The Great Cleric â CapĂtulo 1 â Volume3
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The Great ClericSeija Musou
Arco 4: O Curandeiro Que Mudou o Mundo
Light Novel Online â CapĂtulo 1:
[As Palavras do Fundador]
Jå fazia dez dias desde que eu me tornara um curandeiro de Rank S. Dez longos dias⊠e, ainda assim, nada na minha rotina havia mudado muito, embora isso pudesse ser porque eu jå não fazia muita coisa para começo de conversa. A maior mudança era provavelmente o fato de que agora eu não podia mais sair da Sede sozinho. Para onde quer que eu fosse, alguém precisava me acompanhar, e Jord se ofereceu para a tarefa com um entusiasmo suspeito. Quase como se tivesse esperado essa chance a vida toda.
Falando no Jord, ele estava mais uma vez parado no meu quarto.
â Vai sair de novo hoje, Senhor Luciel?
â Sim. NĂŁo Ă© como se eu tivesse algo melhor para fazer. Mesmo com esse novo status de Rank S, nĂŁo tenho nenhum trabalho de verdade, entĂŁo vou continuar fazendo o que sempre faço.
â Oh. SĂł isso? â Ele perguntou, perdendo o brilho nos olhos quase que imediatamente.
â Uhum, sĂł isso. E, aliĂĄs, esse negĂłcio de Rank S Ă© sĂł um tĂtulo. Eu realmente apreciaria se vocĂȘ falasse comigo como fazia antes. NĂŁo precisa esperar atĂ© sairmos.
â Deus me livre, meu bom senhor! Nunca se sabe quem pode estar ouvindo.
Jord abriu um sorriso radiante, como se estivesse se divertindo de alguma forma. Ele claramente tinha mais ousadia do que eu. Fora do castelo, ele vivia fazendo piadas e parecia relaxado, mas dentro dessas paredes, era puro profissionalismo.
âAstutoâ era uma palavra que eu usaria para descrevĂȘ-lo, mas nĂŁo conseguia desgostar do cara.
â O que vocĂȘ tĂĄ rindo aĂ? â Uma coisa sobre ele era que ele era pĂ©ssimo em esconder quando estava se divertindo.
â Oh, eu estava sorrindo? Estranho. De qualquer forma, para onde irei escoltĂĄ-lo hoje? â E, assim, a conversa jĂĄ tinha sido desviada. A especialidade do Jord.
â Para o Guilda dos Aventureiros. Eu sei que da Ășltima vez vocĂȘ desmaiou, mas preciso reabastecer meu estoque de SubstĂąncia X.
O sorriso dele sumiu na mesma hora. A tragédia que ocorrera hå poucos dias claramente passou pela mente dele.
â A⊠Guilda dos Aventureiros, Ă© isso mesmo? Nossos superiores podem nĂŁo gostar nada disso de novo.
â Depois do meu discurso, isso nĂŁo me preocupa nem um pouco. E relaxa, os aventureiros nĂŁo vĂŁo te incomodar dessa vez.
Jord estava ocupado demais desmaiando da Ășltima vez para perceber o respeito que ganhou ao engolir a SubstĂąncia X na frente de todo mundo. Para os aventureiros, ele era meu seguidor leal.
â Se insiste. Mas sĂł para que saiba, e digo isso para o seu prĂłprio bem, seu novo status vem com grande autoridade, mas existem muitas facçÔes dentro da Igreja, e nem todas concordam com vocĂȘ.
Meu corpo ficou tenso. Eu nĂŁo fazia ideia de quais ideologias existiam dentro da Igreja, e precisava dessas informaçÔes se quisesse saber como lidar com elas. Granhart era o primeiro da minha lista de pessoas a perguntar, mas desde a minha promoção mal havĂamos falado. Ele me parabenizou de forma educadaâe estoicaâmas foi sĂł isso. Considerei pedir para Jord sondĂĄ-lo, mas ficaria Ăłbvio que eu o havia mandado.
Mas os âe seâ poderiam se prolongar para sempre. Ficar sĂł pensando nĂŁo ia me levar a lugar nenhum, e eu jĂĄ tinha tudo o que precisava para nossa saĂda na minha bolsa mĂĄgica.
â Aviso anotado. Agora vamos.
â Sim, senhor!
Desde o momento em que saĂmos do meu quarto, fomos bombardeados por olhares julgadores. JĂĄ estava acostumado com isso desde que entrei nos treinamentos das ValquĂrias. Jord, por outro lado, estava se segurando no limite. Quando finalmente saĂmos do castelo, o rosto dele parecia a mĂĄscara trĂĄgica de MelpĂŽmene.
â Como vocĂȘ tĂĄ aguentando? â Perguntei.
â Como eu tĂŽ aguentando? Como vocĂȘ aguenta tudo aquilo, cara? â Falando em mĂĄscaras, a persona de âseguidor lealâ do meu companheiro desapareceu assim que saĂmos da Sede, e voltamos a nos tratar como iguais.
â Desde que me envolvi com as ValquĂrias tem sido assim. JĂĄ acostumei.
â O que eu acabei de dizer sobre facçÔes? Isso nĂŁo te assusta nem um pouco?
â Bom, eu nĂŁo estou procurando problemas, mas veneno e maldiçÔes nĂŁo funcionam contra mim, entĂŁo posso lidar com alguns olhares feios se for sĂł isso. Eventualmente, eles vĂŁo se cansar.
â VocĂȘ Ă© meio maluco.
â Como assim?
â Normalmente, quando alguĂ©m tem facçÔes inteiras contra si, a primeira coisa que faz é⊠sei lĂĄ, se aliar a uma. VocĂȘ nĂŁo tem medo de ficar sozinho?
Jord de repente começou a fazer muito sentido. Do ponto de vista da Igreja, ele estava certo. Meu novo status dava muito mais peso às minhas açÔes, e eu precisava ter cuidado com isso. Mas se os problemas com as facçÔes da Igreja se agravassem como Jord temia, e eu fosse forçado a sair, sempre teria um emprego esperando por mim na Guilda dos Aventureiros local ou na de Merratoni. Na verdade, provavelmente seria muito mais seguro e tranquilo por lå.
â Claro, um pouco, mas nĂŁo vai adiantar nada ficar me preocupando. E eu nĂŁo estou sozinho. Tenho vocĂȘ, as ValquĂrias, a papisa⊠Sou grato por ter todos vocĂȘs ao meu lado.
â Ha, algo me diz que vocĂȘ vai se tornar alguĂ©m importante. Quer dizer, vocĂȘ jĂĄ meio que se tornou, mas deu para entender.
