Capítulo 96

Vários meses se passaram desde que escapei da vigilância de minha mãe e saí da Capital. Eu não tinha nada planejado, apenas senti que não estava certo ir para o país dela desse modo, fugi como forma de retaliação.
Tive um ataque de ansiedade. O estado da minha família era péssimo e as coisas piorariam ainda mais daqui para frente. Entretanto, conforme eu ia arrumando a minha bagagem, a lembrança de um certo lugar me veio à mente. O lindo cenário do território Helan não saía de minha cabeça.
“Por que justo agora?”
Eu me perguntava, mas meus pensamentos ficavam dando voltas e mais voltas. Além disso, naquele lugar… Kururi-sama estava lá também. Ele certamente me ajudaria quando eu precisasse, mas meio que senti que estaria trapaceando. Desde pequena, sempre fui abençoada com tudo ao meu alcance e por isso não seria correto depender da ajuda dos outros quando me deparasse com problemas pela primeira vez.
Tive outras razões para me sentir assim também. Este poderia ser o ponto de virada na minha vida, por isso, deveria ser forte. Além do mais, foi decisão minha viajar sozinha para o leste. Lá, o primeiro passo da minha jornada estaria completo. Depois disso… “Irei pensar depois que tiver chegado.”
Para ser sincera, sempre tive vontade de me aventurar sozinha. No passado, fiquei impressionada depois de ouvir as história de Iris-san, a quem sempre considerei como minha rival sobre suas viagens. Ela tinha planejado caminhar todo o percurso de sua casa até a academia sozinha por uma estrada que poucas pessoas atravessariam e monstros surgiriam com frequência. Ainda assim, ela prosseguiu carregando uma pesada bagagem em suas costas. Houve momentos em que Iris-san pareceria muito melhor do que eu e estou certa de que não se tratava de um talento natural, mas sim da forma como vivia com extrema paixão.
“Não posso me deixar ser abatida tão facilmente!”
Foi o que pensei conforme empacotava coisas que provavelmente nem precisaria e parti em uma longa, longa jornada.

