Seija Musou | The Great Cleric
– Arco 05: Para Reviver a Guilda dos Curandeiros – Capítulo 01
[Yenice, a Cidade da Liberdade]



Já fazia um mês desde que partimos da Cidade Sagrada rumo a Yenice, e nós — a Ordem da Cura — ainda nem havíamos cruzado a fronteira. Nosso trabalho para reviver a Guilda dos Curandeiros já deveria estar bem encaminhado, se não fosse pelas ordens que Sua Santidade nos deu. No momento, estávamos presos em uma vila ao sul, cumprindo suas exigências.

Jord e eu observávamos o mestre da guilda encolhido atrás da mesa, pálido, enquanto Piaza, um dos cavaleiros sob meu comando, fazia seu relatório.

— Dois membros da equipe foram considerados culpados por corrupção, e recebemos denúncias de má conduta sobre curandeiros de várias clínicas. Os procedimentos para a remoção deles e a transferência para a capital já foram realizados.

— Obrigado, Piaza — respondi. — Prepare a equipe para partirmos e me espere lá embaixo.

— Sim, senhor!

Observei o cavaleiro se retirar da sala antes de voltar minha atenção para o mestre da guilda.

— Por favor, avise a Sede o mais rápido possível caso surja mais algum problema.

— E-eu não vou ser demitido? — ele gaguejou.

Agora fazia sentido ele estar tão pálido. Não o culpo, considerando sua posição. Um jovem com novas ideias e autoridade recém-adquirida, como eu, não devia ser muito bom para o coração dele.

— Não. Desta vez, não. Mas isso pode mudar rápido. Não me faça voltar aqui, entendeu?

— S-sim, senhor! Sinto muito pelo transtorno, senhor! — ele choramingou, abaixando a cabeça.

Jord e eu trocamos um sorriso seco.

— Vamos trabalhar juntos nisso. Quero que os curandeiros sejam admirados pelo nosso trabalho, não evitados por causa de práticas desonestas. Espero que você também queira isso.

Saímos do escritório e descemos as escadas.

— Você pegou pesado com ele, chefe — Jord disse com um sorriso.

— Nem foi tanto assim. O que tem de tão engraçado?

— A cara deles, claro. Nunca me canso dessa expressão idiota que fazem sempre que você solta essa frase.

— Quanta humildade da sua parte. Mas não foi nada especial, só o objetivo da Igreja. Você sabe disso. Pessoalmente, fico mais surpreso com o quanto as pessoas têm aceitado expor essas clínicas e guildas problemáticas.

— Você as inspira.

— Eu inspiro? De que jeito?

— Bom, como não inspiraria, depois de verem o respeito que você ganhou em Merratoni? Eles estão cansados de ficar acumulando poeira na Sede. Querem ser como você, e isso também vale para mim.

— Ah, qual é, não me faça corar. Mas essa última parte eu vou ignorar. Você quer ser como eu?

— Você me magoa.

A Ordem nos aguardava no primeiro andar, alinhada em fileiras organizadas.

— Obrigado mais uma vez por ajudarem a resolver essa situação tão rápido. Eu não teria conseguido sem vocês — disse a eles.

Encontramos problemas em praticamente todas as vilas por onde passamos até agora, e nem preciso dizer o quanto eu estava feliz por não estar sozinho.

— Ficamos felizes em ajudar. E é graças à sua magia sagrada e suas conexões que nossa jornada tem sido tão tranquila — respondeu um deles.

— Sim — concordou outro cavaleiro. — Se aqueles aventureiros não tivessem nos dado uma mão, estaríamos em maus lençóis.

— Ainda assim, agradeço a todos vocês. Agora que resolvemos tudo por aqui, é hora de partir.

— Sim, senhor!

Saímos da guilda, e os cavaleiros montaram seus cavalos com a postura firme. Os curandeiros entraram na carruagem, e eu pulei sobre o dorso negro como a noite da minha fiel montaria, Forêt Noire. Com aplausos às nossas costas e determinação em nossos corações, seguimos viagem mais uma vez rumo à cidade-estado de Yenice.

Eu não esperava que a viagem levasse tanto tempo, mas ordens eram ordens. O papa nos pediu para parar em cada vila ao longo do caminho e enviar qualquer indivíduo problemático para a Sede imediatamente, então era isso que estávamos fazendo. Apareceram mais do que alguns culpados no caminho, e sempre surgiam mais. Antes que percebêssemos, já tínhamos passado semanas na estrada.

