Nageki no Bourei wa Intai shitai | Let This Grieving Soul Retire Volume 04 – Capítulo 3 [Férias e Alguns Perseguidores]
Eu via um panorama de colinas ondulantes pela janela da carruagem. Era idílico e bem diferente da paisagem da capital. Sentia-me em paz enquanto observava a vista passar. A estrada era o único sinal de infraestrutura humana e não havia outros viajantes além de nós.
De vez em quando avistava um animal ou monstro, mas todos fugiam no instante em que nos viam. Matadinho, montado em Drink, devia estar aterrorizando todos eles. Eu mesmo sentia um certo receio, mas, pensando bem, talvez ele fosse uma boa forma de repelente de monstros.
Já havia se passado um dia desde que saímos de Elan. O tempo estava agradável. Nossa carruagem avançava sob um céu límpido. Eu tive minhas dúvidas durante a tempestade do primeiro dia, mas viajar na estrada podia ser algo bom.
— Quimeras são bem intimidadoras para a maioria dos monstros — explicou Sitri. — Imagino que a maioria deles fugirá de nós.
Eu tinha certeza de que um leão daquele tamanho assustaria qualquer um, mesmo que não fosse uma quimera. Que pecado terrível a Torre Akashic cometeu ao criar aquela criatura.
Se Drink não tivesse o hábito de brincar de forma tão selvagem, até que eu poderia me imaginar viajando em suas costas. O império geralmente era um lugar seguro, mas ainda assim havia monstros, espectros e ladrões. Nenhum deles, no entanto, se aproximaria de Drink. Eu sei que eu não chegaria perto se estivesse no lugar deles. Matadinho parece mais adequado para a vida de ladrão. Será que eu deveria me preocupar mais com isso...?
Enquanto me inclinava para fora da janela e bocejava, ouvi uma voz baixa e descontente.
— Não tem nada pra fazer.
Liz não era boa em ficar parada. Em todas as minhas lembranças dela, ela estava sempre em movimento. Normalmente, quando viajávamos longas distâncias de carruagem, ela corria ao lado de fora. Se parássemos em uma cidade, ela começava a treinar assim que tivesse um momento livre. Ela nunca me pareceu ter dificuldades para aprender métodos e teorias, mas claramente os achava entediantes. Preferia muito mais colocar suas lições em prática.
Para alguém como ela, ser proibida de treinar e ficar presa em uma carruagem era quase insuportável. Ainda assim, ela conseguiu aguentar por um dia inteiro, o que já era mais do que eu esperava. Silenciosamente lendo um livro em um canto, Tino ergueu os olhos para sua mentora, ainda com olheiras escuras sob os olhos.
— T, não tenho nada pra fazer — disse Liz. — Se nada acontecer, vou morrer de tédio. Por que você não faz algo interessante? E rápido!
— Hã?! Ah, você gostaria de estudar Relíquias? Matthis foi gentil o suficiente para me emprestar um livro introdutório — sugeriu Tino.
— Nem pensar. Esquece isso, só faz algo interessante.
— Hã? Ah, ok. Então... eu vou fazer uma imitação do Gerente da Filial Gark.
Eu observava Liz fazendo exigências absurdas e Tino se esforçando, sem sucesso, para atendê-las. Fiquei curioso para ver como alguém do tamanho da Tino poderia imitar aquele brutamontes, mas também achei que isso não ajudaria em nada o humor de Liz. Em um instante, porém, a atenção dela se voltou para mim, e Tino rapidamente interrompeu sua atuação.
— Estou tão entediada — disse Liz, sorrindo enquanto se arrastava até mim e se esfregava em mim. — Tive uma ideia. Vou correr lá fora segurando umas cordas amarradas a uma caixa e você pode subir na caixa. Vai ser muito mais rápido, você vai sentir o vento, vai ser incrível. E isso não é treino, tá bom?
Esse era um jogo que sempre brincávamos. Fazia parte do nosso treinamento em grupo, e eu sempre era o cara que ficava na caixa. Só que agora Liz estava rápida demais, e eu tinha certeza de que só seria arremessado para fora.
— Anda logooo. Faz tanto tempo que não viajamos juntos, a T e a Siddy só atrapalham, e essa restrição é muito rígida. Meus músculos vão enfraquecer se eu não usá-los. Olha só! Eles não estão diminuindo?
Liz deitou de costas e apontou para sua barriga bronzeada exposta. A mesma pele impecável de sempre. Não parecia particularmente musculosa, mas também não havia um grama de gordura sequer. Era uma beleza feroz e esguia.
Se alguém fosse fortalecido por material de mana, isso nem sempre seria visível do lado de fora. Apenas olhando para a barriga dela, eu não tinha como dizer se ela tinha ficado mais fraca ou não, mas suspeitava que ela estava bem.
Liz estendeu os braços para mim, sedutora.
— Ei, brinca comigo?
— Lizzy, você está agindo como uma criança!
Sitri interrompeu sua escrita para esticar as pernas e deixar seus calcanhares caírem sobre o estômago de Liz. Tino se afastou. Liz saltou de pé.
— Ah, o que você está fazendo?! Cuida da sua vida!
— Não posso, se você está incomodando o Krai! Você sempre, sempre... Se quer tanto correr lá fora, corre com a T! Krai disse que você pode treinar se realmente não conseguir se segurar. Que tal uma corrida com Drink?
Lá vamos nós de novo. Sabe como é, dizem que brigam tanto porque são muito próximas, ou algo assim...
— Eu já falei que não vou cair nessa! Isso não adianta nada, o Krai Baby está caidinho por mim, então não importa o que você tente! Então sai daqui! Some! Só porque a Lucia não está aqui você acha que pode se safar disso — gritou Liz.
Entendo. Elas estão brigando porque a Lucia não está aqui. Parar brigas no nosso grupo sempre era trabalho dela ou do Ansem. Mas o ponto fraco do Ansem é que ele é mole demais com as irmãs, então, nessas horas, é a Lucia que precisa intervir. E depois, por algum motivo, sou eu quem acaba levando bronca.
Tino ficou nervosa ao ver a discussão esquentando. Talvez minha restrição também estivesse estressando Sitri; normalmente ela não ficava tão irritada assim. Talvez eu precisasse repensar essa regra.
— Diferente de você, eu não sou um fardo para o Krai! E além disso, já disse dezenas de vezes, você e o Krai têm uma compatibilidade genética horrível!
— Nós temos os mesmos malditos genes?! Você só está dizendo isso para tentar roubá-lo de mim, sua ladina!
Compatibilidade genética. Esse termo era novidade para mim.
Em um acontecimento raro, o rosto de Sitri estava corado. O sangue subiu à sua cabeça e ela automaticamente pegou uma poção branca. Antes que alguém pudesse detê-la, ela lançou a poção contra Liz. O líquido brilhou sob a luz do sol, e Liz desviou como se fosse a coisa mais natural do mundo.
Tínhamos deixado a janela aberta para entrar ar fresco, e a poção saiu voando por ali, batendo no chão. Ouvi um som que parecia vidro quebrando.
— Por que você desviou?!
— Que diabos você queria que eu fizesse?! Tudo o que você faz são poções duvidosas! Mesmo que eu pegasse, você ia só ficar olhando enquanto eu morria!
A carruagem seguia seu caminho enquanto elas brigavam. Inclinei-me para fora da janela e olhei para trás, mas a poção já estava longe demais para que eu conseguisse vê-la.
Será que tá tudo bem deixar isso aí?
Eu realmente queria que Sitri parasse de jogar poções durante suas brigas com Liz. Seria tranquilo se fossem poções de cura, mas metade do estoque dela era de poções ofensivas. Poções ofensivas que funcionavam contra fantasmas. Céus.
— Já chega — eu interrompi, mesmo que um pouco tarde. Estava retomando meu papel de líder. — Liz, falta pouco para chegarmos na próxima cidade, então aguenta firme. Sitri, precisamos fazer algo sobre aquela última poção?
Sitri e Liz brigavam com frequência, mas raramente ia tão longe a ponto de mirarem na garganta uma da outra. Eu sabia que as coisas estavam passando do limite quando as palavras de Liz começavam a ficar descontroladas.
Como de costume, as duas irmãs logo se acalmaram.
— Taaá bom — Liz disse.
— Desculpa, me empolguei um pouco — Sitri respondeu. — Você perguntou sobre a poção?
"Me empolguei um pouco", ela disse. Essas duas realmente são farinha do mesmo saco.
Liz se jogou contra o banco e virou o rosto para o outro lado. Sitri controlou a respiração e, em pouco tempo, começou a falar no tom de sempre, como se a briga nunca tivesse acontecido.
— Essa poção se chama "Efeito Perigo". É uma versão aprimorada dos atrativos de monstros usados para treinamento. Se precisar de mais, posso fazer.
Um atrativo de monstros? Eu queria perguntar se isso não era um pouco intenso demais para treinamento e o que ela esperava conseguir jogando isso na Liz.
Mas o que acabei perguntando foi:
— Parece que se quebrou no chão lá atrás. Isso não é ruim?
— Não se preocupe. Mesmo com o vento, não imagino que vá se espalhar muito, e vai sumir com o tempo. Por um curto período, os monstros podem aparecer com um pouco mais de frequência — ela explicou. Depois de pensar um pouco, acrescentou: — Também não há provas de que fomos nós que usamos.
Isso não era um problema? Inclinei a cabeça, mas Sitri me lançou um sorriso tranquilizador.
Do banco do cocheiro veio o aviso de que a próxima cidade já estava à vista. Eu estava preocupado com a poção da Sitri, mas nada aconteceu. Parece que me preocupei à toa. Não que minhas previsões fossem muito confiáveis. Ainda assim, minha sorte era péssima e, no fundo, eu era um covarde, então me preocupava de qualquer jeito.
Sentindo o calor do corpo de Liz pressionando minhas costas, estreitei os olhos e tentei avistar a cidade. Nosso destino, Gula, era um lugar que eu nunca tinha visitado antes. Não era grande, mas era famoso por seus chocolates. Seus produtos eram vendidos na capital, como muitas outras coisas, e eu já os tinha experimentado antes, então estava ansioso pela visita.
Tomado por uma empolgação infantil, finalmente vi: uma cidade com uma presença esmagadora. Mesmo de longe, dava para perceber um número incomum de guardas e até Magos patrulhando do lado de fora de seus muros cor de cacau. Havia também guardas posicionados no alto das muralhas e uma bandeira vermelha com uma linha horizontal tremulava ao vento. Aquele sinal indicava que a cidade estava em estado de alerta.