◇◇◇

Na estrada, frequentemente me lembraria das histórias que Iris-san me contou sobre suas viagens.
Quando ela estava exausta e decidiu descansar na sombra de uma árvore, assim que ela começou a cair no sono, uma carruagem passou pelo local. Essa havia sido a primeira vez que conheceu Kururi-sama.
“Que golpe de sorte! Estou com tanta inveja!”
No entanto, Kururi-sama certamente teria me deixado aqui caso fosse eu ao invés dela. Isso porque eu era tão mimada! Mesmo agora não acredito que tenho mudado muito, embora refleti sobre várias coisas depois de termos nos conhecido.
Desde que comecei a ter sentimentos por ele, tenho tentado imitá-lo. Sua generosidade, sua alegria, seu bom coração. Tenho tentado ser uma pessoa mais sincera.
“Eu fui capaz de mudar? Iris-san disse que eu tinha me tornado alguém mais fácil de se conversar… Então acho que consegui mudar um pouco.”
Minha jornada parecia ter começado muito bem. Caso chovesse as coisas ficariam um pouco mais difíceis, mas acredito que posso lidar com isso. Fiquei preocupada quando a comida que havia trazido comigo acabou, mas mesmo para coisas assim, Iris-san deu-me conselhos que seriam certamente úteis.
Quando o cansaço do dia começou a dar sinais, deixei a estrada e me dirigi para a floresta procurar comida. A essa altura, eu já tinha vendido todas as jóias que tinha e não me restava mais dinheiro algum, por isso não tinha como parar nas cidades para fazer compras.
“Perfeito, agora estou nas mesmas condições que ela estava.”
Dentro da floresta procurei por plantas e animais. Meu primeiro achado foi um coelho. Um lindo coelhinho peludo e macio. Ele era adorável, mas eu precisava comê-lo. Afinal…
Regras de Ferro da Iris-san Para Viagens (Item 1): Mate sem falhar, coelhos, aves ou peixes!
Na primeira vez que ouvi isso, entrou por um ouvido e saiu pelo outro, mas agora percebo que esta era uma informação vital pela qual eu deveria agradecer. Ainda bem que nunca fui do tipo que ligava muito para aparência e nem de conversar abobrinhas tipo, “como fazer um bolo”.
Conjurei um feitiço de vento na palma da minha mão e a assoprei suavemente como um sinal e uma lâmina de vento foi disparada em direção ao coelho. Seu corpo adorável e sua cabeça foram separados em um corte limpo.
I-itadakimasu…”
Regras de Ferro da Iris-san Para Viagens (Item 2): Você já terá perdido se hesitar só porque ele é adorável!
Qualquer hesitação seria contra a regra.
Nunca imaginei que chegaria o dia em que uma jovem dama como eu, estaria desossando um coelho. Ainda assim, na hora em que acendi a fogueira e comecei a assá-lo, fui atraída pelo seu aroma irresistível.
“Talvez não seja tão ruim assim...”
Minha viagem continuou assim com pequenos tropeços ao longo do caminho, mas progredindo de alguma forma.  
Depois daquilo fui salva diversas vezes pelas Regras de Ferro da Iris-san Para Viagens, mas houve uma única vez que estive especialmente exausta. O meu grande erro foi a minha inabilidade em fazer a escolha certa.
De fato, ganhei muito mais autoconfiança devido ao quão bem a minha jornada estava progredido. Como sentia um pouco de fome, acabei desobedecendo a Regra de Ferro da Iris-san Para Viagens (Item 16): Fique longe de cogumelos!
Reuni alguns cogumelos de boa aparência. Eu já estava acostumada a fazer fogueiras a esta altura e fiz uma bem grande naquele dia. Então comecei a assá-los e eles cheiravam tão bem que não pude evitar de desobedecer o item 16.
No começo, minha fome foi satisfeita e me senti muito bem, mas pouco tempo depois, quando estava admirando um linda flor, minha visão subitamente ficou borrada e acabei perdendo a consciência… Tive a impressão de ver um pequeno duende próximo daquela linda flor, mas provavelmente  não passava de uma alucinação causada pelos cogumelos...
Rudy: Duende no sentido de espírito da floresta, assim como as fadas.
“Aah, elas são mesmo extraordinárias… as Regras de Ferro da Iris-san Para Viagens…”
Não tive ideia de por quanto tempo dormi, mas ao acordar, eu estava dentro de uma cabana. Não apenas nela, mas deitada numa cama muito macia. O teto e a mobília eram bem diferentes, tudo era de madeira e provavelmente feito a mão e e pareciam estar em uso já a muitos anos. Também havia água e frutas frescas ao lado do meu travesseiro.
Eu estava com tanta fome antes de desmaiar que acabei enchendo minha boca antes que percebesse. Jamais passou pela minha cabeça agir de tal maneira quando eu era uma dama, mas agora penso que preciso ser rude para conseguir sobreviver.
— Ah, então você acordou, hein? Fico contente que esteja bem energética, nari.
