Seija Musou | The Great Cleric
Volume 01 Capítulo 05
[Substância X e Algo Novo]




Guilda dos Aventureiros - Guilda dos Curandeiros - Luciel

Ocupação: Oferecendo serviços de cura gratuitos para aventureiros.

Hobbies: Treinamento e combate.

Personalidade: Gentil, trabalhador, masoquista, língua defeituosa, recluso.

Era assim que os aventureiros me viam três meses depois de entrar na guilda. Meu trabalho era salvar vidas com a magia Cura e, mais recentemente, também com Purificar. Quanto aos hobbies listados, esses eram baseados na frequência com que eu treinava combate com o treinador Brod.

— Treinamento e combate? Acho que tem um mal-entendido aqui, mas tudo bem.

Fazer exercícios e treinar já fazia parte da minha rotina diária, e o Brod era quem decidia o cronograma, então não havia muito que eu pudesse fazer quanto à forma como isso parecia para os outros.

Minha incapacidade de acertar um único golpe me deixava maluco. Motivação não era o problema, já que ele começou a realmente me elogiar ultimamente, mas ainda assim. Outras coisas que me mantinham firme durante esse tempo eram minhas três refeições diárias, minha cama e os presentes recentes de roupas e afins que eu vinha recebendo. O ambiente de trabalho era até que positivo. Eu já conseguia conversar com mulheres sem problemas, mas não o suficiente para que alguma delas me presenteasse com algo. E lá estavam meus olhos suando de novo...

Agora, sobre essa parte da minha personalidade de "gentil". Tinha algo nisso que eles simplesmente não entendiam. Pensem comigo... Quem em sã consciência sairia por aí se achando perto dos peixes grandes? Experimenta e vê se não é engolido inteiro.

Felizmente, meus dias se passavam em paz, sem nenhum aventureiro tentando me dar uma surra. Na verdade, teve um que veio pra cima de mim dizendo que eu precisava priorizar quem eu tratava, antes que Brod e alguns outros o arrastassem para algum lugar. Eu jamais esperaria que isso acontecesse. Ainda assim, muitos aventureiros me confundiam com um funcionário, então eu não precisava me preocupar com ninguém tentando me atacar dentro da guilda. Uma vez, me viram usando um uniforme da guilda só por diversão, o que só piorou o mal-entendido.

De qualquer forma, eu já tinha curado muitos aventureiros. Não estava muito preocupado com problemas e, mesmo que acontecessem, eu tinha certeza de que alguém viria me salvar. Pelo menos uma fonte de ansiedade a menos.

— Dizem que eu sou trabalhador por treinar duro todo dia, mas eu só faço isso pra ficar mais forte. Isso é estranho?

Deixei essa preocupação me afetar, mas só por um instante. Nesse mundo existiam mercenários, não apenas aventureiros, andando por aí com equipamentos de combate completos. Se eu não aprendesse a me defender, estaria comprando uma passagem só de ida para o além caso o pior acontecesse.

Treinar faz todo sentido, me convenci. — Mas ainda assim...

— Falou alguma coisa, Luciel? — Gulgar inclinou a cabeça para mim.

— De acordo com a minha reputação na guilda ultimamente, sou um "masoquista com a língua defeituosa". E essa parte da "língua defeituosa" é cem por cento culpa daquela coisa horrenda que você me faz beber em todas as refeições.

— Ah, com certeza. Você nunca deixa de me surpreender. — Ele me lançou um sorriso e um joinha, mas eu não estava nem um pouco satisfeito.

— Em vez de me elogiar, que tal fazer algo quanto ao gosto?

— Vou pensar no caso. Mas fala sério, Luciel, você continua bebendo o X, então já deve ter notado os benefícios, acertei?

Fiz uma careta. — Me pegou nessa. O que é isso, afinal? Do que é feito?

Os efeitos eram impressionantes. Não tinha como não ficar curioso sobre os ingredientes.

— Não sei os detalhes. Toda Guilda dos Aventureiros tem um estoque, pelo que ouvi, foi o Sábio do Tempo que fez.

— Um sábio... Espera aí, você quer dizer que me fez beber algo sobre o qual não sabe nada?!

Dizer que fiquei incomodado seria pouco. Isso não era forma de construir confiança.

— Pois é. Não é pra qualquer um. Alguns desmaiam, os homens-fera não suportam o cheiro. Aliás, todo aventureiro registrado já tomou pelo menos um gole.

Que canalha absoluto, pensei. Gulgar, no entanto, parecia completamente inocente e despreocupado.

— E quanto tem nos estoques da guilda?

— Ilimitado. Toda guilda tem uma ferramenta mágica que o Sábio do Tempo criou. Coloca magia nela e Substância X sai.

Ilimitado... Eu estava rezando para que os estoques se esgotassem de alguma forma. Mas acho que não tinha esperança.

— Eu entendo que isso faz bem, mas o que eu não entendo é por que você me faz beber. Qualquer pessoa normal odiaria você por colocar essa porcaria na frente dela. Tem algum motivo pra esse tratamento super especial?

— Tem, mas é "classificado". — Ele sorriu e sumiu na cozinha.

— Agora eu fiquei ainda mais curioso.

Olhei para a substância roxa e fedorenta no jarro à minha frente. Nome oficial: Substância X (sim, sério). Por algum capricho do destino, essa bebida absolutamente repugnante possuía benefícios estranhos. Beber, ou melhor, continuar bebendo, era praticamente trapacear. Era ridiculamente forte. Mas sem a habilidade Análise Avançada, ninguém saberia disso, então eu era o único que a consumia regularmente nesses últimos três meses.

Gulgar certamente não fazia ideia. Crença cega era uma faca de dois gumes. Ele sugeriu que beber aquilo me deixaria mais forte, e com a forma como esquentava por dentro, como se acendessem um fogo em mim, eu até via o porquê. Mas a verdade era muito mais absurda.

