Seija Musou | The Great Cleric
– Arco 05: Para Reviver a Guilda dos Curandeiros – Capítulo 02
[No
Negócio de Escravos e Milagres]
Ao deixar o salão caindo aos pedaços em busca do mercado, nosso grupo se tornou o centro das atenções por onde passava. Não que eu pudesse culpar os moradores por desconfiarem de um bando de estranhos vestidos de branco. Nosso visual era comum na Cidade Sagrada, mas nos destacávamos bastante até mesmo em Merratoni.
Não podíamos simplesmente vagar sem rumo para sempre, então tentei pedir informações para alguns locais, mas sem sucesso. Todos viravam as costas e fingiam que não existíamos. Finalmente, ouvi alguém mencionar um mercado e alguns mercadores de escravos por perto.
Depois de um pouco de errância, encontramos três estabelecimentos que vendiam pessoas. O primeiro nos recusou, dizendo que precisávamos de um convite para entrar, e o segundo não foi muito melhor. Shahza havia chegado antes de nós e instruído que não vendessem para ninguém da Guilda dos Curandeiros.
O terceiro local, próximo às favelas, não era nossa primeira escolha, mas, naquele ponto, era nossa última esperança. A aparência suja do prédio não significava que eles não tivessem guerreiros fortes.
— Todos, esperem aqui fora. Vou procurar por artesãos fortes e capazes. Algo mais que devo considerar?
Ninguém respondeu, então entrei na loja. O interior, surpreendentemente, não era tão sujo quanto o exterior, mas também não era bonito.
— Vocês vendem escravos aqui?
— Humano, hein? Não vejo muitos de vocês por aqui. — Um sorriso vulgar surgiu no rosto do dono, que tinha orelhas de lobo. — Sim, temos escravos, mas vai te custar pelo menos cinco moedas de ouro. Tem o dinheiro?
Eu não estava acostumado a lidar com esse tipo de comerciante inescrupuloso, mas não tinha muitas opções.
— Tenho bastante. — Respondi com confiança fingida. — Quanto custa o mais caro que você tem?
— Metido, hein? Um elfo sai por cinco moedas de platina. Serve pra você?
Ele estava de olho na minha bolsa enquanto falava, mas mantive a compostura.
— Só verificando o preço máximo. Detesto pensar que você mantém um elfo nesse lugar imundo.
— Tá tirando com a minha cara? Vou limpar isso aqui no dia em que tirar teia de aranha me der dinheiro, moleque.
O tom do homem mudou rapidamente quando percebeu que dinheiro estava envolvido.
— Que pena. — Tirei uma moeda de platina e a segurei entre os dedos. — Prefiro fazer compras em lugares mais higiênicos.
As orelhas dele se ergueram e sua cauda começou a balançar.
— Agora, senhor, precisava mesmo de toda essa encenação? Eu sabia que você era gente boa!
— Me mostre todos os escravos que tem. Se me der um desconto, talvez eu até ajude a limpar esse lugar.
O homem-lobo concordou imediatamente, esfregando as mãos com um sorriso traiçoeiro enquanto me guiava para dentro.
Cada escravo tinha sua própria cela privada, com homens e mulheres separados por andar. Começamos o tour pelo andar feminino, começando com a elfa mencionada. Mas, toda vez que eu encontrava o olhar de uma delas, desviavam os olhos, desapontadas. Sem dúvida, assumiam que um jovem como eu não teria dinheiro para comprá-las. Felizmente, todas pareciam estar em um estado decente o suficiente para que eu não me sentisse obrigado a levar todas.
Continuamos até que percebi que não havia outros funcionários por perto, mas essa preocupação logo desapareceu da minha mente.
Entre os escravos, vi muitos que haviam perdido um ou vários membros, inclusive crianças. Tive que me controlar para não curar cada um deles, mas só estaria ajudando o negócio do mercador de escravos se fizesse isso. Cerrei os punhos e aguentei.
Havia escravos de quase todas as raças que eu conseguia imaginar: humanos, anões, draconianos, elfos e até homens-fera. Eu me perguntava como um buraco desses conseguia lucrar o suficiente para ter uma variedade tão grande. Seria normal? Difícil dizer, já que não cheguei a ver os outros dois lugares.
O dono da loja continuava falando sobre preços e negócios, se gabando de como eu nunca encontraria draconianos ou elfos como os dele em outro lugar, mas as palavras entravam por um ouvido e saíam pelo outro.
— Por que todos parecem tão sem vida?
Muitos nem pareciam querer sair de suas celas, como se simplesmente estivessem cansados de viver. Os escravos de Bottaculli não estavam exatamente radiantes, mas ainda havia um brilho em seus olhos.
— São escravos. Isso te surpreende? — respondeu ele, erguendo uma sobrancelha.
— Acho que não. Me mostre seus homens agora. Decidirei depois disso.
No momento em que falei, senti o ar na sala mudar ao redor dos escravos em suas celas. Ignorei e segui o comerciante.
— Por aqui. — Ele riu, mas não consegui dizer se era por minha causa ou por seus produtos.
O andar masculino tinha bem menos prisioneiros do que o feminino. O homem-lobo continuou com seu discurso de vendas, mas eu o ignorei e me concentrei nos escravos à minha frente.
Brod me ensinou um truque para testar a força de alguém: emitir uma aura intensa de intimidação. Eu havia evitado usá-la no andar das mulheres, mas agora deixei-a fluir livremente. Alguns dos homens se encolheram, enquanto outros retribuíram com olhares afiados. Dentre esses, escolhi três que não demonstraram nenhuma reação.
— O anão sem braços, o cara mais velho com os tendões cortados e o jovem de cabelo escuro. Quero falar com eles individualmente. Quanto custam?
O comerciante desanimou. Eles deviam estar entre os mais baratos.
