Seija Musou | The Great Cleric
Volume 01 Capítulo 10
[Treinamento Parte 2: Números, Força e um Relatório]




 Já fazia uma semana desde que Bottaculli tinha invadido o campo de treinamento.

— Aquele desgraçado tá fuçando por aí tentando achar alguma coisa contra você.

— Eu não tô fazendo nada de errado, então ele pode cavar o quanto quiser.

Eu estava nesse mundo há pouco mais de um ano. Ele não ia encontrar nada.

— Beleza, mas se isso chegar aos ouvidos das pessoas que querem que um cara como ele lhes deva um favor, eles podem se voltar contra você.

— As pessoas tão do meu lado ou não?! — Segurei a cabeça com as mãos, em um desespero exagerado. Mas, enquanto estivesse com a guilda, sabia que minha vida não corria perigo.

— É por isso que eu terminei o seu treinamento como curandeiro — Brod declarou de repente.

— Como é? — O cérebro dele deu curto-circuito ou o quê?

— Vou treinar você de verdade, como um pugilista ou paladino iniciante. A partir de hoje, você é meu aprendiz.

Espera... ele não estava me treinando “de verdade” até agora?!

— Uhm, Treinador?

Por que essa mudança repentina? Meu trabalho era de suporte. Eu podia até estar começando a parecer um espadachim com todos esses músculos, mas isso não mudava o que eu era: um curandeiro.

Pugilistas e paladinos eram classes da linha de frente, para pessoas com resistência e talento, algo que o próprio Brod já tinha me dito que eu não possuía. Eu não conseguia entender o motivo dessa decisão. Mesmo com o perigo atual envolvendo Bottaculli, havia aventureiros para me proteger e cidadãos dispostos a nos passar informações em troca de cura. Eu estava completamente perdido.

— Não se preocupe. Vamos apenas dobrar a intensidade do treinamento e aumentar suas refeições e a dose de Substância X.

— Eu estou extremamente preocupado. Você tá com febre, Treinador? — Eu já estava me forçando além dos meus limites o ano inteiro, e agora ele queria dobrar a carga? Eu tava ferrado.

Acho que até agora só tinha conseguido sobreviver por pura sorte...

Ele interrompeu meus pensamentos colocando a mão no meu ombro.

— Às vezes, um homem tem que fazer o que um homem tem que fazer.

— O quê? Isso era pra me convencer? Ainda não quero.

A vida não se importava, e Brod muito menos.

— Se quiser continuar vivo, cala a boca e faz o que eu mando — rosnou ele, com uma intensidade assustadora.

Ele não estava liberando sua aura assassina de costume, mas ainda assim senti aquele mesmo frio na espinha de quando ele ficava com aquele brilho demoníaco nos olhos durante os treinos. Recusar não era uma opção.

— Sim, senhor — respondi com uma reverência.

— Ótimo. Agora, vamos descer. Ah, e quero que comece a me chamar de "Mestre".

— Sim, Mestre!

Diziam por aí que, daquele dia em diante, os gritos de Brod — e os meus berros, uivos e choros ocasionais — podiam ser ouvidos ecoando do subterrâneo da guilda.

E não eram só boatos.

Pelo menos os aventureiros pararam de tirar sarro de mim. Muito pelo contrário, de repente todos começaram a ser extremamente gentis. Até pararam de me lançar olhares atravessados quando eu conversava com a Nanaella e a Mônica.

Eu, no entanto, perdi completamente a capacidade de me importar com qualquer coisa além de como sobreviveria ao dia seguinte. Diziam que minha perseverança — minha insistência em continuar me levantando, apesar de estar exausto e com dores — inspirava os outros, mas eu simplesmente não ligava. Se eu parasse para pensar nisso, cairia para trás no segundo seguinte, sem ar e em agonia.

Minha atenção estava totalmente voltada para meu novo mestre. Nada mais importava.

Os espectadores observavam, até que ver um curandeiro se matando de tanto treinar começou a mexer com eles. Cada vez mais pessoas passaram a treinar com seriedade, exatamente como Brod sempre quisera. Mas ele nunca tirava os olhos de mim. Eu retribuía da mesma forma, me dedicando mais do que nunca para tentar acertar um único golpe nele.