â Eu sou sĂł um curandeiro com talento para magia sagrada. Definitivamente nĂŁo preciso ficar maior do que isso. Nem quero imaginar a confusĂŁo que isso poderia causar.
â Agora eu tĂŽ entendendo por que a Guilda dos Aventureiros gosta tanto de vocĂȘ. Curandeiros caridosos sĂŁo raridade.
â VocĂȘ nĂŁo disse que era meio como eu na sua cidade natal?
â Sim, mas, sabe⊠Eu nĂŁo consegui manter minhas convicçÔes como vocĂȘ. Te respeito muito por isso.
â Chega de elogios. Ă estranho vindo de vocĂȘ.
â Ă mesmo? De qualquer forma, sempre quis te perguntar: por que te chamam de Santo EsquisitĂŁo?
â Vamos mudar de assunto, por favor.
â VocĂȘ consegue falar de envenenamento e maldiçÔes como se nĂŁo fosse nada, mas um apelido te incomoda? VocĂȘ Ă© demais â riu Jord.
Ah, que bom que meu sofrimento te diverte. â Sabe, Jord, vocĂȘ realmente se solta quando sai do castelo.
â DĂĄ pra me culpar? LĂĄ dentro Ă© sufocante. NĂŁo suporto. E curandeiros nĂŁo tĂȘm muitas chances de sair.
â Por quĂȘ?
â A Igreja nĂŁo anda muito popular ultimamente, sabe?
Hesitei por um momento. E se essa pergunta fosse uma armadilha, alguém tentando me testar? Mas, por outro lado, minhas opiniÔes sobre a Igreja não eram exatamente segredo. Confiei no meu instinto.
â Ă, verdade. Foi difĂcil no começo, mas depois que tomei um pouco de SubstĂąncia X e comecei a curar as pessoas por um preço justo, elas passaram a gostar mais de mim.
â E Ă© por isso que vocĂȘ Ă© estranho.
â Por quĂȘ? Ă tĂŁo difĂcil assim para outros curandeiros circularem por aĂ?
â Eu diria que sim. Eles nĂŁo gostam de ser encarados por onde passam. Mas acho que alguns ficam presos por causa das disputas entre as facçÔes.
â Pera aĂ, Ă© por isso que vocĂȘ se voluntariou paraâŠ
Jord pigarreou alto. â Vamos continuar, meu senhor!
Ah, ele era esperto, sem dĂșvidas. Eu podia aprender uma ou duas coisas com ele. â Se quer continuar saindo comigo, larga essa formalidade.
â TĂĄ, tĂĄ. Ah, chegamos jĂĄ.
â Pois Ă©. TĂĄ esperando o quĂȘ? Anda, entra logo.
Empurrei Jord para dentro do salĂŁo da guilda. Era meio da tarde, entĂŁo sĂł havia alguns aventureiros por lĂĄ, para o alĂvio evidente de Jord. Ele me lembrava do meu eu mais jovem. NĂŁo consegui evitar um sorriso.
â O que foi? â perguntou ele.
â VocĂȘ tĂĄ igualzinho a como eu estava quando vim a uma guilda de aventureiros pela primeira vez. Bateu uma nostalgia.
â VocĂȘ tambĂ©m ficou nervoso?
â Ah, e como. Tava apavorado, achando que iam me matar sĂł por olhar torto pra alguĂ©m. Mas, por sorte, ninguĂ©m era tĂŁo homicida assim.
â Ă⊠reconfortante? Se fossem, seriam bandidos, nĂ©?
â Exato. Agora vamos atĂ© o refeitĂłrio.
Havia poucos aventureiros por lĂĄ, e Grantz estava atrĂĄs do balcĂŁo. Assim que me viram entrar, alguns saĂram correndo, deixando apenas trĂȘs clientes que ainda almoçavam. Jord suspirou, aliviado por ninguĂ©m ter comentado sobre suas vestes da Igreja.
Enquanto caminhava atĂ© o mestre da guilda, me perguntei se havia pacientes precisando de cura. â Oi, Grantz. Vim reabastecer meu estoque de Substance X.
â Voltou com teu cĂŁo de guarda, hein? â resmungou ele com um sorriso. Melhor do que a cara feia que fez pro Jord da Ășltima vez, mas, pelo jeito, nĂŁo muito melhor, a julgar pela careta do meu colega.
â Ele Ă© mais um criado do que um cĂŁo de guarda. SĂł estou dando um pouco de ar fresco pro membro da facção âPor Favor, Me Deixem Sair do Casteloâ.
â Essa Ă© boa! â Grantz gargalhou. â Quantos barris precisa?
â Dez, por favor.
â Quer um caneco pra viagem?
â Hmmm, por que nĂŁo? Quem sabe aqueles aventureiros ali nĂŁo se juntam a mim?
O trio entrou em pĂąnico imediatamente.
â Nem pensar, Santo EsquisitĂŁo! Acabamos de voltar de uma missĂŁo!
â Ă, somos aventureiros, nĂŁo monges ascetas! Poupe a gente desse sofrimento!
â Ei, cara, vocĂȘ Ă© o motorista dele ou sei lĂĄ o quĂȘ, nĂ©? DĂĄ um jeito nisso! A coisa desanda quando o Santo começa a encarar desse jeito! AtĂ© o mestre da guilda perde a cabeça!
Os trĂȘs imploraram com os olhos para Jord.
â Ahm⊠Acho que a gente devia fugir enquanto ainda dĂĄ tempo â murmurou ele, procurando uma rota de escape. Mas era tarde demais.
â Abram essas bocas, seus covardes. Tomem um pouco de SubstĂąncia X e o almoço Ă© por minha conta. E nem tentem escapar dessa. VocĂȘ tambĂ©m, parceiro.
â Maldito seja, Santo EsquisitĂŁo! â lamentaram os aventureiros, sabendo que nĂŁo havia mais esperança.
Jord, no entanto, continuava se debatendo, buscando uma saĂda por nĂŁo ser um aventureiro.
â Com licença, ééé⊠por que eu?
â Achei que fosse o servo dele.
Sem escapatĂłria. Seu destino estava selado.
â VocĂȘ tem um coração frio, Luciel â choramingou ele.
O Mestre da Guilda trouxe nossos canecos de SubstĂąncia X, e eu fui o primeiro a virar o meu.

â Jord e os outros observaram com nojo antes de, a contragosto, levarem os canecos aos lĂĄbios. Surpresa⊠Desmaiaram na hora.