— O anão já foi um grande ferreiro, pelo que dizem. Perdeu os dois braços em um acidente, então só pode dar conselhos. Cinco moedas de ouro. O segundo pode parecer velho, mas é de meia-idade, juro. Dizem que era experiente no campo de batalha, mas foi traído pelos aliados. Envenenaram ele e cortaram os tendões das pernas. Não vai andar, mas depois de tudo que gastei com ele, não vendo por menos de cinco de ouro. E esse pirralho sujo é um prisioneiro de guerra. Acabou vindo parar aqui e agora estou preso com ele. Mas ele é jovem, então, vinte de ouro.
Se ele estava tentando fazer uma venda agressiva, não estava fazendo um bom trabalho. Mas, dessa vez, consegui obter algumas informações valiosas em meio à sua tagarelice. Principalmente, que ao recuperar a forma física do anão e do guerreiro (literalmente) com Extra Cura, eu poderia trazer aliados poderosos e motivados para o lado da guilda com bastante facilidade. Sua Santidade havia me proibido de usar esse feitiço, mas tempos difíceis exigiam medidas drásticas.
— Entendido. Gostaria de falar com eles agora. Em particular, se possível. Com certeza não há problema, certo? Você não negaria isso a um cliente, negaria?
Ele riu.
— Sem problema. Sem problema algum!
Se eu não gastasse meu dinheiro aqui, onde mais gastaria? O mercador de escravos não precisava saber disso, é claro, mas ainda assim.
O anão sem braços entrou primeiro na pequena sala de reuniões, arrastando os pés sem entusiasmo. Não havia vida em seu olhar.
— Sente-se — sugeri. — Só quero fazer algumas perguntas. E, por favor, responda com sinceridade. Ah, mas antes, deixe-me me apresentar. Meu nome é Luciel, e sou um curandeiro de rank S. Agora, suponha que você tivesse seus braços de volta. Você tem outras habilidades além da metalurgia? Carpintaria, talvez?
O anão bufou.
— Com quem acha que tá falando?
Uma chama surgiu nos olhos antes apagados.
— Eu nasci pra forjar, garoto! Abençoado pelo Ferreiro Divino desde o nascimento! Acha que bater em metal é tudo que envolve o trabalho com ferro?!
Seu olhar estava carregado de indignação. Ele estava ofendido por eu ter ousado questionar suas habilidades. Sem dúvida, teria feito um escândalo se ainda tivesse os braços.
— Então, presumo que seja confiante.
— Melhor escolher bem suas próximas palavras, moleque.
Eu estava tão perto de estragar tudo quanto de fechar o negócio.
— Deixe-me ser mais específico. — Fixei os olhos nos dele. — Se você tivesse seus braços de volta, estaria disposto a jurar lealdade e ajudar na reconstrução da Guilda dos Curandeiros local?
O anão hesitou.
— Talvez. Se o trabalho não for muito ruim.
Ele soltou as palavras com dificuldade, tentando e falhando em esconder o tremor em sua voz. O espírito de um artesão era algo difícil de extinguir.
Isso resolve a questão.
— Qual é o seu nome?
— Dhoran.
— Bem, Dhoran, tenho mais uma pergunta. Há mais alguém aqui que você gostaria que eu comprasse junto com você?
— Por que pergunta?
Era difícil não notar o quanto ele estava inquieto, ou os olhares ocasionais que lançava para o andar das mulheres.
— Se você jurar usar suas habilidades para a Guilda dos Curandeiros, incluindo auxiliar na reconstrução da sede e na produção de armas e armaduras, prometo que não encontrará um lugar melhor para colocá-las em uso. — Sorri.
Ele hesitou.
— Você é um rank S, hein? Um curandeiro? Se isso significa o mesmo que para os aventureiros, então você tem dinheiro de sobra.
— Pode-se dizer que sim. Fiz uma pequena fortuna derrotando monstros mortos-vivos imundos por alguns anos.
Dhoran fechou os olhos, provavelmente tentando esconder a leve angústia em minha expressão, e então grunhiu baixinho em reconhecimento.
— Não precisa se preocupar com minhas finanças. Diga-me quem mais você quer que eu compre.
— Uma mestiça de humano e anão. Minha neta, Pola. Você a viu? É uma garota quieta. Cabelos castanho-avermelhados. Só tem dezesseis anos.
O nervosismo de antes desapareceu, dando lugar à emoção crua e à preocupação, que superaram seu orgulho. A família fazia isso com as pessoas às vezes.
— Vou procurá-la assim que terminar de conversar com os outros. Você tem minha palavra.
O próximo a entrar foi o velho ex-guerreiro. Considerando suas pernas debilitadas, eu esperava que ele viesse em uma cadeira de rodas, mas ele entrou se arrastando sobre um par de muletas.
Eu pude perceber imediatamente o quão bem construído e forte esse cara era, apenas por essa demonstração.
— Vou direto ao ponto — eu disse. — Consigo sentir o quão forte você é. Você tem a mesma presença do meu mestre.
Eu senti a aura ao redor dele mudar imediatamente.
— E o que tem isso? — ele respondeu.
— Ouvi dizer que foram seus aliados que fizeram isso com você. Pessoas em quem você confiava. Você está em busca de vingança?
Ele riu de forma debochada.
— Vingança? Contra quem? Uma nação inteira? Não, meu passado é irrelevante. Estou mais interessado em saber que tipo de mestre poderia treinar um curandeiro para ter esse tipo de físico.
A juventude parecia voltar à sua expressão cansada. Algo nele me atingiu da mesma forma que Brod. Talvez todos os lutadores desse calibre compartilhassem uma certa vibração.
— Ele é conhecido como o Furacão, se isso satisfaz sua curiosidade. Mas quem é você? Aliás, deixa pra lá. Esse vai e vem não vai nos levar a lugar nenhum. Sobre suas pernas, o veneno as torna incuráveis?
— Foi o que me disseram. — Ele voltou a se encolher, parecendo o velho de antes.
— Se eu ajudar você a andar de novo, você juraria proteger a mim e aos meus companheiros?