Descobri isso por puro acaso. Depois do primeiro dia de treinamento, percebi que várias habilidades tinham aumentado — incluindo resistências a todas as condições anormais, exceto charme, e habilidades para crescimento de atributos. Achei que era só porque era o primeiro dia, mas era estranho que as habilidades relacionadas a status tivessem sido afetadas. Então, lembrei da Substância X.

No dia seguinte, conferi minhas habilidades antes e depois de bebê-la e confirmei que realmente aumentavam. Foi aí que decidi beber depois de toda refeição.

— Me chamar de masoquista e dizer que minha língua é defeituosa ainda é meio pesado — comentei quando Gulgar voltou. Tudo o que eu fazia era tentar melhorar. Chamar isso de masoquismo era desnecessário.

— Se você consegue beber isso, não é normal. E tem aquele sorrisinho que você dá às vezes enquanto o Brod te massacra no treino.

— Eu não sorrio. Qualquer um que conseguisse sorrir na tortura daquele demônio teria uns parafusos a menos.

— Exatamente. Você só não percebe. E você não é o primeiro que o Brod ensinou a lutar. Teve vários, e os únicos que continuaram tinham uma certa... preferência.

Se eu não negasse isso aqui e agora, não teria mais volta. — Não, de jeito nenhum, eu sou perfeitamente normal, obrigado. Dor e humilhação definitivamente não me dão prazer!

— Você é jovem. Eu entendo. Só tem vergonha. — Ele deu um tapinha gentil no meu ombro.

— Você não entende nada! — gritei. — Vou treinar.

— Se esforce. E não esquece de beber tudo.

Suspirei. — Tomar isso logo de manhã é horrível.

— Mas já se acostumou, né?

— Justo.

Peguei o jarro, coloquei uma mão na cintura e engoli tudo de uma vez. Era repugnante, horrível, nojento... e ainda assim, engoli até a última gota. Um sentimento de realização cresceu dentro de mim.

— Viu? Tá sorrindo.

Lancei um olhar fulminante para Gulgar e desci as escadas, onde o treinador Brod me esperava.

Meus três meses com Brod passaram num piscar de olhos, e eu finalmente começava a sentir algum progresso. Conseguia correr por mais tempo, me tornara mais flexível e podia arremessar com mais precisão. Ainda não conseguia tocar no meu instrutor, mas havia desenvolvido uma resistência considerável contra seus contra-ataques, mesmo que ele ainda estivesse pegando leve. Minha habilidade em Artes Marciais agora estava no nível dois, enquanto minha Magia Sagrada estava prestes a alcançar o nível quatro, depois de um mês inteiro travada no nível três.

Outra coisa que notei sobre minha capacidade de conjuração foi que a eficácia dos feitiços aumentava a cada nível, o que significava que meus lançamentos de Cura eram muito mais potentes agora, sem dúvida graças a todos os pacientes que cuidei. Não importa o quão vívida seja a imagem na mente ao conjurar um feitiço, nada supera a experiência prática. Não demorou para que meu quarto se transformasse em uma espécie de clínica, com minhas novas e aprimoradas habilidades.

Minha habilidade em Artes Marciais progredia mais devagar do que eu esperava, mas isso não me surpreendia nem me desmotivava. Eu não era exatamente um lutador experiente. O ritmo normal com que meus status e habilidades melhoravam me mantinha com os pés no chão, me fazia entender que eu não era especial e, por algum motivo, isso me trazia alívio. Me fazia feliz.

Alguns dias depois de voltar da Guilda dos Curandeiros, perguntei a alguns aventureiros que vieram para tratamento o que eles faziam para ficar mais fortes. A maioria respondeu:

— Derrotando monstros.

Enquanto outros apenas disseram:

— Musculação.

Quando mencionei isso para Brod, ele me ensinou que uma pessoa realmente poderia melhorar seus status através do treinamento com pesos, mesmo sem subir de nível. No dia seguinte, comecei a me preparar, empolgado com a ideia, mas ele rapidamente me impediu.

— Você escutou alguma coisa do que eu te disse? Musculação te deixa "mais forte", mas só no sentido mais básico da palavra. Isso bagunça completamente o seu equilíbrio. É ineficaz. Eu não te disse pra aproveitar esse tempo para treinar combate o máximo possível?

— Eu só queria verificar por mim mesmo. Ver se era realmente verdade.

— É mesmo? Achei que você tinha finalmente desistido e se cansado de perder. Se um dia isso acontecer, enfrente alguns dos outros aventureiros.

Ele disse isso com um sorriso feroz.

Não sabia se era para me provocar ou aumentar a pressão sobre mim. De qualquer forma, uma nova curiosidade — um interesse em saber o quão fortes os outros eram — surgiu dentro de mim. O medo e o desejo de me testar entraram em conflito, mas reprimi essa agitação interna.

— Mas melhora seus status, não melhora?

— Sim, mas coisas como flexões ou abdominais dificultam o desenvolvimento da flexibilidade. É melhor fortalecer os músculos no combate.

— Entendido.

— Ah, e se um dia quiser lutar com outra pessoa, é só falar.

— Pode deixar, obrigado.

Nos dias seguintes, continuei me dedicando ao treinamento, sentindo a ansiedade crescer dentro de mim. No fim, porém, ninguém aparecia no campo de treinamento para nada além de cura. Não me restavam opções. Juntei coragem e perguntei aos aventureiros que tratei se gostariam de treinar comigo, mas não recebi nenhuma resposta positiva. Minha total falta de popularidade me devastou, mas os treinos diários de Brod me impediram de perder a motivação.