Os portões não estavam fechados, então provavelmente não era nada tão sério, mas claramente havia muito mais carruagens saindo do que entrando.
Sitri também colocou a cabeça para fora e arregalou os olhos ao ver a cena.
— Nossa, parece que algo está acontecendo — ela comentou. — Aquela bandeira... parece que tem a ver com monstros.
— Hã? O que foi, o que foi? Algo doido? — Liz perguntou, se inclinando sobre mim para enxergar. Então viu a bandeira. — Ah, é só a bandeira vermelha. Nem parece nada tão sério. Que chato.
Você tá acostumada demais com o perigo. Mesmo que já tenhamos visto mais dessas bandeiras do que conseguimos contar.
A bandeira vermelha era um símbolo universal por toda a região. Já tínhamos visto dentro e fora das fronteiras do império, até mesmo em pequenas vilas. Essas bandeiras eram erguidas com certa frequência em cidades próximas a habitats de monstros. Gula ficava ao lado de uma floresta que provavelmente era povoada por criaturas, então essa situação não era nada tão incomum.
Pela minha experiência, cinquenta por cento das vezes em que uma bandeira vermelha dessas aparecia, acabávamos nos metendo em confusão. Dessas ocasiões, apenas vinte por cento envolviam algo realmente perigoso. Talvez eu estivesse meio enferrujado por ter ficado tanto tempo sem sair da capital, mas eu tinha certeza de que isso era algo em que não queríamos nos envolver.
— No caminho para o Palácio Noturno, não paramos aqui. Não sabíamos quanto tempo levaríamos para limpar o cofre do tesouro — Sitri comentou.
— Não estávamos cansados e esse também não era um bom lugar para descansar — Liz acrescentou.
— Mestre... — Tino murmurou com incerteza.
Era uma sensação boa. Com Liz e Sitri por perto, eu me sentia mais seguro, mas com Tino, eu tinha alguém com quem me identificava.
Nosso cocheiro deve ter sentido minha hesitação, porque a carruagem parou. Cruzei os braços e refleti pela primeira vez em um bom tempo.
A situação era diferente de Elan. Não tínhamos como prever aquele elemental de raio, mas desta vez sabíamos que algo estava acontecendo. Ainda assim, não sabíamos muito além disso. Não precisávamos reabastecer imediatamente e não havia nada em Gula que exigisse nossa presença. Normalmente, isso seria um caso simples. Liz e Luke já nos metiam em problemas demais.
Mas havia um problema.
Normalmente, eu escolheria o caminho mais seguro, mas Gula era uma cidade famosa por seus chocolates. Como um amante de doces escondido, não podia simplesmente passar reto. O chocolate em si podia ser adquirido na capital, mas eu tinha ouvido de confeiteiros sobre uma loja em Gula que servia um parfait de chocolate especial. A única maneira de provar esse parfait era visitando a cidade.
Eu estava preso. Deveria escolher a segurança ou a doçura?
Pela minha experiência, havia uma boa chance de que o estado de alerta não significasse nada sério. Se fosse algo comparável a um ataque de um elemental de raio, haveria mais alvoroço.
Eu quero comer doces.
— O-O que foi, Mestre? — Tino perguntou.
Olhei para ela. Nos últimos dias, parecia tão pequena e tímida. Não era apenas por minha vontade de comer doces, eu também queria oferecer um delicioso parfait de chocolate para minha valente caçadora júnior. Na verdade, essa era minha principal motivação. Liz e Sitri não eram fãs de doces, mas talvez comessem de vez em quando.
— Tino, quero te oferecer algo doce e delicioso — sussurrei, apoiando os cotovelos no parapeito da janela.
— Hã?! V-Você quer me oferecer algo?!
— Você é bom demais, Krai Baby — Liz acrescentou. — Mas ainda não gosto disso. T, me dê duas mil flexões depois.
O problema era que, ao entrarmos na cidade, provavelmente pediriam nossa assistência. Teríamos que mostrar nossa identificação, e as carteiras de caçadores indicavam nosso nível.
Com um estado de emergência declarado, era quase certo que alguém nos pediria ajuda. Eu achava isso irritante, mas não podia reclamar muito, já que, como um caçador de alto nível, aproveitava diversos benefícios. Eu poderia recusar, mas representava tanto os Grieving Souls quanto a Primeiros Passos, e, mais do que isso, eu simplesmente tinha dificuldade em dizer não. Então, passaria o problema para Tino.
— Hmm, bem, isso é um férias... — eu disse.
Talvez as coisas se resolvessem sozinhas. Talvez a fofa e confiável Sitri cuidasse disso. Sem olhar para ela, fiz um suspiro exagerado, e a fofa e confiável Sitri bateu palmas.
— Krai, posso estar sendo presunçosa aqui, mas acho que você quer entrar em Gula sem revelar nossas identidades? Tenho duas opções. Qual te agrada mais, alterar a si mesmo ou alterar os outros?
— Ah! Podemos simplesmente pular o muro! Eu sou um gênio! — Liz disse.
Alterar a mim mesmo ou alterar os outros? O que ela está tramando?
Sitri aguardava minha resposta com um sorriso. Eu sempre tinha que tomar as decisões. Esfreguei a cabeça de Liz, parafuso solto e tudo, e assenti.
***
— Essa é nossa chance de mostrar o quão bons nos tornamos em andar sem ser notados — Sitri disse.
— Ei, onde você compra algo assim? — perguntei.
— Você só precisa de dinheiro e conexões — ela respondeu animada.
O plano era usar identificadores diferentes. Aparentemente, Sitri os preparou há algum tempo, por precaução. Os novos documentos até tinham nossas fotos, então isso claramente era algum tipo de crime. Havia um não apenas para mim e as irmãs, mas também para Tino. Parecia um exagero. Nossos nomes e datas de nascimento eram inventados, e nenhum nível estava registrado. Revirei a identificação várias vezes e a analisei de perto, mas não parecia falsa.
Ao perseguir criminosos, caçadores às vezes precisavam quebrar a lei. Era um trabalho sujo. Eu não tinha ilusão de que métodos adequados fossem sempre suficientes para resolver um problema. Assassinato talvez fosse um exagero, mas o uso de uma identificação falsa poderia ser ignorado. Mesmo que fôssemos pegos, isso era pequeno o suficiente para que ficássemos impunes com uma explicação decente. Esse era o tipo de privilégio que um caçador de alto nível da capital poderia receber. No entanto, ninguém jamais interferiria em uma luta entre dois caçadores desse nível...
Nem mesmo Sitri tinha identificações falsas para seus três ajudantes, e Drink e Matadinho chamavam atenção demais, então todos ficaram do lado de fora da cidade. Uma solução bem razoável.
— Bem, deixo Drink e Matadinho sob seus cuidados — Sitri disse. — Acredito que ensinei tudo o que você precisa saber sobre eles.
Silêncio. O trio monocromático parecia estar indo para o corredor da morte. Me senti mal, mas não havia muito que eu pudesse fazer por eles. Esperava que considerassem isso uma experiência de trabalho realmente única. Pareciam tão ferozes quanto qualquer caçador experiente, então certamente ficariam bem.
Acho que vou comprar um chocolate de lembrança para eles.
Pela primeira vez em alguns dias, afaguei Drink, e a quimera se ergueu nas patas traseiras e cambaleou em minha direção. O pelo de Drink era duro e brilhante, quase como agulhas, e nada macio. Tive medo de ser esmagado, então recuei, mas já havia usado um Anel de Segurança.
Parece que nem eu vou conseguir engolir esse Drink.
Fiquei um pouco preocupado, mas desci da carruagem e segui em direção aos portões. Tudo o que podia fazer era depositar minha fé em Sitri.
Os guardas fora de Gula estavam em alerta máximo. Magos reforçavam as muralhas com feitiços e desenhavam círculos mágicos no chão, como eu costumava ver Lucia fazer. Parecia que monstros estavam causando problemas. Acontecia o tempo todo.
Chegou nossa vez na inspeção. Eu estava um pouco inquieto, mas as identificações de Sitri eram idênticas às verdadeiras (talvez tecnicamente fossem verdadeiras), e o guarda nos deixou passar sem demonstrar suspeitas. Parecia que minha cobertura não havia sido comprometida. Todo o esforço para esconder meu rosto valeu a pena.
— Vi a bandeira. Algo está acontecendo? — Sitri, que também não parecia uma caçadora, perguntou casualmente.
Ela nunca perdia nada. Eu adorava isso.
— Sim, tem um bando de orcs vivendo em uma vila abandonada nas montanhas por perto — o soldado respondeu, sem esconder seu desgosto. — Aparentemente, eles montaram um forte e acredita-se que tenham um alto-orc como líder. Por via das dúvidas, passamos os últimos dias nos preparando para um ataque.
Orcs eram uma variedade de Sapien. Para ser mais preciso, eram monstros humanoides com aparência de primatas. Tinham inteligência semelhante à dos goblins, mas possuíam força física muito superior à de um humano comum e eram cobertos por uma pelagem espessa. Eram um tipo de monstro irritante: belicosos, atacavam humanos por diversão, se reproduziam rapidamente e comiam praticamente qualquer coisa.
Geralmente, orcs estavam entre os monstros mais fracos e podiam ser facilmente derrotados por um caçador de nível 2 ou 3. Ocasionalmente, nascia um excepcional, um alto-orc, mas ainda assim não eram tão poderosos. No entanto, tendiam a formar grandes bandos e, se deixados sozinhos, poderiam até construir um vasto reino. Cidades inteiras já foram destruídas por grandes hordas de orcs, e provavelmente era isso que preocupava Gula.
— E-E a cidade vai ficar bem? — Sitri perguntou com um toque de medo no rosto. Foi uma atuação admirável.
— Estamos entrando em contato com cidades vizinhas para pedir assistência — respondeu o soldado com um sorriso torto. — Algumas pessoas frias estão abandonando a cidade, mas não deve haver problemas durante sua estadia. Aproveitem seu tempo em Gula.
A cidade exalava a tensão típica de uma guerra. Todos os caçadores armados, presumivelmente chamados de outras cidades, não ajudavam a aliviar o clima. Mas saber a origem do medo me deixou um pouco mais relaxado.