Conversei com Grantz para passar o tempo atĂ© que eles voltassem a si. â Por que sou sempre eu que eles xingam? VocĂȘ Ă© tĂŁo culpado quanto eu.
â Porque vocĂȘ Ă© um alvo fĂĄcil? Ă jovem. Vira saco de pancada. E tem aquele papo sobre essa coisa te deixar mais forte.
â Na verdade, tem um fundo de verdade nisso. Mas tem que tomar cuidado, porque impede de subir de nĂvel.
â Desde quando?!
â SĂł olhar pra mim. Sou a prova disso.
Quem diria que minha incapacidade de sair do nĂvel um era culpa da SubstĂąncia X esse tempo todo? Nem Brod nem Gulgar, os desgraçados que me forçaram a beber, faziam ideia. Mas, para ser justo, meus status ainda aumentavam, e minhas habilidades nĂŁo eram nada desprezĂveis, entĂŁo nĂŁo era de todo ruim.
â Mas tem um motivo pra beber isso, nĂ©?
â Depende da situação. No meu caso, eu nĂŁo saio matando monstros todo dia, entĂŁo nĂŁo subiria de nĂvel de qualquer forma. Se continuar assim por mais um ano, espero que minhas resistĂȘncias fiquem bem sĂłlidas.
â ResistĂȘncias, Ă©? Valeu pela informação.
Quase ninguĂ©m sabia as vantagens e desvantagens da SubstĂąncia X, nem mesmo Brod, segundo a carta dele. Mas talvez, sĂł talvez, se mais aventureiros começassem a beber, eles parassem de chamar minha lĂngua de âdefeituosaâ.
â NĂŁo precisa agradecer. Devo muito Ă guilda. Alguma novidade?
â Nada demais, sĂł uns novatos querendo treinar com vocĂȘ.
â Com um curandeiro? Por quĂȘ?
â Pela fama. Por que mais?
â Fama? Tem glĂłria em bater num curandeiro? O que eu sou, um procurado?
â Sei lĂĄ, parceiro, mas vocĂȘ com certeza nĂŁo Ă© um curandeiro normal. JĂĄ vi como luta com o FuracĂŁo.
â O que isso quer dizer? Eu estava lutando pela minha vida naquela Ă©poca! E meu mestre me destruiu!
â Mas isso nĂŁo te impediu de se curar repetidamente. NĂŁo te chamam de Zumbi Masoquista Ă toa.
â DĂĄ pra ficar sĂł no Santo EsquisitĂŁo? JĂĄ tĂŽ de saco cheio dos outros apelidos.
Grantz caiu na gargalhada. â Bom, sĂł pra avisar, vocĂȘ deve receber alguns desafios em breve, caso nĂŁo se importe de aceitar um round.
Que tipo de mestre da guilda incentivava brigas assim? â NĂŁo, valeu, tĂŽ de boa. Se eu derrotar eles, vĂŁo vir os de alto escalĂŁo em seguida.
â E qual a graça nisso? Vamos fazer uma aposta. Quem perder tem que beber SubstĂąncia X. Vai ser Ăłtimo pra guilda, hein?
â Ătimo pra guilda, horrĂvel pra mim. O que eu ganho com isso?
â A chance de lutar contra gente forte.
JĂĄ estava tendo mais do que o suficiente com as ValquĂrias. Meu cronograma de treino de combate estava mais do que lotado.
â Olha, eu sou um curandeiro.
â VocĂȘ tambĂ©m Ă© um aventureiro.
â Isso nĂŁo vai acontecer. TĂŽ ocupado demais.
â Bah, tanto faz â ele suspirou. â De onde vocĂȘ tirou esse atendente, afinal?
Finalmente ele se deu ao trabalho de perguntar. Meu status de curandeiro de rank S era um segredo para o pĂșblico, o que tornava as coisas complicadas.
â Pelo visto, sou meio problemĂĄtico. Felizmente, pude escolher quem seria meu acompanhante, entĂŁo escolhi o Jord.
â VocĂȘ levou bronca por causa dos tumultos de outro dia?
â NĂŁo, o problema nĂŁo foi esse. Eu meio que⊠quebrei uma certa coisinha na sede.
â Pelo jeito, vocĂȘ Ă© mais aventureiro do que curandeiro.
â Pode ser. SĂł fico feliz por nĂŁo terem me jogado numa cela.
â Minhas portas estĂŁo sempre abertas se vocĂȘ enjoar daquele lugar.
â Vou aceitar a oferta se acabar fugindo.
â VocĂȘ tem muitos cĂșmplices por aqui.
Quando Jord e os outros acordaram, guardei os barris de Substance X na bolsa e saĂmos da guilda. No caminho de volta, Jord insistiu em passar na rua principal para olhar itens mĂĄgicos. Quando finalmente chegamos Ă sede, ele estava visivelmente desanimado.
â Voltamos, Jord. NĂŁo dĂĄ pra ficar emburrado pra sempre.
â DĂĄ sim. A vida Ă© sofrimento, e nunca mais serei feliz. Isso aqui Ă© a Cidade Sagrada, pelo amor de Deus! Como podem ter itens mĂĄgicos tĂŁo sem graça?!
â VocĂȘ devia ter me dito que era isso que estava procurando.
Jord foi ficando cada vez mais quieto conforme visitĂĄvamos as lojas, e quando perguntei o motivo, descobri que comprar esses itens era o principal motivo para ele querer sair do castelo. Infelizmente, nada do que encontramos chegava nem perto do que a loja fora do labirinto tinha em estoque.
â Cara, e eu jĂĄ fui exorcista! Devia ter me esforçado mais!
â Que tal eu perguntar pra Catherine se os itens da loja estĂŁo Ă venda na prĂłxima vez que eu a vir?
â VocĂȘ faria isso?!
â Claro. Vou perguntar para alguns aventureiros tambĂ©m.
â Senhor Luciel, juro solenemente que me tornarei o melhor atendente que vocĂȘ jĂĄ teve. Agora, avante!
Jord entrou no castelo radiante de alegria. Fiquei observando por um momento, sorrindo de canto, antes de segui-lo.
Quando chegamos ao meu quarto, falei: â Desculpa jogar essa em vocĂȘ, mas quero encontrar Granhart para saber mais sobre essas facçÔes. Pode avisĂĄ-lo?
â Para o senhor Gran? Claro! Espere aqui, senhor! â respondeu ele, saindo Ă s pressas.
Logo ouvi batidas na porta.
â Entre.
A maçaneta girou, e Granhart entrou.