Normalmente, uma pessoa que se esforça até o limite todos os dias acabaria quebrando. Membros da guilda e aventureiros até expressaram preocupação comigo. Ao mesmo tempo, pareciam quase gratos por eu aguentar as sessões brutais de Brod, já que, antes de eu aparecer, ele fazia outras vítimas entre os aventureiros.

— Não acredito que você aguenta isso... — diziam, impressionados.

Como sempre, minha determinação vinha do Domínio de Avaliação. Por mais lento que fosse meu progresso, poder ver os números subindo aos poucos me mantinha motivado.

— Espera, é por isso que todo mundo diz que sou masoquista? Porque ainda não desisti?

Não podia acreditar que tinha demorado tanto para perceber isso.

De qualquer forma, desci as escadas até o campo de treino, onde Brod me esperava com os braços cruzados, exibindo sua postura intimidadora de sempre.

— Começando devagar hoje, hein?

— Me desculpe. Mas você não precisa de café da manhã, treinador?

— Estou bem. Comi algo leve.

— Então voltamos para o treino de arremesso?

— Primeiro, tem uma coisa que precisamos conversar.

— O que é?

— Vou ficar ocupado por um tempo. Estava pensando em te dar umas férias, por uma vez.

— Férias?

Nunca tive uma antes. Na verdade, nunca tive motivo para tirar uma. Prazeres eram raros nesse mundo, e eu não tinha dinheiro para compras ou luxos.

— O que foi, isso não te deixa feliz? Vou preparar um cronograma para você, mas, fora isso, pode fazer o que quiser. Ou, se não tiver nada melhor para fazer, pode ajudar o pessoal com o açougue.

— Açougue? Você quer dizer que trazem os corpos dos monstros para serem cortados? Espera, vocês abatem monstros?

Nunca tinha nem considerado essa possibilidade.

— Só agora percebeu isso? O que acha que anda comendo, garoto? Tudo é processado aqui na guilda.

— Aquela carne era de monstro?!

Não podia acreditar no que ouvia. Aquela comida deliciosa era feita de monstros? Então não era apenas a habilidade culinária de Gulgar que dava à comida aquele... "presença", por assim dizer.

— E então? — Brod me pressionou.

— Mas... eu nunca vi monstros desde que cheguei aqui. Nem aventureiros trazendo corpos.

— Garoto, do que você está falando? Eles têm bolsas mágicas, obviamente.

— Bolsas mágicas...?

O conhecimento que Deus me concedera não mencionava nada sobre itens assim, então fiquei completamente surpreso.

— Você quer dizer um saco que pode guardar coisas bem maiores do que seu tamanho exterior? Que anula o peso dos itens e eles nunca apodrecem?

— O quê? Como você supostamente pararia o tempo? Mas sim, cabem itens bem maiores do que parecem, até um certo limite. São bem úteis.

Nada nesse mundo, além do uso de magia, realmente gritava "mundo de fantasia", então isso fez meu coração disparar.

— Devem ser caras.

— São. Pelo menos três moedas de ouro, mas se pagam com o tempo.

Isso equivalia a cerca de trezentas conjurações de Cura. Um aventureiro experiente ou alguém de uma família rica poderia ter uma, mas eu mesmo não precisava disso no momento. Ainda assim, queria experimentar um item desses algum dia.

Quanto ao açougue... Parecia que estavam me testando. Eu não tinha nada melhor para fazer, e tudo era experiência, então qual era o problema? Queria dar uma olhada nos monstros também. Quão diferentes essas criaturas ameaçadoras eram dos animais do meu antigo mundo?

Eu precisava me preparar mentalmente, ou poderia acabar congelado e tremendo no momento em que encontrasse meu primeiro monstro. Eu tinha que ver por mim mesmo se acabaria como no meu primeiro dia neste mundo. Compartilhei meu interesse com Brod, que parecia chocado ao me ouvir pedir diretamente para ajudar no abate, mas ele rapidamente concordou, e meus planos estavam definidos.

— Tudo bem. Vou avisar o responsável.

— Por favor, faça isso. Ah, e não sei quando isso será relevante, mas poderia me dizer onde posso comprar uma dessas bolsas mágicas?

— Claro, desde que continue treinando. Certo, chega de conversa. Hoje vamos lutar com essas espadas de madeira especialmente feitas.

Eu hesitei.

— Hm, você poderia segurar um pouco mais do que o normal? Ou melhor, bastante?

— Que frouxo.

— Tenho quase certeza de que essas coisas podem quebrar ossos.

— Ah, eu vou pegar leve, mas não vou aliviar. Só tente não quebrar nada e venha pra cima.

Já tínhamos usado lâminas antes, mas isso ainda parecia bem doloroso. E como diabos eu deveria “tentar não quebrar nada”? Olhei para meu instrutor, que parecia pronto para começar a atacar a qualquer momento, e fiz uma oração silenciosa pela minha vida antes de avançar.

Com mais um dia que reduzia minha expectativa de vida concluído, voltei para o meu quarto. No começo não era exatamente um, e agora também servia como clínica, mas estava começando a parecer meu espaço de verdade. Desde que voltei da Guilda dos Curandeiros alguns meses antes, ele foi se enchendo com roupas novas e roupas de cama luxuosas que recebi de presente.

Sempre que agradecia a Brod ou à equipe, eles me olhavam com a expressão mais piedosa possível, o que eu escolhi ignorar. Não queria ouvir suas respostas e, por isso, nem perguntava o motivo. Dívidas eram dívidas. Me joguei no treinamento de Brod para atender às suas expectativas. Depois, praticava minhas habilidades mágicas sozinho e então caía no sono. Essa era minha rotina diária.

Quando mencionei a Brod que meu quarto estava ficando apertado, recebi uma resposta inesperada e uma reforma completa nos meus aposentos.

— Ordem do Guildmaster — ele disse. — Eu aceitaria a gentileza dele.