— Sou velho, garoto. Qual é o seu objetivo? — Mais uma vez, uma chama brilhou em seus olhos.
— Estou procurando pessoas para proteger o Guilda dos Curandeiros local e nossos pertences. Talvez se juntar a mim e ao meu time nos treinos de vez em quando. Parece viável?
— Só isso?
Será que senti um toque de frustração?
— Por enquanto. Até eu pensar em mais alguma coisa com que você possa ajudar.
O homem riu e, em seguida, soltou uma gargalhada.
— Parece um punhado de problemas! Tudo bem, se sua palavra for boa e você me fizer andar de novo, eu te chamarei de senhor, mestre ou o que quiser.
— Espero que não se arrependa de dizer isso.
O fogo no olhar dele havia sido reacendido, e eu parei de tentar acompanhar quantos anos ele aparentava ter de um momento para o outro. Comecei a me perguntar se era o Senhor da Sorte quem havia nos reunido depois que os outros dois mercados de escravos nos recusaram.
Assim como fiz com Dhoran, perguntei ao homem mais velho seu nome e quem mais ele queria que eu comprasse.
— Eu sou Lionel — ele respondeu. — E tem uma humana chamada Nalia e uma mulher-gato chamada Ketty que eu gostaria que você encontrasse. Têm trinta e três e vinte e três anos, respectivamente.
— Entendido. Espero que você retribua o favor.
— Da melhor forma que puder, com essas pernas.
Minha última reunião foi com o jovem que tinha mais ou menos a minha idade.
— Ouvi dizer que você é um prisioneiro de guerra. É verdade? — perguntei.
— Sim. Sou filho da realeza, e o império me usou como refém quando invadiram. — Havia uma paixão nele, diferente dos outros escravos. Liguei os pontos e imaginei que ele devia ter vindo de Luburk, considerando o conflito em andamento com Illumasia.
— Então, deixe-me perguntar uma coisa: qual é o seu objetivo? É vingança? Se for, sinto muito, mas não posso te ajudar com isso.
Ele me encarou em silêncio.
— Estou aqui para fundar uma Guilda dos Curandeiros neste país e preciso de ajuda. Escravo ou não, pretendo tratar todos os envolvidos com humanidade, então, se puder me prometer que viverá sua vida com esse objetivo, eu o acolherei. Se não, terá que encontrar outra pessoa para buscar retribuição. A escolha é sua.
A segurança vinha sempre em primeiro lugar. Eu não estava no mercado de ressentimentos ou inimigos.
O jovem contemplou isso com uma expressão sombria e então perguntou:
— Por quanto tempo você me manteria?
Fiquei sem resposta. Não tive a chance de considerar essa questão e não tinha uma resposta pronta. Mentir não adiantaria; isso era óbvio.
Ficamos em silêncio por um tempo, até que finalmente respondi:
— Para ser sincero, não acho que poderia te libertar tão cedo. Não tenho ideia de quanto tempo levará para estabelecer a guilda, sem falar em administrar novas clínicas. Honestamente, não posso oferecer um prazo agora.
Fiz minha pesquisa sobre escravos depois do incidente com Bottaculli em Merratoni. Não havia nenhuma condição que um escravo, exceto os ligados a dívidas ou crimes menores, pudesse cumprir para se libertar. Somente a vontade do mestre poderia realizar isso.
— Eu... — O homem abaixou a cabeça e cerrou os punhos até que seus nós dos dedos ficassem brancos.
Fiz mais algumas perguntas, mas sua luz se apagou. Eu teria que deixá-lo ali, e eu sabia disso. Tudo o que pude oferecer foi uma oração para que encontrasse um dono gentil e um pouco de magia para arrumar seu cabelo bagunçado.
— Obrigado, senhor — ele disse em um sussurro fraco. — Pode me deixar aqui. Por favor, não me compre.
E, com isso, ele saiu da sala. Eu sabia que, se o comprasse, o vazio em seu coração nunca seria preenchido. A escuridão dentro dele apenas aumentaria.
— Algumas coisas estão além do nosso controle — murmurei, encarando a porta por onde ele havia saído. — Se eu tivesse ao menos metade do coração dos arcebispos, talvez pudesse ter feito algo para ajudá-lo, nem que fosse um pouco.
Depois de um momento, deixei a sala também.
O mercador de escravos esperava do lado de fora do quarto, mãos juntas e um sorriso ainda mais largo no rosto.
— Vou levar o anão e o guerreiro — eu disse. — Mas antes, quero dar outra olhada nas mulheres para conseguir mais algumas mãos extras.
— Seu negócio é muito apreciado — ele zombou.
Seguimos para o andar das mulheres, e eu já sabia exatamente quem procurar. A halfling, uma humana e uma mulher-gato, repeti mentalmente. Minha intenção era comprá-las pelo mesmo motivo dos dois homens, e não como acompanhantes para os escravos masculinos. Eu preferiria muito mais tê-las do que qualquer outra pessoa ali. Diga o que quiser sobre encher os bolsos desse mercador, mas, no mínimo, eu tinha certeza de que a presença delas ajudaria a conquistar a confiança de todos.
Assim que chegamos, examinei as celas, mantendo suas descrições em mente, e logo encontrei minhas alvos.
— Posso fazer algumas perguntas a elas? — perguntei ao mercador.
— Mas é claro.
Ele claramente já havia percebido que eu estava buscando pessoas ligadas aos dois primeiros homens e, sem dúvida, iria me explorar no preço, mas deixei passar. Gostando ou não, era um gasto necessário.
Parei diante da garota de cabelos castanho-queimados primeiro. Ela era minúscula, mal chegava à altura do meu peito.
— Você é Pola? — perguntei suavemente. — Se não quiser falar, pode apenas acenar com a cabeça.
Ela hesitou por um instante, então assentiu levemente.
— Eu sou Luciel. Dhoran me pediu para te encontrar. Não se preocupe, não vou te obrigar a fazer nada que você não queira, tá bem? Só quero que ajude Dhoran no trabalho dele.