Foi mais ou menos nessa época que a taxa de sobrevivência dos aventureiros de Merratoni começou a aumentar significativamente. E eu, o cara que iniciou tudo isso, seria lembrado por anos.

Não que eu me importasse.

Eu fiz tudo o que podia para acertar Brod pelo menos uma vez naquele dia. Mas, no fim, tudo que consegui foi ganhar o pior apelido da história entre os aventureiros — o Curandeiro Zumbi Masoquista — nome ao qual eu prometi que jamais responderia. Nunca.

Dentro da minha mente, um debate começou: o que seria mais difícil, fugir do Brod ou acertar um golpe nele?

Certo dia, Brod parecia estar refletindo sobre algo. Até que finalmente perguntou:

— Você consegue usar magia de barreira agora, né?

— Sim, graças aos grimórios que você comprou para mim.

— Hmm. Lança uma em você mesmo.

— Uh, beleza.

No momento em que conjurei uma Barreira de Ataque, o mundo ao meu redor começou a girar. Uma dor excruciante atravessou meu peito, indo até as costas. Eu não conseguia respirar. Meu cérebro tentava processar o que tinha acabado de acontecer. Eu tinha sido atingido, isso era certo. Mas... por quê?

— Hmm. Te acertei com tudo o que tinha e você ainda tá de pé. E consciente. Nem quebrou os ossos — ele disse calmamente, enquanto eu continuava a arfar feito um peixe fora d’água. — Aposto que nem viu, né? Acabei de te dar uma porrada daquelas. Eu ia te preparar para isso aos poucos, mas achei que essa barreira ia te manter vivo.

— Você... não podia ter... testado isso... de outro jeito? — gemi, sentindo que minha espinha ia se partir.

— Não vem com essa. Eu te dei tempo pra erguer a barreira, não dei? Já é mais do que posso dizer de alguns por aí no mundo.

Tossi e engasguei enquanto meu diafragma voltava ao normal.

— Beleza, mas eu não consigo reagir quando você me pega de surpresa assim. Isso não é treinamento, é só bullying.

— Exato. O que fizemos até agora foi "treinamento". Nada te matou até agora, nem te derrubou de vez. Mas hoje, vamos adicionar dor à sua rotina.

Meu mestre, claramente tendo perdido o juízo de novo, tinha esquecido que dor já era um componente essencial de tudo o que fazíamos. Era bem a cara do Brod ultrapassar os limites do absurdo.

Ele me entregou uma espada longa e um escudo. De verdade. Não eram para treinamento. Se estávamos indo tão longe, então devia haver assassinos assustadores atrás de mim.

— A coisa tá feia assim? — perguntei.

— Nem um pouco. Nem remotamente.

— Como é? Então o que estamos fazendo?

— No último ano, nós construímos uma base sólida para você. Você é resistente, não tem maus hábitos. Pode não ter talento natural, nem de longe, mas sabe como continuar se esforçando, como colocar o trabalho duro. Como eu não iria querer um aprendiz assim?

— Não estou entendendo.

— Como eu disse antes, vou treiná-lo como meu aprendiz. É isso. Sem "mas". Ah, e sem checar seu status ou habilidades até eu dizer.

Hesitei. — Por quê?

Minha única alegria, minha maior fonte de motivação, proibida. Nada poderia ser pior. Mas Brod nunca fazia nada sem um motivo, então eu não tinha escolha senão confiar em seu julgamento.

— Não estou dizendo isso para ser um babaca. Quando você começa a correr atrás de números, deixa de conseguir diferenciar força de fraqueza.

— Força e fraqueza? — repeti.

— Não importa quão altos sejam seus atributos, você vai morrer se uma lâmina cortar sua cabeça. Até você, agora, poderia enfiar uma espada no meu pescoço e seria o fim. Pessoas obcecadas por valores numéricos são peso morto quando a situação aperta.

Havia uma convicção por trás de suas palavras, como se estivesse falando por experiência própria. — Entendido.

— Sem mais ataques surpresa. Levante sua barreira e vamos começar.