— Eu nem conheço esse Guildmaster, mas se você diz… Nesse caso, gostaria de agradecê-lo. Onde ele está?

Brod me encarou, sem nem tentar esconder a irritação no rosto. Mesmo assim, eu precisava pelo menos tentar agradecê-lo por ter personalizado meu quarto daquele jeito.

— Ele não costuma estar por aqui. Eu passo o recado.

— Ah, entendi. Tudo bem, se não for incômodo.

Nós dois relaxamos a expressão ao mesmo tempo e soltamos uma risada meio constrangida. Ao que parecia, Brod tinha um status alto o suficiente na guilda para falar com esse cara. Tudo que pude fazer foi uma reverência, embora não soubesse se era realmente necessário, já que reformaram meu quarto sem nem me perguntar. Decidi não pensar muito nisso.

Três dias depois, minhas férias chegaram. Depois da rotina de sempre — treinos, alongamentos, corrida, arremessos e afins —, me empanturrei no café da manhã e tomei uma dose da Substância X.

— Você tem mesmo um apetite, hein?

— Ei, isso é bom. E se eu não tomasse essa coisa horrível, você ia atrás de mim com ela.

Ele realmente já tinha feito isso antes, na única vez que esqueci. Lembro como se fosse ontem: Gulgar abriu caminho no meio da multidão como Moisés no Mar Vermelho, segurando a caneca do líquido infernal como se fosse o cajado de um mago. Ele me alcançou e me obrigou a engolir ali mesmo. Como resultado, o boato de que minha língua era defeituosa só ganhou mais força.

— A culpa foi sua por esquecer.

— É, e dessa vez eu não esqueci — suspirei. — Estou indo.

— Aproveite seu descanso.

— Vou tentar.

Coloquei os pratos sujos no balcão e saí do refeitório. Normalmente, agora eu iria treinar, mas hoje, fui para uma sala ao lado do refeitório. Bati em uma porta nos fundos, que logo se abriu.

— Bem-vindo à sala de abate. Pode me chamar de Galba. Você é Luciel, certo? Valeu por vir dar uma mão hoje.

— Obrigado por me receber. Eu não tenho experiência nesse tipo de coisa, então já peço desculpas antecipadas por qualquer erro.

Galba, que parecia outro homem-lobo, era alto e esguio, mas bem forte. Mais um nome para a lista de pessoas com quem eu não deveria mexer. Ele também me parecia estranhamente familiar, mas eu não conseguia lembrar o motivo… até que ele mesmo me deu a resposta.

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— Não tem problema. E não precisa ser tão formal. Fale livremente, como faz com meu irmãozinho.

De repente, me dei conta. Tirando alguns quilos, eles eram a cara um do outro.

— Você quer dizer o Gulgar?

— Esse mesmo — ele respondeu animado.

— Vocês dois realmente se parecem muito — ri.

— Fico feliz em ouvir isso.

A alegria genuína em seu rosto me fez acreditar que eram extremamente próximos.

— Certo, acho que vou aceitar sua sugestão.

— Por favor, faça isso. E sem pressa; aja como for mais confortável para você. Agora, não temos muito tempo, então vamos direto ao assunto. Dependendo do monstro, os corpos podem ser bem rígidos ou até venenosos, mesmo depois de mortos, então só observe por enquanto.

— Certo — assenti.

Galba enfiou a mão em sua sacola e puxou casualmente um javali selvagem gigantesco.

— M-Monstros ficam desse tamanho?

— Hm? Ah, eu diria que esse é bem mediano.

Minha pergunta nervosa só serviu para me informar algo que eu preferia ter permanecido ignorante. Como eu deveria sobreviver em um mundo onde javalis gigantes tinham, em média, o tamanho de um carro pequeno?

Galba ergueu a carcaça e a jogou sobre a mesa com um baque surdo.

— Foram descuidados ao drenar o sangue aqui. Isso vai descontar pontos deles. Certo, vou começar agora, então preste atenção.

Apesar da facilidade com que ele ergueu a fera, ela devia pesar perto de cem quilos. Se algum desses membros da guilda tivesse vivido na Terra, ninguém os reconheceria como humanos, e Galba não era exceção. Isso era força sobre-humana (ou talvez, sobre-bestial). Acabei de colocá-lo na minha lista mental de “não se meter com esse cara”.

Enquanto isso, ele já havia começado a esquartejar a criatura. Ele a esfolou, retirou os órgãos e depois cortou a carne em blocos, colocando-os em uma sacola separada. Tudo foi feito de maneira tão fluida que eu simplesmente fiquei parado, observando o trabalho passar diante dos meus olhos. Galba manteve um sorriso no rosto durante todo o processo.

— E assim, já acabou — comentei.

— Bom, quando você faz isso centenas de vezes...

— Toda a carne é usada aqui na guilda?

— Nem toda. Vendemos parte dela para outras guildas ou açougues para ajudar a cobrir os custos.

Esquartejar parecia um trabalho bem comum, mas também bastante admirável se estivesse diretamente relacionado aos lucros da guilda.

— Sério? Então estou atrapalhando ao ajudar?

— De jeito nenhum. O Brod queria que você adquirisse experiência prática, mas esse não foi o único motivo para ele te mandar aqui.

— Qual foi o outro?

— Vemos todo tipo de monstro passando por aqui. Ele queria que você treinasse seu olhar para identificar pontos fracos, lugares onde você poderia atacar.

— O que quer dizer? Você fala como se eu realmente fosse lutar contra essas coisas.

Eu sabia que o treinamento do Brod era infernal, mas será que ele realmente pretendia me colocar contra monstros vivos em algum momento? Eu até queria upar rápido, mas o Brod não era do tipo que deixava alguém explorar atalhos assim.

Galba riu.