â Oh, senhor Granhart! NĂŁo esperava que viesse atĂ© mim.
â Por favor, como jĂĄ disse antes, senhor, nĂŁo precisa me chamar assim. Na verdade, eu mesmo queria discutir um assunto com vocĂȘ, entĂŁo nĂŁo foi incĂŽmodo.
â Ah, nesse caso, por favor, sente-se. Vou preparar um chĂĄ.
â NĂŁo quero incomodar.
â NĂŁo estĂĄ incomodando. Vai levar sĂł um segundo.
Puxei uma cadeira para ele e convoquei um bule de chå recém-feito e alguns petiscos leves da minha bolsa.
â Esse Ă© um item impressionante que vocĂȘ tem aĂ.
Achei que ele soubesse sobre a minha bolsa mĂĄgica. Ele estava menos informado do que eu esperava.
â Eu nĂŁo teria conseguido colocar as mĂŁos em uma se nĂŁo fosse pelo labirinto. Ă graças a vocĂȘ, jĂĄ que me designou para a Unidade de Exorcistas de Combate.
â Entendo. â Ele abaixou os olhos. â Isso Ă© uma sorte.
NĂŁo tinha sido ele quem me designou?
â SĂł para deixar claro, nĂŁo quis dizer isso de forma negativa.
â Eu sei. NĂŁo se preocupe. Agora, por favor, me corrija se eu estiver errado, mas vocĂȘ deseja saber mais sobre os grupos que compĂ”em a Igreja?
â Isso mesmo. E o que vocĂȘ queria conversar comigo?
â Em breve começarĂŁo as discussĂ”es oficiais sobre as diretrizes legislativas para a cura que vocĂȘ propĂŽs em seu discurso inaugural.
â O quĂȘ?! Como vocĂȘ sabe disso? â Quando diabos isso tinha sido decidido, e por que o papa nĂŁo me informou sobre algo tĂŁo importante?
â Alinhar-se a uma facção dĂĄ acesso a certas informaçÔes. Quis que vocĂȘ soubesse disso.
Minha cabeça estava focada apenas no labirinto por tanto tempo que só agora percebia o quanto a Igreja estava dividida. Até onde eu realmente poderia ir sozinho?
â EntĂŁo, vocĂȘ quer algo de mim, nĂŁo Ă©?
â EstĂĄ certo.
â Posso perguntar o que Ă©?
â Quero mostrar ao povo que nĂłs, da Igreja de Saint Shurule, existimos para sua salvação. Quero acabar com o Ăłdio aos curandeiros e melhorar nossa instituição.
â O que vocĂȘ quer dizer com isso? â Nunca imaginei que ouviria tais palavras saindo da boca desse homem.
Ele abriu um sorriso amargo.
â VocĂȘ se lembra do seu primeiro dia aqui? Quando questionou a liderança da guilda?
â Como poderia esquecer? Tudo se conecta ao motivo de eu ter sido chamado para a Sede em primeiro lugar. Lembro-me de ter levantado a necessidade de regras padronizadas para o custo da cura.
â Para ser sincero, na Ă©poca, duvidei das suas afirmaçÔes. Achei que vocĂȘ fosse apenas um jovem eloquente.
A franqueza de Granhart, de todas as pessoas, me pegou de surpresa. Senti um certo orgulho por ele ter passado a confiar em mim.
â NĂŁo te culpo. VocĂȘ parecia nĂŁo querer acreditar em mim.
â NĂŁo queria mesmo. EntĂŁo, precisei ver com meus prĂłprios olhos. Conduzi investigaçÔes em guildas de todas as naçÔes, supervisionadas por terceiros, comerciantes, aventureiros e outros, em nome da objetividade.
â VocĂȘ foi tĂŁo longe assim? â Sua dedicação Ă Igreja me surpreendeu.
â Uma parte de mim queria nĂŁo ter ido. Foram tantas descobertas, tantas verdades que nĂŁo posso mais ignorar.
â Mas nada disso Ă© culpa sua.
â Eu tambĂ©m sou culpado. Estava cego para tudo ao meu redor, tudo que nĂŁo estivesse diretamente dentro da Sede da Igreja.
Fiquei me perguntando se Granhart havia sido criado dentro da Igreja, talvez filho de um membro. De que outra forma ele poderia ter passado tanto tempo sem ouvir sobre toda essa insatisfação?
Conversar com ele sempre era tenso, e eu ia sufocar se essa conversa ficasse ainda mais carregada. EntĂŁo, mudei de assunto.
â Sua facção estĂĄ ciente de tudo isso?
â Sim. O que estou pedindo Ă© que me permita ajudĂĄ-lo na elaboração das diretrizes. â Ele se levantou, com um fogo ardente nos olhos. â Antes que o nome da nossa instituição seja ainda mais manchado.
â Eu adoraria contar com sua ajuda. Mas com qual facção vocĂȘ estĂĄ alinhado?
â Sim, desculpe. Deixe-me explicar as filosofias dentro da Igreja. Existem trĂȘs grupos principais: os Lealistas, que priorizam a vontade do papa acima de tudo; os Reformistas, liderados por executivos gananciosos; e o meu grupo, os Moderados, cuja Ășnica preocupação Ă© o bem-estar do povo.
Visto de fora, eu provavelmente parecia um Lealista, jĂĄ que era subordinado direto de Sua Santidade.
â Qual Ă© a diferença entre os Lealistas e os Moderados?
â Os Lealistas, como o nome sugere, sĂŁo leais apenas a Sua Santidade. Suas ordens sĂŁo absolutas, a palavra final. JĂĄ os Moderados nĂŁo seguem cegamente figuras de autoridade. Nossa Ășnica lealdade Ă© para com o povo.
Poucos tinham o privilégio de se encontrar com ela, mas o papa certamente não era um ditador. Ela parecia extremamente mente aberta, então eu não via sentido nessa distinção.
â EntĂŁo, sua facção quer garantir que o papa nĂŁo tenha poder absoluto. Mas os Reformistas sĂŁo os que mais tĂȘm influĂȘncia no momento, certo? Por que os Lealistas e os Moderados nĂŁo trabalham juntos?
â Por curiosidade, por que vocĂȘ diz que os Reformistas sĂŁo os mais influentes?
â Ă apenas a minha impressĂŁo. Isso se encaixa na narrativa atual. NĂŁo acho que as pessoas chamariam os curandeiros de gananciosos se nĂŁo houvesse uma facção gananciosa no poder.
â SĂł isso?
â Em grande parte, sim.
