Seija Musou | The Great Cleric
Volume 01 Intermissão 01
[Outra Perspectiva: Um Curandeiro Inocente
Entra na Toca dos Leões]
Eu estava suando no campo de treinamento da Guilda dos Aventureiros de Merratoni naquele dia.
— Ainda não apareceu ninguém. Vão mesmo desperdiçar a chance de treinar com o mestre da guilda? Talvez eu arraste alguns desses preguiçosos até aqui.
Eu me tornei mestre da guilda por um motivo: formar a próxima geração. Foi por isso que deixei a vida de aventureiro para focar na administração ainda jovem. Mas os aventureiros de hoje em dia preferem correr atrás de dinheiro em vez de se comprometerem com um treinamento rigoroso. Só enxergam o que está bem na frente deles e ignoram o caminho à frente. Ninguém sequer tenta entender que dominar o básico tornaria a vida deles muito mais fácil a longo prazo. Às vezes eu forçava alguns a participar dos treinos, mas isso só fazia com que evitassem a guilda por completo.
— Preciso de alguém para passar todo esse conhecimento adiante.
Enquanto murmurava para mim mesmo, algo raro de se ver na área de treinamento interrompeu minha rotina monótona.
— Você tem um momento, Mestre da Guilda?
— Ah, é só você, Nanaella. O que foi?
— Palavras machucam, Mestre da Guilda. Mesmo que não seja sua intenção — ela me repreendeu.
— Desculpa. Então, qual é o problema? Monstros invadiram a cidade?
Brinquei, mas Nanaella nunca aparecia no campo de treinamento durante o expediente sem um bom motivo. Para meu alívio, ela não parecia estar em pânico, embora eu não pudesse negar que estava torcendo por um pouco de ação para quebrar a monotonia.
— E pare de me chamar de Mestre da Guilda. Já disse para me chamar de Brod.
Eu ainda estava nos meus quarenta anos, jovem demais para ser tratado como um velho ermitão.
— Agora, o que está pegando?
— Minhas desculpas, Brod. Tem um garoto de quinze anos na recepção que acabou de se registrar como aventureiro e, bem...
Ver Nanaella ali me deu esperança de que fosse algo especial, mas não poderia ser mais banal. Ela tinha dezoito anos e, contando o período probatório, fazia cerca de um ano que trabalhava aqui. Antes disso, fazia parte de um grupo, mas quando a equipe se desfez, ela veio para uma entrevista e o resto é história. Era boa no trabalho e os aventureiros gostavam dela, então por que estava falando desse garoto comigo?
— Ele é um curandeiro — ela continuou.
— Um curandeiro? Você quer dizer... um curandeiro?
— Do tipo que cura, sim.
Curandeiros... Uma das poucas profissões que eu desprezava. Agora tudo fazia sentido. Eles se acham superiores por terem poderes concedidos pelos deuses, cobrando preços absurdos e arrancando até a última moeda de seus pacientes. Mercenários, todos eles.
Supremacistas humanos também não eram raros entre eles. Muitos nem consideravam elfos ou homens-feras como pessoas e se recusavam a curar outras raças. Muitos aventureiros os odiavam, mesmo que não chegassem a brigar abertamente. E agora um deles apareceu na Guilda dos Aventureiros querendo se registrar? Só podia ser uma de duas coisas: um completo idiota ou um santo.
— Você registrou ele?
— Sim, acabei o processo há alguns minutos.
Eu começava a entender a expressão preocupada dela.
— E por que veio falar comigo?
— Ele disse que quer aprender a lutar. Mas não tem dinheiro e quer oferecer cura como compensação.
— Quais são as habilidades de combate dele?
— Apenas nível um em Artes Marciais.
Isso estava estranho demais. Um curandeiro normal contrataria guarda-costas. Um curandeiro normal não estaria falido, aliás. E nenhum curandeiro em sã consciência iria querer treinar artes marciais.
Espera, ela disse que ele tinha quinze anos. Talvez ele ainda não tivesse sido completamente mimado pela realidade?