— O vovô está vindo? — a garota perguntou, impassível. Seu rosto mal se mexeu ao falar, mas eu senti sua guarda baixar um pouco.
— Isso mesmo. Vou consertar os braços dele.
Ela inclinou a cabeça.
— Você é um deus?

— Infelizmente, não — respondi com um sorriso sem jeito. — Você vai me ajudar a reconstruir a Guilda dos Curandeiros com o seu avô? Pode me prometer isso?
— Prometo. Desde que o vovô esteja lá.
Notei um leve sorriso em seu rosto.
Em seguida, encontrei as garotas que Lionel havia mencionado: Nalia e Ketty. Suas celas ficavam uma ao lado da outra.
— Sou Luciel — disse a elas. — Estou aqui para comprar vocês a pedido do Lionel. Vocês não serão forçadas a nada que não queiram fazer. Apenas trabalho braçal. Alguma pergunta?
— O senhor Lionel está bem? — perguntou a humana.
— Sim. Os tendões dele foram cortados, e ele não pode andar, mas pretendo resolver isso. Não se preocupem.
— Por favor, faça o que puder.
— Essa gatinha está com o senhor Lionel! — miou a mulher-gato. — Eu vou para onde ele for!
— Eu também. Contanto que eu esteja ao lado dele, seu desejo é uma ordem.
Certo... Quem era esse cara, afinal? Havia mais em Lionel do que ele deixava transparecer, mas deixei isso para depois. Elas funcionariam bem como um trio.
— Mercador — chamei —, vou levar essas três, além do anão e do homem mais velho com quem falei antes. Quanto custa?
— Digamos... uma moeda de platina — ele respondeu.
Eu sabia que ele ia me arrancar até a última moeda... espera, isso não era tão ruim. Escravas costumavam ser bem mais caras, mas esse preço era cerca de vinte moedas de ouro a menos do que eu esperava.
— Isso está mais barato do que eu planejava. Por que a gentileza?
— Sabe como é, tenho a sensação de que eu e você ainda vamos nos conhecer muito bem no futuro. Quem compra tantos escravos de uma vez provavelmente vai precisar de mais depois.
Tenho que admitir, ele dominava a arte do sorriso ardiloso e do esfregar de mãos. Infelizmente para ele, eu não via nosso relacionamento indo além de hoje, por mais lógica que sua afirmação tivesse.
Depois de um momento desconfortável, respondi:
— Suponho que sim. Não planejava comprar as garotas, mas se dinheiro for o suficiente para motivar os outros, tudo bem. Quem sabe eu acabe precisando de mais no futuro.
— Uma possibilidade muito real, senhor! — exclamou. — Escute, vai acontecer um leilão daqui a alguns meses. Pegue esse convite. Ele vai garantir sua entrada.
Um leilão de escravos? Organizado por homens-fera?
— Hã... certo. Mas por que eu? Você entrega isso para todo mundo que compra aqui?
— De jeito nenhum. Nem qualquer um pode participar. Eles me pedem para entregar os convites para pessoas com dinheiro de sobra.
— E o que você ganha com isso? — Um mercador fazendo favores sem motivo só poderia significar duas coisas: ou era louco, ou era uma armadilha. Não havia meio-termo.
— Nós, comerciantes, recebemos um bônus de dez por cento por cada escravo comprado por alguém que convidamos. Você arremata uns lances, continua comprando aqui... e todo mundo sai ganhando.
Tive a impressão de que ele não estava mentindo, mas isso não significava que eu confiava nele. Suas intenções não eram da minha conta, então comprei o que precisava e saí do estabelecimento.
Minha equipe ficou um pouco surpresa ao me ver sair com cinco pessoas, mas deixei as explicações para depois e seguimos de volta à guilda, com os cavaleiros carregando Lionel.
Ao chegarmos ao salão da guilda, coloquei todos a par da situação e imediatamente tratei Dhoran e Lionel com Cura Extra e Recover.
E, de repente, todos ao meu redor começaram a se ajoelhar.
— Hã, o que... — gaguejei. — O que está acontecendo? Por que estão me adorando?
Não me levem a mal, eu sabia que a habilidade de restaurar membros perdidos era impressionante, mas mesmo assim... Dhoran girava os braços regenerados e apertava os punhos, incrédulo, enquanto Lionel, já de pé e sem um único cicatriz nas pernas, dava passos hesitantes e pulinhos, se reacostumando ao movimento. Incapaz de se conter, Pola pulou nos braços novos do avô, e as garotas de Lionel logo a seguiram.
Os cavaleiros que vieram comigo da Igreja já conheciam o feitiço Cura Extra, mas nunca o tinham visto em ação. E, por mais que eu insistisse, eles não paravam de rezar para mim. Só quando sua devoção começou a influenciar os ex-escravos é que fiquei verdadeiramente constrangido.
Após incontáveis súplicas, finalmente desistiram, e fiz todos se apresentarem aos novos recrutas. Mesmo assim, continuavam com aquela reverência irritante. Era exaustivo, para dizer o mínimo, e de repente passei a respeitar muito mais quem tinha energia para viver sendo tratado como uma divindade. Eu, tímido do jeito que sou, definitivamente não estava acostumado com esse tipo de coisa.
— Todos prontos? Ótimo. Aqui está o plano. Novatos, este será seu lar e local de trabalho a partir de agora. — Dei uma olhada ao redor para garantir que todos estavam atentos. — Esse salão tem três andares e um porão. O terceiro andar será o escritório do mestre da guilda, o segundo será o alojamento dos cavaleiros e curandeiros, e este andar será a recepção. O porão servirá como seus próprios aposentos.
Os escravos assentiram.
— Dhoran — continuei —, posso deixar você encarregado de colocar esse lugar em ordem? Só um aviso: ele está abandonado há anos.
— Considere feito — respondeu o anão. — E somos escravos, garoto. Agradeceria se cortasse as formalidades.
