa imperial ia entrar na disputa. Suspirei, resignado com o fato de que todo mundo ia acreditar no que quisesse.

— Sabe, temos muitos caçadores com timing péssimo. Tipo você. E o Ark. Vocês nunca estão por perto quando eu preciso.

— Hm? O que isso quer dizer?

— Eu podia ter evitado um monte de estresse se o Ark Brave ou a Obsidian Cross estivessem disponíveis. Sinceramente, que dor de cabeça. Não queria ter tomado medidas tão arriscadas, mas olha eu aqui.

Sven definitivamente tinha parte da culpa pelo que quer que a princesa imperial estivesse passando. Se ele e o grupo dele estivessem por perto, eu não teria confiado a Princesa Murina a um grupo com a Liz e o Luke.

— Para de ser tão sinistro! — gritou Marietta. — E não joga a culpa na gente!

— Fala logo! — berrou Sven. — O que você aprontou dessa vez?!

Já era tarde pra gritar. O dado já estava lançado.

— Bom, se você aprendeu a lição — disse com um suspiro à la durão —, da próxima vez esteja no lounge quando eu precisar.

— Sven, não acha que está na hora da gente dar uma lição no nosso CM? — disse Henrik (acho), o Clérigo e membro mais novo da Obsidian Cross, com uma cara cansada demais pra alguém fazendo ameaças.

Mas que beleza, nem sei se isso foi uma piada.

— Tô brincando, tô brincando — disse ele. — Aliás, Sven, vamos no Festival do Guerreiro Supremo?

— Hm. Bem, nossa agenda está livre por enquanto. Que tal vermos do que nosso CM convencido é capaz?

Eu acabei de dizer que não vou competir!

Eva, Sven, todo mundo via algo em mim que nem eu via. Mas eu estava encarregado do treinamento da princesa imperial. Talvez os resultados dela fossem uma espécie de reflexo do que eu era capaz de fazer? Talvez?

Foi então que um grito agudo ecoou pelo lounge.

— Aaah! Humano fracote! Vai mesmo participar do Festival do Guerreiro Supremo, senhor?

— Você nunca descansa, hein, Mil Truques? Como membros do seu clã, cabe a nós oferecer assistência.

Quem entrou correndo foi minha salvadora durante o trabalho de escolta do imperador, Kris Argent, e sua líder de grupo, Lapis Fulgor. Sendo Espíritos Nobres, eram lindas, e só a presença delas deixava o lounge mais iluminado. Infelizmente, não eram boas candidatas para treinar a princesa imperial, já que… bem, digamos que faltava um pouco de educação. Eu sabia que, lá no fundo, eram boas pessoas, mas eu precisava de gente que fosse boa por fora também.

—Ah, não estava procurando por vocês duas —eu disse.

—A gente nem se vê desde que voltamos pra capital e a primeira coisa que você faz é arrumar briga?! Senhor?!

Nem tinha me tocado que já fazia tanto tempo assim. Também tinha esquecido completamente que tinha prometido sair pra beber.

Kris avançou até mim e enfiou o dedo no meu peito.

—Por que não veio me ver? Senhor? Eu fiquei de cama!

—Você ficou? Eu teria ido se tivesse me chamado.

—Não vou fazer isso. Não sou eu que tenho que correr atrás! A gente só foi companheiro de equipe durante aquela missão. Senhor.

—É, uhum.

Já tinha ativado meu modo padrão de sorrir e acenar, tendo abandonado qualquer esperança de entender o que estava acontecendo.

—Durante a missão, quando você ficou sentado enquanto eu fazia todo o trabalho pesado, não me diga que era porque você tava se preparando pro Festival do Guerreiro Supremo!

—É, uhum?

Kris tava vermelha de raiva, falando daquele jeito rude de sempre, mas a voz melódica dela suavizava tudo.

—Você vai mesmo participar? Senhor? Duvido muito que um cara que age feito um idiota na frente do imperador ligue pra glória!

—É, uhum.

Ela estava certa. Eu realmente não me importava muito com glória. Isso geralmente vinha acompanhado de privilégios e obrigações que eu não sabia lidar. Mas também não me lembrava de ter agido feito um idiota na frente do imperador.

Pelo visto, Kris não gostou nada da minha resposta, e estava ficando cada vez mais exaltada. Lapis já tinha desistido de conter a Kris e só deu de ombros pra mim. Sven parecia conformado. Ignorar as reações deles fazia a Kris parecer incrivelmente infantil.

Ah, tudo bem. Já estamos acostumados com isso.

—O Festival do Guerreiro Supremo é famoso até entre os Grieving Souls! Um campeão do nosso povo vai competir! Um molenga feito você só vai se machucar! Senhor! Tem certeza que não vai só assistir—Yah?! O quê? N-Não encosta em mim! J-Já tá perdoado, então para com isso! Ah! Ahaah!

Kris se contorceu de forma exagerada. Pelo visto, a coisa que eu mais entendia era essa Nobre Espírito felina. Sem pensar muito, estendi a mão e comecei a fazer carinho na cabeça dela. O cabelo prateado parecia seda e era geladinho ao toque, uma sensação bem agradável.

Lágrimas se formaram nos olhos dela, e o rosto ficou corado.

—T-Tá bom! Senhor! Eu vou lá te apoiar! Então para com isso! Paaara! Pelo menos pega mais leve!

Pois bem, mal posso esperar pra ver a cara dela quando descobrir que quem vai participar é a princesa imperial, e não eu.

 

Numa certa cidade, havia um prédio com décadas de idade. Dezenas de sombras estavam sentadas ao redor de uma grande mesa. Apesar da idade do edifício, não havia um grão de poeira sequer naquele cômodo. Era uma prova de que, embora fosse um local usado em segredo, também era frequentado com regularidade. Não havia nenhuma janela — a única fonte de luz era uma lanterna em cima da mesa.

—É verdade que o plano falhou? —perguntou uma voz grave de uma figura mal iluminada.

—Os detalhes são incertos, mas a conferência terminou sem incidentes e Rodrick está ileso. Só há uma conclusão possível.

Altura, gênero, idade… as figuras reunidas variavam bastante. Mas todas tinham uma coisa em comum — todos usavam máscaras de raposa. As máscaras diferiam em forma, cor e pequenos detalhes. Mas elas serviam como prova da afiliação ao mesmo grupo.

Raposa Sombria das Nove Caudas. Uma organização secreta que se escondia nas sombras mais profundas, agindo sob o manto da escuridão. Reunidos ali estavam alguns dos seus membros — conhecidos como Raposas — vindos de várias partes do mundo. Agora, estavam ousando fazer uma reunião presencial.

—Pensar que o Contra-Cascata era um dos nossos. Mas não entendo como um dos magos mais talentosos da capital imperial pôde fracassar. Se chegou tão perto, como a tentativa de assassinato falhou?

A Raposa era uma organização baseada em sigilo absoluto. Os membros eram divididos em patentes chamadas “caudas”. Quanto maior o número da cauda, mais alta era a patente. E isso significava maior acesso à informação e mais autoridade.

Como regra geral, os membros de patentes mais baixas não sabiam a identidade dos superiores. Mas, dessa vez, a informação vazou por conta do fracasso da operação. A tentativa de matar o imperador foi liderada por um membro da sétima cauda — alguém cotado para subir à alta cúpula da Raposa. Mesmo naquela sala cheia, só uma pessoa sabia que o Contra-Cascata era uma Raposa — alguém da mesma cauda.