— Daqui em diante é um caminho reto, certo? — perguntei a Piaza.

— Exato. Há uma vila pequena onde passaremos a noite, depois chegaremos à fronteira.

— Estou ansioso para dormir em uma cama hoje.

— Idem.

Assim como no resto da viagem, chegamos ao nosso próximo destino sem encontrar bandidos ou monstros no caminho. E isso era graças aos aventureiros locais. Depois da nossa festa de despedida, Grantz, o mestre da guilda, enviou seus homens na frente para eliminar qualquer ameaça em nosso trajeto e garantir nossa segurança. Eu estava extremamente grato e esperava ter uma relação igualmente boa com a Guilda dos Aventureiros de Yenice.

— Pronto, isso é todo mundo. Alguém mais precisa de cura?

— Não, senhor. Não sei como podemos retribuir. Tem certeza de que só precisa de um quarto? — o prefeito idoso franziu a testa, preocupado. Ele e eu fizemos um acordo: eu curaria os moradores da vila, e ele nos daria um lugar para descansar.

— Não precisa se preocupar com comida. Quero melhorar minhas habilidades culinárias, então vamos nos virar com o que eu conseguir preparar.

— Se tem certeza... Mas, por favor, não hesite em pedir se precisar de qualquer coisa. Qualquer coisa mesmo.

— Agradeço.

Deixei o prefeito e fui até a antiga casa comunal que ele ofereceu para a nossa equipe passar a noite. Um dia, já fora um centro administrativo da vila, mas seus dias de glória haviam ficado no passado. Nada que um feitiço de Purificação não resolvesse. Além disso, o espaço era grande o suficiente para todos nós nos apertarmos ali dentro.

Fomos direto preparar o jantar.

— Esse item mágico é incrível. É tão fácil de usar que até eu consigo — Piaza se maravilhou enquanto operava o limpador automático de vegetais, codinome Lil Shiny. Rina, que eu ainda suspeitava ser uma das reencarnadas, desenvolveu o aparelho a meu pedido.

A ideia me veio durante minhas aulas de culinária. Eu me lembrava de ter ouvido na minha vida passada que lavar legumes com um pouco de água morna ajudava a realçar sua frescura. Mas quando falei disso para Rina, que claramente não tinha o menor senso de culinária, ela veio até mim com um projeto para uma enorme máquina de lavar no estilo de um tambor gigante, que eu imediatamente rejeitei e substituí pela atual mini máquina de lavar louça. De qualquer forma, isso tornou o processo muito mais simples.

— Definitivamente é mais rápido do que esfregar comida suficiente para alimentar uma dúzia de pessoas — eu disse. — A água na panela já está fervendo?

— Sim, e tenho que dizer, esse fogão mágico é simplesmente incrível. Nunca vi um dispositivo manter o calor com tanta precisão. Vou ter que comprar um para mim quando voltarmos para a capital.

Rina iria longe com seu talento, embora a fama não fosse tudo o que diziam ser. Isso era algo que eu sabia bem.

— Acho que isso ainda vai demorar um pouco, mas quando voltarmos, te mostro onde encontrar um bom artesão. Agora, vocês podem deixar o jantar comigo, se puderem cuidar dos cavalos. Só não esperem nada gourmet.

Os que não estavam ajudando na cozinha deram o sinal e logo começaram a trabalhar. O menu de hoje era pot-au-feu com vegetais extras e pão recém-assado, feito com fermento extraído de uvas fermentadas (ou algo que parecia, cheirava e tinha gosto de uvas neste mundo). Uma receita de Gulgar. Não era nada elaborado, mas nossos suprimentos eram limitados na estrada, então eu não podia me dar ao luxo de arriscar.

Curiosidade: o feitiço de Purificação na verdade não afetava as bactérias necessárias para o pão crescer. Ele só eliminava os tipos prejudiciais. O mesmo, infelizmente, não podia ser dito sobre o queijo azul. Talvez tivesse a ver com o conhecimento e as concepções do próprio conjurador.

Terminamos de preparar o jantar, e enquanto comíamos, ouvi os relatos do dia — nosso costume nas refeições. A conversa girou em torno de várias coisas, principalmente conselhos sobre magia, treinamento, como usar melhor a Habilidade de Reforço Físico ou os métodos mais eficazes de conjuração. Nada de novo, mas nossas sessões de troca de conselhos tinham definitivamente ganhado um novo nível de paixão (coincidentemente, logo depois de visitarmos Merratoni — meu mestre era um homem assustador).