— Tem alguma ideia do que ele quer? Como ele pareceu para você? — perguntei.
— Não perguntei o que ele quer, mas... — ela hesitou.
— Fala logo.
— Ele parecia diferente dos curandeiros normais. Olhou para mim sem recuar.
Alguns recuavam — os supremacistas humanos. Mas quando esse tipo de gente aparecia na guilda, geralmente acabavam num beco no dia seguinte, roubados de tudo o que tinham. O garoto de quem Nanaella falava parecia que evitaria esse destino.
— Diferente, hein? — Fiquei pensando por um momento. — Isso pode ser bom, desde que ele não seja só mais um maluco.
Diziam que apenas humanos podiam usar magia Sagrada ou de Luz, mas isso era uma mentira descarada. Talvez fosse verdade para elfos, que usavam magia espiritual, mas homens-fera eram perfeitamente capazes de empregar magia Sagrada e de Luz. Eles só não eram muito inclinados a usar magia em geral e tinham pouca energia mágica, o que tornava difícil aprender sem prática desde a infância.
A magia espiritual também tinha habilidades de cura. Os curandeiros não tinham monopólio sobre esses feitiços. Mas os elfos consideravam um desperdício abusar dos poderes espirituais e evitavam esse tipo de magia, exceto em circunstâncias extremas.
— Se ele não for louco, por que não transformá-lo em um aventureiro de verdade? — Nanaella sugeriu.
Assenti, decidindo que veria o garoto pessoalmente. Mas antes, precisava reforçar um ponto.
— Ah, e não me chame de Mestre da Guilda, entendeu?
— Entendido.
Na recepção, estava um garoto alto e magricela que parecia nunca ter perdido sua inocência infantil. Percebi na hora que ele não era do tipo ardiloso. Estava ali, rígido como uma tábua e vermelho de vergonha.
Enquanto eu debatia se deveria chamá-lo, Nanaella mal conseguia conter o riso. As outras recepcionistas nem se davam ao trabalho de disfarçar.
Está tão nervoso que nem percebe nada ao redor. Vamos ver do que esse pirralho é feito.
— Você é o fedelho que sabe magia de cura? — perguntei rispidamente. Um pouco de intimidação revelaria sua verdadeira natureza.
O garoto se sobressaltou e olhou para mim.
— Isso mesmo. Sou Luciel, recém-registrado como aventureiro. Quero melhorar tanto minha magia de cura quanto minhas habilidades de combate, então pensei em receber treinamento em troca de cura.
— É mesmo? Você é estranho, para um curandeiro. O que foi? Cansou do seu amado dinheiro?
Agora toda a guilda sabia quem ele era. E agora, garoto?
— Dinheiro é importante, mas agora eu preciso aumentar minhas chances de sobrevivência ao máximo. Por isso, como disse à recepcionista, quero treinar enquanto trabalho para cobrir os custos.
Ele estava apavorado, mas manteve os olhos nos meus e não estava mentindo. Esse garoto pensava de um jeito completamente diferente dos curandeiros comuns.
— Entendi o que você quer. E parece que não está só falando da boca pra fora — falei. — Muito bem. Meu nome é Brod e sou o instrutor da guilda.
— Prazer em conhecê-lo.
Ele não recuou. Isso era promissor.
— Então, garoto, você tem a habilidade de Artes Marciais. Por que um curandeiro quer saber lutar?
— Porque sou inútil em combate. Quero ficar forte o suficiente para me defender.
Decidi que não deixaria esse curandeiro sair da toca dos leões.
— Certo. Você está contratado como curandeiro de rank H para nosso campo de treinamento. Um prata por hora. Quando pode começar?
— Em três dias, se estiver tudo bem.
Nanaella sorriu.
— Beleza. Nanaella, cuide de tudo.
— Claro! Ah, Nanaella sou eu. Prazer em conhecê-lo.
O garoto retribuiu o cumprimento, fez uma reverência e saiu da guilda.