—Mmm. O Contra-Cascata pisou feio na bola.

Todos os olhares se voltaram para quem falou, um homem grande com máscara dourada — o líder da operação atual.

—Temos outros contatos influentes. Temos outras pessoas dispostas a se sujar. Mas ele era um dos nossos melhores assassinos. Até caçadores de alto nível eram tarefa fácil pra ele. Só com a magia, ele já tinha capacidade de chegar à mesma patente que eu! Gente assim não aparece todo dia.

Foi uma grande perda. Telm tinha a confiança de parte da nobreza e um feitiço único capaz de criar clones. Um assassino que podia apagar qualquer um do mapa era um ativo de valor incalculável. Mas havia um problema ainda maior.

—E não para por aí. Telm trouxe o Chamador de Dragões com ele. Perdemos duas peças insubstituíveis! Nem preciso dizer o quanto isso vai impactar nossos planos.

O Contra-Cascata certamente era material de alta cúpula, mas seu parceiro, o Chamador de Dragões, também era extremamente valioso para a organização. Que melhor maneira de semear o caos na sociedade do que com o poder de invocar dragões — as criaturas mais poderosas de todas? Dragões sempre atraíam atenção, e isso abria brechas para todo tipo de ação.

A operação atual tinha sido planejada levando em consideração o Chamador de Dragões, mas agora isso não aconteceria por causa do fracasso de Telm.

— As caudas superiores não estão nada satisfeitas — continuou o homem. — A operação da Contra-Cascata era de extrema importância. A morte do imperador teria enfraquecido Zebrudia e sua posição teria sido prejudicada se a conferência tivesse sido cancelada! Mas olha só o que aconteceu! O imperador ainda está vivo e a conferência aconteceu como programado! Nossos agentes provavelmente também tiveram suas identidades comprometidas! É o maior fracasso da nossa história!

O assassinato do Imperador Rodrick era tão importante que Telm teria sido recebido nas mais altas esferas da Raposa se tivesse conseguido. A influência e o tamanho da Raposa existiam por causa de seus feitos. Um fracasso desse porte tornava a organização menos atraente, enfraquecendo-a como um todo.

— Vamos continuar como planejado. — O homem bateu a mão na mesa. Sua voz era baixa e intimidadora, os olhos brilhando com intensidade. — Essa é uma operação gigantesca. Tudo que fizemos até agora vai parecer brincadeira de criança. O fracasso da Contra-Cascata foi totalmente inesperado. Não podemos cometer outro erro.

— Mas Galf — um dos outros membros objetou —, o Festival do Guerreiro Supremo é um encontro de todo tipo de gente mortal. Não é perigoso seguir com essa operação agora que já estamos enfraquecidos? Se há uma grande chance de fracasso, devíamos considerar adiar.

O que eles mais temiam era ter suas identidades reveladas. O maior erro de Telm não foi falhar na missão, mas sim ter sido identificado como um membro da Raposa. Planejamento cauteloso, evitar qualquer coisa que pudesse dar errado e se manter nas sombras — era assim que operavam.

E o líder, Galf Shenfelder, sorriu diante da objeção perfeitamente razoável de seu subordinado.

— Isso não vai ser um problema. A perda do Chamador de Dragões é lamentável, mas podemos conseguir mais peões no local. O sucesso dessa operação vai compensar completamente o fracasso da Contra-Cascata. Essa operação foi ordenada pelo nosso chefe, e ele aprovou o envio de uma Donzela. Posso garantir que vamos conseguir. O tempo de se esconder acabou. A Raposa Sombria das Nove Caudas vai agir! Agora, o item foi assegurado?

— Sim. Exatamente como planejado. E não parece que eles tenham percebido.

O sorriso de Galf se alargou.

— Enquanto ficávamos parados, pode ter havido vazamentos agora que Telm foi comprometido. Não vamos perder mais nenhum minuto! A Relíquia é a chave para os planos do chefe. Se não colocarmos as mãos nela, toda a operação estará em risco.

 

No início, Murina contava quantas vezes havia desmaiado. Mas logo percebeu que até isso estava consumindo sua concentração. Ela nem sabia mais quantos dias tinham se passado desde que entrou naquele cofre. Não sentia sede nem fome, pois até isso era uma distração. Havia eliminado tudo que era supérfluo, restando apenas sua vontade de viver.

Pétalas tão brancas que pareciam artificiais. Campos floridos infinitos, belos demais para pertencerem a este mundo. Esse era o Jardim Prisma, um cofre de tesouro de Nível 7.

Nas regiões mais profundas desse cofre florescia a chamada Flor Celestial. Suas pétalas eram transparentes; se fossem levadas para fora dali, rapidamente sumiriam como neve derretendo. E mesmo assim, essas flores eram vendidas por um valor tão alto que apenas os compradores mais ricos poderiam cogitar adquirir uma.

A paisagem surreal do cofre chegou a fascinar e seduzir parte da nobreza por um tempo. Alguns cogitaram contratar um grupo de mercenários experientes para explorar o Jardim Prisma, mas no fim, ninguém teve coragem. Agora Murina entendia o porquê. Aquele lugar era perigoso demais. Mesmo com guardas, não era um destino turístico.

A chuva incessante de pétalas interferia nos cinco sentidos, e o pólen tóxico podia fazer até um caçador resistente desmaiar. A vegetação deslumbrante era diversa em altura e forma, dificultando qualquer movimento preciso. Mas o pior de tudo eram os fantasmas disfarçados de flores. Silenciosos, mas cruéis, sabiam se camuflar no ambiente e atacar pelas costas.

Cofres do tipo ambiental eram quase inexistentes, mas o Jardim Prisma era o mais letal de todos. Até mesmo os militares de Zebrudia teriam dificuldades em atravessá-lo. E era exatamente por isso que os Grieving Souls o haviam escolhido como provação para Murina. Ela não precisava treinar. Tudo o que precisava fazer era sobreviver. O que eram seus infortúnios anteriores comparados à expedição no inferno que enfrentava agora?

Seu primeiro treinador tinha sido Liz Smart. As lições começaram com Murina sentindo como se estivesse pegando fogo.

— Eu disse que você pode tirar uma soneca?! Levanta se não quiser morrer aqui!

Sendo um cofre de alto nível, efeitos negativos como sono e paralisia eram uma ameaça constante. Eram o pesadelo de qualquer caçador, e a maioria dos nobres que absorvia material de mana fazia isso para ganhar resistência a esses males.

Como membro da família imperial, até Murina tinha uma resiliência comparável à de um caçador comum. Mas só percebeu que havia desmaiado quando uma dor aguda a trouxe de volta. Sua visão tremia. Incapaz até de gritar, sentia-se zonza.

— Continue lutando até isso parar de ser um problema! É assim que essa merda funciona! Agora deixa o material de mana entrar! T, você tá sendo uma vergonha! Se diz uma caçadora? Há quanto tempo tô te treinando?!

—E-Entendido. Lizzy! —gritou Tino com a voz engasgada. Ela estava ao lado de Murina e mal conseguia se manter de pé. Mesmo com a mente enevoada, a princesa imperial ficou profundamente impressionada por Tino ainda conseguir levantar a voz.

Claro, o problema não era só o ambiente. Aproveitando os efeitos colaterais causados pelas pétalas e pelo pólen, os fantasmas camuflados realizavam emboscadas impiedosas. Árvores podiam amarrar você com cipós, flores venenosas disparavam sementes como projéteis, e bestas indefinidas se escondiam entre as plantas altas.