Ainda assim, às vezes era fácil esquecer, mas meu grupo não era nada desprezível. Havia muito que eu podia aprender com os habilidosos Cavaleiros de Shurule, e eu realmente aprendia com nossas discussões.

Depois do jantar, liderei a Ordem na prática de Manipulação Mágica, o que acabou aumentando minha habilidade de Liderança. Era só isso que bastava? Se sim, então devia ser uma habilidade bastante comum.

— Amanhã chegamos a Yenice — Jord me informou. — Como pretende reconstruir a Guilda dos Curandeiros lá?

— Para falar a verdade, ainda não pensei nisso — admiti. — Não faço ideia do porquê de ela ter sido desativada, e prefiro ver com meus próprios olhos antes de tirar conclusões. No mínimo, farei o que me pedirem.

— Acho que é tudo o que dá para fazer. Mas lembre-se de que chamam Yenice de Cidade da Liberdade por um motivo. Não espere as mesmas interações raciais que está acostumado em Shurule.

— Tipo Grandol, certo? Bastante diversidade. Lembro de ouvir que a população de Yenice é majoritariamente composta por feras. O que quer dizer com isso?

— Não é só diversidade, a cidade-estado inteira foi fundada por raças de feras. Então acho que não veremos muitos humanos. Talvez um ou outro aventureiro.

— Ah. Entendi o que quer dizer.

Nanaella me ensinara anos atrás que Yenice era o lar de muitos ferais, e antes de sairmos de Merratoni, Galba me disse para não confiar em ninguém além de mim mesmo. As peças definitivamente se encaixavam, mas todos os ferais que eu conhecia eram boas pessoas. Não valia a pena me preocupar com isso agora.

— Não somos supremacistas humanos — Jord continuou —, mas isso não muda o fato de que somos forasteiros vindos de um país do qual a maioria dos ferais acaba fugindo exatamente por esse motivo. Não vou mentir — estou um pouco nervoso.

Eu entendia sua preocupação. Não havia garantia de que nós, a minoria humana, não seríamos alvo de perseguição assim que pisássemos em terras yenitianas.

— Acho que estaremos bem, desde que ajamos naturalmente e sejamos humildes. Se tivermos problemas, basta nos comunicarmos. Vamos superar isso juntos.

— Certo.

Meu mestre sempre dizia que, quando você está andando no escuro, é melhor se preparar para o pior do que tentar se preparar para tudo. E os irmãos lobos me disseram para usar seus nomes caso nos metêssemos em encrenca, fosse lá o que isso significasse. Então, do que eu tinha que me preocupar? Foram eles que nos chamaram, afinal.

— Tenho certeza de que vou precisar do seu conselho quando as coisas começarem. Pode ficar por perto?

Jord sorriu e assentiu.

Quando terminamos o treino de magia, todos tivemos uma boa noite de sono.

Na manhã seguinte, partimos em direção à fronteira entre Yenice e Shurule. As árvores e florestas começaram a rarear, e os campos verdejantes foram dando lugar a um terreno rochoso enquanto seguíamos pela estrada rumo a um grande vale.

— Yenice fica logo depois daquela passagem — anunciou um dos cavaleiros. — Nosso comitê de boas-vindas deve estar nos esperando do outro lado.

— Estamos quase lá. Vamos, pessoal, só mais um esforço!

— Como sempre, nenhum monstro ou bandido apareceu na estrada. Ainda assim, confiei que minha guarda permaneceria alerta o tempo todo, enquanto os curandeiros lançavam continuamente Cura em Área e Purificação (o favorito de Forêt) em seus cavalos cansados para ajudar a aprimorar suas habilidades de Magia Sagrada. Olhei para o portão à distância e soube que as coisas não seriam tão fáceis depois de passarmos por ele.

— Vou lançar Barreira em Área só por precaução — anunciei. — Fiquem atentos, pessoal.

— Sim, senhor!

Bem na fronteira, espremida entre penhascos íngremes, erguia-se uma cidadela. A estrada pelo portão parecia mal ter largura suficiente para que nossa carruagem passasse. A geografia praticamente implorava para que bandidos ou criaturas estivessem à espreita, prontos para nos emboscar. E o fato de o portão estar ali, escancarado, não nos dava nenhuma garantia de segurança.