— Nunca pensei que conheceria um curandeiro tão modesto.
Como se podia perceber pelo choque de Nanaella, curandeiros costumavam ser tão arrogantes quanto possível. Dinheiro era a paixão deles. Todo mundo sabia disso. O homem que comandava a maior clínica em Merratoni era um demônio disfarçado de humano.
— Ele é ousado, isso com certeza.
— Brod, não me diga que você tentou intimidá-lo como sempre faz?
— Isso mesmo. Queria ver quem ele realmente era.
— O que há de errado com você? Aquele garoto jamais poderia ser desonesto! — ela retrucou. Nanaella raramente se irritava, o que só mostrava o quanto o garoto parecia sincero.
— Talvez eu não devesse ter feito isso. Foi mal — pedi desculpas. — Mas enfim, esse garoto é uma tela em branco, e eu vou transformá-lo em uma obra de arte. Vou fazer ele ficar por aqui, Nanaella.
— Você está falando sério?
— Sim. Pode limpar o quarto de descanso pra ele? Vou pedir para o Gulgar preparar as refeições.
— Já estou indo.
Hã, ela não protestou dessa vez.
Ah, quase esqueci de algo. — Qualquer um que encostar um dedo naquele garoto vai ser punido. E feio. Avisem seus amigos — anunciei para os aventureiros por perto.
Provavelmente, eu estava sorrindo feito um idiota. Finalmente as coisas iam ficar interessantes de novo. Droga, espero que ele tenha força de vontade!
E se ele fosse tão inocente quanto parecia, pedir para o Gulgar servir aquele troço nojento pra ele não seria má ideia. Até um curandeiro poderia ficar um pouco mais forte com aquilo, desde que conseguisse engolir.
Três dias se passaram. Acordei naquela manhã sem saber se ele realmente viria e esperei. Ele chegou mais cedo do que eu esperava.
— Esse lugar é enorme — murmurou para si mesmo, completamente alheio ao fato de que eu estava bem atrás dele.
Essa falta de percepção me preocupava, mas eu ainda sorria. Eu com certeza teria trabalho pela frente. Talvez essa desatenção fosse a primeira coisa a ser corrigida.
— Nada mal esse campo de treinamento, hein? Bom trabalho por não ter fugido, pirralho.
Ele conseguiu acenar e responder, apesar da aura de pressão que eu jogava sobre ele. Eu estava certo sobre ele ter coragem.
A partir daí, comecei a treiná-lo com rigor. Ele não tinha quase nenhuma força física, provavelmente por causa da ocupação dele, e não conseguia manter uma corrida sem perder o ritmo depois de pouco tempo. Era praticamente um bebê. Bem, ele estava no nível um.
Precisávamos dar um jeito naquele corpo dele, ou não chegaríamos a lugar nenhum. Por enquanto, fiz ele correr. Era um jeito entediante de treinar, para dizer o mínimo, mas uma boa forma de testar sua resistência. Os aventureiros que eu arrastava para cá normalmente desistiam rápido. Para ser justo, eu geralmente precisava forçá-los a treinar em primeiro lugar, mas, mesmo assim, eram todos um bando de fracotes.
O garoto fez tudo o que eu mandei (até de forma exagerada às vezes). Era como olhar para meu eu mais jovem. Fraco e lento, parecia prestes a desabar e morrer, mas seguia minhas ordens como se a vida dele dependesse disso. Eu estava começando a gostar dele. Meu único receio era saber até quando ele aguentaria.
Com apenas um dia de treino, ele já parecia ter passado pelo inferno. Mas pelo menos conseguiu comer tudo.
Na manhã seguinte, pedi para o Gulgar adicionar "você-sabe-o-quê" às refeições dele.
— Tem certeza de que isso não vai assustar o garoto?
— Aposto que ele vai beber tudo. Na verdade, tenho certeza disso. Quer apostar?
— Fechado. Se eu ganhar, quero pôr as mãos em uns ingredientes raros.