Para Murina, aquilo era um lugar de pura malícia. Supostamente, esses fantasmas eram um pouco mais fracos do que os encontrados na maioria das Relíquias de Nível 7, mas ela achava que não conseguiria vencê-los nem mesmo se não estivesse sendo afetada pelo pólen.

Resistir aos efeitos do pólen já era mais do que Murina conseguia fazer. Sem perceber, ela se aproximou de um fantasma à espreita. Seu instinto mandou que ela desviasse, mas seus reflexos não acompanharam sua intuição. Enquanto isso, seus instrutores faziam apenas o mínimo para mantê-la viva.

Quando um cipó agarrou o tornozelo de Murina e a suspendeu no ar, os Grieving Souls apenas observaram. Quando seus guardas se libertaram da bolsa, correram para se esconder. Quando ela teve que enfrentar uma horda de fantasmas armada apenas com seu raciocínio, seus instrutores continuaram como espectadores apáticos.

Ser arremessada pelo ar por um cipó ensinou a ela o que era ser completamente impotente. A linha entre sonho e realidade se rompeu. Os estímulos de seus cinco sentidos se misturaram. Até mesmo vida e morte deixaram de parecer distintas.

No fim, Murina conseguiu se adaptar ao ambiente. Quando conseguiu permanecer consciente por um tempo razoável, já estava encharcada da cabeça aos pés de poções.

 

Depois de ser curada por Ansem, Karen estava se segurando por um fio.

—V-Vocês sempre treinam assim, seus desgraçados—?

—Hã? Claro que não. Esses caras são fortes e legais o bastante pra aguentar um trabalho lixo como esse. Acha mesmo que conseguiriam fazer isso se pegassem o caminho fácil?

Murina ouvia indiferente a conversa entre Karen e Liz. Sentia-se febril, mas isso era infinitamente melhor do que o estado de quase inconsciência em que estivera. Já havia vomitado várias vezes, mas seu estômago não parecia vazio. Na verdade, ela não sentia nada — nem mesmo desespero. No mínimo, estava apenas grata por não ter sido pior, por não ter morrido. Ver aquele grupo manter a calma num lugar como o Jardim ensinou a ela o quão assustadores eram os caçadores de verdade.

—Sem tempo. Vamos encerrar por aqui —disse Liz com um estalo de língua.

—Isso aí, agora é minha vez —disse Luke. —Vou te ensinar sobre espadas. Espadas são importantes. Sem elas, dá pra fazer pouca coisa.

Essas palavras chegaram aos ouvidos de Murina, estimulando sua mente entorpecida e trazendo-a de volta à vida.

—Espadas! —disse ela. —Eu gosto de espadas! Eu amo espadas!

—Ah, que coincidência. Eu também gosto de espadas! Vem comigo!

Espadas! Espadas! Murina nunca havia gostado muito de espadas ou da arte da esgrima, mas agora era diferente. Os testes da Liz tinham sido extremos além da conta, mas a pior parte foi ter enfrentado fantasmas completamente desarmada. Mesmo que não fizesse tanta diferença assim, encarar um fantasma poderoso sem sequer uma faca era aterrorizante de um jeito único.

Mesmo sentindo que não conseguiria mover nem um dedo, Murina se levantou num pulo e pegou a espada que Luke lançou para ela. Estava prestes a esfregar o rosto nela quando percebeu algo.

—Hm? Isso é uma espada? É de madeira.

—É sim. Vou te contar um segredo —os melhores espadachins não escolhem demais suas armas. Com essa aqui, você vai se tornar uma grande espadachim, Sua Alteza Imperial.

—O que você tá dizendo? Isso aqui não corta nada.

A pergunta escapou assim que surgiu em sua mente. Com olhos inocentes, ela encarou Luke sem entender.

—Corta sim —disse o espadachim mais famoso da capital imperial. —Você pode fazer qualquer coisa se se esforçar de verdade. É isso que eu tô aqui pra te ensinar. E o melhor jeito de aprender é derrubando fantasmas poderosos.

—Impossível.

—Relaxa, todo aquele material de mana vai te ajudar.

Impossível. Nem mesmo quando treinava com o Santo da Espada Murina tinha dito essa palavra. Enquanto permanecia ali, parada, uma horda de fantasmas começou a se aproximar sem cerimônia.

 

Se preocupar com a própria morte era um luxo que Murina só teve nos estágios iniciais. Depois disso, os alarmes pararam. Sua vaga esperança de que os guardas a ajudassem e a crença ingênua de que poderia sobreviver desapareceram rapidamente.

As pétalas obstruíam sua visão. Os fantasmas, surpreendentemente rápidos, não sofriam nem um arranhão da espada de madeira. Ela não conseguia resistir aos golpes como os Imutáveis, e não acompanhava a aula de magia que começou do nada no meio da Relíquia.

Era tudo demais pra ela. Nem mesmo um caçador intermediário daria conta daquilo. Murina sabia que passaria por um treinamento intenso. Sabia que os Mil Desafios não eram brincadeira. Mas nunca teria imaginado algo assim.

Nenhum homem em sã consciência teria confiado Murina a pessoas como essas. Aquilo não era um teste, era suicídio. Murina já se considerava vitoriosa só por ter sobrevivido até ali. Seus guardas, supostamente escolhidos após um treinamento rigoroso, já haviam desistido de protegê-la fazia tempo.

Ela estava exausta, no corpo e no espírito. Não tinha tempo nem de verificar seu estado. Se não fosse pela cura do Ansem, já teria morrido mil vezes. Já não se importava mais em aprender a lidar com sua má sorte. Só queria ir pra casa. Nunca sua infelicidade tinha trazido algo tão ruim quanto aquilo. Seria isso um castigo por sua incompetência? Se fosse, não era severo demais? O que esse pedaço do inferno poderia oferecer para Murina?

A náusea constante provavelmente vinha do mana material, que era muito mais denso do que ela conseguia suportar. A dor a fazia chorar, mas suas glândulas lacrimais já haviam secado. Só queria voltar pra casa, tomar um banho e dormir em uma cama limpa. Sentia saudades do castelo do qual já tinha se cansado um dia. Parecia que estava fora de casa há anos.

Enquanto se perguntava quantas lições ainda faltavam, afundou no desespero mais profundo — e lá teve uma revelação:

Viver… é exatamente isso!

— Mmm — murmurou Sitri, observando a princesa imperial arqueando o corpo com ânsia de vômito. — Ela não tá ficando tão forte quanto eu esperava.

Murina não acreditava no que ouvia. Lutou contra a náusea e levantou o rosto, vendo Liz fazendo uma pausa no sermão que dava em Tino.

— Não me diga que foi tudo em vão? O Bebê Krai finalmente passou um trabalho pra gente, não quero estragar tudo.

— Ela não conseguiu cortar nada com a espada de madeira — acrescentou Luke. — Parece que não tem atalho pra força, no fim das contas.

O que eles estavam dizendo? Que tudo aquilo tinha sido em vão? A mente de Murina, entorpecida por aquele pesadelo em que havia acordado, voltou a funcionar. Não podia aceitar de jeito nenhum que tudo que havia passado naquele inferno tinha sido inútil.

— Já acabou o tempo? — disse Sitri. — Suponho que ela tenha absorvido uma boa quantidade de mana material, e também ensinamos o básico.

Ansem grunhiu em concordância.

Murina ainda estava tomada pela náusea, mas já nem sabia mais se era por causa do mana material ou do estresse.