Uma fortaleza de orcs. Não havia motivo para preocupação. Um bando contendo altos-orcs era um problema, mas parecia bem menos ameaçador comparado a um elemental superior. Imagino que, do ponto de vista de um civil, um elemental errante não fosse tão assustador quanto algo que atacava por puro instinto.
Para mim, ambos estavam além do que eu poderia lidar, mas parei de temê-los há muito tempo. Nem conseguia mais lembrar quantos bandos de orcs já enfrentei. Sempre apareciam em grupos e sempre atacavam quando eu já estava exausto. Eu os odiava.
O humor de Liz pareceu azedar ao ouvir a menção dos orcs.
— Aaah, que tédio. Eu estava animada, mas já superei orcs faz tempo. Não sou uma açougueira, sou uma caçadora — disse.
— Se Lucia estivesse aqui, ela poderia torrá-los todos de uma vez — comentou Sitri.
A aniquilação em grande escala era domínio dos Magos. Não importava quantos orcs se reunissem, para Lucia todos eram iguais. Parecia que Tino não tinha experiência com orcs; seus olhos corriam de um lado para o outro, cheios de medo.
— Lizzy, quantos bandos de orcs você já derrotou? — perguntou timidamente.
— Sei lá. Luke e eu estávamos competindo para ver quem conseguia eliminar mais, mas cansamos de contar.
Não sabia exatamente em qual batalha isso aconteceu, mas lembrava que orcs apareciam em enxames grandes demais para contar. Nosso primeiro encontro com eles foi antes de Lucia aprender magias de ataque em grande escala, e achei que fosse morrer quando fomos engolidos por uma onda deles.
De todos os monstros, os goblins se reproduziam mais rápido, mas os orcs não ficavam muito atrás. Eles ensinavam na prática o impacto que a superioridade numérica tinha em uma batalha. Foram o motivo pelo qual Lucia aprendeu magias ofensivas de grande alcance.
Liz falou de sua competição com indiferença, o que só a tornava mais convincente.
— Isso é bem assustador — disse Tino, tremendo.
— Bom, não vamos lutar contra eles desta vez — falei.
— Hã? Não vamos? — Tino me olhou de olhos arregalados.
O que ela achava que os IDs falsos significavam? Eles eram para que ninguém descobrisse que éramos caçadores que não queriam trabalhar.
— Está tudo bem, outros caçadores vão cuidar disso — disse em um tom baixo para que ninguém nos ouvisse. — Se realmente precisarmos, podemos contar com Liz e Sitri, mas provavelmente não será necessário.
Além disso, a cidade estava se preparando para resistir a um ataque; um bando de orcs não era algo com que valesse a pena se preocupar.
— Orcs são bem mais saborosos do que se imagina, mas a maioria das pessoas não gosta deles — murmurou Sitri. Ela realmente tinha se tornado uma pessoa resistente.
Orcs não eram nada comparados a um elemental de trovão. Vamos apenas relaxar e focar nas guloseimas.
Enquanto tentava confortar Tino, observei o sol se pôr sobre a cidade e respirei o aroma adocicado que pairava por suas ruas.
***
O campo de batalha era um lugar onde as fraquezas eram expostas.
Tino se lembrou dessas palavras de Lizzy. Elas soavam verdadeiras para ela. Pensava ter desenvolvido um espírito resiliente depois de superar os vários Mil Desafios de seu mestre, mas parecia estar errada.
Tino mal conseguiu dormir um minuto desde a noite em Elan. Antes disso, também havia perdido o sono devido aos caprichos de sua mentora e àquele incidente com a máscara. Seu corpo estava no limite. A única vez que dormiu foi depois de ser nocauteada durante o treinamento com trovões.
Ela lutava para caminhar em linha reta e sua visão oscilava como se estivesse sonhando. Os raios de sol que vieram após a tempestade do outro dia eram ofuscantes para seus olhos privados de sono. Sua guarda estava baixa, mas não por causa das restrições de seu mestre nos treinamentos.
Sua condição era crítica.
Era a inquietação e a ansiedade que a mantinham acordada. Nessas condições anormais, estava inquieta porque não sabia o que poderia acontecer e nervosa por temer se envergonhar diante de seu mestre e sua mentora. Era uma luta diferente de qualquer outra que já havia enfrentado. Com pura força de vontade, conseguiu manter a compostura e não desviar os olhos de seu mestre.
Ela já tinha ouvido falar da bandeira vermelha que significava "cuidado com os monstros", mas era a primeira vez que via uma. Isso se devia, em parte, ao fato de que raramente saía da capital, mas, mais do que isso, a maioria das cidades evitava indicar que estavam em perigo. Era uma questão de orgulho, mas também uma revelação de fraqueza que outros países ou criminosos poderiam tentar explorar.
Quanto maior a cidade, menos frequentemente suas bandeiras eram erguidas. Tino tinha ouvido dizer que, em toda a longa história da capital de Zebrudia, a cidade só havia erguido suas bandeiras algumas poucas vezes. Gula não era tão grande quanto a capital, mas ainda era famosa por sua produção de chocolate, então era possível que algo realmente grave estivesse ameaçando o local.
Pelo número de cavaleiros e Magos nos portões, Tino teve uma ideia do quão cautelosa a cidade estava sendo. Empregar tantas pessoas não devia ser nada barato. Esse não era o tipo de precaução tomada por uma simples suspeita; devia haver um medo muito real dos orcs. Ela percebeu que as palavras do guarda no portão tinham sido apenas para dissipar suas preocupações.
Tino não acreditava em uma única palavra de seu mestre desde o início da viagem. Não achava que ele estivesse mentindo, mas a experiência havia lhe ensinado que "não é nada demais" para ele significava "não é nada demais" para o impenetrável Mil Truques. Tino, no entanto, não era como ele, então, para ela, era sim algo preocupante.
Se eles não fossem participar de nenhuma batalha, então não havia motivo para terem vindo a Gula em primeiro lugar. Todos na Primeiros Passos sabiam que o Mil Truques adorava alimentar esperanças antes de destruí-las. Tino sequer conseguia imaginar quando seu mestre havia descoberto que a bandeira havia sido erguida ali, mas, se ele não soubesse disso, por que teria escolhido justamente essa cidade entre tantas outras opções?
Seus pensamentos giravam em sua mente.
Entendo, Mestre. Para você, uma batalha contra um exército de orcs sequer merece ser chamada assim. Mas, para mim, é demais.
Ela tinha certeza de que seu mestre iria mandá-la atrás de um bando de orcs só por diversão. Em seu estado normal, Tino conseguia eliminar vários deles sem dificuldades. Mesmo os mais fortes, ela conseguia lidar com eles se os enfrentasse um de cada vez. Mas Tino estava exausta. Talvez fosse sua própria inexperiência que a impediu de descansar durante a viagem, mas, ainda assim, desafiar um grupo de orcs naquele estado seria suicídio.
Ladinos não eram feitos para lutar contra múltiplos inimigos ao mesmo tempo. Era fácil esquecer disso ao ver Lizzy em ação, mas suas principais funções eram ataques furtivos, reconhecimento e desarmamento de armadilhas.
Mestre quer me ensinar os segredos do combate contra múltiplos alvos—um dos meus pontos fracos. Eu não consigo fazer isso.
Tino sentia inveja das alegres irmãs Smart. Seu cérebro, privado de sono, falhava em organizar seus pensamentos, impedindo-a de tomar qualquer decisão sensata. Seu rigoroso treinamento espartano mais uma vez a fazia querer se agarrar às costas que sempre seguia. Em Elan, alguns caçadores derrotaram o elemental de raio, mas Tino duvidava que o mesmo milagre acontecesse duas vezes.
Ela precisava lutar. Se seu mestre estava impondo uma Provação, era porque acreditava que ela conseguiria superá-la, porque esperava isso dela. Tino havia passado por treinamentos infernais justamente para atender a essas expectativas.
Seu mestre disse que a protegeria se fosse necessário. Isso a fez esquecer o cansaço por um instante, mas ela não podia depender dele para sempre. Seu objetivo era ficar ao lado dele como uma igual, não ser protegida.
Ela não sabia quantos orcs enfrentaria, mas, considerando as Provações anteriores, seria um número considerável. Talvez fosse até demais para ela.
Talvez haja orcs infinitos. É possível. Mestre, eu não consigo fazer isso.
— Hã? Você tem outro esconderijo em Gula? — ela ouviu Krai perguntar.
— Mas é claro — Sitri respondeu com um aceno confiante. — Nunca se sabe o que pode acontecer.
Foi então que Tino achou que entendia por que Siddy era tão exageradamente preparada. Com um sentimento confuso, ela tomou uma decisão: se tivesse a chance, se prepararia para qualquer contingência. Mas, primeiro, precisava sobreviver até o dia seguinte.
Tino teve uma ideia. Diferente de Lizzy, que resolvia tudo na base da força bruta, Siddy se especializava em métodos mais sorrateiros. Talvez ela pudesse ensinar Tino a lutar contra múltiplos inimigos ao mesmo tempo. Tino tinha dificuldade em lidar com Siddy, mas isso não significava que se davam mal. Siddy exigia cautela e atenção, mas as duas tinham um aliado em comum: Krai. Às vezes, ela podia ser um pouco pegajosa, mas parecia haver um limite que não ultrapassava.
Ela provavelmente ajudaria Tino se ela pedisse. O que Tino não sabia era que tipo de compensação Siddy poderia exigir.
Quando aconteceria a batalha contra os orcs? À noite? Daqui a uma hora? Eles atacariam? Ou Tino teria que caçá-los? Ela teria a chance de descansar? Teria tempo para se preparar? Ou teria que lidar com a situação em seu estado atual? Com as restrições de treinamento atuais, essa última possibilidade parecia a mais plausível e também a mais desgastante. Com as Provações de seu mestre, era sempre mais seguro assumir o pior cenário.
Eu não consigo fazer isso.
Tino lutava desesperadamente para organizar seus pensamentos em meio ao cansaço e à privação de sono. De repente, seu mestre se virou. Seus olhos negros pareciam penetrar diretamente sua mente. Ao contrário de Tino, ele parecia calmo e sem nenhuma preocupação.
— Bom, Tino também está com cara de cansada. Vamos fazer uma boa refeição e relaxar pelo resto do dia — ele disse.
— M-Minha última ceia?
Talvez os orcs atacassem durante a refeição?