— Sim, senhor. Estou pronto.

— Concentre-se no corpo do seu oponente. No corpo todo — ele instruiu. — Alguns fingem com os olhos, outros com o centro de gravidade, mas duvido que você esteja no nível de perceber o que é um truque e o que não é.

— Consigo meio que ver, só não acompanho sua velocidade. — Ele era inumano. Não havia como alguém se mover tão rápido assim.

— Primeiro, entenda como o inimigo se move. Depois, trabalharemos a defesa em etapas, desde aparar os golpes até esquivar.

— Como sempre fizemos.

— Isso. Mas agora eu vou estar mais forte e mais rápido. E vou incluir alguns truques no meio.

— Entendido.

Apenas a velocidade aumentada já tornaria seus ataques ainda mais devastadores, sem falar na dor que causariam. Mas no fim do túnel, havia uma vida pacífica me esperando. Essa crença me dava forças.

— Quando se acostumar, comece a visualizar a luta de uma perspectiva aérea.

— Isso é coisa de mestre!

Ele não poderia ter pedido algo mais absurdo. Esse tipo de imaginação tática exigia uma percepção espacial incrível. O abismo entre o meu nível atual e o que Brod esperava de mim era enorme, mas tudo que eu podia fazer era confiar nele.

Não demorou para que minha determinação começasse a vacilar. O domínio de avaliação tinha sido meu pilar, mas sem ele, eu estava no mesmo nível de qualquer outra pessoa. Talvez essa fosse a maneira dele de me treinar mentalmente. De qualquer forma, fugir agora não levaria a nada, então me concentrei no ataque. Eu iria acertá-lo.

— Aliás, espero que você não esteja pensando em desistir agora — ele disse com um sorriso de canto.

Por que ele sempre fazia essas caras? Talvez fosse só vergonha de admitir esse tipo de coisa. Mas o tempo dele era bom demais. Quase como se pudesse ler minha mente.

Hmph. Eu vou acertá-lo, nem que seja a última coisa que eu faça. — Eu vou tentar.

— Era para você dizer "Nem por um segundo" ou algo assim. Cara, às vezes você é muito folgado.

— Nada nesse mundo é garantido, mestre.

Ele me encarou por um instante. — Não vou pegar leve, então tente não ser esmagado, certo?

— Peço desculpas por ser rude. Por favor, vá com calma.

Ele me encarou por mais um momento. No instante seguinte, eu já estava no ar e minha espada e escudo haviam caído. Brod não me concedeu o alívio de desmaiar. Fui seu saco de pancadas pela próxima hora.

— Certo, chega disso por hoje. Agora vamos para suas lições normais. Vou te ensinar Artes Marciais, Espadachim, Escudos, Lanças e Arco e Flecha. Aprenda tudo direitinho para a nossa próxima sessão especial como essa — ordenou ao meu corpo exausto, como se fosse a coisa mais simples do mundo.

— Yeshuh... — mal consegui soltar um som inteligível antes de cair de cara no chão.

Quinze minutos e um balde de água depois, começamos o treino de Artes Marciais. Ignorando minha vergonha por ainda cair na armadilha do balde mesmo depois de um ano, foquei minha mente.

— Base forte, corpo forte. Estude o básico...

Dizem que eu repetia isso para mim mesmo sem parar, como se fosse um feitiço. Qualquer aventureiro que ouvisse minha ladainha acabava sendo "amaldiçoado", incapaz de negligenciar os fundamentos. Como resultado, os aventureiros de Merratoni ficaram ainda mais fortes.

No Dia da Luz, o primeiro dos seis dias da semana galdardiana, assim como no Dia do Vento, eu treinava Artes Marciais e combate real. O Dia do Fogo era dedicado à Espada e Escudos. O Dia da Água era para Lanças, o Dia da Terra para Arremesso e Arco e Flecha, e o Dia das Sombras era dividido entre estudo e aprimoramento da minha magia.

Os dias em que usávamos espada e lanças sempre me deixavam ensanguentado e cheio de cortes, que, claro, eu tinha permissão para curar. A primeira vez que me envolvi com minha própria magia e senti seus efeitos diretamente, minha compreensão dos feitiços começou a crescer subitamente. Eu não esperava que meu crescimento físico trouxesse efeitos colaterais tão poderosos, mas os recebi de braços abertos.