Sitri lançou um olhar rancoroso para ela e disse:

— Bom, estamos ocupados. Então vamos passar pra última lição.

Última lição? Ainda tinha mais? Sitri era a única que não havia treinado Murina diretamente. Mas ela era uma Alquimista, não alguém que lutava na linha de frente. Murina achava que ela só gerenciava o grupo.

Disse a si mesma para aguentar firme. Se não se mantivesse de pé, seu coração cederia. Ao encarar Sitri, havia medo e indignação queimando no olhar da jovem princesa. Sitri respondeu com um sorriso malicioso e disse algo inesperado:

— Ainda ser capaz de sentir emoções tão fortes nessas circunstâncias mostra que você tem um espírito maleável, mas inquebrável. Não esperaria nada menos de alguém da família imperial. Mas não precisa ter medo. Pode ficar tranquila, porque minhas lições mal podem ser chamadas de lições. Só vou fazer um exame de sangue. Preciso garantir que seu corpo está bem. Se algo acontecer com você por causa do nosso treinamento, vai ser um problemão.

 

De modo geral, fantasmas eram inimigos da humanidade. Eram formas de vida (embora tecnicamente não estivessem vivas) criadas quando o mana material se condensava em recriações do passado. Mesmo os que tinham inteligência suficiente pra entender a linguagem humana ainda eram guiados por instintos territoriais, e não demonstravam piedade com intrusos. E pra piorar, alguns fantasmas guardavam rancores da humanidade herdados dos eventos que formaram sua essência.

Mas talvez eu tenha sido o primeiro humano a fazer as pazes com um fantasma.

Relaxando sob a luz do sol, eu mexia no meu Smartphone. Nem sabia por onde começar pra entender quantas funções essa Relíquia tinha. Apesar de levarem o mesmo nome, esses dispositivos vinham em infinitas variações, cada um com suas próprias capacidades. Ainda estava me acostumando, mas a Raposinha vivia me mandando mensagens — parecia que ela tinha tempo de sobra.

De acordo com os manuais que às vezes vinham com Smartphones, trocar mensagens com frequência significava que duas pessoas eram amigas. Ou, como diziam, phone phriends. Em outras palavras, eu e a Raposinha éramos amigos. E isso, é claro, também valia pro irmão mais velho dela. Estávamos na lista de contatos um do outro.

Heh, será que virei um usuário intermediário de Smartphone?

Sorrindo sozinho, olhei a foto que a Raposinha tinha me enviado. Era do tofu frito daquele dia. No momento seguinte, a porta se abriu sem nem uma batidinha. Guardei o celular no bolso e vi Sitri entrando. Suas bochechas estavam coradas e ela carregava um frasco tão grande que precisava usar os dois braços.

— Krai — disse ela, antes que eu pudesse abrir a boca — sobre a princesa imperial. Acredito que conseguimos!

— Ah, valeu. Vocês ajudaram muito. Onde está a Princesa Murina agora?

— Quis trazê-la comigo, mas ela recusou.

Devo me preocupar? Que tipo de treinamento vocês fizeram com ela?

Uma carranca cruzou meu rosto por um instante, mas então reparei no sorriso da Sitri. Era aquele sorriso puro e inocente de uma garotinha. O mesmo que ela fazia quando queria meu elogio. Pensando bem, se fizeram a Murina passar por um treinamento infernal, era natural que ela tivesse saído de lá irritada. Disse a mim mesmo pra não me preocupar. Estava tudo bem. O imperador sabia no que ela tinha se metido.

— Quanto ao treinamento — disse Sitri —, foi um fracasso. Simplesmente não tivemos tempo suficiente.

O quê?! Como é que é? Fracasso? Se foi um fracasso, de onde vem essa confiança toda?

Sabia que as condições não estavam a favor do sucesso, mas ainda assim achei a atitude dela estranha. Não consegui elogiar, mesmo vendo que era isso que ela queria.

—Krai, olha só!

Sitri colocou o frasco diante de mim com um brilho animado nos olhos. Estava cheio de um líquido vermelho-escuro. Não dava pra sentir o cheiro porque o frasco estava lacrado, mas ainda assim aquela poção me dava calafrios. Lembrava sangue. Fiquei em silêncio, esperando uma explicação.

Estufando o peito com orgulho, Sitri disse:

—O treinamento pode não ter ido tão bem, mas o resultado está aqui, na sua frente.

Não pensei muito. Simplesmente deixei meu modo de elogios automáticos assumir o controle.

—Mandou bem, Sitri. Você é incrível.

—Esse é o sangue da Princesa Murina. Graças a você, consegui extrair uma amostra enorme durante o exame de sangue!

Como é que é?

Meus olhos foram da Sitri para o frasco, e de volta. Exame de sangue? E quem foi que agradeceu por isso? E por que esse frasco é tão grande? A Princesa Murina era uma garota pequena; eu tinha quase certeza de que isso era mais sangue do que caberia no corpo inteiro dela.

—Esse é sangue imperial, perfeitamente preservado. Não é algo fácil de se conseguir! A princesa imperial em si não tem nada de especial, mas tenho certeza de que esse sangue vale a pena ser estudado.

Então isso é mesmo um exame de sangue? O que você fez com a princesa imperial?!

Os olhos da Sitri brilhavam. Eu já sabia que ela tinha um lado cientista maluca, mas sempre considerei isso um dos pontos fortes dela. Só que agora, uma única pergunta me tomava por completo. Só uma.

—Ela tá viva?

—Dei a ela uma poção hematogênica poderosa e a curamos no cofre do tesouro, então tenho certeza de que o material mágico tá fazendo efeito! Foi uma carga pesada pra ela, mas segui suas ordens e garanti que ela continuasse viva!

Sitri, só porque algo não termina em morte não quer dizer que tá tudo bem.

Eu não tinha dito pra ela treinar a princesa imperial? Por que ela tava agindo como se eu tivesse mandado fazer tudo isso? Fiquei perdido. Sempre me preocupei com ela, mas agora parecia que ela podia acabar sendo executada.

***

Fui convocado ao Castelo Imperial mais cedo do que imaginava. Normalmente, eu levaria um dos meus cérebros comigo, a Sitri ou a Eva, mas dessa vez fui sozinho. Sitri tava fora de cogitação, e eu estava relutante em levar a Eva, dadas as circunstâncias.

Quando Franz me viu, me encarou com uma expressão dura.

—Krai Andrey, não me diga que você sempre anda vestido assim.

Quando recebi a convocação, parecia que tinham marcado o dia da minha execução. Então é claro que eu joguei o Perfeito Férias por cima e fui assim mesmo.

Me levaram até uma sala robusta, igualzinha ao próprio império. Não havia muitos móveis extravagantes, mas ainda assim passava a sensação de um lugar onde dava pra relaxar. Sentado mais ao fundo estava um homem que claramente não tinha igual em toda a nação — o próprio imperador.

Talvez fosse ignorância minha, mas eu achava que o imperador não aparecia assim do nada quando alguém era convocado ao castelo. Eu o vi bastante durante o trabalho de escolta, mas aquilo era inevitável. Audiências com o imperador geralmente eram reservadas para ocasiões especiais, como a Reunião da Lâmina Branca. Ou seja, eu não fazia ideia do que ele tava fazendo ali. Será que ele não tinha nada melhor pra fazer?

Tentei manter a cabeça ocupada com esses pensamentos (extremamente) rudes, mas Franz me trouxe de volta à realidade com um pigarro.