— E se eu ganhar, quero beber de graça aqui.
E assim começou nossa disputa silenciosa. Enquanto o garoto tomava café da manhã, Gulgar colocou uma caneca de Substância X na frente dele.
Maldito seja, esse troço fede pra caramba.
Não importava a distância, o cheiro era horrível. E olha que estava diluído. Me afastei discretamente e espiei de longe. O garoto parecia enojado, como esperado, mas se forçou a beber mesmo assim.
O quê?! Ele virou tudo de uma vez?!
Pelo jeito, Gulgar também estava em choque. Em todos os meus anos na guilda, nunca vi alguém virar aquilo assim. Esse garoto... estava começando a acreditar que ele era um diamante bruto. Ele poderia se tornar forte.
Foi então que decidi treiná-lo de verdade, até que ele veio com algo tão inesperado que me fez duvidar dos meus próprios ouvidos.
— Treinador Brod, o treino de ontem foi bem puxado, mas não estou sentindo nenhuma dor muscular. Você pode pegar mais pesado?
— Hmph, você é mais resistente do que eu pensava, para um curandeiro.
Eu não podia acreditar no que estava ouvindo. Será que ele era do tipo que brilha sob pressão? Que melhora mais quanto mais é empurrado ao limite? A partir daquele dia, comecei a forçá-lo ao extremo, sempre um passo antes de quebrá-lo. A curiosidade me dominou. Como ele ficaria depois de treinar o suficiente? Seu progresso era lento, mas constante, fortalecendo-o um passo de cada vez.
Com a empolgação também veio a frustração. Se ao menos ele tivesse aparecido antes. Que desperdício encontrar um talento desses só depois de ele já ser adulto. Treiná-lo com cuidado, respeitando seus limites para não quebrá-lo, era um processo lento e irritante.
— Como o Luciel está indo, Brod?
Gulgar, que nunca se interessou muito por humanos, começou a simpatizar com o garoto... com Luciel. E eu não podia culpá-lo depois de ver o jeito que ele bebeu aquele lixo.
— Para ser sincero, ele não é um prodígio — admiti. — Mas também não é comum. Você viu como ele se adaptou a tudo isso. Não reclama, não desiste, continua firme. Ele tem talento para se esforçar.
— Alguma notícia da Guilda dos Curandeiros?
— Nenhuma. Ele ainda é rank G.
No passado, as guildas de curandeiros enviavam membros para atender as guildas de aventureiros, até que a relação entre os grupos se deteriorou completamente.
— Entendi. Por que não dá um livro de magia pra ele? Acho que temos um por aí, não temos?
Às vezes, guardávamos itens de aventureiros que falhavam em suas missões como garantia. Se não pagassem a dívida dentro de um certo período, os itens eram leiloados. Se ninguém comprasse, viravam propriedade da guilda. Havia um grimório de Magia Sagrada armazenado desde antes de eu me tornar mestre da guilda.
No momento, Luciel só sabia o feitiço Cura e mais nada. Eu me lembrava de que o grimório tinha um feitiço para curar venenos.
— Talvez eu dê. Mas ele só está aqui por um mês.
— Então descobre o que ele quer fazer. Se quiser ficar, manda ele para a Guilda dos Curandeiros com dinheiro suficiente para manter o rank.
— Galba disse a mesma coisa. Sempre posso contar com vocês dois. Você acha que ele vai ficar?
— Depende dele, mas acho que sim. Ele é lógico e não parece do tipo que deixa as coisas pela metade.
— Se ele não fosse curandeiro, eu já teria feito dele meu discípulo.
Essas conversas plantaram uma sementinha em mim, que floresceu em pura alegria quando Luciel voltou da Guilda dos Curandeiros naquele mesmo dia. Eu não esperava ficar tão satisfeito.
— Muito bem, vamos intensificar isso.
Comecei a planejar um novo regime de treinamento para o garoto, agradecendo a qualquer deus que estivesse por aí por trazer algo novo para a minha vida monótona.
Tradução: Carpeado
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