Enquanto isso, Bottaculli analisava um relatório.

"Descobertas sobre Luciel — Ocupação: Curandeiro — Idade: 16

Ignorante e nascido em um vilarejo, Luciel se tornou curandeiro em sua cerimônia de maioridade no ano passado e obteve afinidade com Magia Sagrada.

Ele chegou a Merratoni no décimo sétimo dia do sexto mês e foi guiado pela paladina Lumina até a Guilda dos Curandeiros, onde se registrou. Inicialmente incapaz de lançar sequer uma Cura, após uma estadia de dez dias nos alojamentos da guilda, aprendeu a conjurar feitiços.

Depois, em vez de procurar uma clínica, dirigiu-se à Guilda dos Aventureiros, solicitando treinamento em Artes Marciais por razões desconhecidas. Passou a residir lá, trabalhando por uma prata por hora, dinheiro que usava para cobrir o custo de seu treinamento. Em seguida, passou cada hora acordado do ano seguinte se submetendo a treinamento de combate."

— Ao renovar sua carteirinha da Guilda dos Curandeiros este ano, descobriu-se que sua habilidade de Magia Sagrada estava no nível cinco, provavelmente alcançada através da cura constante de si mesmo durante o treinamento. Isso é corroborado pelos muitos apelidos que circulam pelas sombras, incluindo Curandeiro Zumbi, Curandeiro Masoquista e Curandeiro Zumbi Masoquista.

Seus relacionamentos incluem, principalmente, o mestre da guilda, além de vários funcionários e aventureiros. Ele prioriza o treinamento acima das interações sociais, e por isso não tem muitas conexões mais profundas. Ainda assim, é altamente confiável dentro da guilda e entre seus membros. Acredita-se que a maioria aceitaria qualquer pedido razoável feito por ele.

Surpreendentemente, ele não tem taxas fixas. É pago com uma única prata por cada cura. Isso pode estar relacionado ao fato de residir na sede da guilda, mas também é altamente provável que tenha a ver com as circunstâncias subjacentes de seu trabalho.

O papel tremia nas mãos trêmulas de Bottaculli. Ele o amassou em uma bola, jogou no chão e pisoteou sem piedade.

— Que absurdo é esse?! Ele está curando por uma prata a hora?! São idiotas assim que fazem a gente parecer porcos gananciosos! — ele gritou, incrédulo. — Qual o problema de usar meus dons divinos para acumular riquezas? Maldito hipócrita! Farsante!

Ele continuou a esmagar o relatório com os pés até ficar sem fôlego. Ofegante, caminhou até sua mesa e rabiscou uma carta.

— Leve isso ao diretor da guilda. E isto também.

— Imediatamente.

A carta falava sobre um jovem curandeiro da Guilda dos Curandeiros de Merratoni que cobrava preços absurdos, dificultando os negócios dos demais. No entanto, seu talento era excepcional, e quando seu contrato expirasse, seria interessante transferi-lo para outro lugar. Para bem longe... como a Sede da Guilda. Caso se recusasse a ir, uma quantia em dinheiro estava anexada à carta para garantir a ordem de transferência e incentivá-lo com grimórios.

— Assim, mesmo que meu nome seja mencionado, minha reputação não será afetada. — Ele riu maliciosamente. — Pelo contrário, só vai melhorar. E por um preço tão insignificante!

Com isso, a silenciosa vingança de Bottaculli foi colocada em movimento, para se concretizar dentro de um ano. Mas ele jamais poderia ter previsto as ondas que essa ação criaria, nem como elas afetariam seu próprio destino.


Tradução: Carpeado
Para estas e outras obras, visite Canal no Discord do Carpeado – Clicando Aqui
Achou algum erro? Avise a gente!
Este site tem como objetivo divulgar obras e incentivar a compra de materiais originais.
Não hospedamos, distribuímos ou promovemos links para cópias não autorizadas.
Adquira a obra original para apoiar os autores.
Comments

Comentários

Exibir Comentários