—Ah, tanto faz — ele disse. —O motivo da sua convocação é—

—Está tudo bem, Franz — o imperador o interrompeu. —Não estamos na câmara de audiência, então não há necessidade de formalidades. Falarei diretamente com ele.

Já fazia um tempo que isso me incomodava, mas… esse cara não era direto demais? Ele sempre se envolvia pessoalmente nas coisas. Sério, ele não tinha nada melhor pra fazer?

Agora, o que será que fez ele me chamar aqui desse jeito? Será que ele descobriu o que a Sitri fez? Não conseguia pensar em outra explicação. Conversando com ela, fiquei sabendo do treinamento de pesadelo que meus amigos impuseram à princesa imperial. Eu sei que tinha dito pra serem duros, mas achei que ao menos dariam à Murina o direito de recusar.

Se o treinamento tivesse dado bons resultados, até que dava pra passar pano. Mas não foi o caso. E pra piorar ainda mais, a Sitri ainda tirou sangue da princesa imperial. Aparentemente, Sitri tinha um interesse profundo em sangue imperial. Ela mesma me disse que extraiu o máximo que conseguiu. Aquela garota era péssima em resistir à própria curiosidade.

Tentei pensar numa desculpa que pudesse colar, mas até o mestre das desculpas aqui estava sem saída. Eu era como um peixe em cima da tábua de cortar.

—Permita-me expressar minha mais profunda gratidão pela sua proteção durante o trajeto até Toweyezant — disse o imperador com aquela voz austera. —Houve diversas complicações, mas duvido que existam muitos assassinos tão competentes quanto o Contra-Cascata. Acredito que podemos respirar aliviados, por ora.

Hm? Pera aí. Isso não era o que eu pensei que ele ia dizer.

Se ele fosse me matar, tenho quase certeza de que não começaria com palavras de agradecimento. Olhei pra ele e pro Franz, confuso.

—Além disso, gostaria também de agradecer pelo treinamento da Murina.

Ele não sabe?!

—Vossa Majestade Imperial é muito gentil — falei rápido, antes que a situação virasse um desastre. —Com o tempo limitado que tivemos, temo que não conseguimos alcançar os resultados ideais.

Me desculpa mesmo pela parada de extrair sangue. Por favor, perdoa minha amiga. Mas Murina não tinha guardas? O que diabos eles estavam fazendo?

—Desde que minha filha voltou para casa, ela tem se dedicado tanto aos treinos com espada e magia que mal tira tempo pra descansar. Sempre viveu se lamentando por causa da própria má sorte, sem conseguir colocar um sorriso no rosto. Mas parece que as lições de vocês mudaram alguma coisa na forma como ela enxerga as coisas.

— Ela quase parece desesperada, Vossa Majestade Imperial — disse Franz, me lançando um olhar severo. — Estou sinceramente preocupado. E não conseguimos arrancar nenhuma informação dos dois guardas que a acompanharam.

Sitri havia silenciado até as testemunhas. Ela não deixava pontas soltas.

Sabe, acho que ser forçada a treinar por dias a fio e depois ter suas veias esvaziadas até a última gota mudaria a cabeça de qualquer um. Eu não vi o treinamento com meus próprios olhos, mas parecia que, mesmo que a Murina ainda estivesse viva, o resto… nem tanto.

— Pelo que disseram, o treinamento foi algo de outro mundo — disse o imperador. — Murina não comentou nada a respeito, mas a mudança nela é notável.

Sitri, você é incrível! Ninguém jamais foi agradecido por espremer o sangue de alguém!

Caminhar na linha entre a vida e a morte, dentro de um cofre de relíquias saturado de mana… qualquer um sairia mais forte disso. Ainda assim, parecia que os resultados tinham ficado aquém das expectativas da Sitri. Foi difícil, mas consegui manter uma expressão neutra, mesmo sabendo que esse homem não fazia ideia de que a própria filha tinha sido praticamente drenada.

— Tenho certeza de que uma pessoa comum não teria aguentado. Ela só conseguiu por sua causa — falei com paixão. — Eu despertei o potencial dela. Acredito sinceramente que ela está pronta para enfrentar qualquer desastre que o futuro trouxer.

Aproveitei pra elogiar a princesa imperial e manter tudo vago.

— É muita gentileza sua, Mil Truques — disse o imperador, assentindo. — Parece que os rumores sobre os Mil Desafios eram verdadeiros.

Até esse cara ouviu falar disso? Até onde esses boatos chegaram?

— Não, Vossa Majestade Imperial, isso não foi um dos Mil Desafios. Meu objetivo era preparar Sua Alteza Imperial para competir no Festival do Guerreiro Supremo, mas… esse objetivo se mostrou inalcançável. Falhei com Vossa Majestade.

Os olhos do imperador se arregalaram.

— Do que está falando, Krai Andrey? — resmungou Franz.

Pois é. No fim das contas, as lições tinham sido um fracasso. Talvez ela tenha ficado mais forte, mas isso não valia de nada se não atingisse o objetivo proposto. Pra piorar, o treinamento serviu só de desculpa pra tirar o sangue dela. O imperador não estava tão furioso quanto eu esperava, mas dava pra ver que ele não estava nem um pouco satisfeito comigo.

As expressões do Franz e do imperador se fecharam. Franz fez um gesto com o braço, dispensando os guardas na sala.

— O Festival do Guerreiro Supremo — disse Franz. — Chamamos você pra conversar sobre Sua Alteza Imperial, mas também queremos falar sobre isso.

— Querem?

— Me perguntei por que você queria um ingresso mesmo tendo candidatura prioritária. Aparentemente, vai acontecer um grande evento em Kreat, não é?

— É. Pode-se dizer isso.

Fiquei encarando o Franz. O Festival do Guerreiro Supremo era mesmo um grande evento, e eu tinha a impressão de que todo mundo sabia que ele era anual.

— Quando e onde ouviu falar disso?

— Ouvi pela primeira vez há uns dez anos.

— Dez anos?! Ridículo. Nem o Olho de Deus do Divinário Astral conseguiria—

— Franz, basta. Temos preocupações maiores do que verificar a veracidade dele.

Nada disso fazia sentido pra mim. Um torneio como o Festival do Guerreiro Supremo era conhecido por praticamente todo mundo na capital imperial. Eles achavam que eu era burro, por acaso? Não achava que me faltava tanto conhecimento assim.

— Então, Vossa Majestade Imperial, o que faremos em relação à Princesa Murina? — perguntei.

— Como assim?

O torneio já estava próximo, mas a Sitri achava que a princesa imperial ainda precisava melhorar bastante. Se ela entrasse no ringue do jeito que estava, a derrota seria quase certa. Isso pegaria mal pra ela — e pra nós, que fomos encarregados de orientá-la. Eu não queria dizer o que estava prestes a dizer, mas não via outra saída.

— Sua Alteza Imperial demonstrou ser esforçada e talentosa, mas simplesmente não tivemos tempo suficiente. Com sua permissão, talvez possamos dar continuidade às lições durante a viagem até o Festival do Guerreiro Supremo.

Eu não queria, de forma alguma, enfiar a cabeça em mais confusão, mas não havia escolha. Por enquanto estávamos bem, mas se a Princesa Murina sofresse um acidente fatal no torneio, seria o fim dos Grieving Souls.

— Seu desgraçado! — gritou Franz. — Depois que voltou, Sua Alteza Imperial dormiu feito um cadáver por um dia inteiro. E mesmo assim você quer que ela continue lutando?! E por que continua falando desse tal Festival—

— Bem, você está certo. Quem decide se vai lutar ou não é Sua Alteza Imperial, não eu.