Por mais que eu quisesse, ainda nĂŁo podia confiar completamente em Granhart. Ele foi quem orquestrou minha transferĂȘncia para a Sede com base na carta de Bottaculli, entĂŁo nĂŁo podia descartar a possibilidade de ele ser um Reformista. Ainda assim, eu precisava do conhecimento que ele podia fornecer. Talvez fosse algo para discutir com Sua Santidade e Catherine.
â Muito bem. O que acha da minha oferta de ajuda?
â Acho que temos os mesmos objetivos. VocĂȘ se preocupa com a Igreja do mesmo jeito que eu me preocupo com o futuro dos curandeiros, e poderĂamos fazer muita coisa boa se trabalhĂĄssemos juntos.
â Obrigado. Eu tambĂ©m acredito nisso.
â NĂŁo, eu Ă© que deveria agradecer. â Estendi minha mĂŁo, e Granhart a apertou sem hesitação.
â Agora, por onde começar? Talvez pelas figuras notĂĄveis dentro das facçÔes.
â Estou ouvindo.
O tempo voou enquanto começåvamos a redigir as novas diretrizes para os curandeiros com seriedade.
*
O progresso no livro de regras havia diminuĂdo consideravelmente, e o principal culpado por isso era o problema das taxas de cura preexistentes. Cada um tinha seus prĂłprios critĂ©rios para valorizar sua magia, e fazer mudanças drĂĄsticas nos preços sem critĂ©rio poderia colocar em risco o sustento de muitas pessoas. Eu sabia que passaria o resto da vida me arrependendo se deixasse essa oportunidade escapar, mas parecia ser o Ășnico que sentia a necessidade de arrancar o curativo de uma vez e reconstruir o sistema do zero.
Eu estava cheio de hesitação e indecisão. Então, procurei alguém em quem pudesse confiar.
â E Ă© por isso que tenho priorizado outros trabalhos em vez do labirinto ultimamente.
â Eu me perguntava como vocĂȘ estava passando seus dias. Mas tem certeza de que sou a pessoa certa para confiar nisso? â perguntou Lumina, tentando esconder sua confusĂŁo.
â VocĂȘ acha que nĂŁo? Imaginei que nĂŁo haveria problema em falar com vocĂȘ sobre isso, alĂ©m do mais, nĂŁo tem ninguĂ©m por perto para ouvir. Quem imaginaria que estarĂamos tendo uma discussĂŁo sĂ©ria no meio de um treino?
â Isso porque conversas casuais tendem a deixar a pessoa bem aberta.
Vi seu movimento repentino, e um instante depois, minhas costas se chocaram violentamente contra algo duro, tirando todo o ar dos meus pulmÔes.
â Foi tĂŁo ruim assim? â ofeguei enquanto conjurava uma Cura em mim mesmo.
â Eu acabei de te jogar no chĂŁo.
â Isso vocĂȘ fez. Onde aprendeu a fazer isso? â NĂŁo era algo que eu jĂĄ tivesse visto as ValquĂrias treinarem.
â Supere-me e talvez eu te conte. Mas chega de conversa fiada, quero ver vocĂȘ dando o seu melhor. DĂȘ tudo de si; temos suas habilidades de cura para lidar com os ferimentos.
âConversa fiadaâ? Achei que estava me abrindo com ela, mas tudo bem. Ai.
â Certo, mas posso perguntar sua opiniĂŁo sobre algo antes?
â O que seria?
â VocĂȘ viajou bastante, certo? Ă justo dizer que seu entendimento sobre como as coisas funcionam fora da Sede e sobre a percepção das pessoas em relação aos curandeiros Ă© melhor que o da maioria?
Ela inclinou a cabeça. â JĂĄ faz algum tempo desde a Ășltima vez que fui designada para uma inspeção, entĂŁo temo nĂŁo poder falar sobre detalhes. â Em seguida, assentiu. â Mas suponho que possa falar com alguma autoridade.
â Qualquer coisa jĂĄ ajuda. SĂł queria saber⊠VocĂȘ acha, objetivamente, que os curandeiros sĂŁo odiados?
â Acho que a grande maioria Ă©, sim. Existem exceçÔes como vocĂȘ, mas, baseando-me na minha experiĂȘncia, aventureiros tendem a desprezĂĄ-los. Especialmente os povos ferais.
â A supremacia humana Ă© um problema profundo, entĂŁo nĂŁo vejo uma solução rĂĄpida e fĂĄcil para isso. Mas fico aliviado em saber que concordamos. Como vocĂȘ resolveria algo assim?
â VocĂȘ seria mais adequado para encontrar essa resposta por si mesmo, Luciel.
â Ah, nĂŁo quero te colocar nesse problema. SĂł estou refletindo sobre isso e queria ouvir a opiniĂŁo de outra pessoa. â NĂŁo era arrogante a ponto de achar que minhas ideias eram mais vĂĄlidas do que as de qualquer outra pessoa.
â Hm⊠Seu objetivo Ă© melhorar a imagem pĂșblica dos curandeiros, certo?
â Isso e, ao mesmo tempo, garantir que os prĂłprios curandeiros fiquem satisfeitos. â Eu sabia o quĂŁo impossĂvel isso soava, mas precisava apenas de um fio de ideia para me agarrar.
â E se reduzĂssemos os preços temporariamente como prova de conceito?
â Desculpe, mas tente nĂŁo pensar dessa forma. â Reduzir drasticamente os preços para depois aumentĂĄ-los de volta ao normal era praticamente um convite para tumultos. Era arriscado demais.
â Nem todos vĂŁo concordar com vocĂȘ. Acho uma tolice tentar satisfazer todas as pessoas ao mesmo tempo.
â Concordo com vocĂȘ nisso, mas me sinto ansioso, como se precisasse agir rĂĄpido antes que outros aspirantes a curandeiros fossem pegos no Ăłdio e na corrupção.
â EntĂŁo por que nĂŁo deixar a decisĂŁo para o indivĂduo?
â O indivĂduo? VocĂȘ quer dizer deixar o paciente escolher seu curandeiro e a magia com a qual serĂĄ tratado?
â VocĂȘ disse uma vez que a magia utilizada para curar alguĂ©m deveria ser baseada em um exame minucioso, certo? Se os resultados desse exame fossem comunicados ao paciente e a escolha fosse dele, a responsabilidade nĂŁo recairia sobre o curandeiro.
Essa era uma opção interessante. Duas cabeças pensam melhor do que uma. Da prĂłxima vez que tivesse oportunidade, precisaria lembrar de perguntar a opiniĂŁo das outras ValquĂrias tambĂ©m.