A porta da cabana se abriu e o duende que vi antes de desmaiar estava atrás dela. Ele era pequeno, com bolsas sob os olhos, um grande nariz e cabelos brancos. Tratava-se de um duende bem velhinho.
— Ah, eu… Eu sinto muito. Bebi da sua água e comi de suas frutas sem pedir licença, mas irei trabalhar duro para lhe retribuir, então por favor, deixe-me pagar por isso.
— Hã? Eu não me importo com isso, nari. Posso pegar mais na floresta quando quiser afinal.
— Entendo. Mas se houver qualquer coisa que o senhor não possa fazer sendo um espírito da floresta, não hesite em me pedir!
— Espírito?
Depois daquilo, percebi que aquele homem não era na realidade um duende, mas apenas um senhor de aparência engraçada. Uma gafe impressionante, não concordam? Acho que acabei ficando confusa devido a aparição repentina dele na frente daquela flor tão bonita.
Petel me permitiu ficar em sua cabana, dizendo que eu ainda tinha que me recuperar completamente. Ele disse que seria melhor permanecer até que meu corpo deixasse de ser só pele e ossos. Era verdade, minha jornada até agora havia sido árdua e eu mesma não imaginava que conseguiria chegar tão longe.
De qualquer forma, onde é que estou agora?”
— Petel-san, em que parte do Reino Kudan estamos agora?
— Em que parte, nari? Este é o território Helan, nari. Você veio até aqui sem saber disso, nari?
— Aah, bem…
Uma sensação de alegria cresceu em meu peito. Eu havia conseguido chegar até aqui por mim mesma. Até hoje, tudo que consegui na vida tinha sido me dado por alguém, mas pela primeira vez, fui capaz de conquistar algo com minhas próprias mãos.
O que vou fazer agora? Eu tinha decidido que iria pensar em algo quando chegasse… mas agora que cheguei aqui, não sei o que fazer.”
— Petel-san, o que o senhor está fazendo aqui?
— Estou investigando esta terra, nari. Fazendo uma pesquisa sobre uma maldição relacionada ao território Helan, nari.
“Maldição? Neste lindo território?”
— Sendo bem honesta, por que o senhor tem se esforçado tanto estando completamente sozinho em um lugar como este? Ontem e no dia anterior, lhe vi lendo livros e coletando amostras de solo, água e vento… Está me dizendo que tudo isso é para investigar a maldição?
— Exatamente, nari. Não é uma história inventada ou uma mentira, nari. Se trata de uma importante verdade que foi deixada para trás por uma querida amiga, nari.
Suas palavras eram calmas, mas pude sentir um forte senso de profundidade por trás delas. Como se contessem as mais sinceras esperanças de alguém que tem continuado a lutar por alguém durante longos e longos anos.
…Bem, parece que o caminho foi decidido.”
— Petel-san, perdoe-me por ter duvidado de sua palavra, agora estou completamente convencida em acreditar em você. Por favor, deixe-me ficar aqui. Prometo que farei o melhor possível para lhe ajudar em sua pesquisa. Eu prometo que serei de alguma utilidade.
— …Mas você não tem qualquer envolvimento com essa questão, nari. Seria melhor que retornasse ao lugar ao qual você pertence, nari.
— Eu que decidirei onde pertenço. Por favor, deixe-me lhe ajudar.  
Petel ficou em silêncio por alguns instantes. Ele olhou cuidadosamente para Eliza, como se testasse sua convicção.
— Por que razão, nari? Por que você se juntaria a mim nesta batalha, nari? Não é uma estrada fácil, nari.
“É claro que eu sei que não será fácil, mas esta terra é importante para mim. Recebi tanto carinho dela e por isso quero devolver este carinho também.”
— Esta terra, o território Helan, é um muito importante para alguém extremamente querido a mim. Quero poder ficar e lutar caso isto seja de ajuda para ele.
Petel olhou para mim com surpresa. Pelo que pude ver, minha sinceridade havia deixado uma grande impressão nele.
— É o mesmo para mim, nari. Também estou lutando para proteger este lugar que era muito importante para alguém que era extremamente querido a mim. Nós somos o mesmo, nari. Ficarei muito feliz em receber sua ajuda, nari.
E assim, ganhei um novo objetivo como também um lugar para ficar. Eu iria trabalhar com Petel nesta cabana localizada no Pântano Amaldiçoado.
Assim como profetizado, a maldição devastou estas terras. Petel supostamente teria desenvolvido maneiras de lidar com isso, mas nenhuma delas foi efetiva. Tudo que ele havia construído foi esmagado pela força impiedosa da maldição. Petel me contou que havia uma última esperança, mas não me disse nada de específico. Quando penso em com seu rosto parecia desapontado, meu coração dói.

Assim, quando não havia mais nenhum raio de esperança, um dia subitamente tive uma reunião inesperada nas margens do lago. Kururi-sama e eu havíamos nos reencontrado.

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