— Igualmente — comentou Lionel.
Eles pareciam bem mais relaxados desde que foram curados. Talvez até demais? Bom, provavelmente era a forma deles demonstrarem gratidão.
— Se insistem... quer dizer, tudo bem. Não estou acostumado a ser tão informal, então se eu acabar voltando para o modo educado, apenas ignorem.
Eles assentiram, reconhecendo meu pedido.
— Enfim, voltando ao assunto principal. Dhoran, tenho certeza de que já notou os buracos no teto e no chão. Me avise de quais materiais vai precisar.
— Pode deixar.
— Ah, e eu esqueci de mencionar que há três depósitos no andar de baixo. Dhoran e Pola dividirão um; Ketty e Nalia outro, e Lionel ficará com o menor para ele mesmo.
— Entendido — respondeu Lionel.
— Seu trabalho será a segurança. Pelo que eu entendi, esta cidade não é das mais organizadas, e estamos nos becos. Pretendo manter os cavalos dentro por um tempo, já que deixá-los do lado de fora é arriscado, mas não podemos fazer isso para sempre.
— Então é trabalho de estábulo, é isso?
— Por enquanto. Até conseguirmos construir um estábulo de verdade no salão, mas, no momento, não temos espaço para expandir. Qualquer ideia que tiver, fale com Dhoran. Isso vale para todos da Ordem também. Pensem neste lugar como nossa fortaleza. Todos temos que fazer a nossa parte para manter isso funcionando.
— Sim, senhor! — meu grupo respondeu em coro, sorrisos por toda parte.
Eles rapidamente se perderam em pensamentos, animados com a possibilidade de algumas melhorias no local. Dhoran ergueu a mão com um brilho nos olhos.
— Alguma coisa a acrescentar?
— Aye. Se o que falta é espaço, tem de sobra no subsolo. Tudo que preciso são algumas pedras mágicas e uns feitiços, e posso expandir o porão o quanto quiser. Mas, se quiser construir para cima, vou precisar de madeira e ferro.
— Você consegue fazer isso com pedras mágicas?
Fiquei meio confuso. Como ele ia escavar tanto espaço sem fazer o prédio inteiro desabar? E o que ele faria com toda a terra? Não dava para simplesmente explicar tudo com um "porque magia".
Na verdade, pensando bem… dava sim.
— Nós, anões, seguimos nosso caminho pedindo emprestado o poder dos espíritos da terra e do fogo. Não há terra que não possamos moldar à nossa vontade, nem ferro que não possamos forjar, garoto— quer dizer, senhor.
— Mas, vovô, você explodiu a forja uma vez tentando sintetizar minério — Pola comentou baixinho.
Dhoran corou, coçando a bochecha de maneira constrangedora e desviando o olhar para o nada.
— Então, basicamente — eu disse —, você pode aumentar o porão com pedras mágicas suficientes. Certo?
— Aye, quer dizer, sim, senhor. Melhor deixar esse tipo de trabalho para os anões, a menos que queira transformar o salão num monte de escombros. Nós conseguimos ouvir os espíritos da terra e cavar mais fundo e com mais segurança do que qualquer outra raça.
Tudo que eu estava entendendo era que os anões eram meio OP. O que os impedia de cavar por baixo das cidades e fazer nações inteiras desmoronarem de dentro para fora?
Nota mental: não mexer com anões.
Lhe dei um sorriso nervoso. — Bom saber. Vamos seguir com isso por enquanto. Devagar e com cuidado. Continuando… Quem aqui sabe cozinhar?
Nalia foi a única a me encarar e assentir. Ketty e Pola evitaram meus olhos como se suas vidas dependessem disso.
— Entendido. Eu também cozinho um pouco, então vou precisar da sua ajuda, Nalia.
— Sim, Mestre.
Foi aí que percebi que tinha esquecido de considerar a natureza do nosso relacionamento. "Mestre" era um pouco pesado, então fiquei quieto por um momento, pensando no assunto.
— Sabe, nunca gostei das formalidades da Igreja. "Senhor" pra cá, "mister" pra lá. Me chamem só de Luciel, ou chefe, ou algo assim.
Seguiu-se uma cacofonia de "chefe" e "senhor" como resposta. Com o básico resolvido, achei que precisávamos de uma ida às compras para tirar todo mundo desses trapos. Mas um grupo de quase vinte pessoas tornava isso complicado.
— Precisamos comprar roupas, camas e comida. Lionel, topa ser guarda-costas?
— Espera um minuto — Piaza interveio. — Por que um escravo está tomando nosso lugar? Nós somos sua guarda, senhor.
Os outros cavaleiros pareciam igualmente incomodados. Mas eu me sentia mais seguro com alguém que me lembrava do meu mestre.
— Hmm, bom, eu explico depois. Por ora, vou levar Lionel.
— Se o senhor diz… — Piaza suspirou, resignado.
— Obrigado por entender. Então, Lionel, qual sua especialidade?
Um brilho passou pelos olhos dele. — Posso usar quase qualquer arma, mas sou mais proficiente com uma espada grande ou uma lança longa.
Qual era a desse cara com lutas? Eu que estava louco? Honestamente, ele me lembrava do meu mestre a cada minuto que passava. Só que bem mais musculoso.
— Certo, vou te emprestar a espada que meu mestre me deu. Serve?
— Perfeitamente.
— O resto de vocês, comecem a arrumar tudo, incluindo os itens mágicos. Vou deixar tudo aqui.
Percebi Pola se animando ao ouvir a palavra "mágico", enquanto os outros apenas confirmavam.
— Não sei se é uma boa ideia deixar o velho Lionel sozinho tão cedo depois de se recuperar — Ketty disse. — Me leva junto! Sou um desastre na cozinha, mas minhas garras são afiadas!
Hesitei por um momento, mas então me lembrei de que estávamos num país de homens-fera e que comprar roupas provavelmente significava comprar roupas íntimas femininas. Rapidamente aceitei sua companhia.