***
Como se estivessem zombando da covardia de Tino, nenhum sinal de perigo apareceu.
O esconderijo de Siddy em Gula era idêntico ao de Elan. Os suprimentos e os móveis eram os mesmos, a ponto de ser necessário se esforçar para notar qualquer diferença.
— Especificações universais facilitam as coisas — Siddy disse com um certo orgulho.
Ela cuidou da cozinha e preparou uma refeição excepcional com os suprimentos armazenados. Era difícil acreditar que ela era parente de Lizzy, que nunca cozinhava. Tino tinha alguma confiança em suas habilidades culinárias, mas nada do que fazia se comparava àquilo. Siddy devia ter praticado para conquistar o coração de Krai pela comida.
Na superfície, essas férias eram realmente apenas férias. Tino não havia lutado contra nenhum monstro e não precisou pagar pela comida ou hospedagem. Seria maravilhoso se essa mordomia fosse o pagamento pelos seus serviços como guarda-costas. Mas a palavra “férias” a corroía por dentro, pois era uma palavra normalmente associada à diversão.
Ela sentia que estava desmoronando. Estava inquieta. Só queria treinar, mesmo que fosse algo tão brutal a ponto de fazê-la perder o almoço. Ainda assim, seria melhor do que a situação atual.
Sua cabeça balançava de um lado para o outro, atormentada por esses pensamentos, quando foi interrompida pelo som de Krai batendo as mãos.
— Ah, certo — disse ele. — Tino, que tal irmos comer parfaits de chocolate amanhã? Tem um lugar famoso na cidade.
Tino não esperava por isso. Sua resposta demorou um instante para sair.
— Hã?
Ela gostava de doces e já havia acompanhado seu mestre muitas vezes nesses passeios. No entanto, ainda não tinha feito nada que justificasse uma recompensa. Tanto Lizzy quanto Siddy franziram a testa ao ouvir a sugestão dele. Elas não ligavam muito para doces, então apenas Tino costumava aproveitar essas ocasiões.
Como forma de protesto, Lizzy pulou nas costas de Krai e envolveu os braços ao redor dele, mas sua expressão permaneceu inalterada. O sorriso de Siddy voltou ao rosto, mas o olhar que lançou a Tino ameaçava sua vida.
Tino queria aceitar, mas não podia se permitir concordar.
— Mestre, eu não fiz nada que mereça uma recompensa — disse ela.
— Que bobagem, acho que você está trabalhando muito duro. Além disso, doces são bons quando se está cansado — disse ele.
O sorriso de Krai era genuíno, ele sempre foi gentil. Usava esse mesmo sorriso quando lançava desafios para Tino superar.
— Mas...
— Eu não ligo muito para essas coisas de merecimento. Mas, se isso realmente te incomoda... aqui, se algo acontecer, basta dar o seu melhor na hora. É importante descansar de vez em quando. Tino, você não parece bem.
Tino lançou um olhar hesitante para Lizzy. As palavras de seu mestre eram sagradas, mas ela precisava mostrar respeito por Lizzy se não quisesse ser submetida a um treinamento brutal.
Lizzy notou o olhar de Tino, franziu a testa e se jogou no sofá.
— Parece uma boa ideia — disse ela.
— Hã?! Uh, Lizzy—
— Não sou burra. Se eu for junto, só vou atrapalhar.
Lizzy era conhecida como a Sombra Partida e temida em toda a capital. Krai provavelmente era a única pessoa que poderia pensar nela como um “estorvo”.
— Krai tem razão, T — disse a outra irmã Smart. — É importante descansar. Eu planejo tudo para amanhã, assim você pode relaxar.
Nos olhos rosados dela, da mesma cor dos de Lizzy, brilhou uma luz. Uma luz que parecia anunciar o fim da existência de Tino.
***
O sol começou a se pôr. Com as muralhas de Gula ao longe, Preto, Branco e Cinza montaram uma barraca, trabalhando rápido e silenciosamente. Um clima pesado pairava sobre eles. Tinham uma carruagem, comida de sobra e a pessoa que os aprisionou não estava à vista. Ainda assim, não conseguiam fugir.
Um par de olhos os observava. Já haviam visto inúmeras criaturas estranhas, mas aquela era diferente de tudo. O ser os incomodava desde o momento em que começou a correr ao lado da carruagem, mas eles tentavam ao máximo não pensar sobre isso.
Tinha a pele cinzenta e um corpo extremamente musculoso. Vestia apenas uma sunga vermelha e um saco de papel marrom com dois buracos para os olhos sobre a cabeça, como se fosse uma piada. Era inconfundivelmente um monstro, a fera leal daquela Alquimista demoníaca.
Eles sabiam que não poderiam convencê-lo a mudar de lado. Para seus sentidos aguçados, a criatura emanava uma quantidade absurda de mana material. Aqueles músculos não eram só para exibição. E então, havia o olhar... completamente vazio de emoção.
Aparentemente, seu nome era “Matadinho”, mas isso não importava. Preto tentou imaginar que tipo de método aquela Alquimista teria usado para criar uma fera dessas, mas logo se forçou a parar. Tinha certeza de que a Alquimista sujara as mãos com atos muito mais hediondos do que ela, Branco ou Cinza jamais haviam cometido. E também tinha certeza de que aquelas mãos poderiam alcançar o trio a qualquer momento.
Perto de Matadinho, havia um leão branco — uma quimera — com quase dois metros de comprimento. Ele soltou um rosnado. A quimera não era tão assustadora quanto Matadinho, mas ainda assim era uma criatura que normalmente evitariam enfrentar, pois sua força era desconhecida. Todos os monstros do caminho haviam fugido ao vê-lo. Provavelmente, não era fraco, e poderia alcançá-los facilmente se tentassem fugir com a carruagem.
— Disseram para cuidarmos dessa coisa. Como diabos a gente faz isso?! — perguntou Branco, pálido como um fantasma.
Cinza não disse nada, mas parecia igualmente desesperado.
Preto já havia feito diversos trabalhos ao longo de sua carreira como criminosa, mas nunca tinha cuidado de uma quimera. A Alquimista disse que eles conseguiriam lidar com tudo sozinhos, mas sequer explicou o que o bicho comia. As provisões da carruagem não pareciam suficientes para sustentar um corpo daquele tamanho. Sitri não parecia estar alimentando a criatura, e eles não sabiam como ela tinha se nutrido durante a viagem até ali.
Preto tomou coragem e se aproximou de Matadinho e da quimera (Drink, era esse o nome?).
— O que vocês comem? — perguntou.
Matadinho virou-se lentamente para Drink.
— Matar, matar, matar...
— Miau.
— Maaaataaar.
— Miau, miau.
Será que, por serem monstros, sentiam alguma camaradagem? A voz de Matadinho era surpreendentemente aguda para um ser tão grande, enquanto o miado de Drink era quase fofo.
— O que está acontecendo? Eles estão conversando? — sussurrou Cinza, tremendo.
A conversa durou apenas algumas palavras. Matadinho então se virou para Preto, enquanto Drink se espreguiçou preguiçosamente.
— Matar.
Com essa única palavra, Matadinho saltou no ar. Com uma flexibilidade surpreendente, pousou sobre Drink. A quimera disparou a uma velocidade extraordinária, e as duas silhuetas foram gradualmente diminuindo. Black não sabia o que dizer. Nem White ou Gray.
— Eles fugiram? — White sussurrou.
Não havia razão para que corressem, nem Black, White ou Gray tinham feito qualquer coisa. Isso não era bom.
— Eles fugiram. Temos que ir atrás deles!
— M-Mas!
— Era nossa responsabilidade cuidar dessas coisas! Se a Sitri descobrir que eles fugiram, estamos mortos.
Provas não eram necessárias. Tudo o que Sitri precisava para eliminá-los era um palpite. Não havia dúvidas em suas mentes. Um vento frio e ominoso soprou sobre eles. Na direção em que tinham visto Drink e Matadinho fugir, havia uma floresta negra.
— Como vamos persegui-los? Para onde eles foram?
— Como eu vou saber? Vamos logo!
***
A besta disparou pela floresta. Era uma quimera, uma criatura amaldiçoada nascida da distorção das leis da vida. Parecia um leão, mas as asas em suas costas deixavam claro que era algo bem menos convencional. Alguém com um bom faro poderia perceber o cheiro perverso que exalava.
Ela corria como o vento por uma trilha de montanha ladeada por árvores escuras, com um berserker montado em suas costas. A pele acinzentada e os músculos do cavaleiro eram reforçados, seu corpo ardia ao toque, um contraste gritante com sua cor opaca. Tinha o cheiro de um humano, mas sua forma monstruosa era o resultado do profano. Quimeras geralmente só aceitavam seus criadores, mas se Drink estava correndo ao lado de Matadinho, então devia instintivamente saber que os dois eram, de certa forma, parentes.
— Matar, matar...
— Grrr...
Eles não sentiam medo. Mesmo que sentissem, não demonstrariam. Drink e Matadinho foram feitos para serem excepcionalmente fortes, para servirem de escudo se necessário.
O cheiro de monstros estava por toda parte na trilha da montanha, o cheiro de orcs. Drink era uma fusão das melhores partes de vários seres míticos e, para ele, aquele era o cheiro de comida.
Eles estavam famintos. Haviam sido projetados para operar mesmo sem comer por um período limitado, mas isso apenas significava que podiam suportar a fome miserável, não ignorá-la completamente. Tinham caçado e devorado monstros durante a viagem, mas os que se aproximavam da estrada não eram suficientes. Drink e Matadinho estavam com os estômagos vazios, e desde que chegaram a Gula, o cheiro dos orcs os incomodava.
— Matar, matar, matar...
— Miau.
Para interpretar:
— Vamos acabar com isso rápido.
— Nem precisa dizer.
Ou algo assim.
Drink captou o rastro da presa e acelerou. Uma fortaleza iluminada por tochas surgiu no horizonte. A construção era simples, o padrão típico dos orcs. Havia sentinelas, mas Drink e Matadinho não tinham motivo para se preocupar.
Matadinho avançou como vanguarda. Seus músculos começaram a se expandir e se contorcer, enquanto Drink mantinha sua cauda reta como uma lâmina. Ambas as criaturas eram amalgamações feitas para a batalha. Não demonstrar medo. Matar. Comer. As bestas da Ignóbil investiram contra a fortaleza.