— Acho que é para aumentar suas chances de sobrevivência caso um dia se aventure. Hoje em dia, não há muitos novatos que se preocupam em se preparar como você está fazendo.

— Francamente, eu só não quero morrer.

Eu havia esquecido completamente o fato de que, tecnicamente, era um aventureiro. O que me tornava, de certa forma, um estudante numa escola para aventureiros.

Galba pareceu gostar da minha resposta e sorriu para mim, mas logo parou e balançou a cabeça, pesaroso.

— Nenhum aventureiro quer... mas muitos deles querem bancar o herói.

— Nunca tive essa impressão. Só estive focado em tentar acertar um golpe no treinador Brod.

— Você é importante, Luciel. Precisamos de pessoas como você.

— Eu... sou importante? — repeti, surpreso.

— Sim. Ainda há poucos dispostos a estudar sob a tutela do Brod como você está fazendo, mas para muitos — especialmente os novatos —, isso tirou um peso dos ombros. Menos deles estão morrendo, graças a você.

— Eu?

— Isso mesmo. Lutar contra monstros é fisicamente cansativo, sem dúvida, mas é mentalmente exaustivo também. Ainda mais se você estiver ferido.

— Faz sentido.

Aonde ele queria chegar com isso? Como isso se relacionava comigo, exatamente?

— Esses "heróis" que mencionei antes... Depois dos primeiros encontros com a morte, percebem que não são nada de especial. Muitos percebem tarde demais. Muitos se machucam tanto que não podem mais continuar como aventureiros por causa das sequelas.

— Então está dizendo que minha cura ajuda eles a abandonarem essas ideias de grandeza? Mas minha magia nem é tão eficaz assim.

— Sem você, muitos desses casos não teriam acesso a nenhuma cura.

Certo, os aventureiros mais pobres. Aqueles que mal conseguiam se manter.

— Fico feliz em ouvir isso, mas isso não pode fazer com que algumas pessoas ajam de forma imprudente, sabendo que podem ser curadas?

— O sistema de ranqueamento da guilda impede que isso aconteça. Eu não me preocuparia com isso.

Eu não tinha prestado tanta atenção na explicação introdutória quando me registrei. Talvez tenha perdido alguns detalhes sobre a hierarquia da guilda. Mas se ele disse que estava tudo bem, eu acreditaria. Ainda assim, se um mero curandeiro como eu era tão valioso, por que não haviam contratado um antes?

— Não existe um sistema para as guildas de aventureiros contratarem curandeiros?

Ele hesitou.

— Ouvi dizer que havia, no passado.

— Entendi.

O tempo passa e as coisas mudam. Incrivelmente, durante toda a conversa, Galba continuou puxando monstro após monstro da sacola e os esquartejando um por um. Fiz o possível para prestar atenção em tudo que precisaria saber quando chegasse minha vez.

Na hora do almoço, o cheiro de sangue me tirou completamente o apetite, mas Gulgar não se importou e me serviu sua montanha habitual de comida, incluindo porções generosas de carne. Felizmente, uma única mordida saborosa foi o suficiente para reacender minha vontade de comer.

À tarde, foi minha vez de esquartejar um monstro chamado coelho chifrudo enquanto observava Galba. Hesitei ao enfiar a faca no corpo, mas me dizer que era como cozinhar me ajudou a seguir em frente.

Eu nunca vou me acostumar com isso.

A sensação da carne se partindo me fez estremecer. Mas eu precisava fazer isso para sobreviver. Eu tinha que deixar isso claro para mim mesmo.

— Passe aqui na próxima semana, se puder.

A voz de Galba me trouxe de volta à realidade. Mais uma vez, eu havia me perdido em um turbilhão de pensamentos.

— Obrigado por hoje. Até semana que vem.

— Ah, já que está indo, leve isso para o Gulgar.

Ele me entregou uma sacola mágica. Dentro dela estava o coelho chifrudo que eu havia esquartejado, mas ainda assim, ela era incrivelmente leve.

— Entendido.

Eu fiz uma reverência, saí da sala e fui direto para o refeitório.

— Gulgar, isso é do Galba. — Entreguei a sacola para ele.

— Não precisava se dar ao trabalho. E aí, como foi o abate?

— Acho que agora eu valorizo muito mais as refeições que como.

— É mesmo? Ah, e se fosse você, eu trocaria de roupa.

Olhei para mim mesmo e percebi manchas de sangue azul espalhadas por toda a minha roupa. Senti meu rosto empalidecer.

Enquanto corria até o poço, Gulgar gritou atrás de mim:

— Não se atrase pro jantar, ouviu?

Aquele comentário familiar acalmou um pouco os meus nervos. Depois de passar no meu quarto para pegar uma roupa limpa, fui até o poço, onde lavei as mãos, arranquei as roupas e joguei água no corpo. Só depois de esfregar cada centímetro da pele foi que consegui relaxar de verdade.

— Meu Deus, que patético. Alguém teve que abater toda a carne que comi na minha vida passada. Um momento no lugar deles e olha como eu fico?

Respirei fundo, uma, duas, três vezes, depois me enxuguei e me vesti. Assim que terminei, Nanaella apareceu. As orelhas de coelho dela trouxeram de volta a imagem da criatura que eu havia esfolado.

— Senhor Luciel, você está bem? — ela perguntou.

— Sim, estou bem. Estava preocupada? Se sim, me sinto lisonjeado. — Foi o máximo que consegui em termos de brincadeira. Toda vez que olhava para o rosto dela, a imagem do coelho chifrudo voltava à minha cabeça.

— Sim, você estava tão pálido antes. Você ajudou no abate hoje, não foi?

— Você está bem informada. — Respondi.

— Foi sua primeira vez?