Lionel pegou minha longa espada de prata sagrada e a analisou cuidadosamente antes de embainhá-la, sem que eu tivesse tempo de pensar muito nisso. Ele me olhou e disse:
— Seu mestre se importa muito com você.
Eu sorri e assenti.
Mais tarde, enquanto eu descarregava os pertences de todos da minha bolsa mágica, Nalia se encarregou de dar um jeito na bagunça que era a barba desgrenhada de Lionel (não havia tempo suficiente para cortar o cabelo). Quando ela terminou, o homem diante de nós já não era mais Lionel, e sim um guerreiro digno e respeitável. O salão inteiro congelou ao ver sua transformação, e eu não fui exceção.
Antes de sairmos, dei a ele e a Ketty meus antigos mantos, e então partimos.
Fomos de barraca em barraca, comprando vegetais e frutas sempre que possível, o que se mostrou um pouco difícil graças à influência de Shahza. A maior parte das nossas compras foi feita nos poucos lugares que aceitavam nos vender algo. Seria muito fácil para eles simplesmente nos deixarem morrer de fome. No pior dos casos, eu teria que entrar em contato com Shurule para conseguir mantimentos. Dhoran pediu o máximo de ferro que encontrássemos, incluindo armas, ferramentas e utensílios, fossem eles de boa qualidade ou não, além de madeira, que eu tinha certeza de que pagamos mais caro do que devíamos.
— Voltem sempre!
— Finalmente terminamos as compras.
— Isso foi bem mais difícil do que precisava ser — murmurei com um suspiro. — Nesse ritmo, nem vamos durar tempo suficiente para provar nosso valor.
De repente, Lionel e Ketty pararam de andar.
— Já esperava que eles atacassem mais cedo ou mais tarde.
— Que tentativa ridícula de nos seguir. Mas devo dizer que foi ousado para uns meros bandidos. Prontos?
— Sempre — ronronou Ketty.
Os dois desembainharam suas lâminas, e mesmo que eu estivesse um passo atrás, ficou óbvio que a luta era inevitável.
Lancei Barreira de Área e ordenei:
— Se não forem monstros, evitem matar!
Eles assentiram e tomaram posição à minha frente e atrás de mim. De repente, inimigos armados até os dentes saltaram das sombras dos prédios ao redor e sacaram suas armas... para o azar deles.
Lionel embainhou a espada novamente e começou a derrubar atacantes com a bainha, encaixando alguns socos bem dados enquanto desviava dos golpes.
— Vamos lá! Me deem um desafio!
Ele parecia um chefe de videogame em carne e osso. Ketty, por outro lado, os esmagava com uma velocidade que eu mal conseguia acompanhar. Desviando agilmente enquanto lâminas cortavam o ar, ela derrubava um por um com socos bem colocados, chutes giratórios no rosto e até algumas pancadas com o lado chato da lâmina, só para garantir.
— Fica tranquilo, não estamos cortando eles! Só vão tirar um cochilinho!
Como diabos esses dois tinham acabado como escravos?
Em instantes, nossos atacantes estavam neutralizados e, comicamente, amarrados juntos em um grande grupo com uma corda que tirei da minha bolsa — depois que terminei de encarar tudo em choque. O fato de termos sido atacados nem parecia mais tão relevante depois daquilo.
Eu tinha decidido levar os agressores à guilda para interrogatório quando Lionel me interrompeu.
— Devemos levá-los até o chefe de estado de Yenice, Luciel. Se os entregarmos na nossa própria sede, é capaz de acusarem a gente de sequestro.
Não era uma má ideia. Segui seu conselho e partimos, com Lionel arrastando os treze atacantes atrás de nós. Eu já estava acostumado com o fato de que níveis e atributos tornavam impossível julgar alguém apenas pela aparência neste mundo, mas mesmo assim, ver aquele homem carregando o peso de mais de uma dúzia de pessoas era impressionante. Uma pergunta ecoava na minha mente: quem diabos é esse cara?
Ketty permaneceu em alerta máximo enquanto continuávamos pela cidade, ignorando olhares arregalados e suspiros chocados, rumo ao que parecia ser a maior propriedade da cidade, a mesma que tínhamos visto ao chegar. Ficava a uns cinco minutos do mercado e parecia nossa melhor aposta para encontrar Shahza e suas tropas.
Ao nos aproximarmos do edifício, os guardas do portão congelaram, atônitos. E, para falar a verdade, eu não os culpava. Se eu estivesse no lugar deles — sendo a única barreira entre um grupo de estranhos arrastando uma dúzia de corpos e o seu destino — provavelmente teria desmaiado.
Endireitei a postura e foquei.
— Sou Luciel, curandeiro de Rank S. Fomos atacados durante nossas compras, e estou aqui para expressar minha preocupação com a segurança pública. Posso falar com Shahza?
Os soldados imediatamente correram para dentro, em pânico.
— Não nos mandaram esperar, então suponho que isso signifique que podemos entrar. — Sem me dar tempo para processar sua lógica, Lionel adentrou os portões, arrastando os corpos atrás dele.
— Esse é o nosso Lionel! — Ketty o seguiu sem hesitação. — E aí, chefe? Vamos nessa!
Eu não gostava da ideia de ficar sozinho do lado de fora, então me apressei atrás deles.
— Isso não é... sei lá, invasão?
— Como assim? — Lionel perguntou alguns passos à frente. — Você é um curandeiro de Rank S. O único no mundo, aliás.
— Sim, e daí?
— Você teria total direito de transformar essa confusão em um incidente diplomático. Seus anfitriões deveriam estar agradecendo aos céus por você estar disposto a resolver isso pacificamente! — Ele soltou uma gargalhada poderosa.
Eu já tinha pensado nisso antes, e pensaria de novo: quem diabos é esse cara? Era simplesmente inconcebível para mim que um homem como ele tivesse acabado como escravo.