Rangendo os dentes em silêncio, Franz parecia um demônio.

Eu estava em silêncio, aguardando uma resposta, quando o imperador me lançou um olhar direto com seus penetrantes olhos azuis.

&

***

— Hm? É claro que vou participar. Você não vai deixar os outros entrarem e me pedir pra ficar de fora, vai?

Lucia me lançou um olhar irritado. Não era exatamente uma bronca, mas ainda assim era intimidador. Estávamos no meu quarto/cofre de Relíquias, e ela estava carregando minhas Relíquias como sempre fazia. Antes era um processo demorado, mas com o tempo isso mudou. Carregar tudo deixava ela ofegante antes, mas agora ela dava conta de carregar dezessete Anéis de Segurança sem nem suar.

Lucia era uma Maga de primeira. Além de conhecer uma variedade absurda de feitiços, ela também era dedicada a criar magias novas. Já estava começando a ganhar fama como uma das melhores Magas da capital imperial. Como irmão mais velho, toda essa atenção me deixava um pouco preocupado.

—Depois de conversar com meu mentor, ele concordou em me deixar participar sob certas condições — ela me contou. — Eu sei que não vai ser fácil. A arena é ampla, mas ainda assim pequena o bastante para que um Espadachim tenha vantagem. Sem contar as regras contra fatalidades…

O Festival do Guerreiro Supremo aceitava combatentes de todos os estilos de luta. Mas, na prática, os especialistas em combate corpo a corpo eram a maioria esmagadora. As lutas aconteciam num espaço grande, mas ainda assim era uma distância que um guerreiro habilidoso cobria em poucos saltos. Enquanto isso, feitiços poderosos exigiam encantamentos ou movimentos pré-estabelecidos. Mesmo que um especialista conseguisse conjurar rápido, isso vinha com o custo de um feitiço mais fraco. De qualquer forma, os Magos estavam em desvantagem.

Mas Lucia ainda parecia animada em participar. Ela podia ser surpreendentemente teimosa, no fim das contas. Mesmo assim, a ideia dela se arriscar desse jeito me incomodava.

—Também tem, bom… — disse ela, esfregando as pulseiras nos pulsos. — Foi você quem me deu isso.

Ela realmente tinha gostado delas. Se essas pulseiras eram a carta na manga da Contra-Cascata, então eu não tinha dúvidas de que Lucia saberia usá-las bem.

—Entendi — falei. — Se você está tão decidida, então vou torcer por você.

—Hã? Você fala como se isso não te envolvesse.

Bom, é. O Festival do Guerreiro Supremo era só combates individuais, e eu não tinha como dizer a Lucia como lutar. Eu nem tinha conhecimento pra algo assim.

—Hm. Quer um incentivo? — ofereci.

—Se tem energia pra se preocupar, devia se preocupar com você mesmo.

—É verdade.

Mas eu sabia que se preocupar não ia me levar a lugar algum. Isso não ia deixar a princesa imperial mais forte. Mesmo tendo permissão pra continuar dando aulas pra ela, as chances de vitória dela ainda eram baixas.

—Preciso te lembrar que essas lutas são um contra um? — Lucia perguntou. — Não é o que você mais odeia?

—Hm? Na verdade, não. Eu gosto da tensão que vem com batalhas individuais. Claro, não dá pra desprezar pancadarias e espetáculos. Mas também não adianta reclamar do formato.

Eu não gostava de participar de nenhum tipo de luta, mas gostava de assistir todo tipo. E nas caçadas com os Grieving Souls, eu já tinha presenciado vários espetáculos desses de perto. Depois daquilo, nem ficar na arquibancada era algo que eu sentia falta.

Lucia piscou, depois me encarou de um jeito estranho.

—Chefe, você tá bem confiante, hein. Tá com outra ideia maluca na cabeça?

—Tô só torcendo pra esse torneio correr bem.

Eu não queria que Lucia se arriscasse, mas já era tarde demais pra falar isso agora que ela era uma caçadora de tesouros.

—Ah, é — falei. — Todo mundo conseguiu vaga no torneio?

—Sim, ao que parece. Mas ouvi dizer que o Luke levou uma bronca daquelas do mentor dele.

Nada é mais perigoso do que um brutamontes com um objetivo em mente. Fico imaginando o que ele fez.

—Pelo que ouvi, a Siddy e os outros também tiveram que suar pra conseguir entrar no último minuto. Até eu tive que negociar. O único que tá de boa é você.

—Toda vez que eu me mexo, as coisas só pioram, então tento não me mexer muito.

Eu era incompetente, mas pelo menos sabia disso.

—Ai, céus! — gemeu Lucia.

Aguentando o olhar gelado da minha irmã, peguei uma Relíquia da estante e comecei a polir, quando Eva apareceu.

Ela colocou uma pilha grossa de papéis na minha mesa e disse:

—Krai, sei o que você disse, mas reuni todas as informações que consegui sobre o Festival do Guerreiro Supremo. Graças aos torneios preliminares, consegui informações sobre quem pode estar participando. Mas não fiz uma seção pros Grieving Souls.

—O quê? Eu disse que não precisava disso. Além disso, ainda não tem nada oficial, né?

—Por favor, só dá uma olhada. Teve algo que me chamou atenção.

Você se preocupa demais. Já vou avisando que não vou descobrir nada só olhando esses papéis.

Eva me lançou um olhar intenso, então resolvi ceder e abri um dos arquivos. Dentro, tinham perfis detalhados dos participantes. Era até assustador como ela conseguiu juntar tanta informação em tão pouco tempo. A gente só tinha falado disso no dia anterior.

Folheando os papéis, vi vários nomes que até eu reconhecia.

—Oh? A Touka vai estar lá — comentei.

—Sim, ela considera isso parte do trabalho — respondeu Eva.

Entendi. Participar podia atrair novos clientes. Soa como algo bem no estilo dela, sempre pensando no lucro.

Kongoin Touka era a líder — ou melhor, a capitã — dos Cavaleiros da Tocha, um dos grupos do Primeiros Passos. Ouvi dizer que eles tinham voltado enquanto eu protegia o imperador. Será que esse torneio tinha relação com isso? Não sabia bem o que pensar sobre tantos do nosso clã participando, mas pelo menos a maioria ali era nossa amiga no Primeiros Passos.

—Vou ter que torcer por ela — falei. — Espero que me mostre uma boa luta.

—Krai, você realmente não tá preocupado, né?

—Meu irm— Nosso chefe sempre foi assim.

Eu era um covarde, mas mesmo assim não via razão pra me assustar só por assistir de longe.

Enquanto passava a lista com os olhos, uma linha chamou minha atenção. Minhas mãos pararam, e meus olhos se arregalaram. Eva engoliu seco ao me ver. Era o nome de um participante, o nome de um caçador, que me pegou de surpresa. Esfreguei os olhos, mas estava claro que não era ilusão. Um sorriso escapou do meu rosto.

—Hmm? Líder dos Grieving Souls, Krahi Andrihee? Heh. Que coincidência.

Essa parte devia ter sido o que chamou a atenção da Eva. E dava pra entender o porquê. Infelizmente, não tinha nenhuma imagem incluída, mas o nome dele e o nome do grupo eram idênticos aos meus. Quais eram as chances disso? Se até o rosto dele fosse parecido com o meu, eu ia achar que ele era o verdadeiro.