Tirando algumas tripas de peixe na minha vida passada, sim. Fiquei imaginando em que idade as pessoas desse mundo costumavam abater seu primeiro monstro.

— Foi, sim. Nunca tinha visto nada parecido antes.

— Entendo. — Ela se aproximou. — Deve ter sido bem difícil.

Ela sorriu e pegou minha mão com delicadeza. Com todo o meu treinamento, mesmo percebendo o quão deliberados foram seus movimentos, eu não consegui me esquivar do toque.

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— Suas mãos estão frias.

— Por causa da água. — Respondi casualmente. Mas ela estava bem ali, tão perto de mim. Meu coração não desacelerava.

— Acho que você está mais exausto do que imagina, Senhor Luciel.

— Exausto?

— Isso acontece com alguns aventureiros novatos. No calor da primeira batalha, quando a adrenalina está a mil, eles não hesitam em derrubar o inimigo. — Ela olhou fundo nos meus olhos. — Mas quando a poeira baixa e eles ficam sozinhos, a ficha cai. Isso consome a mente deles... como está consumindo a sua.

— Foi por isso que veio atrás de mim?

— Sim. O pessoal da guilda é muito grato a você, e isso me inclui. Queremos estar aqui para você.

Senti um peso sair do peito.

— Obrigado, Nanaella. Você se importaria de segurar minha mão só mais um pouquinho?

— De jeito nenhum.

Meu rosto devia estar mais vermelho que um tomate. Percebi que as bochechas dela também tinham ficado levemente coradas com minha sinceridade. Mas naquele momento, me permiti aproveitar sua gentileza.

Depois, quando voltamos juntos para dentro, fui recebido com olhares afiados de outros aventureiros. Nenhum deles fez nada além disso, o que me pareceu estranho até Melina e Mernell me lançarem um piscar de olhos cúmplice. Devem ter dito algo para acalmar os ânimos.

O que as duas não perceberam é que seus sorrisos e piscadelas geralmente só inflamavam ainda mais a situação. O fato de os aventureiros terem se limitado a encarar com raiva, apesar disso, devia ser pura consideração pelo que eu tinha passado.

Passei o tempo antes do jantar treinando sozinho e ajudando os aventureiros que voltavam precisando de cura.

Gulgar falou pouco naquela noite. O jantar foi preparado com a carne do mesmo coelho chifrudo que eu havia esfolado, o que me abalou um pouco. Segurei as lágrimas e comi cada pedaço do ensopado com muito mais apreço que o normal. Não sobrou nem um farelo.

— Tá indo bem? — Gulgar finalmente perguntou.

— Graças à Nanaella. Não sei se conseguiria me recuperar sozinho.

Ele me encarou por um momento.

— Luciel, tem certeza de que você não é meio ou quarto-fera ou algo assim?

— Hã? Sim, meus pais e avós eram humanos. Sem dúvida. Por que pergunta?

— Só uma sensação.

— Uma sensação, é?

A conversa morreu ali. Gulgar trouxe a jarra habitual de Substância X e voltou para a cozinha.

— Parece que os homens-fera sofrem preconceito por aqui, especialmente pelo jeito como os que eu curei reagiram... — murmurei para mim mesmo.

Engoli rapidamente minha bebida menos favorita.

Depois de dois dias treinando com Brod, ganhei outro dia de folga.

— Onde será que o treinador Brod anda se metendo? Pensando bem, eu não sei nada sobre ele.

Era estranho não saber absolutamente nada sobre alguém que cuidava de mim havia três meses. Mas ele nunca parecia querer falar sobre si mesmo.

Ele tinha saído de novo, aparentemente desde a noite anterior. Comentei minha preocupação com Gulgar e perguntei se Brod realmente tinha tempo para ficar se preocupando comigo.

— Só faz um favor e não diz isso na cara dele. — Gulgar retrucou.

Eu não sabia como ou por quê, mas nossos treinos pareciam servir de válvula de escape para Brod. Gulgar disse que era só avisar se eu me cansasse dos exercícios, mas garanti que estava indo bem.

— O que se faz com esse tal de "dia de folga"? — Saí do refeitório, pensativo. Eu podia treinar magia, mas agora lançar Cura sozinho aumentava minha maestria em míseros dois pontos num bom dia, enquanto curar outra pessoa rendia três ou até quatro. Então, meu treinamento solo se concentrava em Manipulação e Controle de Magia, o que já estava ficando cansativo.

— Aprender mais sobre abate com Galba não seria má ideia...

Eu estava imerso nesses pensamentos quando, de repente, alguém agarrou meus braços, me puxando de volta para a realidade. Tentei recuar, mas meus "sequestradores" previram meu movimento e me seguraram firme.

— Nanaella? O que você está fazendo?

Melina e Mernell também estavam envolvidas.

— Escuta, Luciel, seu conhecimento das coisas é... digamos, bem limitado. — Mernell sorriu de forma travessa. — Por sorte, Brod nos confiou a missão de consertar isso. Vamos te ajudar a estudar.

— Estudar o quê? Eu sou tão ignorante assim?

— Sim, e sinceramente é impressionante que tenha sobrevivido até agora.

— Hã... obrigado?

Eu tinha algumas respostas afiadas na ponta da língua, mas em vez disso, tentei escapar. Só que eu havia esquecido completamente da força do aperto de Nanaella no meu braço. Não tinha saída.

Meus três carcereiros me arrastaram para o andar de cima enquanto meu instinto de luta ou fuga tentava decidir o que fazer.

Eu estava confuso demais para resistir. No fim das contas, aprender mais não era algo ruim. Nunca odiei estudar ou adquirir conhecimento. Só havia um pequeno problema: aquelas três eram bonitas, tinham personalidades cativantes e, segundo os rumores, eram alvos de pequenos "clubes de fãs". Se elas fossem minhas tutoras particulares... um frio percorreu minha espinha.