Talvez eu devesse avisar o papa que alguém esqueceu de fechar a porta da frente.

Ao passarmos pelo portão e seguirmos adiante, a paisagem voltou a se expandir. De repente, o ar pareceu ficar mais denso e quente, e o sol castigava com uma intensidade nova. Os outros pareciam um pouco desconfortáveis com a mudança repentina de clima, mas, felizmente, minhas roupas e armaduras encantadas faziam com que eu mal percebesse. Minha atenção estava muito mais voltada para as inúmeras silhuetas que se aproximavam à distância.

De repente, uma figura menor se destacou dos mais altos e gritou:

— Senhor curandeiro!

Abaixei minha guarda. Devia ser o grupo de Yenice enviado para nos receber. A garota correndo na minha direção era... Como era mesmo o nome dela? Shera? Não, espera, Sheila.

— Podem relaxar, pessoal. Acho que são de Yenice. Reconheço a garotinha.

Desmontei de Forêt e abri os braços para Sheila, mas ela simplesmente se jogou contra mim e praticamente me derrubou no chão.

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Não consegui evitar e instintivamente lancei Cura em Área. Se antes eu não entendia direito o quão mais fortes os homens-fera eram, agora estava bem claro.

— Ora, ora, Sheila. Agora você consegue falar.

— Sim! Aconteceu logo depois que partimos!

— É mesmo? Bem, coisas incríveis acontecem para boas garotas, e eu não conheço ninguém que se esforce tanto quanto você.

Estranho. Quando tentei lançar Cura Extra nela naquela época, não deveria ter funcionado—meu nível de habilidade não era alto o suficiente. Isso sim é um milagre.

A pequena garota-fera riu e sorriu enquanto eu puxava Forêt Noire em direção ao restante do grupo dela. Minha equipe nos seguiu.

— Santo Esquisitão, não temos palavras para agradecer a você e seus companheiros por fazerem essa jornada até nossa terra natal — disse o homem à frente. — Meu nome é Shahza, representante atual do povo-tigre.

Eu nunca tinha visto um homem-tigre antes e, para ser sincero, eles não eram exatamente como eu imaginava. Sua barba e costeletas se fundiam em uma juba incrivelmente parecida com a de um leão.

— Agradecemos a todos por virem nos receber. Sou Luciel, curandeiro de rank S, e esta é minha equipe. Estamos ansiosos para trabalhar com vocês.

— Ah, que notícia maravilhosa. Como poderíamos nos chamar de Cidade da Liberdade quando nossos cidadãos precisam se virar apenas com uma Guilda dos Doutores? Sim, isso é realmente uma grande notícia.

— Fico feliz em poder ajudar. Mas vamos com calma. Preciso ver a situação com meus próprios olhos e obter algumas informações antes de começarmos a fazer mudanças.

— E somos gratos por isso. Nossa cidade ainda está a cerca de três dias de viagem daqui, mas espero que isso não seja um problema.

Reprimi um suspiro. Só podia ser brincadeira.

Shahza estendeu a mão, e eu a apertei, disfarçando a poeira com meu melhor sorriso de negócios.

— De forma alguma — respondi.

Seu aperto de mão era firme. Muito firme. Talvez todos os representantes de Yenice precisassem ter algum nível de força física para serem eleitos. De qualquer forma, havíamos finalmente chegado e estávamos a caminho do coração da cidade-estado.

***

Ficou claro quase imediatamente que não estávamos mais em Shurule. Durante a viagem, fomos atacados por monstros várias vezes, mas Shahza, o chefe dos delegados de Yenice, recusou-se a deixar que seus ilustres convidados levantassem um dedo sequer e nos protegeu com a ajuda de seus guerreiros.

Não gostei de ficar parado enquanto eles lutavam por nós, então os auxiliamos com magia de barreira e cura. Na verdade, essa pequena ajuda até nos rendeu alguns níveis. Segundo Jord, apoio em combate contava como experiência de batalha, o que me deu algumas ideias para estratégias de power leveling, mas deixei isso de lado por enquanto, até conseguir testar minhas teorias.