***
Foi como um desastre natural.
A matilha de orcs havia sido formada pela junção de várias tribos menores. No declive da montanha, eles ergueram uma fortaleza robusta sobre as ruínas de uma vila abandonada.
Reinando sobre a fortaleza estava o Rei Schwarz, um orc aberrante nascido em uma região remota rica em material mágico. Sua força e inteligência excediam em muito a dos orcs comuns, ele compreendia a língua dos humanos e possuía o carisma para liderar uma coalizão de múltiplas tribos. O que solidificava seu status como uma anomalia entre seus pares era sua arma: uma poderosa espada que roubara de um humano que assassinara.
No entanto, o reino do herói orc desmoronou num instante. O desastre tomou a forma de um monstro arrepiante. Seu cheiro trazia dúvidas se eram realmente deste mundo. A criatura vil saltou as muralhas externas com facilidade, ignorou os sentinelas e avançou diretamente para os recantos mais profundos da fortaleza. Lá ficavam as mulheres e crianças orcs.
Quando Schwarz percebeu o que estava acontecendo, já era tarde. A besta maldita devorara o futuro da matilha — suas crianças — e despedaçara suas mulheres amadas. O rei orc já testemunhara muitas tragédias, mas nem ele conseguia suportar essa cena. O cheiro de sangue impregnava o ar, e gritos se sobrepunham a mais gritos. A criatura soltou um miado felino.
Nem sequer se podia chamar de batalha. Contra um humano, os guerreiros orcs arriscariam suas vidas sem hesitar sob ordens de seu rei, mas a forma abominável e o cheiro de outro mundo da criatura os congelaram de medo.
Apenas Schwarz compreendia a situação, pois possuía racionalidade suficiente para não ser governado pelos instintos. Isso era uma armadilha dos humanos; eles perceberam que não poderiam tomar a fortaleza de frente, então recorreram a métodos covardes.
Havia apenas uma besta, e Schwarz tinha mil guerreiros robustos sob seu comando. Eles não poderiam perder, contanto que mantivessem a calma. Seus instintos, racionalidade e inteligência lhe davam confiança.
No entanto, suas ordens não surtiram efeito. Ele era o único com a força e intelecto necessários para resistir aos instintos. Gritos abafaram seus comandos, e seus soldados e as mulheres restantes viraram-lhe as costas e fugiram da fortaleza. Somente Schwarz compreendia o quão tolo isso era. O objetivo da besta não era apenas comer, era destruir. Com asas e uma cabeça de leão, seus olhos exibiam um prazer selvagem. Era o mesmo tipo de prazer que Schwarz sentia ao atacar um assentamento humano.
— Lutem! — ele gritou, em vão.
Como um vendaval, a besta investiu contra as costas apetitosas dos orcs fugitivos. Superou suas presas com facilidade, suas garras rasgando armaduras e carne com um único golpe. Cada parte de seu corpo fora feita para matar, até mesmo sua cauda em forma de chicote e seu rugido.
Schwarz soltou um uivo de fúria. Ele não queria que mais membros de sua matilha morressem. Com passos trovejantes, investiu contra a besta, sua grande espada negra erguida acima da cabeça. Seu inimigo era uma abominação, mas ele era um veterano de muitas batalhas.
Com uma determinação feroz, estava prestes a atacar o ponto fraco da criatura — sua lateral — quando, de repente, algo caiu do céu. Instintivamente, ergueu a lâmina e bloqueou o impacto; apesar de sua prontidão, seus braços ficaram dormentes com o peso imenso que pressionava sua espada.
— Matar, matar...
Um grande guerreiro, de tamanho comparável ao de Schwarz, havia caído. Sua silhueta se assemelhava à de um humano, e tinha o cheiro de um, mas não era humano. Schwarz percebeu de imediato que sua força superava a de qualquer orc sob seu comando.
Reforços haviam chegado para a outra besta. Schwarz mordeu o lábio e recuou um passo. Ele não poderia vencer essa luta. Apesar de sua fúria ardente, aceitou a derrota.
O guerreiro cinzento cerrou os punhos e assumiu uma postura de combate. A besta parou de devorar os orcs e começou a se mover, cercando Schwarz. Ele poderia lidar com um deles de cada vez, mas contra os dois ao mesmo tempo, era impossível. Sua morte era certa.
Os corpos de aliados, guerreiros e mulheres estavam espalhados pelo forte. Mesmo que os atacantes fossem apenas uma única besta e um humanoide, os cadáveres dentro do forte superavam em muito os que conseguiram escapar.
Como rei, Schwarz não podia se permitir ceder à fúria e perecer ali.
— Você morre...

Uma fera e um lutador. Fugir não seria difícil. Schwarz desviou de um ataque da cauda da criatura e recuou. Os dois atacantes não avançaram mais. Estavam devorando os cadáveres, como se dissessem que já haviam conseguido o que queriam.
E assim, o forte dos orcs foi dizimado antes mesmo de poder atacar a cidade de Gula.
***
A primeira coisa que ela percebeu foi o cheiro repugnante. Já era noite, e Chloe e seus companheiros haviam parado para descansar na estrada para Gula. Eles queriam evitar viajar à noite o máximo possível. Era uma regra básica entre caçadores.
Eles estavam com pressa, e os monstros equinos que puxavam a carruagem de Chloe e do Furacão Escaldante haviam chegado ao limite. Névoa Caída, por outro lado, parecia ter energia de sobra.
Ainda assim, eles não haviam parado para montar acampamento, apenas para um breve descanso. Arnold estava claramente disposto a fazer o que fosse necessário para capturar sua presa.
Eles acenderam uma fogueira intensa e se sentaram ao redor dela. A maioria dos monstros evitava esse tipo de luz; mesmo os menos inteligentes conseguiam sentir o perigo vindo de uma concentração de material de mana.
A imagem dos caçadores sentados ao redor do fogo, compartilhando histórias de aventura, era exatamente como Chloe sempre imaginara. Naturalmente, ela contou uma história sobre os Mil Truques. Os caçadores de tesouros valorizavam seu orgulho. Conflitos entre eles eram inevitáveis, mas a Associação de Exploradores fazia o possível para minimizar os danos resultantes. Ela achou que talvez a raiva de Névoa Caída diminuísse um pouco se soubesse dos feitos de Krai.
Ele havia resolvido vários incidentes, abatido demônios que já haviam matado campeões e era temido por seus contemporâneos. Seu nome causava pavor nos criminosos. Alguns até se entregaram apenas por ouvir rumores de que os Mil Truques estavam atrás deles. Ele era um caçador misterioso que raramente aceitava missões ou aparecia nas filiais da Associação, e ninguém sabia exatamente o que ele fazia em seu tempo livre.
Chloe tentou contar suas histórias de um jeito que não irritasse Arnold, mas ele ainda parecia descontente. No entanto, ele sabia ser calculista quando necessário e provavelmente não a interrompeu porque suas histórias continham informações úteis.
— Ele raramente aceita missões? O que ele faz, então?
— Não interferimos na privacidade dos caçadores — disse ela. — Mas há rumores de que ele treina seus companheiros de clã.
— Você quer dizer aqueles ‘Mil Testes’? Pura bobagem — disse Eigh.
Caçar tesouros exigia constante aprimoramento; os caçadores não tinham tempo para treinar aprendizes. Quem ensinava o ofício eram aqueles que já haviam se aposentado.
Ainda assim, muita gente já havia passado pelos Mil Testes, inclusive pessoas de fora do Primeiro Passo. As expressões amargas de Rhuda e Gilbert provavelmente vinham de sua experiência na Toca do Lobo Branco.
Mesmo que não fosse algo permitido pela Associação, havia algo que Chloe tentava não pensar demais. Era possível que os problemas com o elemental de raio em Elan tivessem sido provocados por razões semelhantes às do incidente na Toca do Lobo Branco.
— Você quer dizer que os Mil Truques podem ter manipulado aquele elemental?
— O quê?! De jeito nenhum! Ele não é um criminoso — protestou Chloe.
— Se você diz... — respondeu Arnold, franzindo a testa.
Um vento repentino soprou sobre eles. Os mustangs relincharam, e Arnold se levantou. Os membros do Furacão Escaldante agarraram suas armas e checaram os arredores. O vento era quente e trazia um fedor repulsivo. Era um cheiro comum até mesmo na Associação de Exploradores: o cheiro de uma fera.
— Que fedor é esse?
— Droga, estou com um mau pressentimento.
Eigh, um Ladino, olhou na direção do vento e estreitou os olhos. Esse era um cheiro mais comum em salas fechadas do que a céu aberto.
— É o cheiro de uma fera excitada... e está se aproximando.
O chão tremia levemente. Os membros do Furacão Escaldante ficaram tensos. Chloe se lembrou de algo que havia ouvido em Elan: aparentemente, Gula estava ocupada tentando lidar com um bando de orcs. Os monstros haviam construído um forte próximo à cidade e estavam se espalhando.
Gula ainda está longe. Não há motivo para orcs que estão escondidos em um forte virem até aqui, pensou Chloe. Mas suas expectativas logo foram traídas.
— É um bando de orcs! — gritou Eigh. — São muitos, e estão vindo direto para nós. Não há para onde correr!
O estrondo se aproximava. Eles perceberam que era o som de passos. Uma onda negra avançava pela estrada iluminada pelo luar. Chloe sacou sua arma, uma espada curta que seu tio lhe dera, e a luz da fogueira brilhou sobre a lâmina.
Arnold rugiu, e sua espada começou a crepitar com eletricidade. Ele não demonstrava nenhum sinal de cansaço.
— Preparem-se! Alimentem o fogo e conjurem magias ofensivas — ordenou. — Chloe, se não puder lutar, afaste-se.
— Eu vou lutar.
— Muito bem. Esses aí não são muito mais espertos que animais selvagens. Eles vão recuar se mostrarmos quem é mais forte.
Ele era um caçador de alto nível. Nem sequer hesitou diante da horda de monstros.
— Destruam todos! — ordenou Arnold.
O resto do Névoa Caída respondeu com um rugido e avançou contra a horda de orcs.
***
Um novo dia começou. Assim como o anterior, não havia uma única nuvem no céu. Parecia que a tempestade havia passado. Bem descansado, levantei-me e me espreguicei, quando ouvi um barulho vindo do outro quarto.