â Tem algumas falhas nessa ideia, mas vocĂȘ me deu alguma esperança de fazer esse rascunho ser aprovado. Agradeço.
â Fico feliz em ajudar. Em que ponto estĂŁo seus pensamentos agora?
â Bem, vejamosâŠ
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â Luciel? Luciel! EstĂĄ ouvindo? â Uma voz alĂ©m da minha consciĂȘncia interveio justo quando eu estava prestes a explicar o cerne da minha proposta para Lumina em meu devaneio. â Luciel! O que estĂĄ murmurando aĂ?
â HĂŁ? Ah, desculpe, Catherine. Me perdi pensando em algo de mais cedo hoje.
Eu havia me perdido em pensamentos, mas Catherine me trouxe de volta ao presente. Nomes de peso de todas as facçÔes estavam sentados ao nosso redor, analisando os documentos que eu havia preparado.
â Por favor, mantenha o foco. Estamos todos aqui porque vocĂȘ insistiu que havia um problema a ser corrigido.
â Desculpe.
Ela estava absolutamente certa. QuĂŁo estĂșpido seria estragar tudo assim depois de ter chegado tĂŁo longe? As informaçÔes de Granhart, o conselho de Lumina e meu rascunho finalizado teriam sido em vĂŁo.
â O garoto deve estar cansado. NĂŁo faz nem um mĂȘs desde sua grande cerimĂŽnia e ainda assim preparou uma quantidade admirĂĄvel de material para esta reuniĂŁo â comentou o arcebispo. De acordo com Granhart e Catherine, Mardan era uma figura proeminente dentro da facção dos Moderados, mas um homem gentil e piedoso.
Os documentos que todos tinham Ă sua frente eram minhas diretrizes propostas para os serviços de cura. Elas tornavam o exame do paciente um passo obrigatĂłrio no processo de tratamento e garantiam ao paciente o direito de saber como seria curado e quanto pagaria. TambĂ©m estabeleciam novas opçÔes de preços para a magia, proibiam o uso indiscriminado de feitiços de alto nĂvel e consideravam vĂĄrias medidas que a prĂłpria Igreja poderia tomar em sua liderança sobre a guilda.
â Isso Ă© um ponto justo; no entanto, devo dizer que esperava que este documento estivesse relacionado a prĂĄticas legislativas, nĂŁo Ă reestruturação total da profissĂŁo de curandeiro.
O orador, Muneller, era um homem com uma expressĂŁo que lembrava um vendedor de rua. Seu tĂtulo exato era um mistĂ©rio, mas ele era a mĂŁo direita do papa, frequentemente aparecendo em eventos nacionais e internacionais no lugar de Sua Santidade.
Antes desta reuniĂŁo, ele me puxou de lado e disse:
â NĂŁo vou fingir ser seu aliado, mas lhe deram a palavra, e seria sensato aproveitĂĄ-la bem.
â Concordo. Os curandeiros fariam uma greve em massa se isso se tornasse lei â declarou Dongahar (sim, esse era mesmo o nome dele). Ele era o lĂder dos Reformistas e se opĂŽs a essa reuniĂŁo atĂ© o Ășltimo instante.
Normalmente, a oposição do lĂder da facção mais poderosa seria uma sentença de morte para qualquer legislação, mas a purga realizada por Sua Santidade contra os membros mais corruptos da Igreja atingiu os Reformistas com força, fazendo com que perdessem uma parte significativa de sua influĂȘncia. Isso deu ao papa margem para negociar com eles e permitiu que a reuniĂŁo acontecesse.
â Mas quem somos nĂłs para desobedecer a Sua Santidade? â comentou o ex-capitĂŁo templĂĄrio.
Depois de uma lesão que o forçou a se aposentar do serviço ativo, Bulteuse se dedicou à Igreja como curandeiro e subiu rapidamente ao posto de arcebispo, tornando-se alvo de muitos rumores maldosos. No entanto, sua personalidade afåvel o tornava bem-quisto entre seus pares. Embora fosse um Lealista no coração, era relativamente independente e, segundo Granhart me contou, quase tão influente quanto alguns Reformistas. Junto com Catherine, ele estava moderando a discussão.
â De fato, mas a verdade Ă© que uma rebeliĂŁo seria altamente provĂĄvel se de repente acorrentĂĄssemos os curandeiros, privando-os das liberdades que possuĂam â insistiu Dongahar. â Na verdade, como o responsĂĄvel por essa mudança, a vida de Luciel poderia estar em perigo por causa disso.
Um calafrio percorreu minha espinha. Aquilo nĂŁo era uma demonstração de preocupação â era um aviso. Eu era resistente o suficiente para nĂŁo me preocupar com um atentado que nĂŁo me matasse de imediato, mas fiz uma anotação mental para manter minha guarda alta.
â NĂŁo podemos ignorar esses problemas por mais tempo. Ou serĂĄ que querem ver a Igreja e sua autoridade ruĂrem completamente? â desafiou Mardan.
â Ah, bom, entĂŁo suponho que devemos encaminhar imediatamente os planos de Luciel para ratificação de Sua Santidade, arcebispo â Dongahar lançou-me um olhar fulminante, e eu soube no mesmo instante que ele seria um problema.
â NĂŁo imediatamente, nĂŁo. HĂĄ lacunas a preencher e detalhes a serem discutidos, como estou certo de que sabe muito bem.
â Contanto que as mudanças nĂŁo sejam drĂĄsticas, suponho que mereçam consideração.
Para um grupo chamado âReformistasâ, Dongahar parecia incrivelmente conservador.
â EntĂŁo estamos de acordo que nossa tarefa atual Ă© ver a reestruturação da Guilda dos Curandeiros â afirmou Muneller.
Mardan sorriu e assentiu, mas Dongahar fez questĂŁo de demonstrar sua relutĂąncia ao dizer:
â Muito bem. O que faremos? Certamente esses documentos nĂŁo devem servir como base.
â Luciel â o idoso Mardan me chamou â, essas diretrizes realmente restaurarĂŁo o nome dos curandeiros e da Igreja?
Finalmente. Estava ali sentado, me perguntando quanto tempo demorariam para reconhecer minha presença.
â Francamente, nĂŁo. Elas nĂŁo sĂŁo nem de longe suficientes.
â NĂŁo sĂŁo suficientes? â repetiu o Reformista.
Mas ainda era muito cedo para as discussÔes se acalorarem tanto. Eu estava só começando.