— Valeu, Eva — eu disse, devolvendo os papéis pra ela. — Isso é incrível. Faz tempo que eu não vejo algo tão engraçado.

— “Krahi Andrihee” — resmungou a Lucia. — A gente vai ter que entrar em contato com a organização do torneio. Como é que conseguem errar o nome de um participante?

Eu precisava contar isso pros outros. Com certeza eles iam rachar de rir. Mesmo que não fosse minha decisão, seria perfeito se o Luke ou alguém acabasse lutando contra esse Krahi. Ia ser ainda melhor se esse cara fosse absurdamente forte. A gente ia rir disso por anos tomando umas.

— É mesmo, Krai — disse Eva —, o Gerente de Filial Gark quer falar com você. Ele disse que vai estar esperando na sede do clã Maldição Oculta.

— Ah, é.

Provavelmente era sobre o Telm e o Kechachakka. Eu tinha esquecido completamente deles. Ainda tava tentando aceitar que os dois eram agentes da Fox. Mas o Telm também fazia parte da Maldição Oculta e eu tinha conhecido o Kechachakka pela Associação dos Exploradores. O que eles fizeram não era culpa minha, mas ainda assim eu tinha a responsabilidade de explicar o que aconteceu.

Com certeza a Associação tá levando esporro por ter me apresentado pra um traidor. Aaah… Eu não quero ir, não.

— Ele disse que, se você não tiver tempo, ele vai até você — contou a Eva. — O que a gente faz?

Ele tá me intimidando?! Não tem um pingo de orgulho como caçador?!

Não parecia que eu tinha escolha. Ia ter que ir, me humilhar e ficar pronto pra sair correndo a qualquer momento.

***

A sede do clã Maldição Oculta ficava na região central da capital imperial. Era uma área nobre, com um valor imobiliário absurdo, onde moravam pessoas como o Lorde Gladis. Esse distrito ficava perto do Castelo Imperial, embora “perto” fosse um termo relativo — ainda eram alguns quilômetros de distância.

A sede do clã era feita de tijolos e seguia um estilo arquitetônico mais antigo. Quase todo mundo conhecia essa mansão com uma torre do relógio. Ela se erguia acima das outras mansões da vizinhança, e diziam que dava pra ver a capital inteira do topo. Só o fato de conseguirem construir algo que fazia sombra nas mansões da nobreza já mostrava o prestígio e a história desse clã.

Lembrei da época em que ainda era novo na capital imperial. Tinha feito um passeio turístico pra ver esse lugar. A Maldição Oculta era um dos clãs mais antigos da capital e recrutava Magos. A sede deles era invejada por todos os caçadores, e por algum motivo, eu e a Lucia acabamos tomando chá no topo da torre.

Diante da gente estava uma bruxa com um olhar afiado, um sorriso sarcástico e uma idade impossível de adivinhar. Ao lado dela, um gigante careca com uma carranca no rosto parcialmente tatuado. Esse cara era mais assustador do que qualquer caçador que eu já tinha encontrado. O que será que eu fiz pra merecer isso?

— Estava esperando por você — disse a bruxa, com uma risada. — Ah, as notícias sobre você têm me divertido bastante.

— Você vive correndo pra lá e pra cá pra fugir de mim, mas dessa vez nem precisei torcer seu braço. Tá doente? — perguntou o gigante.

Sem torcer meu braço?! Tá de brincadeira, né?!

Que piada. Eu nunca viria de bom grado pra um lugar com dois dos Top 5 Caçadores Mais Aterrorizantes da capital.

Eu tentava me acalmar com um pouco de escapismo, quando o Arty disse:

— Gark, que tipo de pessoa você acha que o Krai é? O Mil Truques nunca fugiria de alguém!

— I-Isso mesmo! — acrescentou a Mary. Ela e o Arty estavam servindo o chá. — E não se esqueça de que o Krai é o irmão mais velho da Lucia.

No começo, eu não entendi o que isso tinha a ver. Mas, pensando bem, era verdade que eu não fugiria enquanto a Lucia estivesse por perto.

Meio resignado, cruzei as pernas e disse com o máximo de sarcasmo que consegui:

— Claro que eu apareço se você ameaçar arrombar a porta da minha casa.

— Não fala desse jeito! — protestou o Gark. — Eu não te ameacei!

Fez algo bem próximo disso. Pode até ser que o Gark não tivesse apelado pra esses métodos, mas a mulher piromaníaca ali com certeza faria. Eu não chamaria ela de piromaníaca se não fosse de verdade.

— O lance é que eu tava querendo me encontrar com o Inferno Abissal — falei. — E acho que já sei do que você queria falar comigo.

— Ah, que honra. Mas por que não veio me visitar antes?

Isso devia ser óbvio. Eu não queria te ver, então fiquei enrolando.

Idealmente, eu nunca teria que me encontrar com ela.

A velha bruxa suspirou como se estivesse aceitando alguma coisa. Só isso já me deu enjoo.

— Deixa isso pra lá. Tenho meus próprios assuntos pra resolver, então vamos direto ao ponto — o Inferno Abissal riu de leve. — Parece que um dos meus te deu um certo trabalho, não foi?

Ela não parecia nem um pouco arrependida.

— Eu não me importo — respondi sem pensar. — Ele foi de grande ajuda na estrada. Ouvi dizer que era um excelente Mago.

Além de ser um Mago habilidoso, ele tinha muito mais bom senso do que a velha na minha frente.

— Mas, Gark — continuei —, o Kecha foi imperdoável. Aquele cara era suspeito demais. Até entendo como o Telm passou, mas o Kecha não devia ter entrado nessa lista.

Aquele homem era tão suspeito que acabava ficando discreto. Qual era a desse cara? Um assassino não devia conseguir fazer isso.

—D-Desculpa por isso — murmurou Gark.

Ele estava completamente vermelho. Será que ele odiava tanto assim se desculpar comigo?

Poxa, eu vivo me humilhando na sua frente! Bem que você podia tentar também.

Claro, nem em um milhão de anos eu diria isso em voz alta.

—Mas se você achava que ele era suspeito, devia ter falado na hora! — argumentou Gark. — Você precisa parar de guardar essas coisas pra você!

Não dava. Nem agora eu tava conseguindo acompanhar a situação direito.

Algumas semanas atrás, eu tinha pegado o Telm emprestado da Maldição Oculta pra me ajudar a proteger o império. Grande ideia… O cara era de uma organização infame!

Por algum motivo, ele protegeu o imperador com lealdade no começo da viagem. Por algum motivo, ele revelou quem era. Por algum motivo, ele fugiu. E agora, por algum motivo, ele era o brinquedinho do Irmão Mais Velho Raposa. Por quê? Não importava quantas vezes eu pensasse nisso, não conseguia entender. Por que ele tinha perguntado se eu era um dos camaradas dele?!

—Não dá pra me culpar por isso — falei, assentindo pra mim mesmo. — Eu também fiquei chocado quando descobri que o Kecha era um assassino. Não esperava ser traído pelo vice-líder da Maldição Oculta e por um caçador que veio com sua recomendação, Gark.

Aceitar que o Kecha era traidor foi fácil, mas ainda estava difícil engolir que o Telm tava do outro lado. Totalmente sem sentido a mulher da terra queimada ter ficha limpa, e o Telm ser o vira-casaca.

Quando levantei os olhos, o Inferno Abissal tava inexplicavelmente sorrindo pra mim, com os olhos bem abertos. A bochecha do Gark tremia — e era um negócio tão assustador que, em qualquer outra situação, eu já estaria de joelhos pedindo perdão.