— Bom, não é como se o Bebê Krai fosse se interessar por uma pirralha como a T. E isso nem é um encontro, ela só está protegendo ele. Acho que não preciso te dizer isso, T, mas não crie esperanças só porque ele é gentil com você. Quando voltarmos, eu vou te treinar corpo e alma para que você nunca mais se sinta assim.
— Vou cuidar da sua roupa, T. Mesmo que você vá como guarda-costas dele, sua roupa usual será um problema. Se você e Krai contrastarem muito, isso vai fazer ele parecer mal. Para o bem de vocês dois, você não pode mostrar muita perna. Independentemente do que você pensa, as pessoas ao seu redor...
Por que estão fazendo tanto alarde se só vamos sair para comer parfaits? Se essas duas se importam tanto, deviam vir junto...
Quando Tino saiu do quarto, estava bem diferente de seu normal. Ela vestia um longo casaco cinza que escondia a adaga em sua cintura. Sua roupa habitual deixava claro que ela era uma Ladina, mas eu não sabia bem como descrever esse novo visual. Por algum motivo, suas fitas vermelhas haviam sido trocadas por brancas e as olheiras haviam sumido.
Sitri esboçou um sorriso preocupado ao notar meu olhar.
— Foi o melhor que consegui fazer para garantir que ela pudesse agir como guarda sem ser reconhecida. Se eu a deixasse sair de saia e com roupas casuais, pareceria quase um encontro. Me desculpe, Krai, eu não tenho muitas Relíquias discretas como você. Ela está equipada com o mínimo necessário, então, se puder compensar isso...
— Sem problemas, se surgir algum problema, voltamos para cá.
Ao contrário de Tino, eu estava com minhas roupas habituais e, portanto, completamente equipado. Da cabeça aos pés, vestia Relíquias que Kris e os outros Magos dos Primeiros Passos haviam se esforçado para recarregar. Ainda era inútil, mas ao menos servia como um escudo.
— Não acho que precise me preocupar, mas mantenha as mãos longe da T, por mais fofa que ela seja — Sitri me advertiu em tom de brincadeira.
Que tipo de pessoa ela acha que eu sou? Mesmo que esteja brincando, Tino pode não entender assim.
Eu ia protestar, mas Sitri desviou o olhar para Tino.
— Preste atenção, T — disse ela com um sorriso. — Se você colocar as mãos no Krai, vou garantir que pensamentos indecentes nunca mais passem pela sua cabeça.
A atuação convincente de Sitri fez Tino dar um passo para trás, com o rosto pálido como a morte. Não havia a menor chance de eu encostar nela, então era ainda mais difícil imaginar que ela faria algo comigo.
— Voltem assim que terminarem de comer, ok, Krai Baby? Aí podemos ter o nosso encontro depois — disse Liz.
— Vou preparar a próxima etapa da viagem, incluindo garantir que T tenha uma boa noite de sono — acrescentou Sitri. — Não demorem, vocês dois.
Por razões que desconheço, as duas irmãs pareciam inquietas enquanto nos despediam. Nunca vi Tino tão hesitante enquanto a guiava pela cidade, que tinha um clima levemente solene.
***
Como era de se esperar de uma cidade famosa por seus chocolates, as ruas de Gula estavam repletas de lojas oferecendo doces. Algumas tinham placas brilhantes proclamando que eram especializadas em chocolate. Eu era especializado em comer.
Mesmo que eu mantivesse isso em segredo, adorava doces. Chantilly, doce de feijão, chocolate, eu amava tudo isso, mais do que qualquer outra coisa. Sempre carregava uma barra de chocolate comigo. Queria visitar todas as lojas com calma, mas, infelizmente, não era possível.
A bandeira hasteada deixava a cidade um pouco tensa, mas eu já estava acostumado. Nos meus primeiros dias como caçador, chocolate seria a última coisa na minha mente em uma situação assim. No entanto, eu era a prova viva de que até os mais incompetentes podiam se acostumar com certas coisas com o tempo.
Por outro lado, Tino parecia encolhida. Ela gostava de doces tanto quanto eu, mas não escondia isso. Normalmente, quando saíamos para comer, sua alegria era contagiante, mas talvez ela não estivesse acostumada a andar por uma cidade quando um alerta estava em vigor.
— Não se preocupe, Tino. Sei que você não sai muito da capital, mas quando se viaja bastante, essas bandeiras se tornam comuns — falei, rindo. — Já perdi a conta de quantas dessas eu vi.
— Hã?! Você não pode...
E sempre que víamos uma dessas bandeiras, Luke ou alguém entrava direto em uma confusão. Eu só ficava para trás usando Anéis de Segurança, então sempre saía ileso, mas não era fácil ver meus amigos se machucarem. Mas Tino não era do tipo que se jogava no perigo, então não havia motivo para preocupação.
Seus olhos se moviam inquietos, diferente de seu comportamento normal. Tecnicamente, eu era o caçador mais experiente, então deveria dar um bom exemplo.
— Se ainda estiver incomodada, hmmm... Aqui, feche os olhos, tampe os ouvidos, respire fundo e pense em algo divertido — sugeri.
E se alguém falar com você, cruze os braços, balance a cabeça e finja estar em profunda contemplação.
Essa era a técnica que eu usava para evitar a realidade. Há um limite para o que um homem pode fazer sozinho. Existem muitos outros caçadores excelentes por aí, então deixo que eles lidem com as coisas que não são minha responsabilidade.
Tino não disse nada, então acabei me empolgando e continuei falando.
Certo, eu tenho pensado muito nisso. Tino pensa demais, leva tudo muito a sério. Ela é uma caçadora talentosa, mas há muitos que a superam. Se tentar carregar tudo sozinha, acabará esmagada pelo peso.
— Você ainda tem um longo caminho pela frente e acho que não vale a pena se preocupar tanto — disse a ela. — E agora que Liz e Sitri estão conosco, você deveria relaxar um pouco. Você não parece bem hoje nem ontem, e isso me preocupa.
— E-Eu entendo... Muito obrigada.
As olheiras haviam sumido, mas o cansaço ainda era visível. Quando apontei isso, ela desviou o olhar, envergonhada.
Ela parecia um pouco mais animada enquanto caminhávamos pela cidade. Nosso destino ficava em uma rua movimentada e tinha um exterior elegante. Muitas pessoas passavam por ali, mas, dadas as circunstâncias, não havia outros clientes. Que conveniente.
Isso não era apenas um passeio para comer um parfait, também era uma chance para Tino se recuperar mentalmente. O tratamento de Liz com ela estava me incomodando. Não achei que ela estivesse fazendo nada terrível com Tino, mas imaginei que, seja lá o que fosse, seria mais fácil para Tino falar sobre isso enquanto aproveitava algo doce.
Que coisa... Doces não são minha praia, mas acho que posso ir junto, se for por ela.
Nos ofereceram assentos com uma boa vista da rua e bastante luz do sol. Assim como o exterior, o interior era bem elegante. Definitivamente, não era um lugar onde se via caçadores com frequência. Eu conhecia todas as confeitarias da capital, mas este ainda parecia um lugar que valia a pena ter expectativas.
Os olhos de Tino brilharam enquanto ela olhava ao redor. Trazê-la parecia ter valido a pena. Eu estava aproveitando a cena animadora quando ela me olhou com olhos suplicantes.
— Mestre — começou. — Hum, Siddy me deu algum dinheiro. Ela disse para eu usar como quisesse.
Não respondi.
Será que Sitri acha que é minha tutora ou algo assim? Queria que ela pelo menos me deixasse fingir ser um mestre legal para Tino.
A intromissão de Sitri tirou um pouco do meu ânimo, mas isso não me deixou menos animado para o parfait que estava prestes a saborear. Fiz questão de esconder minha empolgação enquanto fazia o pedido. O aroma doce que pairava pelo café me fez ficar muito feliz por ter saído da capital. Tudo isso começou porque eu estava fugindo daquela conferência, mas as coisas acabaram dando muito certo.
Será que hoje é meu dia de sorte? O que quer que me espere na capital pode esperar até eu voltar.
— Mestre, muito obrigada — disse Tino. — Acho que te envergonhei.
— Não me importo. Não é problema para mim e, além disso, estou sempre te causando problemas.
— Ah, de jeito nenhum.
Não havia ninguém melhor do que eu quando se tratava de depender dos outros, mas ser dependido de vez em quando era uma sensação agradável. Especialmente vindo da Tino, já que minha influência foi parte do que a levou a se tornar uma caçadora. Não entendia por que ela era tão relutante em contar comigo. Sinceramente, achava que não haveria problema algum se fizesse isso.
Esperamos nossos parfaits e, como era de se esperar, conversamos principalmente sobre caça ao tesouro. Não era exatamente o tipo de assunto para um encontro, mas Tino levava isso a sério. Ela queria se tornar uma caçadora de primeira linha e, se não mais nada, eu tinha experiência como caçador, então contar sobre minhas vivências era o mínimo que podia fazer.
— Hã? Você nunca se feriu em combate antes? — perguntou ela, arregalando os olhos surpresa.
— É só porque o resto dos Grieving Souls é muito forte.
Ansem colocava barreiras, eu tinha Anéis de Proteção, e poucos ataques vinham na minha direção para começo de conversa. Meu mana material era um nível abaixo do de todo mundo, então eu não me destacava muito numa batalha. Sem nada para fazer, às vezes eu simplesmente sentava e assistia.
No vasto mundo da caça ao tesouro, eu provavelmente era o único caçador que já fez algo assim.
— Eu não deveria esperar nada menos, Mestre. Nunca poderia sonhar em te igualar.
Não sabia por quê, mas os olhos de Tino brilhavam de admiração enquanto ela falava. Eu não havia feito nada digno de admiração ou que valesse a pena ser imitado. Sua admiração equivocada me fez sentir mal, então tentei desviar um pouco dela para Liz.
— Não há nada louvável em sair ileso. Em vez disso, você deveria buscar a força para continuar mesmo quando estiver ferida. Com esforço suficiente, você até será capaz de dominar a relíquia.
— Não tenho tanta certeza...
— Não, não, essa Relíquia é muito forte e valiosa. Só de colocá-la, quase fez você ficar tão forte quanto a Liz. É diferente de qualquer coisa que já vi. Só é uma pena que eu não consiga usá-la.
O quão fraco eu sou se aquela máscara me rejeitou mesmo depois de eu tê-la colocado... ah, não, não, não.