Enquanto me perdia em pensamentos, Lionel seguia em frente. Ketty, por sua vez, parecia em seu próprio mundinho, cantarolando como se já tivesse feito isso um milhão de vezes.
Ao atravessarmos o pátio e chegarmos à entrada do edifício, Shahza e vários homens-fera saíram às pressas, entre eles, Orga, o pai de Sheila.
Lionel os encarou.
— Meu mestre, o único curandeiro de Rank S do mundo, foi atacado! — rugiu. — Atacado enquanto fazia negócios na sua cidade! Vocês irão corrigir essa injustiça, aqui e agora!
Shahza se encolheu como um gato assustado, e os outros abaixaram a cabeça. O jeito que Lionel se portava, como comandava a situação como um verdadeiro herói de uma história — isso sim era digno de um protagonista. Os sete políticos e três soldados diante de nós estavam sem palavras.
— O silêncio não vai salvá-los — continuou Lionel, agora em um tom mais baixo, mas não menos intimidador. — Exigimos reparações. Exigimos que esses marginais sejam levados à justiça.
— V-Vocês têm nossas mais profundas desculpas — Shahza finalmente respondeu, desviando do homem mais velho e olhando diretamente para mim. — Estou horrorizado que alguém tenha tentado lhe fazer mal no seu primeiro dia, Senhor Curandeiro. Garanto que esses criminosos pagarão com suas vidas, e você será compensado... Err, podemos entrar em contato depois sobre isso?
Lionel se virou para mim, esperando minha decisão.
— Para ser honesto, depois de algo assim, eu realmente deveria relatar isso à sede. — Cocei o queixo. A situação não parecia certa, como se Shahza estivesse tramando algo. Seu pânico inicial tinha sumido, e Orga (que, por outro lado, tinha ido até Shurule só para solicitar uma Guilda de Curandeiros em Yenice) parecia completamente derrotado. Ficava claro que Yenice não falava com uma única voz.
— Que tal isso? Vocês não precisam condenar ninguém à morte; apenas os escravizem por seus crimes. Vocês cobrem os custos da marcação, eles ajudam a reconstruir a guilda e tornamos esse incidente público. Além disso, quero que ordenem aos comerciantes que vendam para nós. Não estamos pedindo esmolas, mas tivemos dificuldades para conseguir suprimentos. Por fim, quero que a área ao redor da guilda seja mantida. É só isso que estou pedindo, e podemos deixar o resto para lá. Ah, e também espero que paguem as reparações.
A pena de morte era uma forma de resolver as coisas, imagino, mas ter mais pessoas para a segurança ajudaria a aliviar a pressão sobre Lionel e os cavaleiros. Poderíamos estabelecer turnos ininterruptos. E ter mais lojas disponíveis para nós evitaria que tivéssemos que comprar estoques inteiros de uma só vez, além de nos dar mais opções. Além disso, mais espaço ao redor do prédio da guilda significava mais possibilidade de expansão.
Lionel parecia um pouco insatisfeito com minhas exigências, mas eu não estava ali para gerar atritos, e tornar o incidente público já nos colocaria em uma posição forte com Shahza.
Os outros homens-fera mantinham distância do homem-tigre. Eu conseguia sentir sua raiva de onde estava. Mas nenhum dos meus pedidos era irracional, e ele estava de mãos atadas.
— Claro, senhor. Concordamos com suas condições. — Ele manteve a cabeça baixa, mas eu não precisava ver seu rosto para saber a expressão que fazia.
— Vocês têm sorte de meu mestre ser misericordioso. Não esperem que isso aconteça duas vezes — disse Lionel, com veneno na voz. — Um de vocês, venha conosco até o mercador de escravos.
Eu realmente não queria irritar Lionel. Quanto mais tempo passava com ele, mais minha curiosidade crescia.
— Espere, eu não o reconheço — disse Shahza para Lionel. — Quem é você?
— Eu? Sou apenas um servo do meu senhor, senhor.
Sua gargalhada ecoou pelo pátio.
Junto com o homem-lobo chamado Gralga (o mesmo que, por acaso, havia me esfaqueado nos becos anos atrás), voltamos ao mercado de escravos.
Assim que ficamos fora do alcance dos soldados, sem virar-se para mim, ele sussurrou:
— Sinto muito que sua visita esteja acontecendo dessa forma.
— Algo mudou em Yenice nos últimos anos? — perguntei em voz baixa.
— Foi mais recente que isso. — Ele assentiu, resolvendo-se, e então continuou sua explicação.
Na época da visita de Orga a Shurule, ele era o chefe de estado de Yenice. Mas quando retornou e seu mandato terminou, quem assumiu seu lugar foi um dragonewt. Infelizmente, os dragonewts possuíam habilidades de auto cura extraordinárias, então o valor dos curandeiros era quase nulo para eles. Poções medicinais passaram a ter muito mais prioridade, já que podiam curar doenças (coisa que os curandeiros não podiam fazer), e quando chegou a hora de redistribuir as terras, a sede da Guilda dos Curandeiros foi movida para os becos para acalmar a população.
Quando o mandato do dragonewt terminou, um certo homem-tigre assumiu seu lugar graças a acordos de bastidores e subornos de seu próprio povo. E, embora não tivessem as mesmas habilidades regenerativas dos dragonewts, os homens-tigre também eram especialistas em regeneração e combate.
Um ano depois, a perspectiva de reerguer a guilda parecia sombria… até que as circunstâncias mudaram. Um labirinto próximo, que estava inativo havia anos, de repente começou a se encher de monstros novamente. As poções medicinais comuns não davam conta da gravidade dos ferimentos que os aventureiros e soldados sofriam. Para piorar, cada veneno e cada variação de paralisia exigia um antídoto único. A solução racional eram os curandeiros.
Uma inquietação surgiu no fundo da minha mente. Um labirinto reativando? Isso não podia ser… Ainda deveriam restar quarenta anos. Ou as coisas já estavam em movimento? Quarenta anos era mesmo todo o tempo que eu tinha?