â Como disse no meu discurso, âcurandeiroâ e âgananciosoâ quase se tornaram sinĂŽnimos por um motivo. Enquanto curandeiros corruptos destroem vidas cobrando preços exorbitantes, a Igreja e a guilda que a supervisiona permaneceram em silĂȘncio. Coniventes.
â Vejo sua lĂłgica, mas Ă© simplesmente impossĂvel para nĂłs sabermos o que acontece em cada clĂnica â rebateu Dongahar. â E se um feitiço de alto nĂvel for considerado necessĂĄrio para curar uma ferida, e o paciente contestar o julgamento do curandeiro apĂłs o tratamento?
Essa era uma Ăłtima questĂŁo. Se priorizĂĄssemos demais os pacientes, os prĂłprios curandeiros sofreriam. Foi aĂ que um certo sistema de bom senso da minha vida passada me veio Ă mente: o seguro de saĂșde.
â Podemos nos proteger disso solicitando o consentimento do paciente e pedindo que ele assine um termo antes do tratamento. Nos casos em que estiver inconsciente, pedirĂamos a um amigo ou familiar para assinar por ele.
â Entendo. Criamos uma responsabilidade conjunta.
â Exatamente. TambĂ©m estou considerando a possibilidade de a Guilda dos Aventureiros cobrir parte dos custos do tratamento de seus membros, se necessĂĄrio.
Se isso seria Ăștil para as pessoas, ou mesmo se aceitariam esse sistema, eu nĂŁo podia afirmar com certeza. Mas achei que apresentar a ideia a um grupo de lĂderes de facção nĂŁo faria mal.
â A Guilda dos Aventureiros nĂŁo Ă© responsĂĄvel pelos ferimentos de seus membros. Simplesmente nĂŁo consigo imaginar por que aceitariam sua proposta â disse Muneller.
â VocĂȘ estĂĄ absolutamente certo. SĂł Ă© possĂvel se registrar como aventureiro apĂłs concordar com a clĂĄusula de que a guilda nĂŁo Ă© responsĂĄvel por suas açÔes. Mas pense no que aconteceria se um curandeiro dissesse a um aventureiro ferido que ele nĂŁo poderia ser tratado sem dinheiro.
â A culpa recairia sobre o curandeiro. Ele seria considerado ganancioso.
A objetividade pura era essencial aqui. Eu não podia deixar minhas emoçÔes interferirem. Eles queriam saber como isso beneficiaria a Guilda dos Curandeiros.
â Exato, e isso seria injusto. EntĂŁo, ao transferirmos a responsabilidade do pagamento para a Guilda dos Aventureiros, a culpa recai sobre eles, nĂŁo sobre o curandeiro.
Dongahar soltou uma risada.
â Agora sim, essa Ă© uma ideia! VocĂȘ quer inverter o jogo contra eles.
â NĂŁo serĂĄ tĂŁo fĂĄcil se os curandeiros forem os Ășnicos beneficiados.
â Mas implementar suas diretrizes equilibraria a balança â observou Mardan.
â Em teoria. Tenho certeza de que os curandeiros que se acomodaram no sistema atual se oporĂŁo ferozmente a essas mudanças, mas acredito que isso ajudaria a tornar a cura uma profissĂŁo respeitĂĄvel novamente.
Seguiu-se um silĂȘncio enquanto os presentes refletiam sobre a proposta, aparentemente de forma favorĂĄvel, atĂ© que Mardan perguntou:
â Posso fazer uma pergunta?
â Claro.
â O que te motiva? Por quem vocĂȘ defende esses ideais? Me diga honestamente.
Hesitei por um momento. Mas senti que sabia a resposta, como se jĂĄ a conhecesse vagamente hĂĄ algum tempo.
â Essa Ă© uma boa pergunta. Parte disso Ă© pelo povo, claro, e parte pelos meus companheiros curandeiros. Mas, ao mesmo tempo, sinto queâno inĂcio, pelo menosâera por mim mesmo.
â Por vocĂȘ mesmo?
â Em Merratoni, onde me tornei curandeiro pela primeira vez, havia uma clĂnica cheia de talento, com curandeiros capazes de usar magias como Cura Avançada. Como todos aqui devem saber, Ă© necessĂĄrio ter pelo menos nĂvel seis em Magia Sagrada para lançar esse feitiço, entĂŁo, quando ouvi falar desse lugar pela primeira vez, fiquei cheio de respeito e admiração pelo esforço que eles dedicaram apenas para ajudar os outros.
Se Bottaculli nĂŁo estivesse brincando com a vida dos aventureiros, eu adoraria ter aprendido com ele.
â Mas somos apenas humanos, e somos atraĂdos por bens materiais, assim como tenho certeza de que aquela clĂnica tambĂ©m era. No fim, a Ășnica intenção deles era arrancar cada cobre possĂvel de seus pacientes, sabendo muito bem que suas açÔes gerariam Ăłdio.
â EntĂŁo seu objetivo com tudo isso Ă© evitar ser odiado?
â De certa forma. Acredito que dedicar-se a um ofĂcio por tanto tempo apenas para usar seus talentos em benefĂcio prĂłprio Ă© um desperdĂcio horrĂvel. Ao definir claramente as taxas e os serviços, e criar um ambiente acessĂvel para que todas as pessoas recebam tratamento, podemos tornar a cura acessĂvel a todos. Nosso trabalho ficarĂĄ mais intenso, mas podemos fazer com que os curandeiros sejam reverenciados novamente.
Sem falar nos avanços de classe e nĂvel de habilidade que isso poderia gerar.
â E entĂŁo, talvez um dia, as crianças dirĂŁo a seus pais: âQuero ser um curandeiro quando crescer.â Esse Ă© o futuro com o qual sonho. NĂŁo importa os obstĂĄculos que eu enfrente, nĂŁo importa as tempestades que eu tenha que suportar, eu nĂŁo vacilarei. Sou um curandeiro de rank S e levarei esperança ao povo.
Ă claro que eu estava ignorando o fato de que as crianças nĂŁo podiam realmente escolher o que queriam ser quando crescessemâessa escolha era feita para elas na cerimĂŽnia de maioridade. Mas ainda assimâŠ
A sala ficou completamente silenciosa. Eu me empolguei um pouco ali, e agora todos estavam me encarando. Em silĂȘncio.
Olhei desajeitadamente para os moderadores, e Catherine pareceu despertar de seu transe.
â Luciel claramente pensou muito sobre o futuro dos curandeiros. Como a mesa responderĂĄ?