Os cavaleiros pareciam inquietos, como se estivessem se coçando para entrar na luta. Provavelmente um efeito colateral do inferno de treinamento de Brod. Eles precisariam de um jeito de extravasar antes que isso se tornasse um problema, então considerei deixá-los treinar na Guilda dos Aventureiros quando não estivessem ocupados com a guarda ou até permitir que aceitassem missões como aventureiros. Minhas reservas de Substância X estavam acabando, e eu precisava de mais.

Falando na "X", eu tinha tomado um caneco dela naquela manhã e, ainda assim, subi de nível, o que significava que seus efeitos de bloqueio de experiência duravam, no máximo, meio dia. Fiquei ansioso para investigar melhor esse líquido misterioso assim que organizássemos as coisas na Guilda dos Curandeiros.

Minha mente fervilhava com tudo o que precisava ser feito, então comecei a anotar algumas ideias durante uma de nossas pausas, e logo a página estava coberta de tinta. Só havia uma coisa a fazer: seguir um passo de cada vez.

Três dias se passaram, e nossa longa jornada finalmente chegou ao fim. Havíamos chegado ao coração de Yenice, a Cidade da Liberdade.

***

Um dia, Yenice teve uma filial da Guilda dos Curandeiros, até que circunstâncias de décadas atrás tornaram necessária sua retirada. Pelo menos, era isso que me disseram, mas eu não imaginava que a situação fosse tão ruim.

Parados diante do que um dia fora a guilda—se é que ainda podia ser chamada assim—, ficamos sem palavras. Mas não por causa do estado de deterioração e sim pelo local onde ela estava.

— Isso... fica nos cortiços? — perguntei hesitante.

— Sim, senhor. A Guilda dos Curandeiros sempre esteve aqui. Peço desculpas pela localização, mas não havia outro terreno disponível para transferi-la — Shahza respondeu com um tom de lamento, mas não conseguia esconder o sorriso divertido por trás da mão. Ele estava claramente me provocando.

Os outros homens-fera não compartilhavam de sua diversão e desviaram o olhar desconfortáveis, confirmando minha suspeita de que o homem-tigre era quem dava as cartas por ali.

Pensei na nossa viagem e lembrei de quantas vezes Sheila tentou falar comigo, mas desistiu. Ela e os outros homens-fera que conheci dois anos atrás na Cidade Sagrada pareciam especialmente tensos perto de Shahza. No começo, achei que fosse algum tipo de tensão racial, mas Shahza não saiu do meu lado desde que partimos para a cidade, me obrigando a deixar Sheila de lado. Durante esse tempo, ele me bombardeou com perguntas sobre curandeiros e magia de cura, e eu simplesmente assumi que era a maneira dele de nos dar as boas-vindas. Mas seu verdadeiro objetivo era me afastar da garota, para esconder a realidade da situação que agora estava bem diante de nós.

Ele me passou a perna direitinho.

Agora que eu pensava nisso, todos os pedidos ousados que ele fez à guilda começavam a fazer mais sentido. Ele queria preços mais baixos para tratamentos de cura em relação a outras mercadorias, pacientes de diferentes raças tratados de acordo com as leis locais de Yenice, curandeiros presentes nas batalhas contra monstros e que a Igreja de Saint Shurule arcasse com os custos para fundar novas clínicas.

Nem precisava dizer que não havia a menor chance de eu conseguir fazer tudo isso da noite para o dia.

— Me desculpe, mas deixe-me esclarecer uma coisa — eu tinha dito a ele mais cedo. — Não somos uma organização de caridade. Mas vamos deixar essa conversa para quando a guilda estiver realmente funcionando. Isso vem primeiro. Fechado?

Agora, eu sabia que não tinha imaginado a frieza em seu olhar malicioso na hora. O cara não tirava os olhos de mim, então não pude comentar minhas preocupações com a equipe por um tempo. Só depois de entrar na cidade consegui dar uma palavra rápida com Jord, que compartilhava minhas suspeitas.

— Parece que os cavaleiros vão ter trabalho antes dos curandeiros, hein? — ele brincou.

Eu mesmo não achei graça. Depois disso, avisei a todos para ficarem atentos, mas nunca imaginei que nosso instinto estaria certo. Pelo menos, não dessa forma. O bairro não era o mais seguro que já vi, para dizer o mínimo. Deixe para Gulgar e Galba terem uma cidade natal assim...

— Vamos dar um jeito — eu disse para o homem-tigre sorridente. — Até tudo estar funcionando, vamos definir nossos próprios preços. E quem não tiver dinheiro vai pagar com trabalho.