Não demoramos muito para chegar à primeira loja de escravos.
— Espere, essas pessoas se recusaram a nos vender sem um convite da última vez.
— Está tudo bem. Eles não receberam ordens para evitar vocês, só são muito criteriosos com quem fazem negócios — explicou Gralga. Ele bateu na porta, e um velho homem com orelhas de lobo saiu. — Fico feliz em vê-lo bem, ancião.
O homem nos analisou, claramente lembrando de nossos rostos, e então virou-se para Gralga.
— Você trouxe um grupo, garoto.
— Este é o Santo Esquisito, o homem que salvou nossas vidas na Cidade Santa. Esses idiotas amarrados aqui tentaram atacá-lo. Íamos executá-los, mas o Santo decidiu mostrar misericórdia e apenas marcá-los.
— Um maluco e um santo, hein? Para que um homem como você precisa de escravos? — Seus olhos envelhecidos pareciam enxergar tudo. Nenhuma mentira passaria despercebida.
— Pretendo ordenar que nunca façam mal à Guilda dos Curandeiros, suas clínicas ou seus bens — respondi. — Vou alimentá-los e lhes dar um lugar para dormir em troca de serviços como guardas da guilda.
— Isso serve. Entrem.
Cada criminoso recebeu um brasão vinculativo, e logo tudo estava resolvido.
— Pronto, todos marcados.
— Envie a conta para o estado, se não se importar, ancião — informou Gralga.
— Assim será. Agora, antes de irem, o Santo está interessado em fazer algumas compras?
— Tenho certeza de que encontraria um uso para eles, mas a guilda ainda não tem espaço para acomodar mais escravos. No entanto, vou me lembrar de você caso a necessidade surja.
— Não vou criar expectativas.
Depois que saímos, antes de Gralga voltar para Shahza, ele fez questão de me avisar que o velho Lerga tinha simpatizado comigo.
— Escutem bem, escravos! — proclamou Lionel. — Obedeçam as ordens e serão tratados com dignidade. Desobedeçam e enfrentarão as consequências. A escolha é de vocês. Agora, marchem! Estamos voltando para a Guilda dos Curandeiros!
— Ketty liderava nossa procissão, seguida por mim, depois os novos escravos, com Lionel fechando a retaguarda. Sua aura intimidadora mantinha todos na linha durante o caminho.
Dois cavaleiros estavam postados na entrada do salão da guilda.
— Obrigado por segurarem as pontas — eu disse. — Alguma novidade?
— Apenas alguns olhares curiosos. Nada de estranho.
— Bom, demos sorte e conseguimos treze novos guardas para o turno da noite. Logo vocês vão poder descansar.
A dupla sorriu. O turno da madrugada realmente era o pior.
— Isso é bom de ouvir — respondeu um deles.
— Aguentem firme mais um pouco, pessoal.
— Sim, senhor!
Dhoran estava logo na entrada quando entramos, como se estivesse nos esperando o tempo todo.
— Viagem longa, hein? — ele perguntou. — Dei uma melhorada no porão enquanto você estava fora. Esqueci de pedir umas pedras mágicas pra reforçar o chão e tal, mas a fundação tá firme o suficiente por enquanto. Conseguiu os suprimentos?
— Estão todos na minha bolsa. Vou descarregar lá embaixo. Ah, e se precisar de pedras mágicas, estas aqui servem?
Peguei algumas das gemas que coletei no labirinto sob a Igreja.
O anão assentiu.
— Aye, essas são do tipo sombrio, mas dá pra purificar na água sagrada durante a noite. Tem alguma?
— Purificação, é?
Usei minha magia e as pedras passaram de um verde-escuro para um azul-claro.
— Pelos deuses, você tá cheio de surpresas, rapaz! — Dhoran pegou uma e admirou o resultado. — Essas vão servir perfeitamente.
Sorri e me virei para os outros.
— Lionel, Ketty, bom trabalho hoje. Podem ficar com as armas que dei a vocês. Assim que descarregarmos tudo no porão, descansem um pouco. Só fiquem de olho nos novatos. Agora, novos escravos: sejam gratos a Dhoran por oferecer um lugar para dormirem. Espero que façam por merecer, e enquanto fizerem, garanto que ninguém passará fome.
Com isso, descemos as escadas e chegamos a um porão que eu mal reconhecia. “Uma melhorada” era um baita eufemismo. Eu não conseguia parar de olhar em volta enquanto descarregávamos toda a madeira, ferro e outros suprimentos da minha bolsa mágica. Também entreguei a Dhoran umas cem pedras mágicas purificadas para mais reformas.
— Estou confiando em você, mas sem loucuras, ok? — avisei. — Vou chamar todo mundo quando o jantar estiver pronto. Até lá, eles estão por sua conta.
— Seu desejo é uma ordem!
Eu só tinha pedido um favor...
Tinha coisas demais na minha cabeça para ficar me preocupando com isso, então subi para começar o jantar.
***
Desde que perdeu os braços, Dhoran se tornara terrivelmente amargo. Ele havia perdido as esperanças, incapaz de enxergar valor em uma vida sem artesanato. Mas então surgiu um jovem curandeiro e, de repente, ele encontrou um novo propósito.
Ele não se iludia, claro. Sabia há muito tempo que nenhuma magia poderia devolver o que havia perdido.
Mas mal sabia ele que aquele curandeiro era um verdadeiro milagreiro. Quando tudo parecia perdido, ele recebeu sua vida de volta. Um trabalho. Confiança. Não era ferreiro de novo, mas Dhoran teve uma segunda chance de criar, de construir.
O que Luciel não sabia era o quão habilidoso o anão realmente era... ou o fogo que queimava em sua alma agora que se encontrava num verdadeiro paraíso para artesãos.
A Guilda dos Curandeiros estava prestes a passar por algumas... modificações extremas.
Tradução: Carpeado
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