â Esse homem tem convicção. Acho que devemos deliberar mais profundamente sobre sua proposta.
A postura de Dongahar mudou completamente do nada, e ele começou a reler meu rascunho com seriedade.
Todos os outros o seguiram, e logo o Ășnico som na sala era o de pĂĄginas sendo viradas.
â âSou um curandeiro de rank S, o portador da esperança.â Talvez seja a juventude que o leva a citar palavras tĂŁo lendĂĄrias â murmurou Dongahar â, ou talvez seja esse fogo que o levou Ă sua posição atual.
Agora Dongahar estava me elogiando. âPalavras lendĂĄriasâ? Eu nĂŁo podia estar mais perdido.
â Com licença, o quĂȘ?
â Eu sabia que essa proposta era importante para vocĂȘ â disse Catherine â, mas nunca imaginei que vocĂȘ sentia tĂŁo fortemente a ponto de citar o fundador da guilda, Lorde Reinstar Gustard.
Reinstar o quĂȘ? Eu citei alguĂ©m? Lembrei-me de ter lido uma histĂłria sobre um tal de Reinstar-alguma-coisa em Merratoni, mas jĂĄ havia esquecido quase tudo sobre isso. E algo em toda essa situação me dizia que aquele nĂŁo era o melhor momento para perguntar quem ele era.
â Por favor, nĂŁo hĂĄ necessidade de fazer alarde sobre isso. Como eu me sinto Ă© irrelevante para determinar se isso Ă© certo para a Igreja ou nĂŁo.
â Oh, mas nĂŁo estamos exagerando â disse Bulteuse. â Este Ă© seu primeiro ato como um rank S, Luciel. Se algum dia os feitos da sua vida forem registrados em um livro, essa reuniĂŁo serĂĄ mencionada nos anais da histĂłria em todo o mundo.
Se eles não estavam exagerando antes, agora definitivamente estavam. Bulteuse começou a ditar instruçÔes ao cronista como se minha biografia jå estivesse sendo escrita.
â Devemos nos esforçar para garantir que Luciel nĂŁo passe necessidade alguma em suas viagens â disse Mardan com paixĂŁo.
Desde quando viajar fazia parte da descrição do cargo de rank S?
â Seria muito perigoso para ele partir sozinho, como fez Lorde Reinstar. Devemos considerar a organização de uma guarda pessoal â acrescentou Muneller.
â Devemos reunir companheiros entre os cavaleiros? â sugeriu Dongahar.
â Pelo que sei, Luciel tem boas relaçÔes com as ValquĂrias, mas designar tanto o CapitĂŁo da Guarda quanto aquelas mulheres para acompanhĂĄ-lo seria exigir demais.
Granhart havia me dito diretamente para nĂŁo esperar que as facçÔes chegassem a um consenso. Nunca. O que tornava tudo isso ainda mais confuso para mim. E agora estavam falando sobre companheiros e viagens, e nĂŁo parecia que estavam se referindo a algumas simples paradas pelo paĂs. O que eu fiz para merecer isso?
â Me desculpe, Luciel, mas nĂŁo podemos enviar as garotas com vocĂȘ â disse Catherine, desculpando-se.
â Hm⊠Tenho um pĂ©ssimo pressentimento sobre isso.
â NĂŁo diga mais nada â interrompeu Dongahar. â VocĂȘ, Ă© claro, tem total liberdade para adquirir escravos no exterior, caso precise de combatentes habilidosos para sua jornada.
â NĂŁo, nĂŁo Ă© isso que euâŠ
â Fique tranquilo. Seu cartĂŁo de curandeiro de Rank S garantirĂĄ que vocĂȘ receba o devido respeito e veneração, mesmo em Illumasia â acrescentou Muneller.
Nenhum deles entendia minha ansiedade. Viajar dentro do paĂs jĂĄ era uma aposta de vida ou morte para mim, e agora queriam que eu cruzasse o mundo inteiro? Isso era por causa daquela maldita bĂȘnção do dragĂŁo? NĂŁo, isso seria um exagero⊠Embora uma turnĂȘ internacional fosse uma desculpa surpreendentemente conveniente para libertar os irmĂŁos dele que estavam presos. Ainda bem que nĂŁo havia a menor chance de eu sair conquistando mais labirintos.
â Ele provavelmente investigarĂĄ atos de corrupção em seus destinos, entĂŁo precisarĂĄ de um cristal de comunicação arclink. Teremos que entrar em contato com Neldahl. Eu informarei Sua Santidade â disse Bulteuse.
â Vou preparar um mapa para ele â acrescentou Mardan.
â Sua habilidade em equitação precisarĂĄ melhorar se pretende viajar, Luciel. Aqui em Shurule Ă© relativamente seguro, mas ao atravessar nossas fronteiras, terĂĄ que se preocupar mais com bandidos e outros perigos. Pode pedir ajuda Ă s ValquĂrias para isso?
â Ah, claro?
Catherine provavelmente sabia que ForĂȘt Noire era o Ășnico cavalo que eu conseguia montar de verdade. O nĂvel de habilidade nĂŁo determinava se vocĂȘ podia montar qualquer cavalo, mas ForĂȘt era o Ășnico que nĂŁo me jogava no chĂŁo assim que eu tentava subir.
â Ah, como eu queria ser jovem o bastante para acompanhĂĄ-lo, mas infelizmente⊠â lamentou Dongahar.
â Vamos fazer tudo ao nosso alcance para que Luciel parta bem preparado e o quanto antes! â declarou Mardan.
Todos concordaram em unĂssono, e logo a discussĂŁo voltou Ă questĂŁo das diretrizes.
Nos dias seguintes, reunimo-nos com especialistas de cada facção para finalizar o rascunho. Ver aquele documento, antes tão båsico, evoluir para uma legislação formal, com um cronograma real de implementação, e acompanhar os avisos sendo enviados para as filiais da guilda, me fez perceber o quão pouco eu sabia sobre o processo. Não havia quase nada que eu pudesse fazer.
Por algum milagre, apenas dez dias após nossa primeira reunião, quase todos os pontos do meu rascunho original foram incorporados, aprovados por todas as facçÔes e, em seguida, ratificados pelo próprio papa.
Ironicamente, isso nĂŁo me deixou animado, mas sim preocupado com a fragilidade daquilo. A qualquer momento, qualquer um dos grupos fragmentados da Igreja poderia simplesmente barrar as diretrizes num piscar de olhos, assim, do nada.
Tradução: CarpeadoPara estas e outras obras, visite o Carpeado Traduz â Clicando Aqui
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