— Espero que você não esteja falando de trabalho escravo — Shahza rebateu com um olhar feroz. Mas, comparado ao meu mestre, não era nada. Parecia mais um gato doméstico encarando um rato de brinquedo.

A equipe esperava pacientemente pela minha resposta. Esse cara não era tão durão quanto pensava.

— Quero dizer trabalho normal. Há muito o que reconstruir. Na Igreja, criamos "contratos" vinculando duas partes a um juramento perante os deuses, e eles funcionam bem para situações como essa.

— E como isso é diferente da escravidão? — ele cuspiu de volta.

Mantive a compostura.

— Primeiro, é um juramento aos deuses. Não é algo que alguém pode ser forçado a fazer, ou seria punido divinamente. Qual é a punição? Sua magia, sua vida? Não sei ao certo. Aliás, você sabe que estou planejando fazer um com você, não sabe?

A máscara calma e controlada de Shahza finalmente começou a rachar.

— Por que tanto medo? Isso não vai te matar. No máximo, pode diminuir um pouco seu nível. Você aguenta, não aguenta, Representante? Isso ajudaria muito na restauração da guilda por aqui.

— N-Não vamos ser precipitados! Tenho certeza de que podemos encontrar formas melhores de ajudá-lo!

— Ah, não se preocupe com isso. Ouvi dizer que vocês têm um mercado de escravos bem movimentado por aqui. Vamos encontrar bastante ajuda assim e construir isso do jeito que der. Não podemos esperar que voluntários simplesmente apareçam na nossa porta.

Lancei para ele um sorriso brilhante. Ninguém veio em socorro do político aflito. Felizmente, Jord e eu já tínhamos planejado várias eventualidades.

— Espere, é verdade! Íamos organizar um banquete de boas-vindas para vocês!

— Sério? Poxa, agradeço muito.

Um pouco da cor voltou ao rosto de Shahza. Me perguntei o que ele estava tramando. Envenenamento? Como se isso funcionasse comigo.

— Infelizmente, não posso deixar as coisas como estão. Nosso Curandeiro Divino deve estar de luto ao ver essa situação. Podemos ser curandeiros, mas também somos da Igreja, e precisamos corrigir esse erro. Então, insisto que firmemos esse contrato antes de qualquer outra coisa. O que me diz, Senhor Shahza?

Estendi a mão e notei o suor escorrendo pelo rosto dele.

— O que foi? O calor está te incomodando? — perguntei inocentemente.

— Estou muito, muito arrependido, Santo esquisito, mas, veja só, de repente não estou me sentindo bem. Talvez em outro dia, mas agora preciso me retirar.

— Ah, que pena. Aqui, deixe-me ajudar. Cura Suprema! Recuperação! Purificação! Dissipar!

Eu sabia que lançar todos aqueles feitiços não o impediria de fugir, mas eu precisava tentar.

— Impressionante! — ele engasgou. — Quer dizer, quero dizer... receio que não possa mais perder tempo aqui! Deveres de delegado-chefe!

E lá se foi ele. Sheila e seu pai, Orga (um ex-representante), se curvaram educadamente antes de seguir rapidamente seu superior. Sheila acenava tanto para mim que achei que seu braço fosse sair voando. Seu pai devia ter dito para ela não falar comigo.

— Bem — Jord suspirou — temos trabalho pela frente.

— Com certeza temos — respondi. — Vamos começar tornando esse lugar mais higiênico com um pouco de magia. Ah, e eu falei sério sobre conseguir escravos. As coisas podem ficar perigosas por aqui. Precisamos de mais guardas.

— Sim, senhor! — a equipe respondeu.

Dentro do salão da guilda, fomos recebidos por um teto com goteiras, tábuas do piso quebradas e teias de aranha a perder de vista. As últimas podiam ser resolvidas com Purificação, mas o resto exigiria um pouco mais de esforço. Precisaríamos nos preparar para uma grande reforma.

Felizmente, a Ordem parecia animada com a ideia. Assim que o lugar estivesse minimamente limpo, organizaríamos os dormitórios e então eu dividiria a equipe em dois grupos: um para vigiar os cavalos e outro para me acompanhar ao mercado de escravos.

Mal sabia eu que um certo Monsieur Luck estaria me esperando lá.


Tradução: Carpeado
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