Minha cabeça se encheu de preocupações. Mais tarde, porém, eu descobriria que não havia motivo para tanto pânico. Para os funcionários e aventureiros, eu não passava de um maníaco por treinamento, totalmente inofensivo. Além disso, alguns dos aventureiros mais pobres que eu havia curado faziam parte desses "clubes de fãs", então eu contava com certo apoio.

Uma guerra total contra os fanáticos não parecia estar no horizonte... ainda.

Mais do que isso, a maioria via as garotas como pastoras guiando um cordeirinho perdido e ignorante. E eu? Eu era só o cordeiro. Ninguém liga para o cordeiro.

Mas eu não sabia de nada disso naquele momento, e assim começou meu aprendizado... com apreensão.

Eu nunca tinha subido até o segundo andar da guilda antes. No topo da escada havia uma espécie de biblioteca, com estantes de livros cobrindo as paredes. Havia também várias outras salas, parecidas com as da Guilda dos Curandeiros, talvez usadas como alojamento para funcionários ou aventureiros. Como eu não tinha prestado muita atenção à explicação da Nanaella quando me registrei, agora não tinha coragem de perguntar sobre isso.

Nos sentamos em uma mesa, Nanaella à minha frente, Melina e Mernell à minha direita e esquerda, respectivamente. Eu estava tão tenso quanto alguém poderia estar nessa situação.

— Não precisa ficar tão nervoso — disse Nanaella, sorrindo.

Melina sorriu também.

— É, não vamos te morder. Você sabe ler, então memorizar as coisas vai ser fácil!

— Vamos começar — disse Mernell com um sorriso malicioso, um pouco mais diabólico que o das outras duas.

Nanaella estava bem mais descontraída e casual agora do que quando nos conhecemos. E, mesmo sabendo que Melina e Mernell estavam apenas brincando, fugir ainda não era uma opção. Meus olhos vagaram pela mesa, procurando algo que quebrasse a tensão, e alguns itens chamaram minha atenção.

Eles não eram livretos pequenos como o primeiro grimório que eu vi neste mundo, mas livros grandes e de capa dura. Além de tiras de pergaminho, cada garota tinha três desses livros. Não pude evitar a empolgação. Finalmente, minha animação superando o nervosismo, comecei a relaxar.

— Ei, pessoal, espaço pessoal. E quanto aos seus trabalhos? Já que estamos nisso, o que são esses nove livros? — No fundo, torcia para que não fossem todos textos idênticos.

Nanaella foi a primeira a responder:

— Tenho “Um Guia Ilustrado de Monstros”, “Monstros e Suas Fraquezas - Volume 1” e o primeiro volume de “Usando Partes de Monstros para Criar Armas e Armaduras”.

Melina falou em seguida:

— Eu trouxe “O Guia Completo de Ervas Selvagens”, “O Guia Completo de Cogumelos e Frutas” e um volume para iniciantes sobre medicina.

— Os meus são sobre os países e suas leis, religiões e mitologia — concluiu Mernell.

Eu agradeci mentalmente pelo resumo, mas a coleção de Nanaella parecia ser a menos relevante para mim.

— Hã... tudo isso é realmente importante?

— Claro! — elas responderam em uníssono.

Ficou óbvio que eu não teria voz nessa situação, então resolvi cortar minhas perdas e escolher o tópico que mais me interessava.

— Então eu gostaria de começar pelos livros da Mernell. Sei os nomes dos países, mas não conheço o nome de nenhuma cidade.

— Bem, ele está em suas mãos, Nanaella! — disse Mernell.

— Não esperava que você escolhesse algo tão razoável — comentou Melina.

Elas deixaram os livros na mesa e desceram. Olhei para Nanaella, que sorriu de volta.

— O Brod pediu para ensinarmos a você o conhecimento básico, sabe.

— Disso eu não duvido. — Se tudo fosse apenas uma mentira para brincar comigo, eu teria ficado bem chateado.

— Melina e Mernell só queriam se divertir um pouco. Elas queriam descobrir no que você tinha interesse.

— Ah, é? Bem, de qualquer forma, pretendo dar uma olhada nos outros livros também. Vocês têm mais?

— Temos muitos. Você gosta de ler?

— Sim, eu diria que gosto de uma boa história.

— Como a história de Reinstar?

A história de quê? Não podia dizer isso em voz alta, claro. Essa história provavelmente era famosa no mundo todo, e eu já estava cansado de ser reprovado por minha ignorância.

— Prefiro romances, pessoalmente.

— “Romances”? Isso é algo que você escreveu?

— Hã, não, só ouvi falar — respondi, torcendo para que ela não insistisse no assunto.

— Você vai ter que me contar sobre isso algum dia.

— Se houver tempo — disse, desviando. — Vamos começar a leitura. Hã, tem certeza de que pode passar tanto tempo aqui comigo?

— É um trabalho que precisa ser feito — disse ela, radiante.

Eu realmente amava o sorriso dela. Aquilo acalmava minha alma enquanto começávamos os estudos.

No centro deste mundo havia uma nação governada pela Guilda dos Curandeiros chamada República de Saint Shurule. Em seu coração ficava a Cidade Sagrada de Shurule, onde se localizava a sede da Guilda dos Curandeiros, supostamente dentro de um grande castelo. Merratoni, onde eu estava, ficava dentro das fronteiras da nação, mas longe da capital.

A guilda da Cidade Sagrada era oficialmente conhecida como Guilda dos Curandeiros da Igreja Principal. No passado, administravam um orfanato, mas não faziam mais isso.

— Por que pararam? — perguntei.

— Há muitos curandeiros que valorizam a riqueza acima de tudo — respondeu ela, tristemente. Vendo a expressão de desânimo dela, não tive coragem de perguntar mais.