—Hmph. Não, acho que você não esperava mesmo — disse a bruxa.

—Já começamos a identificar e lidar com os envolvidos — disse o gigante.

“Lidar com”? O que isso quer dizer? Eu sou o próximo?

—Desde os tempos da academia, Telm da Contra-Cascata era diligente — disse a velha, o sorriso desaparecendo. — Nunca quebrou uma regra, nem as mais bobas. Ele parecia um exemplo, principalmente se comparado com Noctus Cochlear e comigo.

Eu não fazia ideia do que ela tava falando, mas, pelo jeito que todo mundo reagiu, percebi que era melhor ficar quieto. A velha olhou para a Relíquia no pulso da Lucia e continuou.

—Se ele não tivesse aceitado meu convite pra entrar na Maldição Oculta, provavelmente já existiria outro clã Magi poderoso na capital. E isso tornaria as coisas por aqui bem mais interessantes. Aquele homem fazia tudo certinho, sem erros. Se ele entrou no caminho errado, não é surpresa ver até onde chegou. Heh heh, veja bem, garoto, tenho um pequeno arrependimento. Telm da Contra-Cascata não devia ter andado ao meu lado — ele devia ter sido meu rival! Talvez assim ele não tivesse ido tão longe na direção errada.

A voz dela era seca, mas dava pra sentir o quanto tinha de emoção por trás. Então a velha era humana afinal de contas.

Eu estava tentando pensar no que dizer quando ela abriu um sorriso profundo, profundo mesmo.

—Me diga, garoto. O Telm vai voltar?

—Isso, hã… depende do Telm.

Não dava exatamente pra dizer “não”.

—Bom, fico feliz que ele ainda esteja vivo. Vou resolver isso com minhas próprias mãos. Enquanto meu corpo ainda se move, antes de dar lugar à próxima geração, vou garantir que a Raposa e seus capangas virem nada além de cinzas.

Ela não estava gritando, mas a voz fez a mesa tremer. Ela podia estar sorrindo, mas os olhos ardiam com chamas do inferno.

—P-Por favor, acalme-se, CM! — gritou Arty.

Sem nem começar um encantamento, chamas começaram a se formar em volta do cabelo carmesim dela. Diziam que os melhores Magi conseguiam provocar fenômenos só com a vontade, mas eu ainda achava que tinha algo de muito errado com essa mulher.

Ela queria incinerar o Telm. Ela torcia pra ele estar vivo, só pra poder incinerá-lo. Isso não parecia um raciocínio humano. O cara era aliado dela até pouco tempo atrás! Tipo, se a Lucia se juntasse à Raposa, eu provavelmente iria com ela.

Graças aos deuses que o Inferno Abissal estava do nosso lado. Ela não parecia disposta a me reduzir a cinzas, mas mesmo assim, eu queria sair daquela torre sufocante.

—Já chega — cortou Gark, com coragem, fazendo o Inferno Abissal relaxar um pouco.

Justo quando soltei um suspiro interno de alívio, Gark abriu um sorriso tão ameaçador quanto o da velha.

—Agora, o motivo de eu ter te chamado aqui — disse. — Mil Truques, temos uma tarefa grande pela frente. A Raposa ousou mexer com a gente. Vamos esmagá-los.

Arty e Mary escutavam com atenção. A Lucia também, por algum motivo. Como sempre, o único que não levava as coisas a sério era eu. Pensei por um instante.

—Foi mal — falei com um sorriso durão. — Mas posso usar seu banheiro?

Quando cheguei no banheiro, vi que tinham colocado grades de ferro na janela. Senti um nó no estômago.

&&

Voltamos correndo pra sede do clã. Durante o trajeto, fiquei calado — e a Lucia também. Será que eu tava ficando louco por achar que esse pessoal era insano? Por que estavam provocando uma organização secreta maluca daquele jeito? E por que achavam que eu ia ajudar sem pensar duas vezes? Comparado à Raposa da Contra-Cascata, eu preferia o raposinha fantasma que me deu um Smartphone em troca de tofu frito. Se o Gark queria ajuda, devia ter chamado o Franz.

Quase por conta própria, minhas mãos puxaram o Smartphone e mandaram uma mensagem: “Tô ferrado” para o Irmão Mais Velho Raposa.

Ele respondeu na hora: “Que bom.”

Não tinha nada de bom nisso.

Na reunião, consegui despistar o Gark dizendo que estava ocupado e que a gente teria que conversar outra hora. Tinha desviado da bala, mas sentia como se minha vida só tivesse sido estendida por alguns segundos. Patético não conseguir me livrar dele só com um “não”.

Tô ocupado. Tenho coisas pra fazer, repeti pra mim mesmo. Precisava ir ao Festival do Guerreiro Supremo, e ainda tinha aquele pedido do imperador. Não dava pra perder tempo com coisas como organizações criminosas!

Quando voltamos, fui direto pro vice-mestre do clã.

—Eva! Evaaa! Vamos sair da capital imperial agora!

—O-O quê? De onde veio isso?!

Fazia tempo que eu não entrava na sala dela. Atravessei as pilhas de tralha que tinha por ali e gritei:

—A gente não pode ficar aqui! Temos que ir pra cidade do Festival do Guerreiro Supremo! Qual era mesmo?!

—M-Mas, Krai, ainda falta tempo pro torneio. Aconteceu alguma coisa?

—Ainda não, e é por isso que a gente tem que sair agora, pra continuar assim.

Eu tava em pânico. Quando o Gark dizia que ia fazer algo, ele fazia mesmo. Já tinha “cuidado” de uns funcionários, e eu podia muito bem ser o próximo.

Sem falar do Inferno Abissal. Ela falou em abrir caminho pra próxima geração, mas eu tinha quase certeza de que ela ia viver mais que todos eles. Dava pra ver nos olhos dela que ficaria mais do que feliz em me carbonizar se eu dissesse que não queria ajudar a exterminar a Raposa. Anéis de Proteção não servem de nada no meio de uma fogueira.

—Irmão, em troca da minha entrada no torneio, tem uma coisa que eu queria pedir— disse Lucia, mas parou no meio da frase e olhou pro lado. —Ah, deixa pra lá.

—Muito bem. Vou começar os preparativos — disse Eva, se levantando. Parecia que ela tinha percebido que eu tava falando sério. —Mas reunir os membros do clã com tão pouco aviso—

—Esquece eles — interrompi, desesperado. —Mas certifique-se de que os Grieving Souls venham junto.

Nem ferrando que vou sozinho! Preciso chamar eles. Ah, mas também tenho que escolher minhas Relíquias…

—É algo tão sério assim? — perguntou Eva.

—Hã? Não, nada tão sério.

Nem o Gark, nem aquela velha iriam atrás de alguém sem um bom motivo. O problema era que, pra eles, sempre tinha um bom motivo pra ir atrás de mim.

—Mas e se a Princesa Murina ainda não estiver pronta—

Antes que Eva terminasse a frase, virou de repente em direção à janela. Fui até lá e segui o olhar dela pro lado de fora. Fiquei sem reação. Tinha uma carruagem pequena e discreta parada na entrada da sede do clã.

—Entendo — disse Eva com um leve suspiro. —Que timing perfeito. Muito bem, vou providenciar tudo. Krai, comece seus próprios preparativos.

Desculpa por tudo que tô te fazendo passar.

 


Tradução: Carpeado
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