Tino recuou quando viu que eu estava começando a me empolgar.
— Então, o que estou tentando dizer é que o treinamento da Liz pode ser brutal, mas acho que é para o seu bem — disse eu, tentando mudar de assunto rapidamente. — Ela pode ser rígida, mas não acho que faça isso para te atormentar—
— Hã? Ah, mmm. Lizzy está certa. Estou muito feliz por ter conhecido você e ela.
— Sitri também não é uma pessoa ruim, só é um pouco esquisita. A maioria dos Alquimistas são. Não acho que ela tenha intenção de te atormentar—
— Hm? Fico envergonhada quando ela me toca na sua frente, mas não acho que ela... er, não é como se ela fizesse isso o tempo todo.
As respostas de Tino estavam mais tranquilas do que eu esperava. Achei que a pressão de Liz a estivesse levando ao limite, mas, dado seu comportamento atual, parecia que eu estava errado, e ela não era do tipo que mentia.
Hã? Será que eu estava errado em pensar que havia um problema?
— Tem algo te incomodando? — perguntei só para ter certeza. — Se houver, me diga e eu resolvo.
— Estou bem. Se tem algo, são seus pedidos que mais machucam— — murmurou Tino, olhando para o chão. — Ah, mas eu entendo que você se preocupa comigo.
Eu fiz alguma coisa? Fiz algo pior do que fazê-la beber um para-raios líquido e correr por uma tempestade?
Claro, já mostrei liderança ruim no passado, mas nunca fiz nada por maldade. Não tive a intenção de deixá-la desconfortável quando coloquei a máscara nela, e não pretendia fazer com que usasse de novo, a menos que ela quisesse.
Espera. Então o que está fazendo Tino se sentir tão mal? Não pedi nada a ela durante essa viagem. Pelo que me lembro, tenho sido particularmente inofensivo ultimamente.
Inclinei a cabeça, quando a expressão de Tino de repente mudou. Ela se levantou, percebeu que eu estava olhando e se sentou de volta.
— D-Desculpe, Mestre. Tinha vozes lá fora, eu não estava tentando ouvir nem nada, mas elas estavam altas e a Lizzy me ensina a sempre prestar atenção.
— O que foi?
O quão bons são os ouvidos dela para escutar algo do lado de fora? Eu estava ao lado da janela e não ouvi nada.
Tino ficou vermelha e começou a despejar uma enxurrada de palavras.
— Eu não consegui acreditar totalmente nas suas palavras. Mas isso é por causa de tudo que aconteceu, e algo fácil para você é algo que pode me matar, e você deveria estar sempre comigo... Me desculpe. Acabei de fazer algo muito vergonhoso.
Suas mãos estavam cerradas em punhos e pressionadas contra os joelhos, enquanto ela tentava parecer menor. Considerando o quanto ela estava envergonhada, eu realmente sentia muito por não fazer a menor ideia do que ela estava falando. O que eu podia dizer era que sua fé em mim estava em um nível abismalmente baixo... e que ela ficava muito fofa quando estava vermelha.
Com Tino tão agitada, o garçom perdeu a chance de trazer nossos parfaits.
Tino ergueu o rosto com determinação e declarou:
— Eu tomei minha decisão. Nunca mais duvidarei das suas palavras!
Exceto que eu não lembrava de ter feito nada para merecer tanta confiança. Na verdade, eu era tão atrapalhado que nem achava que conseguiria lidar com isso. E, mais do que tudo, essa não era a primeira vez que ela dizia isso para mim.
Me desculpe por ter te decepcionado tantas vezes. A culpa é toda minha.
— Acho que essa não é a primeira vez que ouço isso — eu disse.
— D-Dessa vez é pra valer! Se você disser que um corvo é branco, então ele é branco! Sua vontade é a minha!
Acho que existe uma diferença muito grande nos nossos níveis de empolgação. Bem, contanto que ela esteja feliz...
Eu empurrei qualquer dúvida para o fundo da minha mente e estava prestes a dar minha resposta de sempre, um simples “É, aham”, mas Tino me interrompeu.
— Além disso, Mestre — ela disse, mexendo nos dedos. — Sei que não é da minha conta, e talvez eu nem entenda mesmo se você me contar, mas queria perguntar por questão de aprendizado. É sobre o que aqueles caçadores estavam discutindo. Como você expulsou aqueles orcs do forte?
Do que ela tá falando?
***
— Está delicioso — Tino disse com um sorriso radiante.
O parfait de chocolate era ainda melhor do que eu esperava. Um copo de aproximadamente trinta centímetros de altura estava recheado de sorvete, chocolate, biscoitos crocantes e finalizado com uma quantidade quase absurda de chantilly. No topo, havia um pedaço de chocolate em formato de coroa.
A qualidade do chocolate era exatamente o que se esperava de um lugar famoso por sua produção, mas o verdadeiro destaque era a quantidade. Eu tinha certeza de que Liz ou Sitri fariam careta só de olhar para aquilo.
No entanto, o que realmente fez o sabor se destacar foi a informação que Tino havia ouvido. Os orcs tinham ido embora. Mesmo os melhores doces eram difíceis de aproveitar quando algo estava te preocupando. Eu não sabia ao certo por quê, mas me senti com sorte ao saber que o problema havia ido embora na mesma direção de onde veio. Eu tinha provas de que conseguia evitar confusão, contanto que mantivesse meus amigos de infância sob controle.
Bom trabalho, eu!
Tino sorriu, eu sorri, tudo estava indo bem. Eu queria até fazer uma dancinha, mas me contive, porque eu era durão. Em vez disso, apenas sorri silenciosamente. Não sentia vontade de vomitar.
Mas havia um problema. Eu não achava que conseguiria terminar aquele parfait.
Olhei para a sobremesa. Eu tinha um gosto secreto por doces, mas, ao contrário da maioria dos caçadores, não era de comer muito. Eu já tinha movido a colher várias vezes, mas o copo ainda estava pela metade.
Enquanto isso, Tino, que havia pedido a mesma coisa, já tinha terminado o dela e me observava em silêncio. Caçadores tendiam a comer bastante e rápido. Eu me perguntava onde ela guardava tanta comida naquele corpinho pequeno.
Eu me sentiria mal deixando comida no prato. Talvez Tino pudesse terminar para mim? Não, peraí, com Liz ou Sitri tudo bem, mas eu não podia deixar minha aprendiz terminar a comida de um cara.
Sobreviver ao mundo cruel tornava os caçadores resistentes a muitas coisas que uma pessoa comum poderia estranhar. Talvez Tino não se importasse de comer o resto do meu parfait, mas isso poderia arranhar minha imagem de durão. A menos que já fosse tarde demais pra me preocupar com isso.
Os olhos negros de Tino me encaravam, ainda brilhando com respeito genuíno.
Hmm, se ela ainda estivesse com fome, teria pedido outro.
Depois de pensar um pouco, tentei remover um dos biscoitos enrolados do parfait e o estendi para Tino. Minha boca não havia tocado nele, então achei que não teria problema. Seus olhos se arregalaram e ela olhou em volta.
— Uh?! Uhm, hã? — Ela parecia confusa. — O-Obrigada — ela finalmente disse e deu uma mordida no biscoito. Seu rosto ficou vermelho até as orelhas. Esse era um lado dela que eu não via com frequência, e de alguma forma me senti como se estivesse alimentando um animal selvagem. Mas eu também ficaria envergonhado se estivesse no lugar dela.
— Tá gostoso? — perguntei.
— Sim, é muito doce — ela respondeu em voz baixa, mordiscando o biscoito. Ela realmente gostava de doces.
Eu precisava ganhar alguns pontos com ela nessas férias e garantir que não os perdesse depois.
Eu estava começando a relaxar quando um homem com um grande chapéu branco e um avental branco enrolado em seu corpo roliço apareceu do outro lado do café. Ele parecia simpático, mas eu já estava acostumado a estar cercado por caçadores de cara fechada.
Ele veio direto para nós, sem tirar os olhos da gente. Tino pareceu um pouco apreensiva.
— Com licença — ele disse em voz baixa. — Posso estar enganado, mas você por acaso seria o Mil Truques?
Eu tinha usado um documento falso e, mesmo assim, minha identidade tinha sido descoberta. Não deixei minha surpresa transparecer e olhei para seu rosto—como esperado, eu não fazia ideia de quem ele era. Esconder minha reação funcionou contra mim, porque o homem sorriu e acenou com satisfação.
— Eu sabia! Esperei tanto por esse dia! Sou o gerente deste café.
Ele parecia animado. Pediu para apertar minha mão e eu apenas deixei acontecer. Ele devia ser tanto o chef quanto o gerente, porque suas mãos cheiravam a açúcar. Já tinha sido reconhecido por caçadores antes, mas nunca um civil tinha me identificado por eu estar aproveitando um doce. Sem falar que ele parecia tão empolgado por razões que eu não conseguia entender.
Tino olhava para ele com olhos arregalados.
— Você é muito famoso nessa indústria — disse o excelente confeiteiro, falando rapidamente. — Você é o lendário caçador de tesouros que já visitou confeitarias por todo o mapa! Dizem que uma loja visitada por você será próspera e feliz! Você recebeu o apelido de Mil Truques porque experimenta cada item do menu!
— Como esperado do Mestre...
Pisquei duas vezes; isso era novidade para mim.
Minha identidade deveria estar oculta, então por que esse cara percebeu tão facilmente? Não entendo por que ele está me tratando como algum tipo de fada da sorte. Isso não tem nada de durão. Com essa reputação, talvez eu devesse parar de sair de casa, a menos que tivesse um motivo muito bom. Quero me enfiar em um buraco. O que Tino quis dizer com “como esperado”? E o que ele quis dizer com meu apelido vir do fato de experimentar cada item do menu?
— Reconheci você pelos seus olhos e cabelos negros, além da jovem que o acompanha — continuou o confeiteiro. — Estava ansioso pelo dia em que você agraciaria nosso estabelecimento com sua presença, mas jamais imaginei que aconteceria sob tais circunstâncias...
— Não se preocupe. O Mestre já lidou com os orcs, pode relaxar — disse Tino, sem que ninguém tivesse pedido. — O parfait de chocolate estava delicioso, senhor.
— Espera aí, eu não fiz nada! — intervi.
Eu até aceitaria que esse cara fosse grato pela minha visita, mas não podia deixar que ele me agradecesse por algo que eu nem tinha feito. Isso colocaria um peso nos meus ombros.