Graças a uma barreira ao redor da capital que enfraquecia criaturas perigosas, a cidade não era ameaçada por monstros com frequência. Mas, considerando quantos aventureiros se machucavam por aqui, provavelmente era o único lugar com esse nível de proteção.

Shurule também era, aparentemente, a única nação que havia proibido a escravidão.

Ao noroeste ficava o Império Illumasiano. Antigamente um pequeno país, tornou-se o modelo do militarismo e acabou absorvendo as nações vizinhas, tornando-se o poder que era hoje. Uma cadeia de montanhas marcava a fronteira entre ele e Saint Shurule, impedindo guerras diretas, mas Illumasia estava há tempos em conflito com o Reino de Luburk, seu vizinho a leste. A escravidão alimentava a máquina de guerra de Illumasia, colocando-a em total oposição aos ideais de Shurule.

Além disso, Illumasia fazia fronteira direta com a Terra Sombria, lar de demônios e diabos. A região era selada, no entanto, impedindo seus habitantes malignos de escaparem.

O Reino de Luburk, atualmente em guerra com Illumasia, era um ambiente ideal para pesca e extração de madeira. Diziam que alguns dos seus bosques eram habitados por elfos.

— Você já viu um elfo, Nanaella?

— Já. Eles são lindos, como esculturas, mas tão expressivos quanto uma.

— Interessante. Falando em raças, pessoas-coelho são raras? Você é a única que conheci.
Então de novo, eu quase nunca saía do lugar.

— Não há muitas em Merratoni, mas estamos por aí — ela respondeu. — Porém, não costumamos sair de Yenice com frequência, porque já fomos caçados e capturados como animais de estimação.

— Sinto muito, foi rude da minha parte perguntar.

— Não, tudo bem. Você não fez nada de errado.

— Fico feliz por não ter te ofendido — falei meio sem jeito, aliviado.

Mudamos rapidamente de assunto.

Yenice era uma cidade-estado independente. O livro a descrevia como um caldeirão de raças, lar de diversos tipos de bestiais. Não era governada por um rei ou rainha, mas por representantes eleitos democraticamente.

Essa terra era o berço da maioria dos bestiais. Muitos que partiam ainda jovens retornavam mais tarde para formar suas famílias ali. Os temperos que Gulgar usava também pareciam ser importados de Yenice.

Era o único país sem um Sindicato dos Curandeiros; seus habitantes eram atendidos por um Sindicato dos Doutores. O território era vasto, com muitas áreas ainda não desenvolvidas, três vezes o tamanho de Saint Shurule. No entanto, para minha surpresa, poucas cidades existiam além da capital.

Eu deveria perguntar mais sobre isso para Nanaella e Gulgar depois.

Em seguida, havia a cidade-estado labiríntica, Grandol. Localizada a leste de Shurule e separada de Merratoni por montanhas, era onde os Sindicatos dos Aventureiros comandavam tudo, assim como Shurule fazia com os curandeiros. Era o berço do Sindicato dos Aventureiros e o local onde um labirinto foi descoberto pela primeira vez.

Essas criptas famosas geravam monstros, que se transformavam em pedras mágicas e desapareciam ao serem derrotados. Mas as pedras não eram a única coisa a se coletar por lá. Diziam que também havia armas, itens mágicos e ouro esperando para serem saqueados, atraindo indivíduos poderosos do mundo inteiro em busca de uma fatia dessa fortuna.

Hoje em dia, as coisas eram relativamente organizadas e supervisionadas, então não era como se alguém pudesse simplesmente ser morto nas ruas, mas ainda assim era um lugar perigoso.

Ao sul de Grandol e a leste de Yenice ficava o ducado de Blanche. Muito tempo atrás, havia um país que desenvolveu um tipo de magia de invocação capaz de chamar um herói para derrotar o Rei das Trevas. Eles conseguiram unificar o mundo por um tempo, mas o herói foi morto, a monarquia caiu, e a aristocracia assumiu o poder, dando origem ao ducado de Blanche. Como sua habilidade de invocar heróis ainda servia como um escudo útil contra inimigos, eles passaram a exaltar a supremacia humana e implementaram políticas especialmente severas contra bestiais e elfos.

Talvez não fosse apenas Blanche que compartilhava essa crença, mas também certos grupos de curandeiros. Por outro lado, a ausência de um Sindicato dos Curandeiros em Yenice certamente sugeria um certo viés, mas não havia garantia de que os próprios habitantes de Yenice não discriminavam os humanos da mesma forma. Aqui em Shurule, não havia nada religioso que pregasse a superioridade humana, mas esse sentimento provavelmente ainda existia, especialmente entre os curandeiros. Muitas coisas começaram a fazer sentido para mim.

Certamente ninguém deixaria um paciente morrer quando ele estivesse à beira da morte apenas por causa de sua raça, certo? Para fazer algo tão cruel, era preciso ser um fracasso absoluto como curandeiro.

— Você sabe por que não há um Sindicato dos Curandeiros em Yenice?

— Eu não sei os detalhes — ela disse hesitante —, mas acho que já houve um. Ouvi dizer que os sábios mantinham distância dos aventureiros que visitavam a cidade.

— Por quê? — insisti.

— Sinto muito, não sei dizer.

— Não, tudo bem. Me desculpe por ficar insistindo.

Ficamos nos desculpando um para o outro por um tempo. Parecia que estávamos realmente começando a nos conectar.

Peguei emprestados os outros livros e decidi que faria perguntas sempre que tivesse um dia de folga. Nanaella me ofereceu pergaminho, pena e tinta para que eu pudesse registrar meus pensamentos.

Atividades como essa começaram a preencher meus dias de folga enquanto minha vida como recluso do Sindicato dos Aventureiros continuava.


Tradução: Carpeado
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