— Foram outros caçadores que enfrentaram os orcs, não eu. Não se esqueça disso — falei. — Foi, hã, apenas coincidência eles terem saído do forte. Viu, Tino? Eu não fiz nada.
— Se o Mestre diz que foi coincidência, então foi coincidência. Meus perdões, senhor, esqueça o que acabei de dizer — disse Tino, torcendo minhas palavras com orgulho.
— E-Eu entendo. Se você diz que foi coincidência... — murmurou o confeiteiro, assentindo com um olhar compreensivo.
Com um humor impossível de descrever, voltei para o esconderijo com Tino. Assim que abri a porta, Liz pulou em mim, quase como se estivesse esperando exatamente esse momento.
— Bem-vindo de volta, Krai! — saudou Sitri com um sorriso. — Esperamos por tanto tempo. Lizzy queria te seguir, mas eu fiz questão de impedi-la.
— Como é?! Você também estava considerando isso! — gritou Liz. — Bem-vindo de volta, Krai Baby! O que é isso? Trouxe um presente pra gente?
A mudança de atmosfera foi repentina. Passei um braço em torno de Liz e entreguei a caixa que recebemos do confeiteiro para Sitri. Ela estava recheada de chocolates famosos produzidos em Gula. Se eu tivesse que aceitar presentes, então que fosse logo o trono da fada do chocolate.
O sorriso de Tino foi substituído por uma expressão vazia e indecifrável. Eu conhecia Liz há mais tempo, mas Tino já convivia com ela havia alguns anos. Ela já devia saber como Liz era perto dos amigos.
Liz segurou meu braço e esfregou a bochecha contra a minha.
— Estava tão entediada que pensei em ir atrás daqueles orcs — disse ela. — Ouvi dizer que eles causaram um estrago e parece que tomaram aquele forte.
— Ah, aparentemente ele foi esvaziado.
— O quê?! Como assim?
Só para garantir, Tino e eu perguntamos por aí depois de sairmos da confeitaria. Ficaríamos bem mal se o confeiteiro se machucasse por ter recebido informações erradas. No fim, descobrimos que o que Tino tinha ouvido era verdade. Os orcs realmente tinham abandonado o forte. Parece que foram vistos correndo pelos campos próximos da cidade, mas sem atacá-la. A causa era desconhecida, mas com certeza foi uma grande sorte para Gula.
Se uma matilha de orcs começasse a causar destruição numa estrada, as autoridades mais altas do império se envolveriam. Isso aumentaria drasticamente os recursos e a mão de obra investidos para resolver o problema, sem contar que mais caçadores se reuniriam para ajudar. Atacar um forte escondido na floresta era exaustivo, mas nos campos, magias de grande alcance poderiam ser utilizadas.
Nossa única preocupação era o fato de vários corpos ensanguentados terem sido encontrados no forte, quase como se tivesse sido atacado por alguma coisa. Essas situações desconhecidas sempre causavam problemas para o nosso grupo, e meu instinto dizia que esta poderia ser mais uma dessas vezes.
Será que ficaremos bem? Gula parece ser uma cidade bem protegida, mas mesmo assim...
Sitri ouviu nossa explicação com um sorriso e então bateu palmas como se tivesse se lembrado de algo. Sem dizer nada, olhou para Tino e fez um gesto em direção a um frasco colocado sobre a mesa.
— Aqui, T, preparei uma poção do sono para você — disse ela.
Uma poção para induzir um sono profundo. As misturas de Sitri eram sintetizadas com a intenção de serem usadas contra monstros resistentes a poções. Eram perigosas demais para um humano consumir. Certamente não era esse o tipo de poção que ela planejava dar para Tino...
— Sitri, vamos embora. Está tudo pronto? — perguntei.
— Oh? Já tão cedo?
— Fizemos o que precisávamos fazer.
E isso significava comer os parfaits de chocolate. Ainda havia outras confeitarias que eu queria visitar, mas era difícil quando o nome Mil Truques era tão conhecido na região. A questão dos orcs também estava me incomodando, além de eu estar preocupado com os funcionários contratados por Sitri.
— Concordo! Sem o forte, não temos mais nada para fazer aqui — disse Liz, juntando as mãos. Não que tivéssemos planejado nos envolver com o forte e os orcs desde o começo.
Nossa bagagem já estava pronta, mas não havíamos enfrentado monstros, então não era como se tivéssemos muito para reabastecer. Juntos, seguimos para a saída. As notícias sobre os orcs deviam ter se espalhado, porque a cidade estava estranhamente agitada.
— Parece que os orcs foram expulsos por caçadores. Chato. Achei que teríamos uma chance de lutar — resmungou Liz, carregando um grande estojo ao meu lado. Pelo visto, ela estava ouvindo as conversas ao redor. Ela havia esquecido completamente minhas restrições quanto ao treinamento, mas decidi que estava tudo bem, desde que não nos metêssemos em encrenca.
— A empolgação era, de fato, o resultado pretendido — murmurou Sitri para si mesma. — Mas deve ter sido insuficiente se eles foram dispersados tão rapidamente por meros caçadores. Vou anotar isso. Como eu esperava, facilitar a dispersão afeta negativamente a eficácia.
Eu, por outro lado, estava feliz. Com os orcs eliminados, podíamos deixar a cidade sem preocupações. Só queria que o problema tivesse sido resolvido antes de chegarmos. Passamos pelo portão bem quando a bandeira de alerta estava sendo abaixada. Deve ter sido um evento raro, pois uma multidão se reuniu para assistir. Escolhi ignorar e focar nos trâmites necessários para partir, mas de repente ouvi uma multidão vibrando nas proximidades. O soldado que me atendia ergueu os olhos, animado.
— Eles foram os principais exterminadores do bando de orcs — explicou. — Os orcs em fúria correram direto para alguns caçadores de alto nível e foram completamente aniquilados. São heróis para Gula.
Meus olhos se arregalaram. Isso era inesperado. Sitri parecia compartilhar do mesmo sentimento. Não havia muitos caçadores de alto nível em Zebrudia, então talvez fossem pessoas que conhecíamos.
— Isso é, uh... incrível — comentei.
— Não é?! Era um bando de orcs e, ninguém sabe o motivo, mas havia outros monstros também. Como um elemental, um de fogo, ainda por cima. Que feito impressionante! — disse o soldado, visivelmente empolgado.
Os caçadores eram realmente incríveis. Não era pouca coisa derrotar um bando de orcs surgido do nada, mas era preciso um azar tremendo para encontrar um no caminho. Já era ruim o bastante estar viajando direto para um enxame de monstros, mas também topar com um elemental? Quais pecados eles cometeram para merecer tanta desgraça? Era quase tão ruim quanto minha própria sorte.
Dentro de mim, senti admiração, pena e empatia. O bando de orcs não era culpa minha, então minha preocupação não passou disso.
Sitri me cutucou com o cotovelo e sussurrou em meu ouvido:
— O elemental de fogo não poderia ter algo a ver com o Danger Effect? Isso estava no plano?
— Hã? Uh... mmm... acho que sim?
Fiquei me perguntando do que ela estava falando. Eu não era do tipo que fazia planos, e mesmo quando fazia, eles sempre desmoronavam. Nem precisava dizer que eu não havia planejado nada para essas férias.
Enquanto eu tentava entender o que Sitri quis dizer, a multidão ao redor dos heróis se abriu por um breve momento, me dando um vislumbre deles. Pisquei duas vezes.
Parecia que tinha sido uma batalha difícil. Os campeões estavam em péssimo estado, suas armaduras cobertas de arranhões e amassados, sangue impregnado em seus mantos. Suas expressões estavam exaustas, seus olhares vagos. Alguns se apoiavam uns nos outros. No entanto, também tinham aquele olhar especial que só se vê em quem lutou com tudo o que tinha. Eram a imagem perfeita de verdadeiros campeões.
Mas o mais surpreendente era que eu os conhecia. Isso, por si só, não era tão estranho; afinal, sendo um Ladino, eu conhecia muitos caçadores de alto nível. Mas ali, na frente do grupo, parecendo prestes a desabar a qualquer momento, estava Arnold, líder da Névoa Caida. Sua figura imponente, para dizer o mínimo, estava surrada e ensanguentada, fazendo-o parecer um guerreiro calejado.
Não havia dúvidas, era Arnold. Arnold, que só causava problemas na capital. Arnold, que era um dos motivos pelos quais eu tinha deixado a capital. Eu não sabia por que ele estava ali, mas que coincidência...
Atrás dele, Rhuda e seu grupo pareciam igualmente prestes a cair. O que diabos estava acontecendo?
— Aaah, entendi — disse Liz, estalando os dedos. Parecia que ela havia desvendado algo. — Eu achei estranho que não estávamos atacando os orcs, então imaginei que—
— Vamos logo embora. Nada de bom vai sair se nos virem. Até gostaria de reatar velhas amizades, mas parece que eles estão bem ocupados — falei.
— Okaaay!
Prendi a respiração e esperei nosso processo de saída ser concluído. Parecia que alguma autoridade estava prestes a levar Arnold e seu grupo para algum lugar. Continuei lançando olhares na direção dele, verificando se havia nos notado. De repente, seus olhos nublados pareceram nos captar. Ele ficou surpreso por um momento e sua boca tremeu. Virei o rosto imediatamente.
Ele nos viu? Talvez não? Ele viu, não viu?
Fiquei com medo demais para olhar e confirmar. Felizmente, nossa papelada foi finalizada e conseguimos passar pelo portão. Ele estava cansado, provavelmente não teria tempo para se preocupar conosco. Justo quando eu estava começando a relaxar, Liz virou-se graciosamente. Ela mandou um beijo no ar para as costas de Arnold e, antes que eu pudesse impedi-la, gritou com sua voz animada:
— Okaaay, ótimo trabalho aí! Devem ter ralado muito se ainda estão de pé! Claro, era só um bando de orcs, mas isso já é bem impressionante para um bando de caipiras! Eu odeio dizer isso, mas estamos realmente ocupados agora. Nos vemos por aí!
— H-Hey, Liz, não provoca ele — falei. — Sitri, vamos logo.
Alguns segundos depois, ouvimos algo parecido com um rugido de fera vindo do outro lado do portão.
Acelerei o passo até a nossa carruagem, que nos aguardava logo fora da cidade.
Tradução: Carpeado
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